terça-feira, 30 de junho de 2009

Passagens

Colunas, blogs ou reportagens cujo tema gira em torno de um balanço do ano que termina ou de algumas previsões ou aspirações para o próximo, são lugar comum nesta época. Em meio à agitação que se vive no mês de dezembro, mês que mais se aproxima de uma celebração ( ainda que datada) da amizade humana, com confraternizações de todos os grupos a que pertencemos,trocas de presentes, palavras de reconhecimento e gratidão, em geral encontramos um espaço para pensar sobre o que ficamos devendo aos planos que traçamos um ano atrás ou o que pretendemos agendar para o próximo, sejam propostas concretas ou mesmo aquelas que fazem parte de secretos e íntimos desejos, novos ou antigos, que imaginamos poder realizar nos próximos 365 dias do ano. O valor que de certa forma acabamos atribuindo a esta passagem de um ano para o outro a torna algo simbólico, que no arrancar da última folha do calendário nos faz distribuir a todos que fazem parte de nosso rol de amizade, desejos que também necessitamos acreditar ser possíveis para nós, algo que possa se parecer com “daqui para frente tudo vai ser diferente”. Gostamos de imaginar um pacote de felicidade, incluindo algum sucesso, dinheiro, amores, viagens... e claro, como imaginar e sonhar não custa nada, quem sabe também saúde,um corpo mais magrinho e atlético, talvez trocar o carro,comprar aquele laptop mais ágil,ou aquele apartamento com varanda, um pouco maior, com o sol batendo o dia inteiro,bem próximo do parque para que possamos caminhar até lá nos finais de semana. OK, o mundo atual oferece mesmo esta brecha para nossos sonhos de consumo. Podemos imaginar um futuro em que muitos destes sonhos se tornarão realidade.Mas não custa lembrar que nem sempre nosso ano que passou nos apresenta apenas nossa conta devedora. Muitas vezes ele foi difícil, nos surpreendeu com fatos desagradáveis e inesperados, com perdas dolorosas ou danos e prejuízos impossíveis de digerir. Neste sentido, estar a um passo do final dele nos faz respirar aliviados, como se esta passagem pudesse acenar com o fim de algo e começo de outra coisa. Melhor, muito melhor com certeza. E o fato de podermos apostar nisso, que este sofrimento ao qual estivemos submetidos pode ficar no passado, neste ano que se finda, nos dá aquele plus de confiança necessário para que nossas vidas ganhem um novo sentido. De um lado ou de outro, nos acostumamos ao longo dos tempos a manter este significado importante para esta passagem, como se nos permitíssemos dividir nossas vidas em pedaços de um ano, talvez por percebermos que precisamos de um futuro datado, não só para não nos perdermos no mar de nossos desejos e aspirações, mas também para que possamos conferir o que pudemos realizar ou quanto pudemos caminhar ou evoluir dentro da escala que cada um de nós utiliza para avaliar sua vida, ou a si próprio. Bom Natal a todos.

Coluna do dia 23 de dezembro de 2009

Maysas

Jayme Monjardim se tornou conhecido do público quando ousou quebrar a hegemonia global das novelas mostrando ao público um pouco das incontáveis belezas naturais de nosso Brasil, de sua cultura diversificada e do povo, costume e estilo próprios do Pantanal mato-grossense. Discreto, pouco dizia de sua condição de único filho de nossa Maysa, morta em 1977, aos 40 anos, em um acidente na ponte Rio-Niterói. Somente agora, aos 52 anos , Jayme decidiu tornar pública sua história, encomendando ao escritor Manoel Carlos, fã confesso da cantora,um roteiro para uma minissérie sobre sua mãe que começa a ser exibida pela Rede Globo em janeiro de 2009. Atendendo a um palpite de Manoel Carlos, seus dois filhos irão interpretá-lo em diferentes momentos de sua vida. Jornalistas de todos os cantos acorreram ao seu alcance no intuito de saber como andava sua alma diante da iminência desta exibição. Ao ler as várias entrevistas, no entanto, a pergunta que fica no ar e que todos parecem querer fazer não é a que resgata a história atribulada e corajosa da vida de sua mãe, mas aquela, escondida nos recônditos de suas entranhas de filho e que só ele poderia revelar. Às vezes seguro, outras emocionado, Jayme chega a confessar que este projeto antigo e difícil tinha seu tempo para acontecer. "Maysa - Quando Fala o Coração" tem assim um significado especial, de resgate de sua relação ao mesmo tempo curta e tumultuada com a mãe, mas também de tornar possível uma declaração tardia de seu amor e de sua admiração àquela mulher destemida que desafiou os padrões sociais de sua época ao não abrir mão de seu grande sonho. Abrir o baú destas memórias, colocar a si próprio como personagem de uma história ao mesmo tempo particular e pública, dividir esta história com os filhos que pela primeira vez entram em contato com a saga desta avó,admirada e execrada pela sociedade de seu tempo, é no mínimo um ato generoso. Parte importante de nosso acervo musical em um momento cultural em que ser mulher e cantora significava enfrentar um preconceito silencioso, Maysa soube falar e cantar para a sua época, expondo ao mesmo tempo sua paixão e sua melancolia diante de seus sentimentos por vezes incompreensíveis até para si mesma. Sua dependência alcoólica e as constantes tentativas de se livrar dela, revelam o lado sombrio de sua luta : buscar apaixonadamente a vida sem saber ao certo o que fazer com seus limites para os difíceis percalços desta busca. Aos 15 anos Maysa compôs “Adeus” sua primeira música, mas é com o título de outra composição sua, “Felicidade Infeliz” que ela resume sua vida. Podemos conferir, em janeiro.


Coluna do dia 16 de dezembro de 2008

Capitulando

Apesar de não sermos um país que dispense um lugar tão diferenciado para a sua própria literatura, o romance Dom Casmurro e seus personagens Capitu e Bentinho são velhos conhecidos da maioria. Na cola da comemoração do centenário de morte de Machado de Assis reverenciado e com razão, como um dos maiores escritores brasileiros, a Rede Globo colocou no ar desde ontem, uma minissérie em cinco capítulos sobre esta trama que, por supor um adultério feminino e expor a hipocrisia da sociedade imperial da época, foi e continua a ser motivo de debates e controversas além de palco de alguns júris que se propuseram a tentar condenar e/ou defender Capitu. Não custa lembrar que o romance é narrado por Bentinho como a fazer uma retrospectiva de sua vida e da suposição que o perseguiu ( e ainda o persegue quando escreve) de que sua Capitu, então amada esposa , teria se envolvido com seu melhor amigo Escobar e que seu único filho Ezequiel pudesse ser fruto deste relacionamento. Fosse como dúvida ou como realidade, a grande genialidade de Machado de Assis não foi repetir a velha fórmula do triangulo amoroso, sempre um bom ingrediente para nossas histórias amorosas, mas sim revelar através da ambigüidade de seu personagem narrador, a “verdadeira” natureza humana. É justamente por Bentinho ter optado por acreditar em suas suposições e ter deixado Capitu e seu filho na Suíça, que ele precisa fazer este exercício atormentado de escrever e rememorar seu passado, na tentativa de justificar e sacramentar sua decisão, demonstrar a culpa de Capitu e se livrar de sua própria culpa em relação aos seus sentimentos de ciúmes, inveja, rivalidade e por que não crueldade. É esta sensibilidade apontada em Machado de Assis por quase todos os seus estudiosos e leitores apaixonados, que lhe confere a capacidade de analisar as nuances nem sempre perceptíveis da alma humana. A leitura de um texto desta grandeza não só promove diferentes maneiras de apreensão por parte de cada um dos leitores, como a cada época, graças ao bonde da história que jamais pára, pode permitir novas reflexões sobre os mesmos dramas humanos.É assim que o adultério feminino foi durante quase sete décadas o grande tema a se destacar deste texto e, podemos dizer hoje ,a empobrecer sua riqueza, já que não se trata de chegar a este tipo de “verdade”moral.Para além da possibilidade de traição de Capitu, há um homem que se dispõe a abrir sua alma e relatar seu drama, sua paixão,suas dúvidas, seus ciúmes,seu ódio e suas escolhas.Os romances, assim como os filmes e as canções são produtos desta pequena parcela humana de autores,a quem nunca podemos deixar de agradecer e reverenciar por nos oferecer constantemente possibilidades de estudar, perscrutar e entender um pouco mais de nós mesmos.


Coluna do dia 09 de dezembro de 2008

Violência e desamparo

A revista Veja da semana passada trazia de volta à mídia o que se convencionou chamar de “caso Isabella” , exibindo na capa as fotos de seus dois protagonistas, Alexandre e Anna Carolina e convidando o público a acompanhar os 200 dias de suas (boas) vidas de cadeia . A palavra “boa” vinha em parêntesis como a provocar o leitor a julgar a medida que deveria ter a vida de prisão do casal . Estaria justa ou o sistema jurídico precisaria tomar medidas mais duras? Ficamos sabendo então, o dia a dia de cada um, suas preferências, os amigos eleitos, as visitas das duas famílias e suas particularidades, os recursos, as chances, etc. Entretanto o que fica mais em evidência na reportagem é que após serem acusados da autoria de um dos crimes mais rechaçados da atualidade, a vida íntima de ambos passou a ser de domínio público e não mais questionamos os limites da exposição de qualquer detalhe sórdido de suas árvores genealógicas como se todos comungássemos de um sentimento coletivo não só de repúdio ao seu ato criminoso, mas de consentimento de que ambos não mais merecem desfrutar dos mesmos direitos de cidadãos comuns como nós. Assim, deixamos de lado a compaixão e damos de ombros a qualquer excesso que seja cometido em suas vidas, já que estes podem ser descontados na imensa dívida moral contraída por ambos após seu repugnante ato. Sem a pretensão de fazer aqui um julgamento moral sobre o caso, pareceu-me interessante trazer a tona algumas questões que ele suscita. Embora o tom da reportagem anuncie uma vistoria sobre a gestão das medidas legais, há também uma intenção nem tão velada, em perscrutar as razões históricas, sociais e emocionais que estariam implicadas no fracasso ou no “erro” humano cometido pelo casal. Seria a família?A criança? O mundo contemporâneo e suas complexas transformações? De certa maneira acompanhamos curiosos o rastreamento destas possíveis explicações, não só por desejarmos que o casal possa ser julgado e punido diante da comprovação de seu crime, mas porque no fundo sabemos da complexidade destes atos violentos cometidos no auge de um descontrole sobre nosso ódio, nossa ira ou nossa dor. Sabemos ser possível desejarmos a morte de alguém que em algum momento de nossas vidas é responsabilizado por nosso sofrimento, e sabemos também o quanto nossa fúria pode magoar, humilhar ou destruir aquele que a despertou. É esta pequena fronteira entre o “mal” que podemos desejar ou sonhar para um outro e o ato de fazê-lo de forma cabal que nos transforma em transgressores e nos coloca à margem da sociedade em que vivemos.O casal em questão já está sendo submetido às nossas leis que cuidam dos que infringem estas fronteiras e produzem uma espécie de “guarda” sobre o convívio humano. O que cabe a nós então, leitores e mídia incluídos? Dividirmo-nos entre os que buscam a verdade sem compaixão, portanto de forma cruel, os que julgam segundo uma moral convencional que lhes foi passada, sem pensar ou refletir, ou optarmos por considerar a particularidade do caso, exercitando nossa ética, aquela que nos obriga a pensar o que este “ato” que devastou a família e todos os seus membros pode nos revelar sobre as realidades incômodas e conflituosas que nos causam sofrimento.

Coluna do dia 02 de dezembro de 2008

O que é ser uma mulher?

