domingo, 27 de dezembro de 2009

Fofocas de Natal

Vidas loucas, ritmo frenético e agenda diária muitas vezes exaustiva, mas tudo isso passa para um segundo plano quando se aproximam os dias que antecedem o Natal. Da festa natalina de sentido religioso que marcava originalmente o nascimento daquele que viria para salvar a humanidade, até nossos dias tingidos de luzes e de verde e vermelho, ainda restam alguns valores quase sagrados que parecem tocar a grande maioria. Não se pode negar a movimentação geral em torno das confraternizações generalizadas e das trocas de presentes e agrados que pontuam os finais de ano, que de certa maneira ainda celebram a irmandade, mesmo que dançando ao som do consumo. Personagem antigo desta festa, Papai Noel foi ganhando espaço e seu mito de bom velhinho que jamais se esquece de qualquer criança deste nosso mundo, pronto a farejar seus desejos mais íntimos e a realizar os sonhos adiados, invadiu o imaginário cultural. Espalhados pelas cidades, vários homens se candidatam ano a ano a vestir sua roupa vermelha e sua barba branca e a oferecer aos olhos encantados dos pequeninos, a repetição da fantasia infantil de Natal. As crianças mais velhas e mais sabidas se comprazem em guardar este segredo a sete chaves, para que os pequeninos ainda desfrutem do mito, assim como seus pais que aguardam ansiosos suas reações, torcendo para que eles incorporem esta velha crença mesmo que por pouco tempo. Farejando a importância desta figura, muitos dos grandes shoppings e magazines criam tronos encantados e contratam seus “papais noéis” de carne e osso promovendo filas imensas de pais e suas criancinhas que aguardam pacientes só para ter alguns minutos deste colo vermelho ou lhe segredarem entre assustados e excitados, seus pedidos de Natal. Nenhuma novidade até aqui, apenas cenas banais do mês de dezembro. Uma reportagem da Folha on-line desta semana,no entanto, chamava a atenção para o papel de psicólogo do Natal que os “papais noéis” da cidade vêm assumindo. Entrevistados por repórteres em busca dos “segredos” que seus ouvidos guardam, muitos “papais noéis” puseram-se a contar fatos e falas de crianças que teriam marcado sua carreira de bom velhinho. A surpresa ficava por conta dos relatos sobre as reações ou pedidos de alguns adultos acompanhantes, fosse porque choravam emocionados ao ouvir os pedidos de seus filhos, ou porque eles próprios, mesmo que envergonhados, acabavam por fazer seus pedidos. Sem preparo algum para responder aos “bem mais complexos” anseios adultos, restava à sensibilidade de cada “papai noel” escutar ou não os ecos de suas carências. No vai e vem frenético das vidas coloridas de verde e vermelho desta época, parece ficar bem mais doído para os excluídos da “festa”, sua sensação das faltas. Destas, a falta de amor é sem dúvida muito dura, mas mais que esta é a falta de esperança que tinge a tudo de cinza. Um bom Natal a todos.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Vampiros saem do “armário”

Em entrevista à Folha Ilustrada dias atrás, Aguinaldo Silva, autor da nova minissérie da Globo “Cinquentinha” justificava a criação de um personagem gay vilão dizendo que ser homossexual não significa ser bonzinho e legal. Como as cores do arco-íris, nós humanos, homens, mulheres homossexuais ou não, apresentamos uma imensa variedade de tonalidades e compomos cada um, uma certa estética, ao conjugar ao longo de nossas vidas, alguns adjetivos pelos quais seremos lembrados e descritos. É possível que sua fala também pretendesse contrapor-se a de outro autor global, Gilberto Braga, para quem a existência de personagens gays em novelas, fato recente em nossa cultura noveleira, demandaria um cuidado especial, talvez levando em conta a dificuldade de se fazer mudanças em nosso imaginário, composto que é pelas nossas crenças e valores. Neste sentido, apresentar um personagem gay que seja consistente, alguém a quem podemos admirar e nos identificar em alguns aspectos ou em algumas escolhas e ações, poderia atenuar a nossa resistência imposta por nosso preconceito contra a homossexualidade em geral. É assim, lentamente e de forma complexa que nosso imaginário assume variações ao longo da história e das diferentes culturas. Podemos fazer o mesmo percurso se ao invés de nossos preconceitos elegêssemos nossas superstições e mitos, que criamos para tentar dar um destino a tudo o que nos é enigmático ou não podemos dar sentido, seja em nossas vidas (leia-se nossos sentimentos ou desejos inconfessos ou tudo o que é da ordem do excessivo e do traumático), seja nas imposições e surpresas que o mundo e as pessoas nos brindam. Os bruxos e os vampiros estariam nesta categoria de mitos criados por nossa imaginação para conter não só nossos desejos insanos, vorazes e ferozes, como nossos ódios e violência. Quem não ouviu falar das “bruxas” da época da Inquisição, aquelas a quem a população podia apedrejar e deixar queimar como um ato expurgatório e coletivo, em que todos se livrariam de seus “males” e pecados? Ou de nosso vampiro mais famoso, o Drácula, o morto-vivo que saía nas noites escuras para sugar o sangue de suas vítimas, representando nossos desejos mais escondidos de nos utilizarmos das coisas e dos outros para nossa total satisfação, sem nos preocupar com a dor ou o prazer de nossos eleitos? No entanto, fenômeno recente, tantos os bruxos quanto os vampiros, personagens tarimbados de livros e filmes feitos ao longo dos dois últimos séculos, passaram a “sair do armário”. Harry Potter é o protótipo do bruxo ético, que se preocupa em refletir sobre a utilização de seus recursos de feiticeiro visando o bem comum ou o auxílio aos mais fracos, excluídos e abusados. Faltavam os vampiros, estes seres antes amantes da transgressão, da noite e do sexo que na onda da série iniciada por “Crepúsculo”, passaram a se apresentar como seres que tem ciência de seus problemas e sabem que podem prejudicar aos outros, o que os leva a tentar controlar sua sede de sangue e suas ações predatórias. De uma forma geral, estas novas roupagens para antigas questões antes tão disruptivas dão o tom da cultura de hoje, tão preocupada em dar um sentido mais “confortável” aos nossos muitas vezes assustadores desejos.Ou quem sabe podemos fazer uma leitura alentadora, a de que finalmente aceitaríamos conviver com nossa caixa de pandora, de preferência sendo o dono de sua chave e abrindo-a quando necessário.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Gestão de tendências

O título da coluna de hoje tenta brincar com a linguagem dos marqueteiros, já que os próximos capítulos da história de nosso cotidiano parecem estar sendo traçados por seríssimos profissionais, todos antenados em nossas “tendências”. Não é por acaso que as pesquisas das áreas de marketing, administração e publicidade buscam investigar os comportamentos e as motivações humanas que passaram a reger a dinâmica mercadológica do mundo empresarial. O mercado vive e sobrevive hoje graças aos sinais de nossos novos comportamentos, novos modos de vida, atitudes, gostos, escolhas. Investe-se pesadamente em estratégias que permitam desvendar e interpretar nossos valores, sentimentos e crenças, estilos de vida, as tendências sociais e as implicações de tudo isso no consumo. Área antes quase exclusiva de psicanalistas, que costumam emprestar seus ouvidos com o intuito de escutar e dar sentido às motivações mais escondidas de cada um (leia-se inconscientes), aquelas que rondam o desejo, que promovem a construção de muralhas de defesas, sofrimentos dilacerantes ou alienações assustadoras, cada vez mais os olhos, ouvidos , nariz e bocas dos “caça- tendências” tentam antecipar o destino dos movimentos do futuro consumidor destrinchando as motivações de seu consumo, se mais orientadas pela busca de status e poder ou se privilegiando razões mais afetivas como paz , amor e felicidade. Apresentado desta maneira, o texto acima pode causar arrepios aos que apostam em um futuro ao estilo “Matrix”, em que viveríamos alienados, na doce ilusão de sermos protagonistas de nossas vidas quando na verdade seríamos simples máquinas guiadas por um controle sutil e quase imperceptível sobre toda a nossa rotina. Mas pouco pretensioso em sua análise, o texto apenas questiona um destino humano sem alguma autonomia e prefere sublinhar seu contraponto. É comum nos dias de hoje emprestar à publicidade um largo poder de coerção sobre a conjugação de verbos humanos como desejar, precisar, ansiar, necessitar. A publicidade estaria mediando-nos, criando objetos sempre renováveis ao quais nem sonharíamos, somente para manter nossa sede de consumo. Mas o atual e badalado estudo de nossas “tendências” mostra que para se construir este arsenal de ofertas, são necessárias ferramentas que possibilitem “escutar” os caminhos de nossos desejos, o que não só demonstra a força destes desejos humanos, como paradoxalmente confirma sua inconsistência, já que sempre insatisfeitos, eles perseguem indefinidamente uma satisfação, que logo mais terá que ser renovada. De certa maneira ao estudar a lógica do consumidor pelos caminhos de sua subjetividade, acaba-se por radiografar o interessante panorama da dinâmica da cultura atual, que em constante mutação, em poucas décadas deslocou o antigo e único alvo empresarial do lucro para a satisfação dos clientes. Somos nós, estes enigmáticos consumidores que tanto podemos nos submeter e aderir às ofertas como podemos resistir e recusar os clichês. Detalhe: são estes grupos de consumidores inovadores, que brincam com a linguagem, constroem associações e sentidos inesperados, os responsáveis pela abertura de novos campos de prazeres e por isso o principal alvo dos “coolhunters”. Alguém pensou nos jovens?

sábado, 5 de dezembro de 2009

O carma da adolescência

Tema polêmico que em geral provoca exaltação entre os pais, a adolescência é sempre lembrada como aquela fase em que os filhos escapam tímida ou escancaradamente dos arbítrios parentais. Tudo passa a ser checado e contestado com o intuito de poder se reinaugurar e fugir da sina de se tornar um museu, aumentando as fotos familiares que ficam expostas para contar e recontar a mesma história. De certa forma deveríamos reconhecer as vantagens do fato de nossos jovens ansiarem buscar ativamente, embora muitas vezes a preços exorbitantes, encontrar uma versão própria de sua história, aquela que já adultos, poderão enfim organizar e narrar. É assim que se abrem caminhos para novas verdades e novos movimentos transformadores de nossa existência. Claro que muitas de nossas angústias de pais nascem de nossos temores, não tão infundados, de que nossos pimpolhos não estariam preparados para enfrentar o lado sórdido do mundo. Como esquecermos os jovens enlouquecidos ou drogados, pesadelos de boas famílias, ou os que se assumem como homossexuais, que tiram nosso sossego quando imaginamos seu poder de sedução sobre os nossos inocentes? Isto sem levar em conta os restos de qualquer categoria humana que invariavelmente insistem e são responsáveis pela violência verbal e física sobre si ou sobre os outros, que muitas vezes assumem condutas de alto risco, comportamentos de errância, atos de incivilidade e de agressão gratuitos e com isso depreciam nossas obrigações sociais e nossas figuras de autoridade, ponteiros indicadores de nossas ações. Enfim a adolescência é mesmo este marco na vida de todos (ainda que assuma um estilo para cada cultura e época histórica) em que se tenta fazer esta passagem difícil entre nossa dependência e nossa autonomia, essencial para podermos ser parte de uma sociedade humana. E, diga-se de passagem, também é essencial que exista este conflito (às vezes eterno) entre nossa ânsia de nos libertarmos de nossas amarras infantis e nossa necessidade de colo e amparo. Esta rota de lutas para a nossa humanização é que permite a cada um apropriar-se de um futuro que, pelo trabalho, nos faz sócios na categoria plena da sociedade humana. Neste imenso mercado em que o mundo se transformou, cabe cada vez mais a cada um buscar uma afirmação no espaço social, uma aquisição de competências, tarefas sempre longas e árduas, que exigem sacrifícios e renúncias importantes. Até porque para fazer parte do mercado de trabalho hoje, todos (jovens ou não) precisam ir muito além do bom técnico ou conhecedor em alguma função. Mais do que uma formação plural, é exigido uma definição de um estilo próprio, um modo de existir e de ser que requer um certo saber sobre si e sobre o outro e uma percepção apurada do mundo ao seu redor, que permita detectar suas fendas, seus sintomas, seus restos e suas incansáveis possibilidades de transformação. Um carma e tanto: rebelar-se para criar o novo.