Ainda hoje é comum se ouvir esta questão (e não só pelos homens) geralmente formulada em tons que anunciam um enigma sem solução. Talvez em parte haja mesmo uma necessidade cultural de manter um certo véu sobre “ o que é ser mulher”. Mas estarmos em pleno século XXI nos permite abrir o leque deste complexo- mulher e apostar que a mudança dos tempos traz consigo novas conquistas do ser humano no saber sobre si mesmo.Sabemos hoje o quanto a história da humanidade é sempre revista a partir dos novos paradigmas que são colocados pela aquisição destes saberes. Estas questões me foram suscitadas pela história da Duquesa, filme que estreou neste fim de semana na capital sobre a vida de Georgiana Spencer, que viveu na Inglaterra no tumultuado período em que aconteceu a Revolução Francesa e participou do fervilhar de suas idéias, concepções de mundo e de vida e de uma ideologia que marcaria o fim de uma era. Georgiana se tornou duquesa ao aceitar se casar aos 17 anos com o rico e poderoso duque de Devonshire, que aos 26 anos já tinha uma filha bastarda com uma de suas empregadas e buscava apenas um herdeiro para seu nome e fortuna. Bonita, inteligente e carismática, Georgiana marcava sua presença na corte, fosse desenhando seus vestidos e acessórios ou discutindo com sensibilidade e argúcia as pautas políticas do Partido Liberal,que comungava o clima revolucionário de então. A referência que o filme faz a Revolução Francesa não é gratuita. Ali se teceu o que viria a ser a aspiração moderna do mundo ocidental, ou seja, a igualdade, a liberdade e a fraternidade, que pretendiam resumir o fato de a humanidade poder partir do ponto zero, sem diferença de raças, classes ou gêneros. Passados três séculos pode-se dizer que estas questões continuam sendo digeridas pela cultura, principalmente no que diz respeito ao lugar reservado para a mulher.O filme aborda de forma sutil a violência imposta pela hierarquia entre os sexos, que convencionou um poder e uma liberdade ao homem e um submetimento à mulher.Creio não ser por acaso que os filmes busquem focar as relações amorosas e seus percalços: sexo,amor, traição, filhos, maternidade, paternidade. A experiência amorosa é necessariamente um território limite entre nós e um outro e por isso mesmo é fonte dos conflitos mais humanos, que gravitam entre o amor e o ódio,o domínio e a subjugação, o desejo e a indiferença, a rivalidade e a generosidade, etc. Georgiana parece ser uma mulher que confia em seus princípios humanos e na sua capacidade de fazer escolhas, de aceitar ou rejeitar argumentos e propostas. Parece ser alguém que conviveu com o exercício da reflexão sobre a vida e as pessoas e aprendeu a discordar ou encontrar caminhos alternativos. Em sua vida privada ela será testada de várias formas e terá que fazer escolhas corajosas, mesmo que para nós modernos, pareçam injustas.

Coluna do dia 25de novembro de 2008

Novas cores do amor

É agradável ler um texto cujas idéias andam passeando por nossa cabeça. É como se alguém tivesse sido generoso e pudesse nos ajudar a organizar nossa estante de palavras, ajeitando-as de forma mais harmoniosa, tirando os excessos, acrescentando adjetivos mais apropriados, etc. Foi assim que me senti ao ler o texto de Jonathan Franzen no caderno Mais! da Folha do último domingo, “ Amor sem pudor”. Embora polêmico e controverso, o amor ocupa um lugar meio sagrado no imaginário social. Com um passado glorioso, desde sempre foi alçado a condição de sublime, fosse identificado a um Bem acima de qualquer suspeita, a um sentimento que deveria ser devotado exclusivamente aos deuses, ou a algo especialíssimo entre dois seres quando agraciados e capturados por ele, certos de estarem na rota da felicidade. Mas assim como a sexualidade humana, o amor também viajou no trem da história e adquiriu tonalidades que não possuía. Em nome dele muitos crimes foram e ainda são cometidos e muitas coerções são admitidas , assim como algumas dores dilacerantes são perpetuadas. Por outro lado, este mesmo amor, foi e continua a ser bandeira de muitas lutas contra discriminações sociais, étnicas, sexuais e religiosas. Sentimento privilegiado da zona privada das vidas das pessoas, no mundo atual ninguém questiona os rituais amorosos, sejam os que se realizam em torno do amor de pais por seus filhos, destes por seus pais ou de pares que desejem exibir suas paixões. Mas por ter se tornado inquestionável como condição nas relações mais íntimas, sua antiga moradia privada tem escancarado suas cortinas. Franzen é um escritor americano de 47 anos considerado há quase uma década uma destas boas revelações da literatura mundial. A palavra “mundial” deve ser destacada já que um escritor desta geração, pelo menos cá em nosso Ocidente, deve oferecer uma leitura cujas referências culturais ou questionamentos sobre a vida humana farão parte de nosso repertório. É assim que ele descreve neste texto um pouco de sua inquietação ao se deparar, em qualquer recinto público, com pessoas penduradas em seus celulares, que de forma automática e sem se sentirem constrangidas por não trocarem palavras com os que os estão auxiliando nos serviços, passam a falar em voz alta sobre suas vidas íntimas ou profissionais, rindo ou se exaltando seja em alguma fila, na compra de ingressos ou objetos,em mesas de bares ou restaurantes, etc. E se pergunta como foi que em tão pouco tempo todos se autorizaram a divulgar em alto e bom tom, pedaços enormes de suas vidas privadas em recintos públicos repletos de estranhos? Será que seria ele o “vovô” da história, ao se sentir desconfortável em ouvir declarações de amor de enamorados ou de pais para seus filhos no caixa dos supermercados? É interessante como Franzen estaria revelando a partir de seu constrangimento, um temor do qual compartilho, o de que o “amor” se banalize e que nossas vidas, já sem muitos guias de destinos, fiquem sem este que ainda nos presenteia com um sentido. Mesmo que adquira outras cores.
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Coluna do dia 18 de novembro de 2008

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Habemos presidente

Nestes últimos meses estivemos convivendo com a figura simpática de Barack Obama nas fotos e manchetes estampadas quase que diariamente nas primeiras páginas dos jornais , ou como personagem de colunas e blogs de quase todos os articulistas, que de forma velada ou escancarada juntaram-se à grande torcida mundial em torno de sua eleição a presidência dos USA. Confesso que compartilhei deste clima, e sem que eu pudesse evitar, fui tomada por uma forte emoção de alegria quando vi anunciada sua vitória na última quarta feira, dia 5 de novembro. Embora a mídia em geral recorte as cenas mais impactantes para provocar uma identificação em seus expectadores, era quase impossível ficar indiferente às reações de júbilo e otimismo que se assistiu tanto na grande maioria do povo americano quanto na do resto do mundo. Pode-se dizer que esta eleição cumpriu um papel inédito na maneira como cada habitante de nossa aldeia global sentiu-se autorizado a torcer por um cargo de presidente de um país que, tanto por sua hegemonia econômica quanto pela extensão de sua força política, ocupa um lugar de esperanças e apostas em mudanças que favoreçam a vida e a convivência humana mundial. Nosso mundo se tornou pequeno não só pela sua estatura diante da imensidão espacial que sabemos existir hoje, mas pela possibilidade de, graças ao grau de conhecimento e tecnologia que atingimos, sabermos o quanto poderemos ser atingidos em tempo real por alguns efeitos maléficos que aconteçam em quaisquer pedacinhos dele. É assim que, de olho no futuro, produziu-se uma certa irmandade da espécie e todos sentiram-se à vontade para comentar, refletir, pensar e problematizar a campanha presidencial dos Estados Unidos. De todos os lados, esperanças se espalharam em torno da figura carismática e mansa de Obama, cuja biografia, postura "cool" e imagem do “negro" que representa mais a mestiçagem étnica deste mundo pós-moderno do que os antigos conflitos raciais dos afro-americanos seduziram a muitos. Talvez por estarmos vivendo em um período especial de questionamentos em torno de políticas e culturas mundiais, o resto do mundo sentiu-se à vontade para se juntar aos anseios de mudança do povo dos USA. A imposição de filiação ao Mercado Econômico Mundial e sua promessa de livre acesso aos bens àqueles que conseguissem apreender suas regras, não garantiu as riquezas anunciadas, ainda que mantivesse nossa identidade de consumidores. A crise financeira que afetou a todos denunciou que diante de suas falhas, o Mercado apenas nos mostra o quanto podemos ficar irmanados em um barco sem direção. Nestes quadros de desamparo geral, o sonho de se tornar rico é sobrepujado, ainda que por pouco tempo, pela necessidade de se refletir e quem sabe inventar novas maneiras de se estar e viver neste mundo. Quando alguma figura consegue ocupar o lugar de promessa deste novo, é natural que comemoremos, já que ganhamos um futuro e podemos acionar nossa velha e preciosa fé.

Coluna do dia 11 de novembro de 2008

Sagrada família

Na Revista Veja de 22 de outubro último, há uma entrevista do filósofo francês Luc Ferry , que já foi Ministro da Educação de seu país em 2004, e lançou recentemente um livro cujo instigante título é Família, Amo Vocês. Nesta entrevista o filósofo defende a família atual, e ao contrário do que se poderia supor diante das mudanças de valores e da desconstrução do modelo tradicional pai-mãe-filhos para todo o sempre, afirma ser ela o último reduto do sagrado para a humanidade, pelo menos no Ocidente. Não é difícil entender as razões pelas quais as relações familiares passaram a ser as únicas pelas quais, como disse o filósofo, estaríamos dispostos a viver e a morrer. A tragédia ocorrida há poucos dias em torno do seqüestro e morte de Eloá revela o lado sombrio deste quadro. Faz menos de dois séculos que passamos a nos casar ou eleger parceiros por amor e constituir um núcleo familiar em que nossos filhos ocupariam o lugar de privilégio absoluto em nossas vidas. Hoje nos parece um fato indiscutível tanto a importância que dispensamos à infância , quanto nossos investimentos para evitar situações de sofrimento ou de prejuízo aos nossos infantes. É comum ouvirmos que a dor mais absoluta e infinitamente mais dilacerante é a que sentimos quando perdemos um filho, seja por motivos justificáveis ou não. Por outro lado, ainda que fiquemos perplexos diante das mortes impulsionadas pela paixão amorosa, elas também são parte de nossa crença no valor do amor. Em um circuito amoroso que se repete indefinidamente na atualidade, o amor que é esperado que tenhamos de nossos pais vai nos proporcionar o amor que nutrimos por nós mesmos e fará com que busquemos o mesmo reconhecimento e valor deste amor nos outros que iremos eleger.Mas também é verdade que teremos que encontrar maneiras de nos amar mesmo quando não formos tão amados quanto gostaríamos, e talvez busquemos em nossas escolhas amorosas o amor que deveríamos ter recebido. O que dizer da hostilidade e do ódio que podem organizar a violência dos encontros humanos a partir da quebra deste circuito que é hoje nosso ideal amoroso moderno? Tornamo-nos reféns do amor e com isso buscamos todos sermos únicos, amados e especiais para alguém assim como acreditamos que fomos ou deveríamos ter sido amados por nossos pais. Até mesmo as normas e leis que regiam as relações familiares há bem pouco tempo sucumbiram ao argumento deste amor. Se a criação de deuses e mitos foi em nosso passado recente uma forma de proteção à nossa fragilidade diante de nossa finitude e uma maneira de respondermos aos enigmas de nossa existência, o amor que hoje permeia as relações familiares é um ideal que nos proporciona uma visão de vida, nos oferece alguma remissão e um significado à nossa existência. Não é difícil imaginarmos que para a maioria de nós, as inúmeras opções que nosso mundo contemporâneo produz no intuito de nos oferecer felicidade só ganham sentido se forem vividas com nosso parceiro(a) amoroso ou com nossos queridos rebentos.Sem esquecermos, é claro, que somos nós e nossos desejos, quem definem os caminhos de nossa cultura.