sábado, 28 de novembro de 2009

Sobre verdades

O programa Pânico na TV costuma caçar personagens bizarros e promove-los à fama, em geral à custa de uma exposição de cenas ao mesmo tempo hilárias e constrangedoras. É o caso de Zina, o torcedor corintiano que se deslumbrou com a entrada de Ronaldo no time, passando a repetir seu nome e uma única frase sobre seu desempenho. Há poucos dias, Zina foi detido por porte de cocaína. Geisy, a estudante achacada por seus colegas e expulsa pela faculdade por trajar um vestido rosa choque considerado inadequado para a ocasião, desfruta da fama que provavelmente sonhara mas jamais supunha alcançar tão rapidamente. Aqui e ali a mídia solta alguma nota sobre os próximos capítulos de sua vida, geralmente confirmando um bom aproveitamento de sua imagem. Zina repete sem parar as mesmas palavras e seus limites são utilizados para aumentar a audiência de cenas do cotidiano que podem virar piadas. Já Geisy aproveita a maré a favor para promover sua imagem e ganhar prestígio. Não se pode dizer que estas duas situações sejam condenáveis (ainda que possam ser desconfortáveis para alguns). Afinal, já há algum tempo habitamos um mundo em que a mídia alimenta e precisa ser alimentada pelo nosso cotidiano. Mas estas cenas apontam para a confusão em que se encontram nossos valores, nossas ações e os limites que caberia a cada um de nós gerenciarmos no uso da liberdade que hoje dispomos. Uma liberdade que vale lembrar, foi conquistada às duras penas por gerações que nos antecederam e por gerações ainda na ativa, mas que paradoxalmente nos deixa muitas vezes sem referências para fazermos um bom uso dela. Geisy e a Turma do Pânico na TV anseiam por alcançar o maior número possível de espectadores interessados em suas proezas, de olho em um pouco de fama, prestígio, sucesso e dinheiro. Em meados dos anos 90, os artigos de Stephen Glass o alçaram a um dos mais jovens e requisitados jornalistas de Washington. Existe inclusive um filme feito em 2003 (e anunciado pelo atual Ciclo de Cinema e Jornalismo da Folha de SP) que conta a história verídica deste jornalista que em um curto tempo de profissão e com pouco mais de 20 anos, já fazia parte do quadro de repórteres da conceituada “The New Republic” graças as suas pautas espirituosas, curiosas e instigantes. Seu tremendo sucesso, no entanto escondia um faro especial para produzir notícias forjadas, muitas delas totalmente criadas por sua imaginação. Ao ser desmascarado por um colega de uma mídia rival que resolveu investigar mais apuradamente uma de suas reportagens, provocou barulho e discussão a respeito do poder da mídia sobre o público e da importância da ética na divulgação de qualquer informação. A verdade é que a mídia habita esta fronteira precária entre o vício e a virtude, já que por um lado depende do interesse do público e acena o tempo todo com a possibilidade de alguns minutos de fama para qualquer cidadão, e por outro desfruta de liberdade para veicular qualquer assunto. Nosso jornalista demitido resolveu cursar Direito e após terminar a faculdade escreveu sua ficção: a história de um jornalista que inventava reportagens atrás de sucesso rápido e fácil. Não parece difícil analisarmos as razões psicológicas que motivam estas exposições midiáticas. Muito mais complexo é construirmos razões morais para que cada um possa se comprometer com o respeito à verdade dos fatos e aos limites imperiosos que regem a convivência entre nós. Vale lembrar que a mesma mídia de que falamos nunca foi tão livre para confrontar suas próprias imposturas.

coluna dia 25 de novembro

domingo, 22 de novembro de 2009

Homens e Machos

Há um consenso em torno do fato do século passado ter sido palco de conquistas político-sociais importantes tanto para as mulheres quanto para os gays. No Ocidente em geral, há hoje leis que protegem os direitos conquistados por ambas as categorias, o que certamente fará com que as novas gerações nasçam com estes valores já consolidados, que acabam se tornando verdades ao serem inseridos na cultura. Já o século XXI tem reclamado um olhar mais apurado para o lugar dos homens. Com espaços e referências quase absolutas, eles viram seu antigo “habitat natural” que já vinha com regras, manual de instruções, rituais de confirmação, roteiros pré-estabelecidos, ser lentamente desmantelado. Por todos os lados assistimos filhos, pais, jovens, idosos, estudantes ou profissionais vivendo entre este modelo arcaico e geralmente inadequado ou se aventurando a buscar novas referências, construir novos lugares. São pais que já não sabem bem como ser um bom modelo de homem para seus filhos, ou jovens que questionam os velhos rituais do bom macho. Velhas frases, antes tão repetidas por todos tornam-se obsoletas: homens não choram, não cozinham, não cuidam de bebês, não dividem as despesas com suas companheiras, não recusam convites para transar, não ligam para a própria aparência, não cuidam de seus corpos,são sempre corajosos, destemidos e em geral brutos. Não há como negar que estas exigências tradicionais devessem significar um alto custo para a imagem de cada um.Todos precisavam estar aptos a entrar nas arenas masculinas e batalhar por poder, prestígio e principalmente pelo reconhecimento dos outros homens. Estes eram os valores que a cultura tradicional confirmava como sendo viris. Na cultura atual há uma busca de todos por prestígio e poder (homens, mulheres, homossexuais ou não) e muitos dos antigos caminhos masculinos são vistos como imposturas. A maioria dos homens se vê jogado em um revolto alto mar e incitado a aprender a nadar rapidamente. O reconhecimento passa necessariamente por uma árdua conquista do lugar que cada um deverá ocupar e não está mais dado por antecipação. Até os filmes atuais começam a dar espaço para os novos dramas masculinos e suas tentativas de soluções. Entrou em cartaz na capital “À procura de Eric”, do diretor inglês Ken Loach. Os homens mais ligados ao futebol se lembrarão do ídolo Eric Cantona que nos anos noventa arrasava no “timão” dos ingleses, o Manchester United. Pois neste filme ele próprio protagoniza um “anjo da guarda” de um carteiro que também se chama Eric, cuja vida está tão sem sentido que a única solução à vista é dirigir seu carro em alta velocidade e na contramão até “morrer”. Sem conseguir morrer, o carteiro que foi abandonado pela segunda mulher ( que o deixou com dois enteados), chama a atenção de seus colegas de trabalho que decidem pensar em estratégias para ajudá-lo. Em um ritual sugerido por um livro de auto-ajuda, eles são convocados a pensar, cada um individualmente, quem seria a figura de um homem que eles admiram ao qual eles imaginam que teria feito coisas que eles valorizam. Claro que nosso Eric elege como seu ídolo maior aquele que habita um pôster em seu quarto, o Cantona cujos passes e gols estão todos gravados em sua memória. É ele quem irá imaginariamente (e de forma bastante sensível) “papear” com o carteiro, fazendo com que este confesse suas mais humilhantes memórias, aquelas das quais se envergonha justamente por não ter correspondido ao ideal de homem que ele achava que seu pai exigia, ou que sua amada esposa ( a primeira e mãe de sua filha) esperava dele. Um filme feito por homens e dirigido aos homens, que levanta questões que afligem a todos nós na era atual. De certa maneira é a “irmandade” de carteiros que possibilitará à Eric o acolhimento necessário para que ele se sinta homem, não mais com “H” maiúsculo, apenas um homem capaz de amar e ser amado por aqueles a quem ele admira.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gabrielle (Coco Chanel)

Gabrielle, 12 anos, já tinha perdido sua mãe quando seu pai deixou-a aos cuidados de um orfanato em uma pequena cidade da França, junto com Adrienne, sua irmã mais velha. Na próxima cena é domingo, e Gabrielle já está vestida a espera do horário em que algumas crianças serão visitadas por seus parentes. Ao contrário da irmã que parece já estar conformada, Gabrielle se postará em vão todos os domingos, à espera de uma visita do pai. Estas são as primeiras cenas do filme que entrou em cartaz recentemente para contar a história da estilista Coco Chanel, nascida no início do século passado e reverenciada por ter mudado os rumos da moda, em uma época em que somente aos homens cabia ditar as regras e as direções das coisas. Foi assim que os espartilhos, os brilhos, plumas, peles e chapéus enormes, frutos de um conceito que privilegiava a ostentação e não o conforto, foram dando lugar a um estilo “clean” , em que o jérsei de malha, os tecidos xadrez, o preto e o branco básicos, inauguravam uma nova estética, mais condizente com o século em que as mulheres iriam construir seu lugar no mundo. Enfim uma mulher que saberia o que as outras adorariam vestir! Esta também é a história da menina pobre e órfã, que graças ao seu talento e criatividade, uma boa pitada de esperteza e muito empenho, se transforma na cultuada Mademoiselle Chanel, em um mundo cujas portas até então só estavam abertas para os nascidos ricos. Alguns historiadores dizem que o século XX foi pequeno para conter todos os acontecimentos e mudanças que nele ocorreram. Das guerras à conquista de liberdades jamais imaginadas, é difícil pensar que em pouco mais de cem anos, o Ocidente se transformou em um palco pós - moderno, que exige de todos os que nele vivem uma abertura para o novo e o incerto. Mas como acontece em tentativas de documentar a vida de algumas personalidades conhecidas por todos, alguns jornais e revistas reclamaram o fato do filme não abordar o que consideram uma falta grave de nossa personagem famosa. Ela teria sido amante de um espião nazista, que morava no mesmo hotel da estilista, o famoso Ritz de Paris, e quiçá incitada a ser colaboradora em alguma negociação. A França, talvez por sua tradição social humanista, berço da revolução que consolidava os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, radiografou o colaboracionismo da maioria dos franceses na época em que houve a ocupação nazista. As mulheres que dormiram com alemães tiveram seus cabelos raspados no final da guerra, e foram obrigadas a desfilar ao som da multidão que as condenava. Mas em tempos de censura, perseguição e principalmente de falta de dinheiro, alimentos e trabalho, as razões para a colaboração são inúmeras e dentre estas, uma grande parte para tirar proveito da situação de exceção. Que estas informações sobre Coco Chanel possam mostrar sua falta de engajamento ideológico com o significado daquela guerra insana, também nos faz pensar na maneira obstinada com que ela tentou sobreviver, utilizando-se sempre de todos os recursos à sua mão, inclusive das influências de muitos de seus amantes. Há poucos meses o filme sobre a vida de Simonal, trouxe à tona este questionamento. Resgatando sua ascensão surpreendente, seu charme e gingado irresistível, o documentário faz reviver uma época em que as rádios e TV tocavam seus hits que levavam multidões a dançar e cantar. Também ele havia feito o percurso do negro pobre e favelado que conquista o sucesso que lhe concede o direito de namorar loiras e passear de carrões no Leblon. Mas sem nenhum senso político, vê sua vida artística desmoronar ao não se importar em compartilhar da lógica truculenta que fazia parte dos porões da ditadura militar. Quem sabe, como a menina Gabrielle, ele lutava com unhas e dentes para se manter naquele patamar que por sua infância pobre jamais sonhara.

coluna do dia 11 de novembro de 2009

domingo, 8 de novembro de 2009

Fama e platéia

Foi em larga escala internáutica, mas principalmente pelo boca a boca que uma grande parte da pessoas se inteirou de um fato bizarro ocorrido na última quinta-feira, dia 22 de outubro, na Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban), da unidade de São Bernardo do Campo.Uma de suas alunas, conhecida por “Loirão” teria ido à aula com um mini vestido rosa choque considerado abusivo e inadequado para o local, o que gerou inesperadamente uma revolta em massa dos alunos presentes ( homens e mulheres), que passaram a segui-la em conjunto,agredindo-a com palavras e em alguns momentos ameaçando-a fisicamente. Em um lance rápido a turba de inconformados aumentou e saiu clamando de forma hostil por sua condenação, a ponto de ser necessária a intervenção de policiais (chamados a comparecer à escola por alguns colegas aflitos da vítima) para escoltá-la até a saída da escola. Como costuma acontecer na web,alguns minutos depois já circulavam vídeos e uma avalanche de análises que tentavam ora entender a reação violenta, ora expor uma posição contra ou a favor da moça. Nestes textinhos era possível “ouvir” o espanto dos inconformados, para quem o ato transgressor não corresponderia em hipótese alguma à ira e ao ódio da multidão. Outros preferiram crucificar nossa jovem por sua ousadia ao exibir sua sensualidade e seu corpo com a nítida intenção de chamar a atenção sobre si. Em entrevista feita para um site, a aluna em questão mostrou-se assustada e surpresa com o ocorrido, principalmente porque seu vestido fazia parte do seu estilo de vestir, ao qual a maioria já deveria ter se acostumado. Ao final, tem-se a impressão que sua fama de “gostosa” entre os colegas, alimentava sua auto-imagem, o que produzia um bem estar consigo própria. A fama é facilmente pareada com o sentir-se amada. Enfim podemos fazer uma série de comentários a respeito deste singular episódio, todos na tentativa de entender suas motivações, mas que certamente não esgotam sua complexidade. Sabemos não ser tão incomum este tipo de ocorrência em que um grupo age de forma selvagem, liderado por uma ou outra pessoa disposta a incitar e inflamar os que estão ao seu redor. A adesão imediata e quase cega da maioria dá a impressão de que cada um abdica da capacidade de pensar por si próprio e deixa-se conduzir como parte de um rebanho e ao sentirem-se de certa forma solidários, incentivam-se e protegem-se mutuamente. Assim irmanados, facilmente se transformam em instrumentos de uma voz de comando que os arrasta a atos violentos que talvez jamais tivessem coragem de praticar. Em geral esta voz parece garantir que o mundo se divide em bons (nós) e pecadores ( a moça), o que faz com que o preconceito e o ódio se espalhem rapidamente. Como explicar este estranhamento repentino entre colegas de faculdade? Talvez este seja um momento em que cada um tenta se livrar daquilo que no íntimo desejasse fazer ou se deixar atrair. Com isso o ato “condenável” da colega pode ser super dimensionado, e é possível dedicar toda ira a ela, deixando claro que jamais se realizaria o mesmo. Por seu lado, a jovem, assim como todos, tenta buscar uma afirmação, algo que a “diferencie” de todos e a coloque em um lugar especial. Ao conquistar este espaço via exibição de um corpo bem feito, passa a habitar um lugar disputado, mas caminha o tempo todo na corda bamba, precisando inventar -se continuamente para manter a fama e a promessa. Sabemos bem que não existe fama sem platéia!

coluna do dia 4 de novembro de 2009

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Onde mora a amizade?

É comum ouvirmos discursos sobre o destino nefasto das relações entre as pessoas no mundo de hoje. No entanto, parece ser um anseio de todos, serem amados e reconhecidos. Na verdade o amor e a amizade são temas caros, daqueles que guardamos em lugares especiais, quase sagrados, geralmente acompanhados de alguns pedaços de poesias, trechos de livros, frases feitas ou escritas que possam lembrar ou reforçar nossos ideais, como gostaríamos de ser ou ter sido para aqueles que valorizamos, ou como queríamos ser importantes para eles. Esta introdução foi inspirada por minha surpresa, ao tomar conhecimento da inauguração da exposição "O Pequeno Príncipe na Oca", como parte das comemorações do Ano da França no Brasil. Para os que não conhecem, a Oca é um dos espaços criados por Niemayer para o Parque Ibirapuera de São Paulo, e deste, cerca de dez mil metros quadrados serão habitados por este principezinho que encanta crianças e adultos há 66 anos e por seu criador, o aventureiro aviador Antoine de Saint-Exupéry, até o dia 22 de dezembro deste ano. Se a surpresa pode e deve ser um pretexto para refletirmos, é fato que a estória do Pequeno Príncipe goza de certa unanimidade quanto ao seu valor. Uma obra simples, com desenhos feitos pelo próprio autor, que consegue criar personagens ao mesmo tempo comuns, mas que guardam um sentido simbólico (um príncipe, um homem solitário, uma raposa, uma rosa, uma serpente, entre outros) em busca de um significado para as condutas humanas, valorizando a amizade. No entanto, qualquer que seja a tentativa de dignificar o valor da amizade nos faz deparar com as inúmeras dificuldades de sua manutenção. Um bem precioso, sem dúvida, mas sabemos o seu custo e os equívocos possíveis. Quantas vezes assistimos, desolados, as “leis” valerem somente para os “amigos”? Quantas vezes nos decepcionamos ao perceber nosso “valor utilitário” nas amizades? Ou quantas vezes apostamos que os amigos seriam sempre fiéis e confiáveis? Ou sinceros? Mas para aqueles que desconfiam definitivamente da amizade, e pregam sua impossibilidade em um mundo que preza a competição e a busca frenética de um lugar ao sol, a verdade é que a amizade ainda sustenta um lugar precioso nos dias de hoje. Pensemos no incrível avanço que a comunicação obteve pelo desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, criando novíssimas oportunidades de nos conectarmos o tempo todo com um número inimaginável de pessoas. Com certeza um desejo nosso, de nos sentirmos ligados, de podermos contar a qualquer hora, minutos, segundos, com alguém do outro lado dos celulares ou da internet. Talvez por vivermos em um mundo sem garantias, cheio de imprevistos, que nos exige criatividade e jogo de cintura, a amizade venha ganhando este espaço de valor. Mas ainda assim, estamos no plano do que deveria ser. Do que gostaríamos que fosse. No plano do ideal, espaço mais comumente habitado pelo amor e pela amizade. Isto porque tanto um quanto outro pedem um reconhecimento da diferença do outro, uma valorização do espírito comunitário e principalmente uma boa administração da complexidade e da tensão envolvidas nas relações entre as pessoas. Sabemos como é possível a existência de vidas marcadas pela insensibilidade e pela falta de possibilidades criativas, outras que se pautam pelo tormento, pela dor, vidas que apenas sobrevivem. Como saber então o que significa uma verdadeira amizade? Uma possível resposta seria a de que uma certa forma de se praticar amizade inclui a convivência com a tensão e o conflito como forças transformadoras, que podem ajudar a gerar movimentos na vida de um e outro. Isto implica em se destituir de uma antiga posição infantil de dominação/ subjugação, e se colocar como alguém que também é insuficiente, e também precisa de um bom amigo, um “igual”. É assim que a amizade pode nos exigir a convivência com as diferenças, o cultivo do que temos de especial, incentivando-nos a nos comportarmos de forma inusitada, instigando-nos a nos inventar, a ser mais, quiçá melhores.

coluna do dia 28 de outubro de 2009

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Madame Psicanálise

Alguns leitores me perguntam por que sendo eu uma psicóloga, assino minha coluna como psicanalista? Por uma questão de identidade, eu diria. Mas o que é esta tal psicanálise, que às vezes parece tão sofisticada e longe do acesso dos simples mortais e em outras, tão deslocada do resto das disciplinas que se ocupam em entender, interpretar ou criar ferramentas de cuidados para o ser humano? A verdade é que não é muito fácil delimitarmos o campo de estudos sobre a psique humana. Desde a antiguidade, a filosofia tentou resolver os enigmas da relação entre a mente e o corpo, o espírito e a carne. Nossa longeva tradição católica nos informou sobre as tentações de nossa carne e os dilemas de nossa alma, sempre em busca de uma verdade que permitisse o convívio entre estes dois mundos conflitantes e muitas vezes apresentados como separados. Mas desde os tempos de Descartes, o conhecimento exige método, além de coerência suficiente para que possa ser partilhado entre todos. Podemos dizer que a clínica médica inaugurou um saber e uma prática que focalizava a experiência de sofrimento de cada pessoa em particular, o que fez com que o foco deixasse de ser a doença e passasse a ser o doente. A psiquiatria nasceu da necessidade que a ciência impunha para o entendimento da loucura, das patologias da mente, ou melhor dizendo, dos sofrimentos psíquicos e foi graças a todos os que se debruçaram sobre as tentativas de formular sentido ao que parecia sem sentido, que aos poucos se pode compor um acervo de conhecimentos sobre um suposto funcionamento de nossa psique. Freud já era um neurologista quando se interessou em descobrir porque a histeria era considerada uma doença sem causas físicas “reais”, mas afetava a vida e o corpo de um número importante de mulheres de sua época. Suas teorias psicológicas nascem a partir do momento em que decide “escutar” estas histéricas, tentando entender as razões de sua dor psíquica e os caminhos que as levavam a criar sintomas físicos sem correspondência alguma com os diagnósticos da ciências médicas. Cientista rigoroso, partilhava do espírito iluminista dos séculos modernos e apostava na razão, mas descobriu que sua proposta em mergulhar nas misteriosas entranhas da alma humana o levava à existência de uma segunda consciência, ou melhor de um inconsciente. Percebeu que muitas vezes não conseguíamos “ver” ou criávamos estratégias para fechar nossos olhos, construindo sintomas que tinham a intenção de nos cegar para nossos conflitos, e que funcionavam como proteção para os excessos que nossa psique não poderia suportar. Ao não “poder” saber sobre as razões de nosso sofrimento, nossos sintomas continham um significado importante: mantinham este desconhecimento para nossa sobrevivência psíquica. Sua teoria e método pretendiam tornar esta “escuta diferenciada de nosso inconsciente” uma ferramenta que pudesse finalmente fazer certas ligações e substituir os sintomas por novas possibilidades de soluções, mais comprometidas com a verdade de nossos desejos, já que mais longe de nossas angústias e inibições. Claro que as subjetividades são modos de estar no mundo e mudam ao sabor da história e das diversas tradições culturais, assim como o mal estar que produz nossos sintomas. Se a época de Freud produzia mulheres histéricas com seus sofrimentos, estes sintomas eram parte do caldo da cultura burguesa que ainda não oferecia um lugar de verdade às mulheres. Quem iria negar que hoje as depressões, bulimias e pânicos expressam melhor o sintoma social contemporâneo? Na atualidade os saberes ganharam um volume inimaginável e resta-nos torcer para que se amplie o tímido movimento de busca de uma maior colaboração entre áreas antes opostas. Quem sabe a psiquiatria biológica que entende os transtornos mentais como passíveis de serem solucionados via psicofármacos, as neurociências que se esmeram nas pesquisas sobre o funcionamento do cérebro humano trazendo sempre novos dados, as terapias cognitivistas que buscam mudanças de comportamentos via consciência, e a psicanálise com seu acervo clínico e teórico sobre o funcionamento psíquico possam contribuir para uma rede geral do cuidar humano?

coluna do dia 21 de outubro de 2009

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Mondo Cane

Um crítico de cinema questionava esta semana se o diretor Quentin Tarantino não teria se tornado um cineasta graças ao seu passado adolescente de balconista de vídeo-locadora, local em que (diz a lenda) teria assistido a todos os filmes que ali existiam. Certamente este fato deve ter funcionado como um elemento facilitador, ao introduzi-lo à linguagem especial do mundo cinematográfico em seus diversos estilos e criações. Mas prefiro imaginar que a escolha deste trabalho já continha sua paixão e o acesso gratuito a tantos filmes só lhe acrescentou respostas sobre muitas de suas interrogações, além de facilitar-lhe encontrar palavras ou cenas que podiam descrever sentimentos estranhos ou disfarçados, empolgantes ou perturbadores. Sabemos o quanto um filme, seja ele sobre histórias de amores, de perdas ou de violências, de ficção, de heróis ou anti-heróis, pode nos carregar a lugares ou sentimentos inesperados e tocantes. Provavelmente este acervo ajudou e muito este americano a construir seu ideal de cinema, embora sua fama de diretor ousado e muitas vezes excêntrico precise ser debitada a uma somatória de fatores. Tarantino, nascido nos anos sessenta, é filho de pai descendente de italianos e de mãe meio irlandesa, meio cherokee, mas também é filho de uma geração de tecno-crianças, que cresceu jogando vídeo games e transita de maneira confortável pela estética pop em todas as suas versões. Quem já assistiu a seus filmes sabe que eles privilegiam a ação ao invés dos diálogos e não se esquivam de cenas em que a violência é mostrada com requintes de crueldade, ou seja, com os excessos que normalmente seriam poupados por outros diretores. A razão de seu sucesso, portanto, não é tão simples. Seu esperado Bastardos Inglórios que estreou neste final de semana em circuito nacional depois de balançar Cannes, o coloca entre os mais criativos diretores de cinema da atualidade, mas também entre os mais apaixonados por este gênero. A surpresa fica por conta de ser tanto um filme de época, mais um dentre os muitos que empreendem uma leitura sobre a segunda guerra mundial, o nazismo e a perseguição aos judeus, quanto um filme que desconstrói a história, ao conduzir a trama a um desfecho alternativo ao que conhecemos. Ao mesmo tempo em que reproduz cenários e personagens importantes do período da ocupação nazista na França, que juntou os algozes (alemães da Gestapo), as vítimas (os judeus), os reféns (franceses) e os mocinhos (americanos), o diretor carrega na composição de cada um destes grupos como se ao apresentar a caricatura ao invés do rigor da história, pudesse mostrá-los mais hilários e próximos da humanidade a que todos pertencem. O roteiro segue a estética dos jogos de vídeo games de seus filmes anteriores, em que os atos cruéis e violentos de uns sobre os outros são apresentados sem grandes dilemas morais, como se o que valesse fosse apenas o querer ou o não querer matar. Mas dentro desta lógica utilitária, há uma nova modalidade de jogo, um jogo de poder e de persuasão, de estratégias sádicas e sutis de torturas empregadas pelo farejador e caçador de judeus, talvez o personagem que carregue a alma do filme. Ele é o coronel nazista Hanz Landa, que desfila seu alemão, inglês, francês e italiano com perfeição e delicadeza, comparece desde as primeiras até as últimas cenas do filme sempre com um semblante amigável e se ufana por conseguir perscrutar as almas de seus perseguidos e perseguidores a seu favor. Uma crueldade silenciosa, rasteira, das mais danosas, ao não deixar dúvidas ao seu interlocutor nem sobre a impotência deste, nem sobre o seu total poder. Muitos fatos de nosso mundinho tem nos mostrado os desastres que podemos cometer quando perdemos a fé no valor dos homens e de suas leis. Começa a valer a banalidade do mal.