Coluna do dia 4 de novembro de 2008

domingo, 28 de junho de 2009

Que não tem nome

Pudemos acompanhar passo a passo pela mídia o trágico desfecho do “enamorado” que invadiu a casa de sua ex- namorada e anunciou ao mundo durante cinco dias, que não poderia aceitar o fim de seu namoro. Estes atos tresloucados que revelam a fúria humana diante de situações de muita impotência, provocam um sentimento de horror em todos e em geral despertam anseios coletivos na busca de culpados ou de falhas da sociedade e da cultura que possam trazer um certo apaziguamento em relação ao inominável ou àquilo que sabemos que todos podemos chegar a fazer em situações extremas. Assistimos então análises sobre a situação atual de nossa polícia e as estratégias de suas intervenções, sobre as conseqüências da falta de recursos e de possibilidades de inserção social das classes mais baixas, sobre a facilidade com que a violência pode ser espetáculo, sobre o livre acesso a armas de qualquer natureza, sobre o desalento provocado pela falta dos valores tradicionais da família, etc. Não que estas avaliações não possam e não devam alimentar a necessidade infinita de utilizarmos nossa razão crítica aos caminhos e descaminhos de nossa sociedade humana. Acontece que, em geral elas não computam certas inquietações que acompanham incessantemente os modos de viver e de se estar no mundo. Alguns estudiosos da cultura e da subjetividade já haviam apontado a importância do valor do sexo e da morte em todas as épocas da história da humanidade. É em torno destes dois itens que as sociedades elaboram seu sistema de regras de convivência a fim de distribuir ou repartir entre os indivíduos o poder e o prazer. Se fizermos um pequeno esforço de memória ou de pesquisa poderemos detectar nas produções humanas um insistente ensejo de poder e de prazer na tentativa de dominar o outro em torno do sexo ou da morte. Grosso modo construímos as nossas leis e suas sanções porque sabemos ser impossível haver convivência e agrupamentos sociais sem elas. Sucumbiríamos aos nossos desejos de sexo ou de morte se não tivéssemos uma dimensão extra, simbólica, de cunho ideológico religioso ou não, que nos fizesse renunciar aos nossos atos impulsivos (ou selvagens) em favor de uma convivência com os grupos aos quais pertencemos. Por outro lado, esta distribuição de poder e prazer muda conforme a história. Sabemos o quanto ela já foi caracterizada por uma dominação masculina que ainda habita de certa maneira o imaginário social, em que tanto homens quanto mulheres consentiam que nesta repartição do poder, os homens fossem favorecidos. Não cabe aqui explicitar as razões pelas quais os homens puderam permanecer por tão longo período da história desfrutando de uma parte majoritária na distribuição do poder e do prazer. Fosse porque à mulher coubesse desde sempre portar a reprodução da espécie que gerava uma necessidade de proteção extra, fosse porque a anatomia dos sexos apontava para um ativo e outro passivo, ou ainda porque o prazer sexual feminino escapasse ao entendimento e ao controle, a verdade é que a cultura humana imprimiu uma hierarquia de gênero na distribuição do poder e do prazer que foi substancialmente alterado há algumas décadas. Não são só os homens se encontram perplexos e desorientados diante da abolição radical desta hegemonia que desconstruiu os modelos antes tão organizados dos itens que cabiam a cada sexo, mas as mulheres também penam para aprender a fazer suas escolhas antes tão submetidas à regras coercitivas. Lindenberg e Eloá protagonizam de certa maneira este novo cenário social. Ela escolheu não levar adiante um relacionamento que lhe parecia violento e coercitivo. Ele não aceitou sua recusa e o desmoronamento de seu projeto de constituir uma família com ela. Em um ato de loucura, tentou resgatar um certo roteiro do herói macho e dominador tão incorporado na cultura ainda.


Coluna do dia 28 de outubro de 2008

Vida Real

É do livro do escritor Philip Roth , O animal agonizante[i], a adaptação feita para o cinema, que nos USA recebeu o título de Elegy (Elegia,termo usado para pequenos poemas que falam sobre o luto e tristeza ou somente enunciam um sentimento queixoso e melancólico) mas no Brasil foi traduzido para Fatal, um pouco para não deixar dúvidas quanto a sua densidade. Dizem que os artistas estão sempre um pouco à frente de seu tempo e graças a sua intuição conseguem captar melhor não só as nuances da alma humana, mas os dilemas que se configuram a cada época histórica, fazendo com que nós, simples mortais, possamos nos reconhecer nas letras da música, na escrita de um texto ou no olhar marejado de lágrimas de uma cena que nos toca. Para um espectador desavisado, porém, a história deste professor aposentado, conhecido pelo público por apresentar um programa sobre cultura na TV, lecionar um curso livre sobre crítica literária na universidade e seduzir alunas com um terço de sua idade, poderia simplesmente aumentar o rol das histórias de encontros e desencontros amorosos. Mas se ficarmos atentos a certos detalhes, esta trama nos fornece pistas interessantes dos conflitos e dos destinos das relações amorosas atuais. Kepesh, o professor, tem 62 anos quando a história começa. Seu único filho, médico bem sucedido, casado, fruto do seu casamento ao qual ele se refere como uma experiência desagradável, devota-lhe um grande ressentimento e muito desprezo pelas escolhas paternas de independência e liberdade. Mas a vida de Kepesh é mais banal do que ele próprio supõe. Fora as eventuais caçadas às alunas, mantém há vinte anos um relacionamento eventual e superficial com uma executiva cujo trabalho impõe viagens constantes, e uma amizade fiel com um colega poeta, a quem admira ( e de certa maneira inveja) por sua convicta carreira de sedutor ( embora seja casado) e com quem divide dúvidas e busca certezas sobre as relações entre homens e mulheres. Apesar de seu mal estar em relação à distancia do filho, Kapesh tenta seguir à risca a receita do amigo para as questões que envolvem sexo, casamento, fidelidade, comprometimento e velhice. Mas suas certezas tão acalentadas desmoronam quando repentinamente se apaixona por Consuela, sua aluna cubana, que aos poucos passa a colorir sua vida preto-e-branca. Consuela (Penélope Cruz) admira a erudição de Kepesh e aceita feliz o intenso desejo deste homem bem mais velho por seu corpo lindo e jovem, em troca da possibilidade de se alimentar de seu patrimônio cultural e artístico. Acostumada a ser honesta com seus sentimentos, ela não se cala diante dos silêncios e temores de Kepesh, traduzindo-os e elucidando a ele, seus ciúmes, sua angústia diante da possibilidade de ser trocado por homens mais jovens e seu medo em se comprometer com algum futuro sem garantias. Diante deste turbilhão inesperado, Kepesh se agarra às antigas convicções sobre o celibato e o sexo livre que seu amigo poeta não cansa de repetir e impõe um rompimento à relação quando não comparece à festa de conclusão do mestrado de Consuela. Mas cai em depressão, quando ela, percebendo que sua ausência era sua impossibilidade, não o procura mais. O filme ainda reserva algumas surpresas que não teriam sentido serem reveladas aqui. Mas permite-nos problematizar os modelos de relacionamentos aos quais ainda nos agarramos sem nos darmos conta que o único item que promove qualquer longevidade em qualquer parceria é o desejo e empenho de comprometimento. Todos os outros ingredientes, necessários ou não, só sobrevivem se este primeiro estiver no leme. Mas para isso precisamos de uma boa dose de coragem.

[1] Animal Agonizante, Philip Roth , Companhia das Letras, 2001


Coluna do dia 21 de outubro de 2008

Niilismo

Sempre que estamos diante de certos cenários sociais, a palavra niilismo volta a habitar a mídia, anunciando nuvens cinzas que se abatem sobre todos. Se niilista é aquele que prega sua descrença absoluta em relação à ordem social estabelecida, em tempos de crises, incertezas, caos, é natural que este termo ressurja tingindo de cinza os discursos dos mais variados setores da sociedade. Curioso é pensar que a crise econômica que habitou e ainda prevalece nas manchetes das últimas semanas se juntou a crise política, esta sim mais companheira de nosso cotidiano nas últimas décadas. Afinal o que mais se repete desde que nos transformamos em meros consumidores de um mercado ditador, é que os países e seus Estados são joguetes de sua soberania. O que surpreende é que qualquer que seja o foco de nosso olhar, seja ele dirigido ao mercado e suas leis ou aos governos e suas políticas (principalmente à seus políticos) é comum que esqueçamos o quanto cada um de nós é parte integrante do caldo cultural em que hoje vivemos. Melhor dizendo, o quanto o produto tanto das benesses quanto destes descaminhos está fortemente ligado aos nossos mais íntimos desejos, estes sim humanos, demasiadamente humanos. Podemos tentar historiar ao lembrar a rota dos três últimos séculos quando inauguramos a Ciência como um produto de excelência humana que deveria dirigir com maestria a nossa razão, dominando a natureza e oferecendo a todos os habitantes da Terra, as melhores condições de vida que se pudesse criar. Este projeto moderno apostava em uma política de felicidade e é ela, a felicidade, que podemos contrapor ao niilismo. Mas o que é felicidade senão tudo o que pode nos proporcionar satisfação seja individualmente ou coletivamente, cobrando tão somente o preço do respeito aos limites necessários à manutenção do convívio humano? Se ter prazer e satisfação é hoje quase um imperativo, uma obrigação, algo implícito em nossos atos, pensamentos ou projetos, nem sempre fica claro a todos que para existir o respeito aos limites que favoreçam a convivência entre todos, é necessário que cada um individualmente se comprometa a compartilhar das leis e convenções, ou seja, que haja uma “crença” na possibilidade destas normas serem legítimas e aplicadas a todos sem diferenças.Sabemos que tal pretensão é inviável. Assim como as previsões do Mercado Financeiro, assídua e matematicamente realizadas com o propósito de manter a “crença” em sua capacidade de se manter acima de Estados,crises políticas, manipulações, etc, também não pode evitar o apetite humano, este sim hegemônico e desde sempre infinito.

Coluna do dia 14 de outubro de 2008

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Eleições e outras coisinhas

Ao saber no início deste ano que a eleição para prefeitos e vereadores seria no dia 5 de outubro não pude evitar certa decepção pela coincidência com minha data de nascimento. As lembranças dos meses que antecedem as campanhas eleitorais com programas gratuitos e obrigatórios em rádios e TVs, os carros percorrendo ruas lembrando aos eleitores nomes e números de candidatos, as avenidas cobertas de banners, pichações, santinhos, os out-doors com fotos e promessas, tudo ao mesmo tempo provocava um forte sentimento de repúdio a esta prática tão contraditória , mas comum em torno deste ato de cidadania, quando cada um exerce o direito de escolher seus dirigentes. Se há motivos para comemorarmos a possibilidade de fazer valer nosso voto a algum candidato, o preço de acompanhar quase que obrigatoriamente a parafernália das campanhas, em geral demagógicas, sempre me pareceu alto demais. Foi por esta razão que me surpreendi com os resultados das restrições impostas às campanhas que de certa maneira modificaram o cenário das propagandas e das formas com que cada candidato revela aos seus eleitores os propósitos de seu engajamento político. Foi somente nos últimos quinze dias que passei a ouvir o burburinho das pessoas em torno de suas definições eleitorais, esta sim uma prática interessante por configurar o momento em que cada um discorre sobre suas expectativas, justifica suas escolhas, separa o seu “bom” do seu “ruim”, revela o discurso ao qual se encaixa ideologicamente. E mais. A boa surpresa foi perceber o número de jovens que não só já haviam escolhido seus candidatos, como sabiam descrever as razões desta escolha com base em pesquisas ou contatos sobre a atuação e o comprometimento destes com suas campanhas. Ao contrário do jovem alienado que habita o discurso da mídia em geral, uma pesquisa realizada pela UNESCO em 2002 revelou que 70% dos brasileiros entre 17 e 29 anos acreditam que o voto pode mudar a situação de um país. Quem sabe a familiaridade deles com a informatização dos dados eleitorais, com a divulgação pela internet sobre a vida e os feitos de cada candidato, a possibilidade de poder confrontar o discurso de promessas com a lista de falcatruas ou o envolvimento em transações corruptas, não só aumenta a chance de uma escolha mais consciente como a de que esta escolha possa ser discutida no seio familiar ou no círculo dos amigos. As decepções que virão ou que podem acontecer tem um teor diferente de um certo ceticismo que habita uma parcela considerável dos adultos que votam. A política implica sempre interesses contraditórios, já que diz respeito a escolhas, preferências e hierarquias e o jogo de poder que habita suas paragens é mais direto e perceptível do que aquele que permeia as transações econômicas. O jovem que pode escolher seu candidato, imaginar as possibilidades de sua vitória, conferir sua atuação no exercício de seu mandato, tem chance de se sentir parte do todo de sua cultura e estará no mínimo, colocando à prova suas convicções e expectativas em relação ao mundo que vive. Talvez isto não seja pouco.