coluna do dia 14 de outubro de 2009

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Enem e outras histórias sobre exames

Já se vão mais de 30 anos ( e é bom que não me lembre dos números exatos) que deixei Ribeirão Preto com meu diploma de psicóloga em uma das mãos e nada na outra. Havia naquela época um certo pioneirismo dos formandos psicólogos, uma profissão recém reconhecida no Brasil, cujo mercado estava por ser aberto. Olhando com mais cuidado para o passado tenho a impressão de ter feito parte de uma geração sanduiche. Não cheguei a cursar o preparatório para a admissão ao ginásio, que justamente na minha vez, tornou-se obsoleto. Já na quinta série sonhava em escolher o Clássico para o secundário (as outras opções eram o Científico e o Normal), mas assisti, ainda na oitava série, a mudança para um colegial integrado: todos deveriam cursar um básico e somente no terceiro ano seria possível fazer escolhas de matérias optativas. Avessa às matemáticas e outras disciplinas que exigiam um raciocínio mais objetivo, tive que adiar meu projeto de dedicação exclusiva às humanidades e assistir o fim de estudos mais aprofundados nas áreas da filosofia, literatura e sociologia no ensino secundário. Química, física, biologia, matemática eram as vedetes da vez, acompanhando o boom das ciências. Muitos de meus interlocutores do antigo Clássico, eleitos meus modelos de identificação, com quem eu costumava trocar dicas de leituras de livros e de cultura em geral, chegaram a ingressar nas Ciências Sociais, cujo destino eu acalentava. Mas ainda cursando meu colegial, eis que surgem novos e estranhos “lugares” com nomes como Cecem, Cecea e Mapofei, exames vestibulares diferenciados para os que elegessem a área biológica, de humanas ou de exatas, respectivamente. Tudo tinha que ser revisto, à luz das novas opções. Começam a pipocar aqui e ali os cursos de preparação para o vestibular, em que alunos geralmente “nerds” de faculdades diversas, tornam-se professores e passam a preparar “aulas- shows” visando a despertar o interesse pela ingestão rápida e eficiente dos mais diversos conhecimentos exigidos para cada uma destas grandes áreas. Mantendo minha opção pelas humanidades passei a me preparar para fazer o vestibular do Cecea. Na inscrição, era possível eleger um primeiro e um segundo curso e, dependendo de meu desempenho na prova, ou seja, do número de pontos que eu conseguisse fazer e da minha classificação diante dos pontos conquistados pelos outros concorrentes, meu nome poderia constar na lista dos aprovados. Interiorana, este esquema acenava com uma abertura inesperada de novas opções para o meu antigo futuro nas Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Por que não escolher Psicologia, logo ali em Ribeirão Preto? Mais pomposo e muito mais atrativo, o estudo da psique humana me parecia um desafio que valia o deslocamento e o preço das mudanças que me esperavam. Este acesso mais fácil aos cursos das faculdades públicas estaduais era inédito, mas inaugurava um longo período em que o Vestibular tomaria um vulto assombroso, nos dois sentidos da palavra. Tanto na sua importância para os destinos profissionais dos jovens, que precisavam encarar um ano de muitos sacrifícios para driblar a concorrência, quanto na política das escolas particulares, que passaram (em sua maioria) a dirigir os conhecimentos oferecidos aos alunos, visando conquistar um lugar de respeito pelo número de aprovados nas faculdades mais disputadas. Embora polêmica e com certeza ainda engatinhando, a proposta de se utilizar os pontos obtidos na prova do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) que avalia o desempenho dos alunos durante o curso médio, como pontos decisivos para seu ingresso nas universidades, parece acenar com uma tentativa de chacoalhar a estrutura arcaica desta verdadeira indústria do vestibular. No mínimo, há um desvio para as melhorias do ensino que as escolas, tanto públicas quanto particulares, desejarão oferecer aos seus alunos, em uma era em que o conhecimento exige um entendimento que extrapola em muito as antigas fórmulas do decoreba. Talvez este desvio possa ampliar o debate, em geral parcimonioso, sobre a cada vez mais complexa rede de profissões que o nosso mundo global oferece.

coluna do dia 7 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

As razões humanas

Dizem que os romances costumam preencher os espaços desérticos ou conflituosos de nossa vida cotidiana e por isso continuariam a angariar um grande número de leitores (ou espectadores) espalhados por este mundo afora. Alguns porque oferecem histórias que se encaixam aos anseios e dores que vivemos naquele momento, outros porque promovem um sentimento de esperança ou de aventura ao colorir a vida e renovar as apostas que fazemos em nós mesmos ou no mundo. Quem sabe este adjetivo que tanto prezamos, o romântico, seja na verdade uma invenção humana que guardaria um lugar para nossa imaginação, para as fantasias e desejos que podem nos transportar a mundos e vidas fictícias, sem que nos fosse necessário buscar grandes razões para isso. Algo que cobriria as verdades nuas e cruas ou a realidade áspera de nossas vidas e de nossas infinitas responsabilidades. Pelo romance, podemos viver amores, grandes paixões em que somos finalmente pessoas especiais e reverenciadas, mas também imaginar nossa força destrutiva, vingando-nos dos que nos desprezam, nos molestam ou nos excluem. Na verdade, esta dimensão romântica de nossa humanidade insiste, também porque vivemos a era da razão, em que somos chamados a responder permanentemente à nossa capacidade de discernir nossas boas e más condutas, escolhas ou idéias. Mas desde que o mundo passou a ser uma vitrine em que todos os seus habitantes assistem os acontecimentos em tempo e imagem real, aconteceu o inevitável: não podemos mais acreditar que somos ou já fomos razoáveis e coerentes “naturalmente”. O bom uso da razão depende de um processo longo e de um complexo funcionamento de nossa psique, que precisa crer no valor desta razão, ou seja, aceitar o preço das renúncias e dos sacrifícios que ela nos impõe e o difícil empenho em viver com as diferenças e com as injustiças sem desistir de encontrar um destino possível e aceitável para tais conflitos. O recente bafafá em torno da censura de nossa imprensa imposta por certas estratégias políticas é um exemplo interessante e denunciador não só do panorama sócio-político em que vivemos mas dos comportamentos nada “razoáveis” dos políticos que nos representam, que sem se sentirem constrangidos e em plena era da livre informação, tentam impedir que as notícias sobre as suas falcatruas e militâncias em causa própria, cheguem a público. Já o presidente da Venezuela, que desde que surgiu na cena política anunciou seu desejo de ser imortalizado como Fidel II, concedeu a si próprio o direito de não ser razoável em suas medidas de imposição de silêncio à imprensa nacional e à liberdade de expressão de seu povo. Na Argentina, seu jornal de maior circulação foi invadido por “tropas” de fiscais do governo,em uma clara intenção de constranger a publicação das não tão boas notícias sobre o casal presidente. Se a razão impõe a todos um saber sobre o certo e o errado através dos valores que são compartilhados pela comunidade, ser razoável depende de um esforço e um investimento permanente na atribuição de valor ao nosso semelhante, seja ele quem for. As decisões e ações destes políticos contrariam o razoável e contribuem para mostrar que aqueles que elegemos para nos representar em nossos interesses (assim como nós) não estão imunes aos anseios humanos de poder ou aos de se evitar os tributos morais e a submissão às leis e aos códigos que deveriam regular, ainda que razoavelmente, nossas vidas em comum. Quem sabe fazem parte das “razões” que nossa própria razão desconhece.

coluna do dia 30 de setembro de 2009

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

11 de setembro de 2009

Duas notícias desta semana que passou podem nos levar a refletir sobre um certo círculo repetitivo que acompanha as ações humanas. No primeiro aniversário do ataque às torres gêmeas dentro do governo Obama, ele instituiu o "Dia Nacional do Serviço e Memória" e pediu aos americanos que tentassem se envolver em projetos comunitários e ações voluntárias como cozinhar refeições ou comprar alimento para os pobres, plantar e arranjar jardins, ajudar em reparações de casas velhas, completar material escolar para crianças desfavorecidas,etc. Ao fazer este apelo, Obama lembrou o espírito de solidariedade de todos que se empenharam em ajudar e acolher as vítimas e seus parentes nos dias que se sucederam àquele trágico ataque terrorista. Alguns jornais avaliaram seu gesto como uma preocupação em se afastar de uma atitude de vingança contra o Islã como fez seu antecessor, ao despejar um exército de jovens americanos, primeiro no Afeganistão e depois no Iraque. Outros preferiram divulgar a voz dissonante de Obama que desde o ataque em 2001, então um desconhecido senador, preferiu incitar a todos a refletirem sobre a origem daquele ato de loucura, que certamente deveria ter uma história e uma explicação para suas motivações. A outra notícia também divulgada há poucos dias, diz respeito a uma certa preocupação de alguns setores da economia mundial, que diante da aposta de uma retomada pós-crise, passou a temer que as instituições financeiras voltassem a produzir novas e mais apetitosas estratégias de investimentos, vendendo lucros que em algum momento poderiam denunciar seu engodo. Não é tão difícil perceber o fio que liga estas duas notícias, ou seja, a incerteza que assola a todos diante de fatos trágicos e aparentemente inesperados, que tal e qual um “tsunami” tem efeitos devastadores sobre a vida de um número considerável de cidadãos comuns, possibilitando a abertura de um breve espaço em que todos são convocados a repensar sobre a “verdade” de suas escolhas, valores e ideais, mas principalmente sobre a fragilidade das regras que sustentam a convivência humana. Se a vida em sociedade é uma condição de sobrevivência para a nossa espécie, ela paradoxalmente contraria os interesses individuais, pois exige a imposição de limites e renúncias principalmente de nosso ódio e de nosso desejo de destruição. Prisioneiros de nossa ambivalência sabemos o quanto as nossas mais estreitas amizades estão sujeitas tanto ao mais intenso ódio quanto a mais profunda generosidade. É justamente por isso que a paz depende sempre de um consenso sobre os ganhos da instauração das leis, da comunidade e da civilização e é também por isso que sempre que a lei é questionada, desrespeitada ou que deixe de fazer sentido, entramos no terreno pantanoso das violências e dos interesses individuais, desfazem-se os pactos de convivência e assistimos desde pequenas injustiças até os mais escabrosos atos de violência ou de descaso para com nossos semelhantes. Tanto a disposição de Obama em apelar para a formação de uma rede de ajuda aos necessitados, quanto a preocupação de alguns em alertar sobre o retorno da ganância financeira são tentativas (ainda que precárias e provisórias) para regular as relações sociais visando uma vida boa e justa tanto para os indivíduos como para a comunidade em seu todo. Admitir a persistência humana em reparar seus atos de violência ou em criar o “belo” e o “bom” não deixa de ser alentador, pois nos dá chances para apostar que nosso mundo, em sendo uma versão de nosso imaginário, está a disposição para ser modificado tanto para melhorar quanto para piorar a vida em sociedade.

coluna do dia 16 de setembro de 2009

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Quem quer ser Norminha?