Coluna do dia 07 de outubro de 2008

Identidade brasileira

Devem ser poucos os leitores que não assistiram ao premiado filme Central do Brasil de Walter Sales, lançado em 1998. Os que o viram, talvez comunguem comigo ser impossível não identificar em diferentes momentos, aspectos singulares de nossa identidade brasileira. Sensível, este autor sabe como utilizar a linguagem cinematográfica tanto para refletir quanto para divulgar o repertório de nossas referências culturais, fazendo-nos entrar em contato com o que é da ordem do geral, que circula como questão ou dilema para toda a humanidade, mas principalmente com o que compõe a identidade de nossos lugares e de seu povo, seus estilos, crenças e soluções, suas maneiras ímpares de ser, fazer e pensar. Em uma das primeiras cenas de seu novo filme, Linha de Passe, em cartaz na capital, a personagem principal interpretada por Sandra Corveloni (prêmio de melhor atriz no festival de Cannes 2008) está em um estádio de futebol, exibindo um semblante tenso, em meio a torcida do Corinthians, que neste dia joga contra o São Paulo. Grudada aos companheiros de torcida,grávida e vestida com a camisa do Timão, ela canta, reza, pula de alegria e se contorce, enquanto se ouve ao fundo os ruídos contagiantes e tão familiares aos brasileiros, de um jogo de futebol entre times de grande torcida. Considerado o mais belo jogo do mundo, muitos afirmam que o futebol tem hoje a cara do Brasil ( ou o Brasil tem cara de futebol?). Poucos brasileiros discordariam ser o futebol, seus times, suas torcidas, seus jogadores com seu modo diferenciado de jogar e o número sem fim de técnicos formais e informais, um dos produtos culturais que mais diz sobre as mazelas e as delícias de ser brasileiro. São muitos os que sabem diferenciar um meia-armador de um centroavante, que conhecem as regras e manhas, ou que freqüentam as peladas que começam com uma bola e um quadrado de praça, praia, ou rua e, em não poucos casos, misturam classe social, etnia e faixa etária. Não é nada incomum questionar as crianças desde sua mais tenra idade sobre o time que elegeram e que habitará seus corações, tornando-as cúmplices de suas vitórias e de seus fracassos. Tal como um rito de passagem, a eleição do time, principalmente para os meninos ( cada vez mais para meninas também) além de ser uma “declaração de amor”ao pai ou a mãe, às vezes ao avô,ao tio ou irmão mais velho, funciona como parte de sua identidade, por vezes cumprindo uma tradição familiar, o que lhe dá um lugar de pertencimento e de sentido ao comungar, celebrar e sofrer com seus pares. No filme, a paixão desta mãe pelo Corinthians se estende ao desejo de seu filho mais velho, que assim como muitos meninos, sonham cruzar as fronteiras do acesso social através de uma carreira de jogador, apostando ser o futebol uma saída possível para jovens carentes da periferia de uma grande cidade. É claro que a paixão pelo futebol guarda, como tudo, suas ambivalências e muitas vezes as torcidas são compostas por jovens que ao menor sinal de ameaça, transformam tudo em pancadaria, já que os jogos coletivos são em sua origem violência transformada em civilização.Mas também é verdade que o que alimenta e dá legitimidade a paixão pelo futebol é justamente essa distância de nosso árduo cotidiano, tão marcado pelo real da vida nua e crua e suas falcatruas. Ao menos lá, naquele campo, as regras valem para todos, e quem é bom e sabe jogar terá grandes chances de vencer, mesmo que para isso tenha que aprender a perder e a dividir.

Coluna do dia 22 de setembro de 2008

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Marcas de paixões

Há alguns meses, estive em Ribeirão Preto, cidade que me acolheu na década de 70 quando cursei Psicologia no inesquecível campus da USP, singela e lindamente situado ( também em minha memória) em uma antiga fazenda de café. Apesar de um deslocamento pequeno em todos os sentidos, já que me mudava da vizinha Araraquara, os seis anos que aí morei me possibilitaram perceber e desfrutar do estilo de seu povo, mais cordial, acolhedor e aberto às inúmeras mudanças sócio-econômicas e culturais que assolavam o país e o mundo ocidental na época e nas décadas seguintes. Foi assim que encarei a cidade agora, ao percebê-la pelo menos três vezes maior, exuberante e agitada. Ao me mudar para São Paulo a fim de prosseguir na trilha de meus projetos profissionais, foi também com um olhar estrangeiro, aquele que nos permite capturar as nuances especiais do cotidiano de uma cidade e que passam despercebidos aos que ali vivem, que a elegi de forma amorosa, ainda que soubesse ser possível descrevê-la como o inferno, palco de violências, caótica no seu excessivo contingente humano, e mais algumas dúzias de adjetivos pouco simpáticos. Ainda moro aqui e ela continua morando em meu coração, talvez por ser um dos lugares do mundo onde melhor se consome cultura, das mais diversificadas (arte, literatura, música, cinema, teatro, moda, gastronomia, conhecimentos) a qualquer hora, em inúmeros locais, com muitas pessoas, enfim, onde o mundo parece não parar de produzir algo de novo e interessante. Na última quinta feira, quatro de setembro, eu deveria participar de um congresso em Niterói, cidade que se posta enfrente a baía de Guanabara, berço da cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. Embora a maioria de meus colegas optasse por reservar hotéis na cidade fluminense, apostei no vai e vem diário da ponte Rio-Niterói, na esperança de poder desfrutar um pouco do cenário imponente do entre mar, praias e montanhas cariocas. Confesso que minha paixão pela cidade do Rio de Janeiro foi construída ao longo de visitas a ela, em que o conjunto atordoante de sua beleza natural se misturava com um estilo de vida muito singular de seus habitantes, um sotaque especial e sonoro, uma maneira de ser despojada, carinhosa e irreverente. Quando é possível se deslocar da caricatura carnavalesca, erótica ou violenta de seus recortes mais explorados, o Rio é a cara do Brasil “colônia-império-escravos”, com sua arquitetura mista entre o novo, o velho, o cuidado e o descaso, inundado hoje por imigrantes de todas as partes do país. Me deixo surpreender seja pela visão noturna e repentina do Cristo Redentor iluminado, da Lagoa ao amanhecer, do céu colorido do pôr- do- sol recortado pelos morros, da vida pulsando que a cultura de praia e sol impõe aos seus moradores. É difícil ir ao Rio com este olhar de gringo e não cantarolar as letras das músicas da Bossa Nova, já que elas quase são um compêndio do jeito de ser e viver carioca. Três cidades, três histórias diferentes, que compõem ligações amorosas particulares na minha memória. Foi Freud quem nos alertou sobre esta faculdade especial humana de possuir uma memória afetiva. É o que não podemos suportar pelo excesso de afetos que nos inunda, que faz com que tenhamos que “esquecer”, guardando-os de forma inconsciente e deslocada de nossa consciência. Mas o que nos embala, fica em nossa memória seja de qual época for de nossas vidas, e gostamos de lembrar e narrar suas histórias, justificando nosso amor e nossa paixão.

Coluna do dia 9 de setembro de 2008

Em terra de cego ter olhos dói

Dentre as inúmeras possibilidades oferecidas pela Internet está a que nos permite acessar todos os tipos de informações sobre o assunto que se quer pesquisar. Na última Marie-Claire, Alice Braga discorria sobre o tão esperado filme de Fernando Meirelles, que ousara recriar na tela, Ensaio sobre a Cegueira, livro do escritor português José Saramago. A leitura desta entrevista aguçou minha curiosidade sobre a história desta filmagem. Foi assim que cheguei ao blog criado pelo diretor especialmente para relatar esta aventura arriscada: filmar uma obra escrita de um renomado autor ainda vivo. Não qualquer autor, mas Saramago, considerado um intelectual dos nossos tempos, cuja obra é resultado de reflexões importantes sobre as questões humanas e a responsabilidade social de todos e cada um sobre o mundo em que se vive. Na cola de alguns intelectuais de áreas as mais diversas que criaram blogs e passaram a alimentá-los utilizando-se de uma linguagem coloquial (quase como se estivessem conversando em suas salas de visitas com amigos do peito), Meirelles seguiu a fórmula e acrescentou aos seus relatos, todos os tipos de emoções. No diário de bordo de sua aventura “saramaguiana”, ele nos convida a ser parceiros nos sobressaltos e alegrias de sua peregrinação e acompanhá-lo em suas inúmeras versões filmadas do livro, cada uma finalizada com a sensação agradável de ter atingido o resultado final, mas que acabava se revelando faltosa, excessiva, surda ou... cega. Ingenuidade ou arrogância como ele mesmo se indaga, são dois critérios orientadores e quase sempre imperfeitos que utilizamos quando empreendemos algum projeto. E só revelam suas falhas se pudermos compartilhar e confrontar os resultados ouvindo outras pessoas. Meirelles relata assim, as várias vezes em que imaginou ter conseguido chegar lá, e que graças as vozes dissonantes, surgiam detalhes, olhares, ressalvas e apreensões novas, que ele não havia pensado ou que para ele não eram relevantes. E brinca: é possível um diretor fazer um filme sobre a cegueira e não conseguir enxergar? Na verdade, é também desta espécie de cegueira que a história do livro trata!
Dizem as reportagens que Saramago teria recusado durante anos os pedidos de licença para filmar sua “cegueira”. Entre outras coisas, o autor dizia que esta obra em especial, tinha lhe exigido muito emocionalmente. Em seu blog, Meirelles apresenta um pequeno vídeo em que ele e Saramago acabam de assistir a versão final do filme. Em meio às palmas dos poucos espectadores presentes, a câmera se fixa na face tomada pela emoção de Saramago. Ao olhar ansioso do diretor, passam-se muitos minutos de silencio do autor. Quando finalmente Saramago fala, sua voz está embargada e, sem se voltar para o olhar de expectativa de seu interlocutor, apenas balbucia que assistir ao filme tinha lhe causado a mesma e boa emoção de quando havia terminado de escrever o livro. Mais alguns minutos de silencio se passam , com a câmera fixa em um Saramago sob o impacto de suas lembranças. Não por acaso. O filme, que concorreu no festival de Cannes e deve entrar em cartaz no Brasil nas próximas semanas, aborda de maneira dramática o quanto nós, humanos, insistimos em não reconhecer o quanto dependemos de outros humanos para viver, e somente nos damos conta disso, contrariados, quando o que nos resta é tentar sobreviver.

Coluna do dia 02 de setembro de 2008

Deleites musicais

Manhãs de domingos ensolarados em São Paulo são quase sinônimos de um passeio até o Parque Ibirapuera, que para quem não conhece, representa não só um pequeno-grande pulmão verde nesta mega-cidade, como cumpre um papel importante de cartão postal cultural. Isto porque além de abrigar alguns dos melhores museus como o MAM , o MAC e o Museu Afro-Brasil, o parque foi totalmente projetado pelo nosso grande e genial Niemeyer, cujas obras conseguem ser elas mesmas eternas e encantadas obras de arte. No último dia 17 além do sol e do céu azul sem nuvens, a OSESP ( Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) oferecia um concerto gratuito para quem se dispusesse ir ao parque às dez da manhã, sentar-se na grama enfrente ao palco aberto do Auditório. E tal como o valor da cereja que tanto completa esteticamente, quanto desperta a gula, o programa era Carmina Burana do compositor alemão Carl Orff. Por ser uma obra cantada em coral e baseada em poemas profanos medievais que exaltam o amor, o jogo e o vinho, ouvi-la é sempre uma experiência marcante. Mas ouvi-la acomodada em um chão gramado, sob o sol de inverno e o céu silenciosamente azul, cercada por uma atmosfera de contágio absoluto é, sem dúvida, uma experiência rara de êxtase. Experimentar o máximo prazer possível, entretanto, nem sempre foi uma opção ao acesso dos indivíduos, mesmo que se dispusessem a manter o bom senso e o respeito aos códigos de convivência de sua cultura. Ainda hoje, é visto tanto como uma conquista como algo indevido. Na história da humanidade, o “excesso” de prazer, a entrega ao deleite e ao gozo, sempre esteve na mira e no controle das culturas, sob diferentes formas de restrições. O som de Carmina Burana acrescido de todas as circunstancias desta manhã especial, convidava ao exame destas restrições porque seus poemas e canções medievais e profanos, encontrados no início do século XIX em uma abadia na Bavária, tinham permanecido escondidos durante vários séculos. Foi graças a sua publicação em 1847, que Carl Orff , encantado com seu conteúdo original, decidiu compor esta obra impactante, uma das mais tocadas no século XX. Os pergaminhos, na verdade, foram escritos entre os séculos XII e XIII por cultos e eruditos goliardos, monges expulsos ou desertores da Igreja que faziam críticas mordazes às autoridades eclesiásticas, à hipocrisia e ao poder econômico da época. Ao se desligarem das normas restritivas e da dura vida monástica, eles se transformavam em livres peregrinos e por um bom copo de vinho, um colo ou uma cama, compunham versos e canções populares que falavam sobre a vida, a morte,a sorte, o azar, a fortuna, o amor ou as desventuras. Por sua alegria, irreverência e principalmente pelos conhecimentos sobre arte, música e literatura eram respeitados, mas por romperem com as regras rígidas dos conventos, dirigir-lhes zombarias ou revelar seus descompassos eram considerados anárquicos e revolucionários. A Igreja não só os perseguiu como fez desaparecer seus poemas, o que tornou a descoberta destes, uma maneira de revelar algo sobre os modos de existência da época. Sem referencias sobre “o prazer possível”, o comportamento ousado e criativo dos goliardos acabava por causar uma simpatia desconfortável ao povo que os recebia, apreciava e respeitava seus conhecimentos e sua arte. Fica fácil entender porque chamamos de “Luzes” os últimos séculos da Idade Média, ocasião em que se tornou um objetivo perseguido por grande parte da humanidade, a busca e a troca de conhecimentos que pudessem se contrapor à ignorância e ao obscurantismo, dois dos muitos fatores que podem promover o submetimento de um povo a qualquer espécie de poder que prometa ideologias prêt-à-porter. De quebra, ouçam Carmina Burana !