Podemos dizer que, em menos de duas décadas, passamos a ser assediados por muito mais informações do que as que podemos digerir. A internet revolucionou hábitos, profissões, encontros, e até o tempo que levávamos para fazer algumas coisas. Um mundo virtual pode sair pela telinha de nosso computador ou pelos celulares oferecendo o que acontece e existe em toda extensão de nossa aldeia global. Isso sem contar com os livros, filmes, peças teatrais, revistas, quadrinhos, jornais ou a TV, ainda a grande responsável pelo bombardeamento de lançamentos e novidades. Tal número de informações pode nos trazer a sensação de que não há mais o que se saber, fazer ou querer, que tudo já foi dito ou feito. Mas a verdade é que em matéria de amores e sexo, a maioria de nossas histórias parecem ser sempre as mesmas e o que as diferencia é ‘como’ elas são contadas, ou recontadas. E quando elas têm algo a dizer, perturbam nossa alma provocando paz ou agonia e podem nos surpreender, nos emocionar ou nos fazer rir. Em clima de última semana da novela das oito, vale a pena colocar em pauta o tumulto que a personagem Norminha provocou, dividindo a opinião de homens e mulheres, ao ser porta voz de um debate inusitado sobre um tema delicado e em geral pouco divulgado: a infidelidade feminina. Graças a sensibilidade da autora, que por ser mulher soube cuidar da composição de sua personagem, Norminha conquistou a simpatia do público ao encarnar, faceira, a mulher casada que gosta do maridão, mas também adora sapecar pelos bailes da vida, exibindo sua sensualidade e provocando os olhares desejosos dos homens. Não por acaso, a atriz Dira Paes e o ator Anderson Müller, responsáveis pela dupla que compõe a mulher fogosa e o pacato marido, foram assediados pela mídia e concederam inúmeras entrevistas espalhadas por blogs, jornais e TV, em que são alvos da curiosidade sobre o desfecho da trama e o destino da ousada Norminha. Ao ser chamado a opinar, também o público (homens e mulheres) não a condenou unanimemente como se poderia esperar. A atriz bem que tentou entender o que se passava entre Norminha e seu público, arriscando-se a explicar por que, apesar do tema da “traição” ser caríssimo para a maioria das pessoas, a espevitada senhora acabava amenizando os debates. Bem casada, Norminha é a esposa dedicada, que cuida e trata o marido a pão de ló, além de mantê-lo longe do olhar das outras mulheres, ao mesmo tempo em que se permite esbanjar sensualidade, fazendo uso de todas os recursos femininos que agradam aos olhares masculinos: vestidos justos que marcam seu traseiro, decotes que mostram sutiãs vermelhos e seios fartos, saltos altos que dão um hit a mais ao andar, bocas e cabelos ao gosto do pecado. Com todo este arsenal, ela consegue arrancar risos da maioria, não só por inverter a lógica que imperou no imaginário social até agora (aos homens tem sido permitido serem perpétuos conquistadores), como por ser a caricatura ( ou seja, a figura do excesso, do humor) da mulher fatal. Em um passado não tão longínquo ( há quase dois séculos), a exigência legal da fidelidade das mulheres casadas foi articulada à figura da mulher-mãe quando os casamentos passaram a ser regulamentados pelo Estado. Tal lei foi caducando na medida em que as mulheres foram conquistando seu lugar de direito, junto aos homens. Ainda que as convenções sociais ligadas ao regulamento do exercício da sexualidade humana mantenham sempre um anseio de se “naturalizar”, servindo de referencia para a convivência entre as pessoas, tudo o que gira em torno do sexo insiste em provocar constrangimentos, inibições ou transgressões que não são fortuitas. Norminha consegue romper as barreiras do silêncio sobre os desejos femininos, ao mesmo tempo em que se apossa de seu “direito” de exercer sua liberdade sexual utilizando-se da via humorística ( poucos não riram do leitinho- sonífero que ela oferecia ao marido). Mais que isso, a fidelidade entre os casais nos dias de hoje só diz respeito aos pactos de lealdade que são firmados entre eles, cabendo a cada um se responsabilizar por seu cumprimento. Norminha conquista a cumplicidade do público não pela transgressão sexual, mas pela maneira “natural” com que sai em busca de um pouco de prazer, tentando não comprometer seu casamento. Assim, meio personagem de si mesma, ela faz o possível para conseguir o impossível: tenta fazer acordos com seus próprios desejos, sem precisar renunciar aos chamados morais de sua lealdade ao marido. Vamos assistir e conferir!

coluna do dia 9 de setembro de 2009

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Caminho da loucura

Se existe um produto cultural que adentra não só nas casas, mas nas falas diárias de seus expectadores, são as novelas exibidas nos horários noturnos considerados nobres. Podemos comprovar tal afirmativa, escutando aqui e ali como os personagens da atual novela Caminho das Índias estão presentes nas cenas do cotidiano de quase todos, oferecendo conteúdos para debates sobre os destinos das relações amorosas de seus pares ou sobre os dramas e conflitos de cada personagem. A novidade cabe à proposta da autora em levar ao público a possibilidade de discussão da loucura apresentando a psicopata Yvone (encarnando aquela que se utiliza das pessoas sem demonstrar sinais de consideração ou culpa) e o esquizofrênico Tarso. O jovem Tarso, sua família, seu tratamento em clínicas especializadas, abriu espaço para mostrar como a doença psíquica é ainda hoje contestada ou encarada como algo ameaçador e estranho e como são ambíguos os caminhos escolhidos pelos familiares e pela sociedade para tratar deste tipo de sofrimento, muitas vezes negado. A própria permanência do termo “loucura”, utilizado fartamente para designar aqueles que pressupomos fugir aos nossos critérios de normalidade, já denuncia a distância que desejamos que exista entre o normal e o louco. Michel Foucault (filósofo francês) pretendeu preencher este vazio publicando uma minuciosa pesquisa sobre a História da Loucura em que mostra a evolução de seu entendimento social e como vão se modificando ao longo dos anos as formas de intervenção sobre ela, ao se deslocar lentamente o louco de uma posição de exclusão social absoluta, para a de um indivíduo com voz, capaz de dizer sobre si mesmo e de dar sentido a sua história e aos seus sintomas. A mudança de foco deveria consolidar a existência de uma pessoa e não uma doença, a ser tratada. Entretanto, continua não sendo fácil para nós, convivermos com uma linguagem por vezes “estranha” aos nossos ouvidos ou com comportamentos inesperados , que ousam desconstruir uma certa lógica que prezamos, causando-nos desconforto. Foi este estranhamento que permitiu a Freud perceber que a nossa consciência era insuficiente para dar conta da complexidade de nosso espírito humano, e apontar o descompasso entre o que produzimos e o que somos capazes de entender. Com isso, nosso equilíbrio psíquico sempre precário nos deixa muito próximos de nos sentirmos confusos, por vezes angustiados, descontrolados, perdidamente emocionados, etc. Esta tênue fronteira nos faz reféns de buscas incessantes que permitam tratar as dores psíquicas como entidades separadas de nossa subjetividade. O avanço da psicofarmacologia, por exemplo, embora tenha nos trazido oportunidades inimagináveis de acalmar ou de equilibrar nossa psique, comunga de certa tendência em reduzir o louco à sua doença, tornando-o um objeto passivo diante de um saber psiquiátrico, alienado de seus sintomas, à espera do retorno de seu estado saudável através do cumprimento de ordens ou de receitas de um especialista no assunto. Ao invés de um sujeito, uma série descritiva de sintomas descarta sua subjetividade e silencia seu sofrimento que produz incômodo. Seu delírio, por exemplo, não será aproveitado como sua possibilidade de falar de si, de narrar a sua história, e fica assim descartada a hipótese de ajudá-lo a criar um lugar legitimo de existência, auxiliando-o a construir um contorno, uma amarração de seu ser. A loucura já não tem mais nada a dizer. A subjetividade também não. Não há conflito, nem desejo, nem sofrimento, apenas uma supressão disso tudo e o vazio que daí resulta. Este é o paradoxo de nossas dores psíquicas: elas nos aproximam de um sentimento de estranhamento que nos ameaça e nos faz desejar que sejam algo que não nos pertença.O caminho das loucuras insiste em repetir seu percurso.

coluna do dia 2 de setembro de 2009

De riso fácil

No discurso de sua posse, no início deste ano, Obama ressaltou as mudanças positivas que houve em nosso mundo atual ao apontar o quanto havíamos avançado na conquista de nossa liberdade. Com um poder político mais descentralizado, grande parte das sociedades ocidentais pode promover uma maior liberdade de escolhas, ainda que fosse necessário um cuidado mais apurado com a responsabilidade que este exercício exige de cada um. Penso que a extensão desta liberdade conquistada pode ser avaliada pelo fato de hoje ser possível tratarmos assuntos tão sérios como o poder e a política de forma irreverente. Nossos chargistas que o digam, e não seria difícil lembrarmo-nos de cenas hilárias retratadas por eles, desde que pudemos reaver nossa liberdade de expressão com o final da ditadura militar. Papas, presidentes, militares, campeões de algum esporte ou de audiências, musas, mestres, não sobrou autoridades ou figuras públicas reverenciadas que não pudessem ser retratadas em charges ou tornarem-se personagens de piadas que hoje circulam livremente pela internet, ou que são contadas e passadas de boca em boca, fazendo a alegria de muitos (ou a fúria de alguns). Há quem não perca o texto diário do colunista autodenominado Macaco Simão, ícone do nosso humor escrachado, em que ninguém é poupado, dentro da máxima que diz que é preferível perder o amigo, mas nunca a piada. Claro que não estamos falando em unanimidades. Ao contrário, o humor é sempre polêmico justamente por trazer em seu bojo esta ambigüidade entre riso e choro, entre a reverência e o sarcasmo, entre o melhor e o pior. Mas sem dúvida somos um bom público para as piadas, que proliferam e são de certa forma bem digeridas por nossa cultura brasileira, o que conta um pouco sobre nossa maneira de não nos levar muito a sério. Isto porque para que haja este terreno propício para o humor, é necessário que a agressividade contida em seu interior, seja menos importante do que a possibilidade de nos sentirmos próximos daquele que está sendo o alvo das risadas, e ainda que isso não nos seja tão claro, é como se nos irmanássemos com os tropeços, os descuidos, as falhas ou as manias deste personagem. Por vezes, aqui e ali, somos objeto de análises de estrangeiros que aqui aportam e tanto podem apontar a falta de uma coletividade coesa em relação à cobrança e ao exercício dos valores civis e morais esperados para um bom funcionamento sócio-político, quanto um certo ceticismo em relação à eficiência das leis e à politacagem interesseira de nossas autoridades. De um lado a outro, nossa brasilidade acaba sendo despojada de orgulhos excessivos ou de pesares prolongados, o que nos torna alvo fácil de adjetivos não tão sérios. Uma colega argentina que escrevia sobre seu exílio brasileiro, descreveu com espanto a alegria muitas vezes inexplicável ou algumas atitudes cordiais e generosas inesperadas de nosso povo, comparando-as à sua cultura mais trágica e muito mais reivindicativa. Parecia-lhe mais fácil entender o samba aqui e o tango lá. Diferenças culturais com certeza, mas nem ao céu nem ao mar, parece que tanto nosso bom humor, quanto nosso ceticismo em relação ao que “deveríamos” exigir de nossos políticos ( e de nós mesmos) acabam por favorecer nossos laços. Assim, apesar de nossos preconceitos, nossas discriminações étnicas, religiosas ou sociais, nossa parca participação nos destinos de nossa política, acatamos nossas contradições. Isso permite que possamos rir de nós mesmos, ao não sacralizar nem o mal nem o bem, nem o inferno, nem o céu. Aqui é apenas o Brasil

coluna do dia 26 de agosto de 2009

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O aniversário de Woodstock

É no mínimo interessante ler ou assistir as diferentes reportagens que pretendem cobrir os quarenta anos de Woodstock, o festival que marcou época e tornou-se ao longo destes anos, objeto de análises e críticas de estudos da cultura. Há os que se lembram nostalgicamente da singeleza e ingenuidade dos jovens que ali aportaram, vindos de cada canto do USA, país que assassinara um ano antes seu líder negro que pregava a irmandade entre as raças (Luther King) e demoraria mais alguns para trazer de volta seus jovens sobreviventes à guerra do Vietnã. Outros preferem utilizar um tom mais sarcástico, acentuando o caráter de trocas humanas e de cooperação que emanava dali, mas que não teria sobrevivido à sedução capitalista que impôs uma convivência mais competitiva. Há ainda os que vaticinam contra a permissividade dos três dias de rock ,drogas e sexo, como se ali houvesse sido gerado uma nova (e para muitos,constrangedora) maneira de se viver a vida. Lenda? Legado? Ou produto de uma série de contingências e circunstâncias sociais e políticas que permitiram que quase meio milhão de jovens atendessem a um chamado para se reunirem ao som de algumas bandas? O que fez com que esta turba de jovens transformasse tal evento em um dos maiores acontecimentos do final dos anos sessenta, encenando um protesto pacífico contra a guerra e a favor da paz, ao levar a sério o amor como força de combate contra a ânsia de poder, o ódio e a violência? De certa maneira, há unanimidade quanto ao fato deste evento ter se tornado grande de maneira fortuita. Os próprios realizadores, por não esperarem uma resposta espontânea de tal porte àquele apelo banal, viram-se obrigados a entregarem a organização à sorte e ao acaso do destino, mas principalmente à responsabilidade de cada uma das pessoas ali presentes, músicos e bandas incluídas. Ninguém sonhava com a repercussão que esta convivência de três dias de sol, chuva e lama (possível tão somente graças à tolerância e a troca de gentilezas entre seus participantes) alcançaria para a cultura da época. Embora seja esperado que os aniversários destas datas provoquem reflexões, debates e análises sobre sua origem e importância, é fato que a história sempre sofre uma ressignificação quando interpretada a partir de um presente. Assim como olhamos nosso passado e podemos julgá-lo de forma diferente a cada década, acrescentando adjetivos que não podíamos perceber e apagando outros que perderam sua importância, hoje é possível analisarmos Woodstock como uma metáfora dos sonhos da geração pós segunda guerra mundial, um símbolo das mudanças gestadas lentamente no ocidente a partir do desejo e da crença de cada jovem na possibilidade de tornar melhor o mundo em que viviam. Um mundo que pudesse finalmente eliminar as diferenças entre os povos e aclamar sua irmandade, apostando na capacidade de cada um em se responsabilizar por suas escolhas e em respeitar a dos outros. Aos que fizeram parte desta geração e assistem a este momento emocionados (revivendo-o a partir do documentário Woodstock: 3 Dias de Paz, Amor e Música, de Michael Wadleigh) identificam ali seus ideais juvenis de apostas neste mundo possível. Para estes, Woodstock é a fotografia desta utopia, aquela foto- troféu que guardamos eternamente por sabermos que ela capturou um momento inédito e possivelmente único. Mas nem ao mar nem à terra, o mundo continuou girando e os jovens também, em sua tarefa exaustiva e infinita de buscar um mundo melhor e construir novas utopias. Com um legado importante graças a esta geração Woodstock, a grande maioria de nossos jovens não necessita enfrentar discriminações por raças, religiões ou preferências sexuais e seguem buscando em seus laços de amizade, um certo amparo diante de suas incertezas ou sofrimento. Quanto às medidas de seus prazeres e deveres, desde que estas passaram a ser responsabilidade de cada um, serão sempre trabalhosas e arduamente construídas ao longo de suas vidas. No plano político, foi com o slogan “ um outro mundo é possível” que o Brasil acolheu-os vindos do mundo todo para participarem dos Fóruns Sociais Mundiais que aconteceram a partir de 2001 em Porto Alegre, quem sabe acreditando serem capazes de transformar e reconstruir o mundo. Exemplo? A Folha On-line exibia dia destes, a foto de várias pizzas cujos desenhos da cobertura lembravam o bigode de Sarney, e que seriam distribuídas na abertura da exposição de escândalos da política nacional do Museu da Corrupção (www.dcomercio.com.br/muco/home.htm) realizada na faculdade de Direito São Francisco.

coluna do dia 19 de agosto de 2009

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Samba de muitas notas

Confesso não me lembrar das disciplinas teóricas (história da música, por exemplo) que faziam parte do aprendizado musical oferecido pelo Conservatório Musical de Araraquara, local em que estudei piano por muitos anos, mas a música, em toda a sua extensão sensorial, teve um peso substancial nas diversas etapas de minha vida. Assim como certos cheiros e sabores, os sons de nossa infância podem ser verdadeiras coreografias das lembranças que nos são significativas. Cenas de minha mãe tocando Chopin, assobiando os sambas cantados por Francisco Alves, ou de meu pai dançando ao som dos mais variados “long-plays” que tocavam na linda rádio-vitrola de nossa sala são apenas indícios de que ambos, por canais diferentes, imprimiram uma cultura musical em nossa família e, de certa forma contribuíram para que seus sete filhos( e a maioria de seus netos) se tornassem amantes incondicionais da “boa” música. Ao lado disso, a partir das décadas de sessenta e setenta, a singular conjuntura sócio-econômica-cultural do ocidente possibilitou o aparecimento de várias expressões juvenis nascidas no anseio de transformação da sociedade, e impôs uma importante mudança no panorama musical mundial.Tal como o boom da literatura nos dois séculos anteriores, a música transformou-se em porta-voz oficial das insatisfações, dúvidas, desejos e apostas dos jovens. Em um não tão lento e bastante perceptível movimento, ela foi ganhando um espaço inédito na vida dos jovens, auxiliado também pela velocidade e pelas facilidades com que o mercado passou a divulgá-las ( discos, TV, shows, festivais). Nasce assim, uma forma contemporânea de grande alcance desta influencia musical, um convite a muitos jovens, que daí em diante, começam a desejar a aprender a tocar piano, violão, guitarra, percussão, ou a formarem duplas, conjuntos e bandas que pudessem reproduzir os sons e as letras de suas preferências. Esta explosão cultural da música teve uma repercussão importante no Brasil, que ao lado da invasão dos diferentes estilos de rock,começa a movimentar um caldo cultural imenso e próprio de nosso país. Nestas mesmas décadas, os LPs ou compactos que tocavam em nossas vitrolas portáteis podiam ser os últimos lançamentos dos ícones da então promissora Bossa Nova (aquele som de samba eclipsado pelas batidas sincopadas do violão, com letras de um romance mais moderno, menos trágico) ou de Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, assim como de qualquer “ música pop” que emplacasse um sucesso. Além disso, a nova cultura musical chegava com uma proposição inusitada de movimentos corporais, um dançar em que os corpos acompanhavam livremente os sons, entregues aos compassos da música. A vida da maioria dos jovens passa a se entrelaçar com estas músicas, suas letras, suas melodias, seus ritmos. No Brasil, pudemos assistir aos poucos, um mergulho em nossas raízes musicais, e do samba, do choro, do baião, do forró, das músicas de viola, surgiu uma pluralidade de estilos novos, que conversavam com o erudito, o jazz, o rock e o pop internacional, mas também com o folclore e os mais variados gêneros regionais. Na voz e na caneta de muitos brasileiros ( Tom, Vinícius, Chico, Caetano, Milton, Gil, Hermeto são apenas alguns), nossa música foi ganhando um status internacional importante, mas também um reconhecimento de muitos jovens, que passaram a se interessar pelo seu acervo rico e variado. Foi uma surpresa agradável, por exemplo, ouvir no domingo último, em Araraquara, a mistura de rock e samba que o conjunto Sambô de Ribeirão Preto imprimiu em seu repertório. Quem poderia imaginar que um dia dançaríamos ao som de um legítimo ( e muito bom) samba de roda, com cavaquinho, pandeiro e rebolo, cantando "I Fell good", de James Brown?

coluna do dia 12 de agosto de 2009

terça-feira, 4 de agosto de 2009

À Deriva

Em geral a expressão “à deriva” nos remete a situações em que certas embarcações marítimas se vêem obrigadas por algum motivo a interromperem seu curso e a ficarem sem rumo, mas também cabe aos que propositalmente desligam seus motores e se deixam ficar algum tempo ao compasso do mar. No filme brasileiro que leva este nome e que acaba de entrar em cartaz na capital,as primeiras imagens que vemos são os corpos de uma menina de 14 anos e de seu pai, boiando,totalmente entregues ao balanço das ondas. Ficar assim à deriva, no mar azul, sem saber direito quando as ondas vão chegar e se deixar levar para cima e para baixo, olhos fixos na imensidão do céu, ouvidos submersos e atentos aos sons abafados pela água, pode ser uma experiência de muito prazer para alguns, mas acima de tudo é, sem dúvida, uma experiência de entrega, de se deixar levar e exige por isso,um mínimo de confiança. Esta cena, que também encerra o filme, parece ser utilizada pelo diretor para anunciar a delicadeza com que ele irá tratar do tema a ser explorado, tão caro para nós modernos. Filipa, a menina que acompanha o pai nas águas do mar de Búzios, é a mais velha de uma família de três filhos e naquele momento ainda não foi assaltada pelos sentimentos difíceis que todos os filhos vivem quando seus pais estão prestes a se separar. As separações, que na atualidade já fazem parte de um repertório comum a muitas famílias, são sempre mal vistas por todos, inclusive pelos próprios protagonistas, que em geral prorrogam esta decisão, titubeiam ou tentam diferentes maneiras de “salvar” a relação. As razões deste mal estar em torno da ruptura de um casamento não são tão óbvias e nem tão simples como se quer acreditar, mas com certeza nos mostram o quanto apostamos na construção de uma família estável, quando imaginamos a felicidade de nossos filhos. Felicidade esta que se tornou um item de máxima importância para a realização pessoal de todos, mas que é desde sempre, paradoxal. Há pouco tempo a Folha de São Paulo anunciou um enxame de livros acadêmicos americanos, frutos de pesquisas recentes em torno do que seria a felicidade para nós, contemporâneos: saúde, prosperidade, juventude? Sentir-se bem, desfrutar da vida e desejar que essa sensação se mantenha? As respostas são controversas e embora mostrem a felicidade como um fenômeno histórico, ou seja, dependente dos valores e crenças que elegemos a cada época, o fato destas pesquisas existirem mostra o quanto ela permanece sendo um de nossos mais importantes ideais, algo que imaginamos perseguir, mesmo que durante nossas vidas, elejamos diferentes objetivos como fontes desta felicidade. Mas para os que elegeram ser pais, a felicidade de seus filhos é geralmente parte integrante de sua própria felicidade e isso em geral se deve ao fato de que se aposta que eles poderão viver ( ter, fazer, realizar) o que não pudemos. Neste sentido as separações são sempre um saco sem fundo, em que não só pressentimos que os nossos pimpolhos irão sofrer, como nos angustiamos por não poder antecipar o quanto tais dores irão calar para sempre a possibilidade de eles poderem ser felizes. Por isso o filme em questão agrada a todos, mesmo que pareça ( ou justamente por esta razão) estar abordando temas tão banais. Agrada porque o clima tenso e inquietante de uma relação conjugal em crise, é mostrado pelo olhar de Filipa, a adolescente que precisará trocar a imagem idealizada de seus pais, pela crueza de suas realidades, vivendo na própria pele, os dramas que o amor e o sexo impõe a todos. Tal como um ritual de passagem, a menina tenta entender a mulher, ajustar seu olhar sobre os homens, às custas do desmoronamento de suas certezas infantis e de muitas lágrimas. Mas ainda assim, será possível a ela voltar a ficar à deriva com o pai ao seu lado, no mesmo mar azul de sua infância.