Coluna do dia 26 de agosto de 2008

O que é normal?

Não deixa de ser curioso pensarmos sobre o aspecto simbólico contido na cultura de cada época que, sem que possamos nos dar conta, regula nossas relações com as pessoas, organizando o permitido e o proibido, o “normal” e o desviante, as crenças e mitos. Em geral esta rede de significações que permeia nossas vidas nos parecem verdades absolutas e talvez por fazerem parte de um mundo que nos precedeu, gostaríamos que elas não exigissem questionamentos nem explicações. Temos muita dificuldade em considerar que certas referências de conhecimentos ou de uma ordem moral não são universais e sim históricas e articuladas ao contexto sócio-político e cultural de cada época. Esta nossa resistência se acentuou no mundo atual quando passamos a assistir um ritmo de mudanças jamais visto anteriormente, assim também como nunca tivemos tantas opções de conforto, de lazer, de viagens a qualquer parte do mundo, de acesso às informações em tempo real de toda a aldeia global, etc. Embora esta vertiginosa corrente imponha uma exclusão sem par a todos os que não conseguem por qualquer motivo entrar na caravana mundial do mercado, tais mudanças que não cessam de invadir o cotidiano de cada um e alteram de forma às vezes imperceptível os modos de viver, geram sentimentos de intensa insegurança quanto as referências que a cultura costuma oferecer para o convívio entre as pessoas. Há apenas algumas décadas atrás, as mudanças em alguns valores demoravam mais de uma geração e permitiam à geração anterior transmitir seus princípios e normas aos que a sucediam. Hoje temos que conviver com uma enxurrada de novas e inusitadas questões que alteram ou distorcem muitos dos valores que acreditávamos fazer parte de um consenso cultural. Afinal é bom ou ruim viver em um mundo que nos oferece tantas facilidades tecnológicas, acesso imediato a mil informações, inúmeras maneiras de cuidarmos de nossa saúde, mais tempo para inventarmos formas de lazer, liberdade para escolhermos pares, amigos, carreiras, estilos e vida sexual? Porque os discursos são em geral de repúdio ao novo e de temor às conseqüências destes novos rumos abertos por tantas opções? Ao que parece temos muita dificuldade em olhar para as mudanças com bons olhos, e pior ainda quando elas são velozes e atingem valores que pressupomos sedimentados em nossa cultura. A maioria de nós passa a argumentar sobre o caos que a humanidade viverá se tal comportamento humano passar a existir como norma. Outros olham para o passado e lamentam que a vida não possa ser como era antes. Sem nos darmos conta, esta nostalgia acaba não deixando que possamos analisar o passado sem certa idealização. Ele realmente nos parece bem melhor do que o presente e muito mais seguro do que o futuro. Sem dúvida estas duas maneiras de encarar as mudanças, lamentando a perda da segurança passada ou prescrevendo um futuro catastrófico, são na verdade tentativas de nos defender contra o medo que o novo e o desconhecido nos causam, principalmente quando este novo significa uma desconstrução às vezes radical de antigas crenças ou modos de existência. É assim que a maioria de nós encara as transformações por que passou a família, grupo social especial em que nascemos, somos cuidados, amados, preparados para nos integrar na cultura e construir nossos destinos como parte de uma coletividade maior. Perplexos, tememos perder para sempre este núcleo responsável pela transmissão e manutenção desta rede invisível de elementos, responsável pelo sentimento que nos faz pressupor que os outros sejam nossos pares nos valores, obrigações, censuras e desejos. Paralisados, nos esquecemos que se a cultura está sempre produzindo uma nova estética, uma outra etiqueta e uma ética diferente, ela, a cultura, é uma produção humana, portanto nossa. E, mesmo encima de dúvidas e incertezas, nunca cessamos de produzir equilíbrio e de buscar novas formas de ligação com o mundo.

Coluna do dia 19 de agosto de 2008

Segredos da China

Desde a semana passada, as imagens de uma imponente China invadiram as casas do mundo. Muralhas, rios, montanhas e verdes vales desfilam ao lado de projetos arquitetônicos de vanguarda, mega aeroportos, e uma nova e colorida população. Entre amostras de uma civilização que existe desde a Antiguidade e estádios esportivos que lembram um futuro espacial, o país parece ter escolhido as Olimpíadas para avisar a todos os outros, que “voltou” para ficar. Quanto a nós, do ocidente, acostumados que fomos a assistir à distância o regime fechado, azul e autoritário de várias décadas do comunismo chinês, estamos perplexos diante da rapidez com que o país adquire sua força econômica e se impõe ao mercado global. Em geral as críticas ao capitalismo liberal do ocidente apontam os efeitos concentradores e homogenizadores da globalização, que teria reduzido a intervenção de cada Estado diante de sua cada vez maior subordinação ao mercado econômico mundial. Já a China, ao contrário, não tem jogado o jogo da livre concorrência do modelo ocidental e sim imposto o ritmo de seus interesses para abrir sua economia e fazer seus investimentos. Ao quebrar esta regra hegemônica, ela desconcerta as previsões do mercado financeiro global. Embora a mídia, os intelectuais e economistas não se cansem de fazer previsões desanimadoras quanto à falta de programas sociais que legitimem os princípios de liberdade e respeito aos direitos humanos, o mais provável é que o fenômeno China abra espaço para novas e inusitadas questões sobre a análise da cultura atual e alguns prováveis destinos para a humanidade. Nas várias décadas em que a China esteve sob o regime maoísta seu povo nos parecia uma massa coletiva que aparentemente esmagava qualquer possibilidade de um eu individual. O Ocidente em sua maioria, se orgulha de perseguir os princípios do Iluminismo que privilegiam os direitos humanos universais e a democracia política, pressupondo a liberdade da subjetividade. Foram estes princípios que possibilitaram a consolidação de um individualismo social em que cada sujeito deveria se apropriar de sua própria história tomando nas mãos as decisões que afetam as condições de sua existência e politizando as várias esferas de seu cotidiano. Mas não podemos nos esquecer que o individualismo ocidental em sua articulação com os direitos humanos são, na verdade, históricos, assim como as subjetividades, ligados que estão ao contexto sociocultural. Também sabemos que o Ocidente em sua totalidade não manteve regimes democráticos o tempo todo, e mesmo nos regimes democráticos, a evolução dos direitos humanos não foi tranqüila e esteve sujeita a avanços e recuos, marchas e contramarchas, ações e reações, muitas vezes seguindo aspirações subjetivas de felicidade dos indivíduos. Quem sabe devêssemos pousar nossos olhares ocidentais e nossa pretensão de uma cultura universal, aos caminhos que os 7000 anos de civilização chinesa irão percorrer daqui para frente. Sabemos, por exemplo, de uma emergente classe média chinesa que desfruta hoje de uma economia familiar da ordem de 20 mil dólares, possui casa própria e filhos únicos que herdam o peso de apagar a pobreza e a falta de recursos vividas por seus pais.Sem tios, ou irmãos, estes novos chineses mergulham em cursos de inglês, esportes variados, música e teatro, ganham celulares, jogos e objetos de luxo, freqüentam restaurantes, fazem viagens, tudo dentro de uma tradição que combina esforço e disciplina, e de olho em um “upgrade” financeiro. Embora o deslocamento seja pequeno, é bom ressaltar que, ao contrário do boom do consumo no Ocidente, a conquista da felicidade destes novos chineses ainda não dispensa a labuta e o sacrifício.

Coluna do dia 12 de agosto de 2008

Heróis e vilões

É surpreendente o número de colunas, blogs e comentários que circularam pela mídia sobre o último filme de Batman , em cartaz na cidade. Também é surpreendente sua trama, que ao invés de abusar de efeitos especiais ou dos super-poderes de seu super-herói, se aventura a “humanizar” o Cavaleiro das Trevas e acrescentar ao Coringa, o arquiinimigo da ordem, uma dose de complexidade ao seu caráter psicopata e anárquico. Entre críticas e elogios, talvez valha a pena reconhecer o esforço do diretor Chris Nolan em pretender que seu filme pudesse fazer uma leitura mais aprofundada da disputa surda dos poderes, sua articulação com a corrupção nas sociedades ocidentais e seus desdobramentos quase sempre insolúveis. Ainda que o enredo não se diferencie muito das histórias de quadrinhos do Homem- Morcego, às voltas com o caos de sua Gotham City, o foco se desloca da simples polarização entre o mal e o bem ao mostrar que tanto um quanto outro habita a alma humana, alma esta que no final das contas está mais às voltas com seus desejos de amor, segurança, poder e reconhecimento.
Meio clichê? Sim e não, se ponderarmos que há bem poucas décadas seria improvável qualquer questionamento sobre a crença na bondade humana ou sobre a exterioridade do mal. Tornou-se mais fácil hoje crer que o Bem e o Mal do mundo são produtos da complexidade da alma humana, sempre dividida entre seus desejos de gozo e prazer e sua consciência moral. Talvez por isso o Coringa, magistralmente incorporado pelo recém falecido ator Heath Ledger, acabe roubando as cenas em que o Bem é confrontado com o Mal. Não porque estejamos afundados nas tramas do lado mais negro e podre de nossa existência e sim porque o diretor dá a ele uma consistência subjetiva que lhe permite refletir sobre suas ações e convicções ao apostar que todos podem ser maus e indiferentes ao Mal que o outro sofra, se tiverem que escolher entre a vida e a morte ou entre o poder e a exclusão, a submissão ou a pobreza. Não que ele não tenha razão. Em uma sociedade de indivíduos é muito mais difícil haver preocupações com a coletividade, assim como é comum que um individuo tenha que escolher entre a virtude de uma ação heróica dirigida ao bem comum e um interesse particular mesquinho. Não por acaso produzimos tantos super-heróis na nossa era. Precisamos construir modelos de indivíduos especiais que, assim como Batman, se despojam de suas roupas humanas e colocam sua fantasia, alimentando nosso imaginário e nossa crença na possibilidade de administrar o Mal, ou seja, de apostar que podemos ser seres morais. Ainda que os super-heróis possam mostrar sinais de sua humanidade e de sua fragilidade,é bom saber que no final de seus filmes confirmamos nossa capacidade de conter o Mal e que, apesar da violência e do caos que o Mal promove, o Bem, incorporado nos nossos melhores ideais coletivos, ainda tem chances de ganhar. Obrigada Batman por nos ajudar a manter nossa confiança na humanidade.




Coluna do dia 5 de agosto de 2008

Prova de amor

Pode-se dizer que vivemos hoje o reinado do amor. Sem os critérios tradicionais que utilizávamos para escolher nossos pares, que de alguma maneira precisavam corresponder aos gostos de nossos pais e familiares, restou o amor. Ele não só legitima nossas relações como é um argumento poderoso, inclusive entre as gerações mais velhas. Ninguém contesta quando as escolhas, os pedidos, os favores, os sacrifícios ou os prazeres são feitos em nome do amor. Também não se estranha quando muitos choram, se deprimem ou se vingam pelas dores do amor. Na verdade, em nosso mundo atual, vivemos um circuito amoroso permanente. É esperado que nasçamos como fruto do amor de nossos pais. No seio familiar, tendo ou não irmãos, disputamos a preferência do amor de nossos pais, tios, avós. Também queremos ser especiais e admirados por nossos professores e amigos, e finalmente sonhamos em descansar nossos anseios amorosos com alguém especial, que nos amará como ninguém o fez anteriormente. Olhamos para os mais velhos, dividindo-os em afortunados quando vivem seus últimos anos de vida rodeados do amor e do carinho dos seus, e de condenados quando a solidão ou a pobreza são indícios da indiferença de sua família. Soberano, meio sagrado, o amor alimenta incessantemente a crença de ser além de necessário para a nossa sobrevivência, uma das maiores fontes de nossa felicidade. Entretanto, apesar de sua aura transcendente, o amor não está dado, não existe a priori entre os humanos, e nem segue o imperativo do desejo. O conhecido mandamento cristão de “amarmos uns aos outros” não se tornou regra ou norma social, já que não amamos qualquer pessoa simplesmente por ser ela nosso semelhante. Embora o amor tenha um papel preponderante em nossa constituição psíquica e se mantenha como um combustível importantíssimo de nossas relações, sua história em nossas vidas é complexa, atravessado que é desde o início não só por nossa agressividade, ressentimento e anseio de poder e domínio como pelas diferentes formas de submetimento e alienação. E se o amor tornou-se um dos maiores ideais de nossa época, também as dores do amor são nossos maiores sofrimentos. Como então garantir o amor em nossas vidas?
Ao que parece, ao longo das últimas décadas, na medida em que nossas antigas referências legais ou religiosas deixaram de cumprir o papel de uma imaginária estabilidade ou longevidade nas nossas relações amorosas, tivemos que nos ancorar nas provas de amor que conseguimos obter daqueles que desejamos que nos amem. Mas como definir tal prova de amor? Como apostar que alguma prova de amor possa garantir que somos realmente amados? Como aceitar que, apesar de termos conseguido muitas provas de amor, de repente já não temos certeza de sermos amados como gostaríamos? Ou de amarmos como pretendíamos? Durante nossas vidas muitas podem ser as provas de amor que exigimos ou que ganhamos e que cumprem o papel de nos apaziguar ou trazer uma tranqüilidade amorosa, mas a que mais ansiamos e que também nos acena com a maior dor quando falha, é a fidelidade. E não estamos restringindo o termo apenas às fidelidades sexuais. Tornamo-nos dependentes de uma certa fidelidade que esperamos ansiosamente do outro: que sejamos sempre MAIS especial do que qualquer outro ou qualquer coisa. Nossa busca ansiosa de amor nos faz eternos peregrinos em busca de artifícios que nos façam esquecer sua precariedade.


Coluna do dia 29 de julho de 2008

Corpo que dói

Na linguagem médica do adoecer contemporâneo tem sido cada vez mais comum o uso da palavra síndrome, utilizada para designar um conjunto de sintomas que se apresentam numa doença e que a caracterizam. Não que algumas síndromes não fizessem parte do conhecimento humano há alguns séculos,cumprindo o papel de organizar sintomas que a pesquisa das ciências médicas considerou como pertencentes a um mesmo transtorno,na maioria das vezes por contingências genéticas.Mas o que assistimos com freqüência cada vez maior nas últimas décadas é um aumento de síndromes em que a etiologia de seus sintomas são controversas ou ainda desconhecidas. A Síndrome de Pânico, por exemplo, resume e ao mesmo tempo formaliza uma série de manifestações físicas e psíquicas sem fatores desencadeantes aparentes, caracterizadas por sensações assustadoras tais como aflição no peito, taquicardia, sudorese, contrações musculares, medo de perder o controle e sensação de morte iminente. Ao receber tal diagnóstico, o sujeito parece incorporá-lo a sua identidade, conformar-se com a convivência perturbadora destes sintomas inevitáveis( e alheios ao seu conhecimento) e seguir religiosamente as prescrições de seu tratamento, em geral uma mistura de psicofármacos antidepressivos e ansiolíticos. Por não haver consenso médico quanto as causas desta síndrome, alguns encaminham seus pacientes para um acompanhamento psicoterápico e outros não. Estas intervenções psicoterápicas buscadas tanto podem acenar com uma tentativa de construção de um sentido para tais sintomas, quanto podem trilhar caminhos menos “dolorosos” em que serão prescritos comportamentos alternativos, na tentativa de otimizar a vida e acabar com os medos e fobias impeditivos. Bauman, um sociólogo polonês contemporâneo, acredita que na história moderna da humanidade haveria uma alternância entre épocas em que há um grande esforço para organizar o caos e outras em que este ressurge dos restos impossíveis de serem organizados. Se no mundo atual há uma produção infinita de ambigüidades, haveria em igual intensidade uma busca pela coerência, pela lógica, pela razão. Nas últimas décadas surgiram inúmeras somatizações que escapam às classificações nosológicas formais, inaugurando um tempo de convivência com sintomas corporais em perturbações antes totalmente psíquicas. É como se, empobrecidos de respostas emocionais, passássemos a reagir aos nossos conflitos através de sintomas físicos, mais de acordo com nossa era, já que nos exime do saber sobre suas razões e ganhamos a atenção do mundo médico por sua urgência. Os limites do modelo organicista e positivista que evita integrar em seus quadros os fenômenos em que mente e corpo confluem e produzem ruídos de origem aparentemente desconhecida, estaria de acordo com nossa necessidade de neutralizar a interferência de nossa subjetividade, evitando que ela confunda nossa razão. Quem não prefere entregar as dores do corpo a algum saber que se disponha a explicá-las e tratá-las sem que precisemos nos implicar ou conhecer suas ligações com os males de nossa alma? Acreditar que existam fronteiras bem delimitadas entre o normal e o patológico pode nos auxiliar a esquecer ou deslocar partes de nossa história que nos seriam desconfortáveis. Se como interlocutores, não nos interessamos pelos registros imaginários que cada sujeito apresenta quando discursa sobre sua doença, é porque também tentamos nos despir de nossa subjetividade e de todas as dores que nossas paixões provocam. Assim, seguimos calando o sofrimento de nossas almas, produzindo dores no corpo e mais,buscando maneiras de curar tais dores sem que precisemos conhecer seu sentido. Síndrome moderna, nosso corpo parece ter se transformado em vitrine de nossos vícios e virtudes, fraquezas e forças.



coluna do dia 22-07-2008

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Escafandros

Para quem não sabe, (eu também não sabia) escafandro é aquela roupa semelhante à de astronautas, impermeável, acoplada a uma espécie de capacete com um conduto respirador, utilizada por mergulhadores que necessitam passar um tempo considerável embaixo das águas. Este nome foi escolhido pelo editor chefe da Revista Elle francesa, Jean-Do Bauby, para fazer parte do título de seu livro “O Escafandro e a Borboleta”. Na verdade, Bauby não escreveu seu livro, mas piscou pacientemente com seu olho esquerdo (único músculo que não foi paralisado após sofrer um acidente vascular) para uma secretária que lhe apresentava o alfabeto e anotava a letra escolhida, tentando relatar o que ia por sua cabeça, presa ao seu corpo imóvel. Alguns dias após o lançamento de seu livro em 1997, Bauby morreu. Dez anos depois, o diretor Julian Schnabel ganhou o prêmio de melhor direção em Cannes e o Globo de Ouro, além de uma indicação ao Oscar, ao transportar para a tela o drama vivido por este editor durante os dois anos em que passou dentro de seu “escafandro”.
O filme merece as premiações principalmente por ter conseguido contar uma história tão trágica e devastadora sem produzir um efeito negativo ou excessivo para o público. Como? Assim que começa, estamos todos “dentro” do personagem, que abre o olho ao sair de sua coma, e tenta entender o que está acontecendo à sua volta. Passamos então, a ouvir a “voz” de seus pensamentos, questionando, esbravejando e percebendo aos poucos a extensão de sua prisão, confirmada quando os médicos lhe fazem o teste fatal, pedindo para que ele pisque uma vez quando quiser dizer sim e duas quando for não. Desolado, ele se inteira de que esta é a única via de comunicação que lhe sobrou com o mundo externo. Mas não conosco, que seguiremos com ele durante o filme, trilhando os caminhos de seus pensamentos, memória, sonhos e fantasias e compartilhando seus sentimentos, dores e até algumas alegrias. Tal aventura não se torna pesada, graças ao estilo do próprio Bauby, acostumado a temperar suas impressões sobre a vida com uma boa dose de ironia. Em vários momentos do filme, gargalhamos com ele ou dele, devido a este precioso dispositivo de não levar nem a vida, nem a si totalmente a sério. Assim como choramos nos momentos em que ele se emociona. É justamente por provocar nossa cumplicidade de forma tão espontânea que, quase sem nos dar conta, aceitamos seu convite para compartilhar seus sentimentos e suas difíceis experiências,entristecidos diante de sua impossibilidade de utilizar a voz para expressar pensamentos ou sentimentos; de coração apertado quando constata e discorre sobre sua dependência absoluta de um outro; angustiados com o limite eterno de seu horizonte ao espaço daquele hospital ou da comunicação com as poucas pessoas que se dispõem a ler um alfabeto e prestar atenção ao seu movimento de pálpebras ao mesmo tempo. Também torcemos juntos quando decide instalar um telefone em seu quarto com alto falante como que convidando as pessoas a não lhe esquecerem, ou retoma um contrato com uma editora para “escrever’ não mais o livro que idealizara, mas a única experiência que lhe resta viver. É assim, através da literatura, que ele decide eternizar sua curta mas intensa vida e ,de forma tocante, nos incita a viver (da melhor forma que pudermos) a nossa.



coluna do dia 15-07-2008

O sotaque japonês do Brasil

A movimentação em torno dos cem anos da imigração japonesa para o Brasil fez surgir no cenário cultural uma infinidade de informações, análises de influências artísticas, políticas e sociológicas, entrevistas, testemunhos, etc. que abrem um debate interessante tanto sobre a história dos imigrantes e seus descendentes, quanto à polêmica identidade brasileira. Mas seja de um lado ou do outro, estas histórias nos revelam certas peculiaridades da cultura nipônica que ao longo deste século foram fazendo parte da nossa brasilidade. Nem sempre nos lembramos que o século XIX transportou milhares de imigrantes vindos do Oriente e da Europa em busca do sonho americano: um novo continente ainda imberbe, que acenava com um território imenso a ser explorado e uma cultura jovem, sedenta de incentivos da tradição milenar de certas civilizações. O Brasil, ainda que não tivesse o mesmo prestígio da outra América, colonizada desde o seu início por ingleses e irlandeses dispostos a torná-la sua morada definitiva, mantinha suas portas abertas aos imigrantes que aqui aportavam. Duas Américas e duas culturas substancialmente diferentes que viveram suas histórias atravessadas pela farta presença da diversidade de seus imigrantes, mas que escreveram histórias diferentes sobre esta experiência. Não foram poucos os pensadores que teceram teorias e hipóteses sobre nossa tão proclamada miscigenação, fosse exaltando nossa democracia racial ou abordando o lado sombrio do preconceito velado de uma elite branca. Sobra a figura ambivalente de uma “inclusão excludente” que de certa maneira não impediu a concretização do espírito moderno: poderia caber a qualquer um a tarefa de ascender na escala social. Teorias à parte, se há relatos tocantes nesta comemoração do centenário da imigração japonesa, são de “nossos” nisseis (filhos), que tal como sanduíches, receberam sua quota da tradição nipônica, mas souberam beber da cultura de seu novo país (do qual a grande maioria se orgulha) e, ainda que às custas da reticência familiar, ajudaram a engordar a estatística dos brasileiros “mestiços”. Histórias nem sempre felizes, em que o percurso até a aquisição de uma identidade, muitas vezes significava negar as raízes de uma tradição que exigia disciplina e respeito à hierarquia, na tentativa de se misturar entre os multi-étnicos brasileiros. O exílio é uma experiência impar, que só pode ser descrita por quem a viveu, uma fratura incurável entre alguém e seu lugar de origem. O que dizer quando este exílio é marcado pela necessidade de “ fazer misturar” línguas,costumes, crenças, religiões,tradições e valores culturais tão diferentes? Na Revista da Folha de 15 de junho último, há um texto singelo da sansei (netos) Célia Sakurai em que ela se recorda da ansiedade compartilhada com as irmãs e primas quando, ocasionalmente, a avó preparava o manju, um doce especial de feijão em que os melhores eram separados para serem oferecidos aos antepassados. Por mais explicações que ouvissem sobre a importância deste ritual, era-lhes inimaginável aceitar que a cota de doces para cada um ficasse menor diante da obrigação de dividi-los com o tal “santo”. Também lhe parecia exagero a insistência da avó em contar e recontar sobre seu país de origem, aquele paraíso perdido, exaltando os costumes e as tradições e apontando a superioridade de sua cultura. O estranhamento que a maneira diferente de ver e viver da avó lhe provocava pôde ir sendo redimensionado a medida que lhe foi possível entender e aceitar suas raízes, ainda que se sentisse parte integrante de seu país, o Brasil. Nestes cem anos em que as duas culturas, a brasileira e a japonesa se encontraram, se estranharam, se admiraram e trocaram experiências, nós ganhamos um sotaque japonês. Podemos percebê-lo na farta variedade de frutas, verduras e legumes, nos pratos à base de peixes crus e especiarias inéditas, nas artes plásticas e na arquitetura, e até em algumas palavras que já foram incorporadas à nossa cultura. De nossa parte, acostumamos a vê-los cada vez mais integrados aos nossos costumes. Pergunte a algum araraquarense sobre o mais saboroso sorvete da cidade. Dificilmente ele não se lembrará, lambendo os lábios, da sorveteria Kawakami.

coluna do dia 8 de julho de 2008

Quem é autoridade?