coluna do dia 5 de agosto de 2009

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Os sons dos casamentos

O filme Casamento Silencioso, em cartaz na capital, traz cenas hilárias e um tanto caricatas sobre um casamento que seria realizado em uma pequena vila na Romênia no ano de 1953, justamente no dia da morte de Stalin, o líder russo, então comandante maior dos países ocupados. Por ordem expressa dos representantes do partido, a família e todo o povo da pequena cidade que havia se preparado para os festejos, deveria cancelar qualquer cerimônia, fossem de mortes, nascimentos ou casamentos. Todos se recolhem a suas casas, mas inconformados, decidem realizar uma cerimônia muda, às escondidas, esforçando-se para se comunicar através de gestos ao redor de uma farta mesa de comidas e bebidas. O que se segue dá panos a muitas mangas de reflexões sobre nossas celebrações, assim como a extensão de seus significados. As cerimônias que acompanham mortes, nascimentos e casamentos, embora tenham acentos culturais singulares, são quase universais e provavelmente sua origem esteja não só no valor que damos a tais fatos, mas na nossa impossibilidade de cobrir o significado destas passagens humanas. É difícil para todos nós imaginarmos um nascimento, um casamento ou uma morte sem o peso de sua simbologia, e são justamente os ritos da tradição que repetimos indefinidamente, o que nos tranqüiliza. O casal do filme em questão vivia uma paixão avassaladora, constrangendo aos moradores que não suportavam mais conviver com as cenas públicas de seus encontros ardentes. A cerimônia do casamento deveria apaziguar a todos, colocando os pontos nos “is” ao formalizar a união destes corpos sem destino certo. A partir daí, o encontro dos corpos ganha um significado, um futuro, uma perpetuação possível da tradição. E para consagrar esta passagem, que muda os adjetivos que acompanham a espécie animal para os da espécie humana, nada mais sugestivo do que uma grande festa, com muita música, bebida, comida e danças para que todos possam enfim compartilhar de suas razões. Se a festa adquire uma razão de ser, podemos então extrapolar os limites do cotidiano, e ultrapassar certas fronteiras que em geral usamos para comer, beber e dançar. Neste sentido, muitas de nossas cerimônias admitem alguns excessos, desde que estes tenham suas razões devidamente partilhadas pela comunidade. Planejadas com um ano de antecedência, contando muitas vezes com um serviço especializado de cerimônias, as festas de casamento na atualidade continuam a cumprir este ritual de passagem, mesmo quando se transformam em verdadeiros eventos, promovendo não só um encontro testemunhal entre familiares e amigos, mas momentos minuciosamente registrados de grande júbilo para os orgulhosos pais e os esperançosos cônjuges.

coluna do dia 28 de julho de 2009

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Segredos do futuro

Em clima de comemoração dos 40 anos em que o homem pisou pela primeira vez na lua, jornais, revistas e TV mobilizaram-se para produzir matérias que pudessem cobrir as reminiscências do impacto desta conquista humana e as reflexões sobre seu valor. Transmitida ao vivo no ano de 1969, o mundo parou para assistir as imagens mágicas da Apollo 11, pousada na superfície da lua, e do astronauta que ali deixava suas pegadas. Passadas estas quatro décadas, qual seria o valor que atribuímos a esta ousadia humana? Uma visada pelos inúmeros comentários colhidos pela internet nos mostra que tal acontecimento é hoje um fato consolidado e importante de nossa história, ou seja, há um significado compartilhado pela maioria que a chegada à lua ( para além de uma estratégia política) celebrava um avanço incomensurável do saber científico alcançado pelo homem. Por outro lado, tal como o olhar de cada um para uma obra de arte qualquer, é possível reunir um número sem fim de depoimentos individuais que descrevem este momento de suas vidas acentuando o valor de sua experiência individual, como uma marca em sua memória. Grosso modo, o saber das ciências seria mais objetivo e, portanto passível de ser medido e partilhado. Já as histórias que cada um conta sobre suas impressões são subjetivas e compõem o repertório que alimenta nosso imaginário social, junto com a literatura, o cinema e as religiões. É aqui que se encaixam o discurso dos jovens de então, que atribuíram a este fato um sentido poético e libertador para suas vidas, descrevendo a magia de suas fantasias de conquista do espaço e da construção de possibilidades ou de apostas de um futuro desconhecido, mas possível. Muitos localizam ali a matriz de seus projetos de vida e do despertar de suas paixões por motores e máquinas, fossem como construtores ou como pilotos. Paradoxalmente aqui também se encaixam os que ainda hoje duvidam deste acontecimento e criam uma infinidade de suposições com o intuito de justificar sua descrença. Afinal, não é fácil pensar que somos um minúsculo grão de areia no infinito espaço de um universo antes sagrado, que aos poucos vai sendo desvendado, aumentando as chances de não sermos seres tão especiais quanto nossa história já acreditou. De um lado e de outro, é das profundezas de cada alma que os sonhos e as fantasias, os temores e as assombrações emergem destes “encontros” e ganham significados particulares. E assim como a História de nossa existência humana, ressignificada a cada época, graças ao acúmulo de conhecimentos, podemos ampliar o sentido de certas vivências passadas, ao desvendar certas dimensões de nossos sentimentos, antes fora de nosso alcance.

coluna do dia 21 de julho de 2009

quarta-feira, 15 de julho de 2009

De mãe para filhos

As primeiras cenas do filme francês Horas de Verão (em cartaz na capital), mostram a comemoração dos 75 anos de Hélène, junto a seus filhos e netos, na casa de campo em que reside próximo a Paris, em companhia de uma antiga empregada e uma infinidade de móveis e objetos de arte de grande valor. Enquanto as crianças e adolescentes brincam e se perdem pelos campos ensolarados, os três filhos ( dois homens e uma mulher) e as duas noras sentam-se em volta da matriarca no jardim. As conversas tentam cobrir o tempo de ausência de Adrienne (que mora em Nova York) e Jérémie, o caçula, que reside com a mulher e seus dois filhos na China. Frédéric, esposa e dois filhos são os únicos que moram na França. Quanto a Hélène,a mãe, sua fala e olhares antecipam seu sentimento de que o fim está próximo, o que a leva a partilhar com o filho mais velho suas sugestões em relação ao legado artístico e de grande valor que a casa contém. Embora o filme seja muito simples e singelo no modo como irá mostrar a morte da mãe e as negociações que se seguirão entre os três filhos para decidirem o futuro da casa e do acervo artístico que ela possui, há nas entrelinhas, uma tentativa de discussão e reflexão sobre as heranças familiares, sejam elas materiais ou afetivas, diante de uma nova maneira de se estar e viver no mundo. Ao contrário do que se poderia imaginar, Hélène pede à Frédéric que vendam os quadros e os objetos de arte, que por valerem muito, poderiam ser mais úteis a eles, assim como a casa e seus móveis assinados. Frédéric não suporta imaginar a morte da mãe e muito menos a desaparição da casa de sua infância e seus objetos tão investidos de sua história familiar. Não é o que pensam seus dois irmãos que residem fora da França. Sabemos como cada filho, ao nascer, recebe um lugar dentro da família, antecipado pelo imaginário de seus pais que já sonham com seu nome e seu futuro. Mas cada criança tem sua história individual, para além de suas origens familiares e sociais, e caberá a cada um, substituir a imagem idealizada dos pais da infância, dos sabores, cheiros e ruídos deste lugar de proteção, permitindo que a família deixe de ser sua única fonte de referência. Frédéric se surpreende e sofre com a decisão dos irmãos pela venda total do patrimônio familiar, mas precisa se render ao fato de ser voz vencida. Ele se vê confrontado com a necessidade não só de renegociar com o que imaginava ser sua filiação na família, mas com seus sonhos de manter esta memória viva. Há uma exigência do mundo atual no destino de cada filho, que a primeira vista parece paradoxal. As famílias precisam cuidar e proteger seus filhos, mas precisam também deixá-los seguir suas vidas, cumprindo assim um papel ao mesmo tempo de tradição e de transformação. E, embora os sinos da tradição muitas vezes toquem alto demais e confundam o valor do novo e do velho, este filme mostra como é possível negociar as medidas destes dois importantes itens na vida de todos, quando há espaço para a coerência ( e não arbitrariedades) e respeito pelas diferenças.

coluna do dia 14 de julho de 2009

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Menina –moça

A imagem da menina -moça Maisa, a nova sensação do programa do apresentador Silvio Santos, pode ser vista como um paradigma da complexidade de nosso mundinho atual, já que ela é ao mesmo tempo o protótipo das bizarrices sedutoras que a mídia pode oferecer ao público, e o resultado do grau de liberdade e de acesso que todos podem sonhar em alcançar em sua busca de sucesso e prestígio. Maisa e seus 7 aninhos,aparece em público vestida conforme o modelo da menina prodígio dos anos 30-40 de Hollywood , a atriz Shirley Temple, que muitos não devem se lembrar, mas que marcou o início de uma época em que as crianças passariam a ser atrizes. Assim, em uma jogada mercadológica, pretendeu-se juntar em uma mesma imagem, a lembrança nostálgica da infância inocente , com seus cabelos cacheados e loiros e a caricatura de um adulto em miniatura que em um passe de mágica, é independente e espontâneo, além de rápido e inteligente em suas respostas. Crianças- adultos que prometem a nós, seus pais, que poderão enfim realizar nossos sonhos de felicidade: zero de sofrimento com muito dinheiro fácil. Nada demais se tudo se passasse no plano encantado do imaginário, e não precisássemos lembrar que atrás desta menina pulsa um ser humano infantil. Com poucas exceções, a mídia tem preferido seguir a ideologia das estatísticas do IBOPE , a mesma do mestre Silvio Santos e divulgar as gafes, os choros, as tiradas infames, ou seja os acertos e erros de Maisa, ao invés de questionar os usos e abusos de sua imagem de criança e portanto de sua condição “real” de ser humano que necessita não só de cuidados, mas de referências, limites e princípios humanos norteadores. É certo que o modelo da adultez infantil nos fascina, ao acenar com a possibilidade de manter nossas crianças em um permanente “seja feliz”, sem que tenhamos que nos deparar com nossa responsabilidade de transmissão e, portanto de limites e restrições para a obtenção de valores humanos de respeito, de privacidade, de verdade, de identidade, de preservação. Discordo, porém, dos clamores que tentam moralizar nossa cultura como se ela fosse um simulacro enganador, assim como não acredito na volta aos antigos valores tradicionais para garantir uma “ordem e trabalho” que não encontra mais eco no bonde da história, que é bom lembrar, pode até parar, ir devagar, mas não tem volta. Acredito também que não podemos deixar de valorizar o fato de nunca termos sido tão livres e soberanos para discordarmos das ideologias, legislarmos sobre nossas crenças ou escolhermos sobre nosso agir moral. Mas se de um lado, ganhamos em mais liberdade, por outro, muitas vezes nos sentimos vulneráveis e carentes de orientação na adequação de nossas ações e das dúvidas entre o certo e o errado. Diante da fogueira das vaidades, sucumbimos facilmente às promessas de prestígio e visibilidade, o que muitas vezes nos aproxima de uma versão cínica do nosso agir moral, aquela em que não há avaliação objetiva de nossos atos e nossas motivações são apenas interesseiras, fronteira tênue para a sociopatia, em que o desprezo e a incapacidade de se conformar às normas sociais, permite que se engane e se manipule os outros sem remorso nem responsabilidade,impondo suas próprias regras ainda que estas desrespeitem o coletivo. Este talvez seja nosso grande desafio: sem muitas referências passadas, nossas apostas de uma boa vida no presente e no futuro dependem cada vez mais do nosso preparo para enfrentar nossas responsabilidades para com o próximo, filhos aí devidamente incluídos.