É comum entre alguns pensadores da atualidade denunciar as conseqüências nem sempre positivas da queda da autoridade patriarcal nas sociedades ocidentais. Em geral esta constatação vem seguida de uma análise social sombria, em que tal acefalia estaria na base da atual desordem e violência ou da ausência dos valores que realmente importavam. Na verdade este adjetivo patriarcal que acompanha a autoridade diz respeito a um lugar especial e prévio da cultura que era ocupado pela figura do “pai” e que concedia um poder ao homem ( sexo masculino) tanto no espaço público como no espaço privado da família, reinando sobre a mulher e o destino dos filhos. Quando o espírito moderno apostou que a razão humana igual para todos pudesse assumir a tarefa de organizar nossas condutas e os consensos necessários ao convívio, as mulheres passaram a ser encaradas como parte do gênero humano, também dotadas de razão e merecedoras de direitos civis e políticos. Pudemos então constatar que os privilégios que até então existiam para os homens ancoravam-se em fatores históricos e culturais que teriam levado a sociedade a manter as mulheres submissas aos homens, sem acesso à educação e à vida pública.A partir daí fomos nos livrando das hierarquias pré-estabelecidas e exaltando o indivíduo. Para além de nossas cores, crenças, culturas e tradições diferentes, todos deveríamos nos reconhecer como membros de uma humanidade comum. Embora a introdução acima seja fato, ela admite questionamentos. A despeito de vivermos em pleno século XXI, talvez não tenhamos atingido a distância necessária para que certas mudanças possam ser devidamente avaliadas ou processadas. Percebemos que os valores associados à tríade família-religião-trabalho fartamente difundidos a partir da era burguesa, ainda passeiam na cultura atual e provocam sentimentos ambivalentes entre o que seria uma tradição de uma hierarquia conhecida e por isso confortável, e a incerteza e o temor que o futuro traz diante de indivíduos que precisam construir cada um ao seu bel prazer, suas próprias vidas. É este o vácuo deixado por uma autoridade antes unanimemente consentida. Mas também é este espaço vazio que poderia ou deveria ser ocupado por cada um de nós que desejássemos buscar melhores maneiras de vivermos não só individual, mas coletivamente. Por ter descido ao chão e estar acessível a todos, o lugar de autoridade pôde ser ocupado por diferentes setores da sociedade que para tanto precisavam apenas desfrutar de uma boa parte da opinião pública. A qualquer momento e para qualquer um de nós passou a ser possível tornar-se uma “autoridade” em alguma coisa que fizesse sentido e que fosse importante para a uma parte (nossa comunidade) ou para muitos (sociedade e cultura em geral). Associada ao poder, a autoridade é sempre disputada: políticos, acadêmicos, empresários, intelectuais e religiosos tentam ocupar este lugar que lhe conferem um destaque especial e um respeito geral. A dupla autoridade-poder acena na maioria das vezes com mordomias e benesses que capturam a muitos, embaralhando as ações dirigidas aos interesses particulares e aquelas que seriam para o bem comum. Neste jogo de poder e fascínio, são poucos os que legitimam sua autoridade na defesa de idéias e ações dirigidas à promoção de uma vida humana mais digna e melhor. Destes poucos, as mulheres ainda são minoria, graças ao pequeno tempo de seu percurso no exercício de uma vida pública. Muitas destas mulheres passam despercebidas, sem fazer alardes, e sem disputar a tapas os holofotes que o poder oferece. Somente quando elas desaparecem de nosso convívio, é que somos invadidos pelo sentimento de desamparo e vazio e podemos nos dar conta de sua importância. Segunda-feira, dia 23 de junho passado, a morte de Ruth Cardoso provocou não só aos que desfrutavam de seu convívio, mas aos que se inspiravam e se orgulhavam de seu modelo de mulher pública e de ser humano, um sentimento de imensurável perda. É nestes momentos que percebemos quão poucas são as pessoas a quem de fato conferimos autoridade por sabermos que tal posto foi conquistado não por promessas sedutoras ou pensamentos aliciadores e sim por um engajamento na reflexão e na ação que visa a construção de existências pessoais e coletivas mais desejáveis no futuro. Uma vida legítima, vivida dentro de princípios humanos que apostam na possibilidade de um mundo melhor, mas principalmente que milita nesta dura tarefa de cada um, de seguir inventando nossa história humana. Uma perda que merece um luto.

coluna do dia 01 de julho de 2008

Uma boa morte

Minha avó estava a alguns passos de fazer 100 anos quando morreu. Lembro-me de tê-la visto pela última vez em um Natal, ocasião em que nós, seus netos e bisnetos espalhados pelo Brasil e o mundo afora, nos reuníamos e em alguma tarde combinávamos de visitá-la. Por algum motivo fiquei de fora do burburinho, assistindo sua alegria manifestada pelo bater de palmas e pelas canções de sua infância no Líbano. Passou-me que talvez eu estivesse me despedindo dela e embora este pensamento me causasse mal-estar, também me fez permanecer naquele lugar de observadora. Quando recebi a notícia de sua morte em janeiro, escrevi uma “crônica da boa morte anunciada” em que tentava reproduzir os sentimentos daquela véspera de Natal. Duas palavras guiavam minhas lembranças: a paixão pela vida. No caderno Mais! da Folha de São Paulo do dia 15 de junho último foi publicado um artigo intitulado “Última vida”, escrito pelo filho de Susan Sontag, escritora e intelectual americana que faleceu há 3 anos, vítima de câncer. O texto é um depoimento amoroso e saudoso, carregado de humanidade, em que ele, na condição de único filho, tenta avaliar sem sucesso, sua cumplicidade na decisão da mãe em se submeter a um transplante de medula, última tentativa de sobrevida, embora os fatos anunciassem um quase certo malogro. Sua dúvida, entretanto, não tem fim já que ora se inclina a acreditar que se tivesse se posicionado contra poderia ter evitado o sofrimento e as dores físicas provocadas por esta intervenção que no final se mostrou inútil, ora se orgulha de ter escolhido compactuar com a crença materna de que sempre haveria um jeito de driblar a doença e aumentar o tempo de viver. Afinal, na década de 70, com outro câncer, ela havia apostado e ganhado. Mas a beleza do texto certamente está na tentativa de compartilhar com os leitores seus sentimentos ambivalentes em relação à radicalidade da negação da morte que percebia na mãe, o que, na sua visão, teria impedido-o de falar, discutir e dimensionar a situação e até de se “despedir” dela. Sua recusa em aceitar a morte fazia com que ela solicitasse de todos e em particular dele, uma torcida incondicional e a qualquer custo, a favor da vida. De forma muito honesta e humilde, confessa que embora preferisse que ela aceitasse o inevitável de sua morte eminente eliminando aquele plus de sofrimento, sabia que cada um tem direito à sua própria morte. Quem seria ele para definir uma “boa” morte? Existe? A evocação da figura de minha avó na leitura deste texto não foi por acaso. Cresci assistindo-a a restringir sua alimentação, a fazer religiosamente exercícios de pernas e braços, a cumprir metodicamente sua rotina, ao mesmo tempo em que transpirava por seus poros a vontade de viver. Era como se ela se dispusesse a controlar de qualquer maneira este tempo implacável que denuncia aos poucos a transitoriedade de nossas vidas, espremidas entre nosso nascer e nosso morrer. Embora o filho de Susan Sontag atribua o comportamento de sua mãe a um medo indescritível da morte, não há quem não a tema. O que nos faz singulares não é o medo da morte, mas como cada um de nós inventa formas para driblar tanto a morte quanto o medo dela. Afinal, quem não quer se agarrar a qualquer custo à possibilidade de ser uma exceção?




coluna do dia 23 de junho de 2008

fake.com

A história desta nova relação humana que a internet proporciona rendeu inúmeras questões. Uma delas chama a atenção por sua aparente estranheza: a nova mania entre os pré-adolescentes (em sua maioria) e entre alguns adolescentes, em manter identidades falsas nas redes de relacionamentos ( orkut, my space,facebook etc). A pergunta imediata seria questionar o sentido disto. Mas a resposta não é simples nem única. O surgimento das redes de relacionamento e a adesão maciça dos jovens a ela inaugurou uma nova e permanente maneira de se estar em um lugar virtual, através de um espaço que pertence só à aquela pessoa e que permite a ela se descrever como bem lhe apetecer, colocar suas fotos , de sua família, de seus amigos, paqueras,ídolos, deixar mensagens ou pensamentos e receber visitas e recados de qualquer um que pertença a rede. Mesmo que fique algum tempo sem abrir a sua página, esta funciona como se fosse uma casa permanentemente aberta à visitação de qualquer um que possa acessar a rede: os amigos poderão entrar e sair a vontade (também os desafetos), deixar seus scraps( recados), assim como a qualquer momento pode-se conferir quem esteve visitando e ler os recados deixados pelos visitantes. É possível decorar “sua casa” com pensamentos, poesias ou divulgando um pouco de si e de sua vida através de fotos geralmente renovadas para que todos possam se inteirar dos últimos eventos, festas, viagens que cada um fez. Ainda que esta “decoração” possa funcionar como uma forma de exibição ou provocação, também imprime uma marca e o conjunto da página passa a funcionar um pouco como um portal do que se quer que o outro saiba e conheça sobre nós. Mas sabemos o quanto manter uma “identidade” coesa, que afirme nossa auto-estima e que seja confirmada pelo reconhecimento de outros é talvez uma das tarefas mais importantes e mais difíceis e exaustivas pela qual nosso “euzinho’ deverá lutar a vida toda. As possibilidades de se travar novas amizades e de mantê-las que estas redes de relacionamento oferecem ao seu público consumidor não cessam de se renovar e a grande sacada de seus idealizadores é que os próprios usuários funcionam como termômetro para as novidades oferecidas: são eles quem mostram as falhas e propõem soluções ou novos caminhos. Isto aconteceu com os perfis “fakes” uma nova febre que se popularizou entre os pré-adolescentes, mas que só começou a acontecer quando foi instalado nas redes um dispositivo que permitia a cada um saber quem bisbilhotava o perfil alheio. A partir daí muitos passaram a criar identidades falsas para continuar espiando e como uma brincadeira, estes perfis fakes ganharam vida própria e passaram a habitar um mundo fake: sem esconder sua falsa identidade era possível ir a uma balada, uma praia,um shopping, namorar, casar e ter filhos, ou ainda assumir a identidade de algum ídolo: tudo fake. Um mundo “faz de conta”passou a poder ser inventado e cada um tinha a possibilidade de criar seu personagem ainda que fosse para poder falar de si e de seus desejos sem que isso o comprometesse. Embora tal brinquedo tecnológico seja novo, a brincadeira parece antiga.É bem provável que os pais dos pré-adolescentes atuais tenham brincado de “casinha” quando pequenos, um tipo de reprodução infantil do mundo adulto em que meninas ( em sua maioria) e meninos podiam “ser” algum adulto e encenar alguma de suas funções: pai, mãe, profissionais diversos, jogadores,etc.Também ali era possível adquirir uma identidade falsa, mudar de sexo, etc. Porém,ainda que se possa criar novas identidades ou se fazer passar por personagens que se conhece ou que sejam ídolos, o que representamos ou fazemos é da ordem do que desejamos ou dos conflitos que vivemos entre estes desejos e nossas inibições, obrigações, temores. A identidade fake dos adolescentes parece ficar a serviço da possibilidade de inventar novas histórias em que seja possível falar de coisas que causariam muita angústia e que ameaçariam uma imagem de si ainda precária. Coisas como perguntar o que não conseguem responder, cruzar algumas fronteiras que podem ameaçar o amor dos outros que lhe importam, enfrentar o medo de não serem tão amados quanto gostariam ou as dúvidas que os assolam quanto a sua identidade e que os divide entre momentos em que parecem ser especiais e outros em que precisam de uma urgente confirmação de sua existência.Ainda assim é bom que não nos esqueçamos que adolescentes ou adultos somos todos um pouco atores já que em geral passamos nossas vidas tentando corresponder à imagem que acreditamos ser aquela que mantêm nossa confiança de sermos amados.



coluna do dia 16 de junho de 2008

Pré-adolescentes.com

A despeito do artigo anterior alguns leitores me inquiriram sobre os limites do uso da internet por uma geração de classe média que praticamente nasceu digitalizada. São eles os tweens, uma mistura de teens (adolescente, em inglês) com between (no meio de), meninos e meninas entre 8 e 14 anos, uma geração do “tudo ao mesmo tempo agora e urgente” que consegue ver TV, vagar pela Internet, ouvir música, conversar via MSN, jogar on-line etc., que acham natural conhecer pessoas de outros países ou locais e que crescem em um mundo em que a troca de informação de forma massiva e rápida é um modo de vida. Eles consomem informação e todos os tipos de mídia e produtos: cinema, TV, brinquedos diversos, YouTube, site de relacionamentos, DVD, MP3, jogos, camiseta, celular, e o que mais vier, e de certa forma impõem sentimentos contraditórios como o espanto,o receio, a admiração e o orgulho para a maioria dos pais. Esse novo estilo de jovens, não só vive em um mundo de produtos mais acessíveis o que proporciona uma vida mais confortável, mas também são filhos de uma geração de pais mais amorosos e cuidadosos, que apostam alto no percurso de sucesso e felicidade de seus pimpolhos, e que em geral se preocupam com quaisquer desvios que este percurso apresente. A maioria vive “protegido” em um espaço nirvânico de satisfação e poder, o que lhes concede a pecha de mimados e paparicados ou de mandarem e desmandarem dentro de seu ambiente familiar, quebrando a antiga hierarquia e fazendo a autoridade parental bascular entre uma excessiva indulgência e um autoritarismo defensivo e assustado. O mergulho precoce e inevitável na vida digital e virtual os faz mais espertos e ágeis que seus progenitores,o que produz em alguns casos uma inversão na relação pais que sabem , filhos que aprendem. Teria o período iniciado há décadas atrás,chamado de adolescência, em que os jovens passaram a assumir um controle inédito de sua vida e de suas atitudes inaugurando uma nova cultura e estética, sofrido uma inflação em sua faixa etária? Sim e não. É de se esperar que a geração dos informatizados ganhe o mundo mais cedo. Afinal é o computador que ocupa o lugar de prioridade em suas vidas, o que lhes permite acessar o “globo internauta” atrás de infinitos conhecimentos, informações e jogos virtuais. É também o acesso à rede de relacionamentos o que mais os fascina ao abrir inúmeros espaços em que é possível encontrar e estabelecer trocas com um grande número de pessoas ao mesmo tempo e estruturar verdadeiras tribos e grupos de iguais, atrás de um conforto identitário em uma idade em que isso é confuso e causa de inseguranças. Não há dúvidas que esta geração de pré-adolescentes inaugura uma relação com seus pais mais atravessada pela mídia fazendo com que estes deixem de ser “heróis e sabidos” mais cedo. Perplexos diante desta aparente independência, e muitas vezes sentindo-se menos aptos ao manuseio internáutico, os pais não sabem como controlar ou colocar regras para o acesso a esta nova maneira de estar no mundo. Como evitar que eles entrem no “mundo alternativo e inevitável” do sexo e da violência, já que o mundo virtual também oferece todas as produções humanas, inclusive as que advém das transgressões e dos excessos que permeiam a sexualidade e a morte? Como regular o acesso a este mundo tão fascinante do proibido, ao mesmo tempo violento e enigmático? Os tweens, ainda que possam se assemelhar nas roupas, gostos e até em uma desenvoltura para com os produtos da cultura contemporânea, diferem dos adolescentes tanto por ser mais imaturos física e emocionalmente quanto por ainda estarem (e precisarem estar) sob a dependência da proteção e dos cuidados efetivos dos pais ou dos que cuidam deles. Mas quando nós, pais, nos deparamos com sentimentos ambivalentes ou ainda de impotência, às vezes confundimos os discursos de “me deixem viver minha vida” com uma atribuição de independência genuína. Por outro lado, o sempre incômodo lugar de “pais que cuidam” pode às vezes resvalar para um lugar mais confortável de crítica ao desconhecido e ao mal que os “outros” podem fazer aos nossos filhos, estes aos quais desejamos que sejam MUITO felizes para provarmos a nós e ao mundo o quanto somos capazes. É difícil aceitarmos que em qualquer etapa de suas vidas, eles vivem situações em que desejam e temem ao mesmo tempo e que elas devem e podem ser enfrentadas e discutidas. Tanto a violência quanto a sexualidade são temas que tentamos evitar nos confrontar, como se eles fossem estranhos e externos a nós e não constitutivos de nossa condição humana. Só quando podemos admitir que os excessos de um e de outro são da ordem do que escapa às nossas repressões ou renúncias, é possível vestirmos certa humildade e nos armamos de muita coragem para entendermos que os anseios de nossos tweens de viver e de se perder neste novo mundo virtual só são possíveis quando eles sabem que podem contar com nossa assistência, palavra, compreensão e principalmente com os limites que precisaremos e podemos impor. Para isso precisamos arregaçar as mangas, nos inteirar deste novo mundo virtual e deixar que a tal liberdade pleiteada por eles seja conquistada e não dada por antecipação, por direito ou por uma “confusão de hierarquias”.


coluna de 9 de junho de 2008

internet.com

Se há um assunto polêmico atualmente é o que pretende adivinhar o que o futuro reserva a estas gerações ponto.com que romperam com séculos de um modo de transmissão de conhecimentos realizados por mestres, métodos e livros variados. A internet é a vedete de debates calorosos entre os pensadores contemporâneos sempre que se anuncia o futuro de uma geração que aparentemente desaprende a escrever e a ler. Recentemente este debate ficou acirrado com a publicação do livro "The Dumbest Generation" do professor Mark Bauerlein da Fundação para as Artes nos USA. Lançado há duas semanas, o título que classifica as novas gerações como “a mais estúpida” já é um indicativo dos ataques que virão a quem nasceu em algum momento das últimas três décadas. Daí para frente o autor discorre sobre os males da internet e de como ela põe em risco nosso futuro ao formar jovens sem memória e superficiais, que não conseguem diferenciar o significativo do insignificante e que se utilizam da rede virtual apenas para se relacionarem e fazer trocas de banalidades ao invés de usufruir do acesso de informações e conhecimentos que ela gera. As discussões sobre os efeitos futuros da era digital sobre as novas gerações são cessam. Contrapondo-se as profecias apocalípticas deste professor, em 2005 o colunista da revista Wired escreveu um livro que se propunha a provar que os games, a internet e a TV potencializam as faculdades cognitivas das pessoas, ao exigirem elaboração constante de raciocínio. Ele tentava chamar a atenção para o curso natural da história ao lembrar que o aumento do número de informações (e do acesso a elas) era irreversível e de certa maneira libertava o homem do isolamento das antigas fronteiras geográficas. Ambas as posições seriam representações de dois movimentos do pensamento ocidental moderno: um que acolhe a incerteza e a dúvida, aberto ao diferente, criativo e pouco autoritário e outro que busca se abrigar na abolição da diversidade, na imposição autoritária de um pensamento único e na intolerância para com o estranho. O paradoxo contemporâneo da convivência destes dois movimentos é bem representado pela adolescência, este período tumultuado que costuma encenar as contradições entre os desejos e os temores, entre os excessos e as leis, entre o novo e assustador e o antigo e seguro.É certo que acolher as dúvidas e as incertezas que fundam nossa liberdade é ter que administrar nosso desamparo. Não há como evitá-lo. Para compensá-lo ou nos defender dele, caímos na tentação de buscar as verdades absolutas. O mundo das redes que a internet abriu, ainda que já tenha alguns anos de intensa e crescente atividade, é muito novo para a nossa sociedade e estamos todos aprendendo a lidar com suas infinitas e constantemente renovadas possibilidades. Suas normas e regras de convivência ainda estão sendo construídas, assim como sua relação com os valores humanos de respeito, de privacidade, de verdade, de identidade, de preservação etc. Por ser uma arena aberta e um espaço que incita a liberdade ela permite a qualquer indivíduo criar, inovar e compartilhar ações, realizar inúmeras transações de compras, vendas e serviços, articular relações inimagináveis, exercitar laços de amizade, e por aí afora. É esta liberdade infinita, que estranhamente existe a partir de uma tela de computador, que anuncia um novo sistema de resultados imediatos e de interesse público e que aos poucos vai nos informando não só de uma nova era mas também de uma nova geração digitalizada que aprende através de um inédita e radical descentralização da produção do conhecimento e da cultura.Uma nova gestão da vida parece se anunciar, trazendo suas benesses, mas também seus restos incômodos, como sempre.

coluna de 3 de junho de 2008

O lugar do pai

Ocorre uma questão interessante na tradução dos títulos dos filmes estrangeiros que chegam ao Brasil. Ao invés de traduzidos eles são recriados. O filme “Ensinando a viver” que acaba de entrar em cartaz foi baseado em um livro de sucesso do escritor David Gordon cujo título que também deu nome ao filme, seria em português “O menino marciano”. No entanto o título brasileiro faz sentido, já que ensinar a viver seria uma boa definição desta função tão importante e ao mesmo tempo tão assustadora que é o exercício parental. Se o título original privilegia os sintomas de uma infância difícil, o novo propõe que se pense a questão pelo lado da relação nada fácil entre um pai qualquer e uma criança a quem ele escolhe para ser seu filho. Em um recente evento ocorrido no Rio de Janeiro, especialistas de diferentes áreas se juntaram para debater os cuidados e o futuro dos bebês e de sua família.Como não poderia faltar, a construção da parentalidade e as discussões em torno dos novos desafios que o pai vive diante de arranjos familiares inusitados, foi um dos temas abordados. Ainda que a maternidade continue a ser um dos alvos mais focados, seu papel e sua importância para a vida dos bebês já são parte integrante do imaginário cultural. Já uma nova função de pai tem sido construída às duras penas nas últimas décadas. Se as mulheres ampliaram em grande escala suas opções de vida profissional e pessoal, os homens enfrentam pela primeira vez a necessidade de compor novos repertórios tanto para suas parcerias conjugais quanto para sua função de pai. O cinema como um representante quase oficial na reprodução de questões e temas que afligem a todos na entrada do novo século, tem apresentado de forma variada um panorama sobre a paternidade. Neste filme, o personagem de John Cusack , ainda em luto pela perda de sua amada, está procurando um filho para adotar, ou seja, ele quer e deseja ser pai. Em sua busca se depara (e se identifica) com um “menino marciano” que lhe traz lembranças importantes de sua própria infância. A história é banal, mas chama a atenção por mostrar o homem comum contemporâneo às voltas com sua tentativa de compreender e elaborar os percalços enfrentados na construção de sua identidade, que pergunta e quer saber sobre si e que diante da possibilidade de verbalizar seus conflitos coloca seus conteúdos mentais mais próximos da realidade. É esta abertura que lhe permite olhar a criança que foi ou a que pretende adotar não como um pequeno ser humano que nasce destinado a ser feliz e sim aquele que, na tentativa de enfrentar seus penosos dramas, acaba tendo de lançar mão de algumas defesas para driblá-los. Fugir de uma realidade conflituosa, por exemplo, é uma maneira de se proteger dos sentimentos insuportáveis que ela produz, ainda que o preço seja um empobrecimento do viver. Sabemos o quanto eventos traumáticos podem se tornar uma carga excessiva de sofrimento, humilhação, culpa ou vergonha.O filme mostra os esforços deste pai em ajudar este pequeno marciano a querer e poder se tornar um pequeno ser humano.E, embora as sinopses do filme apresentadas pela mídia insistam no poder de redenção do amor, o que faz a diferença nesta empreitada paterna é o comprometimento de um homem que veste a função de pai sem perder de vista sua responsabilidade de adulto, de alguém que poderá estabelecer a distancia entre ficções, fatos e verdades, entre direitos e deveres, entre normas, leis e prazeres.


coluna de 27 de maio de 2008