Texto publicado em 26 de maio de 2009

terça-feira, 7 de julho de 2009

Flipando

Os leitores que, como eu, apreciam uma boa leitura, provavelmente estiveram antenados com a realização da ultima FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, que desde 2003 acontece na primeira semana de julho e já é conhecida ( e reconhecida) pela qualidade dos autores convidados, pelo irresistível entusiasmo de seu público e pela descontraída hospitalidade da charmosa cidade. Evento mais que moderno, há muito pouco tempo nem imaginaríamos estar face a face com autores de livros que apreciamos, ouvindo-os falar sobre seus processos de criação, sobre suas vidas íntimas, suas hesitações ou esperanças. Como em todos os espetáculos, em meio aos burburinhos suscitados pelos “eleitos” e mais assediados, aqui e ali é sempre possível extrair falas de alguns escritores que se encaixam a certos anseios de seus leitores. Foi neste clima que “bebi” as palavras do escritor francês Grégoire Bouillier , em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo, dias antes de sua chegada ao Brasil, quando afirmou ser o desafio maior da literatura, aquele de tornar compreensível ao próprio autor e aos seus leitores, o que se sofre e se experimenta pessoalmente, já que a vida nos desafia permanentemente a contá-la, e devemos aproveitar nossas dúvidas e questões para virá-las lentamente em direção à luz. Para ele, os livros mais reverenciados seriam os que falam ao ponto mais íntimo de nós mesmos, constroem nosso imaginário e inserem palavras, histórias ou situações que não poderíamos formular sozinhos. Quando alguns livros continuam a viver em nós e a nos influenciar sem que o saibamos, é porque eles nos fizeram diferença e é possível verificar em algum momento de nossas vidas, suas marcas e influências. Lembrei-me imediatamente do livro que classifico como o divisor de águas de minha vida, quando aos 19 ou 20 anos li “O jogo da amarelinha” do escritor argentino Julio Cortázar. Embora já houvesse “conhecido” Garcia Marquez, Jorge Amado e outras obras contemporâneas que desconstruíam a lógica amena dos romances de então, este livro perturbava em todos os sentidos. Com uma narrativa incomum, cujo objetivo não era o desfecho de uma trama, este anti-romance invertia a ordem convencional ao privilegiar a subjetividade dos personagens sem colocá-los em uma história de começo, meio e fim. A proposta desconcertante do autor, de que cada leitor pudesse escolher ler a obra seguindo um ordenamento linear dos capítulos ( do 01 ao 56) ou saltando segundo suas instruções ao final de cada capítulo ( começando pelo capitulo 72),já indicava sua ousadia formal. Melhor ainda era mergulhar na alma de seus personagens, que como ele, eram em sua maioria, imigrantes latinos vivendo na Paris dos anos 50 e 60, palco de questionamentos políticos e sociais, mas principalmente de encenações do que viria a se constituir uma verdadeira revolução cultural. Os diálogos, as manias, os livros, as músicas e as idéias e a ânsia de viver dos personagens já anunciavam este nosso novo mundo. Maior impacto ainda era o fato destes personagens não se levarem tão a sério, utilizando-se de uma via irônica para se referir aos seus dramas cotidianos, que revelava uma coragem em se apresentar por suas falhas, feridas e perdas. Lido no início dos anos setenta, o livro me causou um alvoroço interno, ainda que não houvessem palavras para definir meus sentimentos. Provavelmente são estas obras que chamamos de vanguarda, e que em diferentes tempos e lugares se tornam o arauto de mudanças importantes, ao apontar caminhos inesperados.

coluna do dia 7 de julho de 2009

Ser ou não ser

Figura emblemática, Michael Jackson foi sem dúvida um artista de nossos tempos. Nascido na era da mídia, cedo seu talento o alçou a ícone musical do planeta. A década de 80 foi sua. Era difícil assistir aos seus clips inovadores, verdadeiros roteiros cinematográficos produzidos com recursos e efeitos que a tecnologia da época oferecia, acrescido de sua performance corporal perfeita, e não cultuar este conjunto como uma obra de arte. Aos que bebiam de sua destreza corporal, e tentavam imitar seus passos inquietantes, ou aos que cantavam seus hits, acompanhando seus gritos e breques, suas roupas ao mesmo tempo personalista e comuns, Michael Jackson fazia história na música pop mundial. Morto aos 50 anos, dos quais 45 faziam parte de sua vida artística, nos últimos anos acostumamo-nos a assistir sua humanidade frágil, estampada na figura trágica que seu corpo se transformou. Como é de praxe em mortes de ídolos, no dia seguinte à sua morte, pudemos assistir de nosso sofá, os melhores momentos de sua arte. Há séculos que a arte e os seres humanos por trás dela,seguem fascinando a nós, simples mortais. Quem sabe por ocupar este espaço especial, que nos transporta a lugares impensáveis e conseguir reunir diferentes pessoas, atravessando barreiras étnicas, sociais e geográficas, a arte e o artista continuam a ser reverenciados sem questionamento, perpetuando o congraçamento humano em torno do sublime. Ainda que tentemos submetê-la às nossas interpretações, que insistamos em utilizar adjetivos que a descrevam, ela só continua a ser arte por desconstruir nossas expectativas e perturbar nossos sentidos. E continua a nos oferecer a possibilidade de sonharmos em ser tão especiais quanto a arte dos artistas, que o tornam único. Mas é um equívoco quando imaginamos o homem especial que existiria por trás do artista, esquecendo-nos que sua história é humana. Dono de um estilo performático inusitado, Michael Jackson desde sempre anunciou ao mundo o lado trágico de sua vida artística, sonho perseguido pelo pai de maneira doentia e autoritária. A partir de meados dos anos 90, foi o estranho mundo de Michael que passou a gerar as manchetes : seu comportamento excêntrico, sua gradual mudança da cor da pele e as acusações de abuso sexual contra menores. Suas canções recebiam menos atenção que a sua aparência - o nariz alongado, a pele esbranquiçada, o cabelo liso. Como outros ícones da música (Elvis Presley, Janis Joplin, Jimi Hendrix), Michael tentava arrastar sua arte junto ao peso e o preço de sua sobrevivência. Mas para nós, seus fãs, é sempre difícil encarar o lado humano do mito, sem reclamar de seus erros. A morte deste menino-homem, deste talentormento como o definiu Tom Zé, o reconduz ao ídolo amado e imitado que foi. Michael Jackson é lenda.

coluna do dia 30 de junho de 2009

Lóki

Quem não conhece a história dos Mutantes, grupo musical dos anos 70 que, junto ao movimento tropicália, foi responsável pelas mais criativas e irreverentes produções da época? Dali sairiam alguns hinos entoados por muitas gerações de jovens, além de nossa musa do rock brasileiro, Rita Lee. Casados, Rita e Arnaldo também sugeriam a formação de um par inovador, cujos comportamentos indicavam total consonância com os valores da contracultura, o movimento paz e amor, a estética psicodélica. Como todos os artistas que faziam parte deste momento cultural, as drogas, entre elas o chamado LSD, eram parte integrante de suas vidas. Mas os anos dourados desta formação de sucesso se desfez quando o casal se separou, culminando com a saída de Rita do conjunto. Apesar do espaço conquistado pelas letras criativas de Arnaldo Batista, a impressão que ficou no ar, é que ele não teria conseguido superar tal separação. Na semana passada, entrou em cartaz em São Paulo um documentário, Lóki, que tenta costurar este tempo em que o artista esteve vivendo in “off”. Idealizado por produtores mais jovens, que não tiveram a oportunidade de viver esta época áurea dos Mutantes, o filme contém este sentimento de descoberta amorosa e de tentativa de recuperar a importância do artista, surpreendendo o público ao divulgar depoimentos de fãs espalhados pelo mundo inteiro, dentre estes alguns de peso como Kurt Cobain ou Sean Lennon. Para quem viveu, curtiu e cantou como eu, as produções musicais da década de 70, o filme resgata o clima da época e o compromisso da maioria dos artistas jovens com um novo mundo que se abria, mais descompromissado com alguns valores tradicionais e mais livre para ousar e criar novos discursos, estilos e modos de ser e viver. Mas o documentário tem também um lado trágico: o mergulho de Arnaldo em um mundo paralelo, só seu. Embora seu irmão e colegas façam um discurso uníssono em torno da grandeza de sua arte e do papel decisivo do uso indiscriminado de LSD, há aqui e ali alguns indícios de que sua separação de Rita Lee teria provocado um rombo irrecuperável em seu mundo subjetivo. Longe de utilizar uma psicologia barata que junta trauma a um culpado, o filme tenta captar a complexidade de seu percurso, os limites de suas possibilidades e suas tentativas atuais de juntar seus pedaços nas telas que compõe compulsivamente. Jovens e adolescentes, os Mutantes despontaram do interior dos bairros paulistanos para o mundo novo da televisão e da fama. Sabemos como a adolescência é este período em que não somos mais crianças mas também não ganhamos ainda a reverencia do mundo adulto. Ficamos neste vão entre dizer o adeus necessário ao aconchego idealizado de nossa infância, e buscar alternativas fora deste mundinho infantil que passamos a não respeitar mais. É justamente por isso que a juventude se constitui no momento mais original da produção cultural e da renovação dos costumes. Particularmente nas décadas conhecidas pelo movimento da contracultura, havia no plano social um espaço importante de recepção deste novo, o que contribuiu para que as “revoluções adolescentes” fossem muito mais radicais. Mas a verdade é que nem sempre estamos preparados para enfrentar as conseqüências de vôos ousados e sem destino certo em uma etapa da vida em que nossa fragilidade é imensa e nossa auto-imagem incerta. Parabéns aos idealizadores do documentário que souberam evitar um enfoque estereotipado e preconceituoso sobre Arnaldo Batista, ao acolher com extrema delicadeza, a linguagem diferente e muitas vezes perturbadora de sua visão sobre si, sobre a vida e o futuro. Temos um mito.

Coluna do dia 23 de junho de 2009

Bullying e outros comportamentos indesejáveis

Mesmo sendo tema freqüente de debates entre os educadores ou de notícias pela mídia dos últimos tempos, o termo bullying ainda é desconhecido do público em geral. Sendo mais uma entre as muitas palavras importadas que se incorporam à nossa cultura, em inglês bullying se origina do verbo to bully que significa tratar com desumanidade e grosseria, humilhar ou ameaçar outros mais fracos e impotentes. Hoje faz parte do vocabulário de educadores e escolas do mundo ocidental para designar um comportamento (comum) entre crianças e adolescentes quando escolhem outras, mais tímidas, envergonhadas ou frágeis para fazerem sobre elas todos os tipos de zoações. Se a norma atual exige manuais que busquem curar qualquer desvio, são muitas as cartilhas sobre o bullying produzidas por especialistas ,que exibem orientações tanto para o corpo diretivo e os professores das escolas,quanto para os pais. Claro que esta forma de intimidação de alguns, sobre outros menos preparados para se defenderem, não deve ser tratada como algo sem importância. Não são poucas as vezes em que professores, diretores ou pais se sentem impotentes diante desta violência. Por outro lado sabemos ser comum que crianças ou adolescentes juntem-se para formar grupos (tribos, gangues) que permitam-lhes um plus de poder e prestígio. Ao vestirem a fantasia do “conosco ninguém pode” resvalam facilmente para o exercício tirânico da intolerância, da discriminação e da violência através de ridicularizações, ameaças e chantagens feitas à crianças e adolescentes mais frágeis ou aquelas que apresentem qualquer indício de exceção aos padrões cultuados pela sociedade. Algumas destas vítimas podem viver tais achaques de forma traumática e avassaladora. As instruções contidas nas cartilhas que tentam prever estes comportamentos em um quadro de possibilidades e chamar a atenção dos profissionais da área da educação ou dos pais são um passo a frente no sentido de imputar as devidas responsabilidades e criar uma espécie de repertório de cuidados e alternativas de ambos os lados (pais e professores). Mas há que se refletir sobre a complexidade de tais motivações. A escola é hoje o espaço em que as crianças mais permanecem durante sua vida e não por acaso estas tem se equipado cada vez mais para receber e oferecer a elas, desde o seu nascimento, todas as espécies de cuidados e saberes. Sendo assim, depois da família, a escola seria o principal núcleo de socialização da criança, e onde ela certamente dará continuidade às encenações que fazem parte de seu mundo. O brincar e o representar não são uma concessão dos adultos ( pais, professores) para as crianças, mas um exercício importantíssimo de expressão e elaboração de seus sentimentos, lembrando que nestes sentimentos estão incluídos a agressividade, a hostilidade e a ira. As tramas amorosas vividas por cada criança são protagonistas de muitas de suas encenações no seio familiar (e também na escola) em que participam de forma efetiva os sentimentos de ódio, rivalidade e ciúmes e seus derivados, as formas sádicas e masoquistas de dar ou receber. Entretanto o significado de tais dramas encenados nem sempre estão ao alcance de nossa percepção e menos ainda da criança. Se a nós cabe a tarefa de educar seja em casa, seja na escola, guardadas aqui suas diferenças, esta tarefa não se limita ao fornecimento de ferramentas e saberes. Ela é também um trabalho de inserção de um tempo especial de espera entre o que a criança demanda e a satisfação desta demanda. Tempo dos nãos, dos limites e do árduo trabalho de ajudar a criança a sair de seu mundinho fechado em direção ao complicado e jamais bem-acabado mundo compartilhado com os outros, cheio de sons e fúrias, mas também repleto de trocas e alegrias. Sem nos esquecer que os excessos merecem sempre um olhar mais cuidadoso ou um cuidado especial.

coluna do dia 12 de maio de 2009