quinta-feira, 30 de julho de 2009

Os sons dos casamentos

O filme Casamento Silencioso, em cartaz na capital, traz cenas hilárias e um tanto caricatas sobre um casamento que seria realizado em uma pequena vila na Romênia no ano de 1953, justamente no dia da morte de Stalin, o líder russo, então comandante maior dos países ocupados. Por ordem expressa dos representantes do partido, a família e todo o povo da pequena cidade que havia se preparado para os festejos, deveria cancelar qualquer cerimônia, fossem de mortes, nascimentos ou casamentos. Todos se recolhem a suas casas, mas inconformados, decidem realizar uma cerimônia muda, às escondidas, esforçando-se para se comunicar através de gestos ao redor de uma farta mesa de comidas e bebidas. O que se segue dá panos a muitas mangas de reflexões sobre nossas celebrações, assim como a extensão de seus significados. As cerimônias que acompanham mortes, nascimentos e casamentos, embora tenham acentos culturais singulares, são quase universais e provavelmente sua origem esteja não só no valor que damos a tais fatos, mas na nossa impossibilidade de cobrir o significado destas passagens humanas. É difícil para todos nós imaginarmos um nascimento, um casamento ou uma morte sem o peso de sua simbologia, e são justamente os ritos da tradição que repetimos indefinidamente, o que nos tranqüiliza. O casal do filme em questão vivia uma paixão avassaladora, constrangendo aos moradores que não suportavam mais conviver com as cenas públicas de seus encontros ardentes. A cerimônia do casamento deveria apaziguar a todos, colocando os pontos nos “is” ao formalizar a união destes corpos sem destino certo. A partir daí, o encontro dos corpos ganha um significado, um futuro, uma perpetuação possível da tradição. E para consagrar esta passagem, que muda os adjetivos que acompanham a espécie animal para os da espécie humana, nada mais sugestivo do que uma grande festa, com muita música, bebida, comida e danças para que todos possam enfim compartilhar de suas razões. Se a festa adquire uma razão de ser, podemos então extrapolar os limites do cotidiano, e ultrapassar certas fronteiras que em geral usamos para comer, beber e dançar. Neste sentido, muitas de nossas cerimônias admitem alguns excessos, desde que estes tenham suas razões devidamente partilhadas pela comunidade. Planejadas com um ano de antecedência, contando muitas vezes com um serviço especializado de cerimônias, as festas de casamento na atualidade continuam a cumprir este ritual de passagem, mesmo quando se transformam em verdadeiros eventos, promovendo não só um encontro testemunhal entre familiares e amigos, mas momentos minuciosamente registrados de grande júbilo para os orgulhosos pais e os esperançosos cônjuges.

coluna do dia 28 de julho de 2009

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Segredos do futuro

Em clima de comemoração dos 40 anos em que o homem pisou pela primeira vez na lua, jornais, revistas e TV mobilizaram-se para produzir matérias que pudessem cobrir as reminiscências do impacto desta conquista humana e as reflexões sobre seu valor. Transmitida ao vivo no ano de 1969, o mundo parou para assistir as imagens mágicas da Apollo 11, pousada na superfície da lua, e do astronauta que ali deixava suas pegadas. Passadas estas quatro décadas, qual seria o valor que atribuímos a esta ousadia humana? Uma visada pelos inúmeros comentários colhidos pela internet nos mostra que tal acontecimento é hoje um fato consolidado e importante de nossa história, ou seja, há um significado compartilhado pela maioria que a chegada à lua ( para além de uma estratégia política) celebrava um avanço incomensurável do saber científico alcançado pelo homem. Por outro lado, tal como o olhar de cada um para uma obra de arte qualquer, é possível reunir um número sem fim de depoimentos individuais que descrevem este momento de suas vidas acentuando o valor de sua experiência individual, como uma marca em sua memória. Grosso modo, o saber das ciências seria mais objetivo e, portanto passível de ser medido e partilhado. Já as histórias que cada um conta sobre suas impressões são subjetivas e compõem o repertório que alimenta nosso imaginário social, junto com a literatura, o cinema e as religiões. É aqui que se encaixam o discurso dos jovens de então, que atribuíram a este fato um sentido poético e libertador para suas vidas, descrevendo a magia de suas fantasias de conquista do espaço e da construção de possibilidades ou de apostas de um futuro desconhecido, mas possível. Muitos localizam ali a matriz de seus projetos de vida e do despertar de suas paixões por motores e máquinas, fossem como construtores ou como pilotos. Paradoxalmente aqui também se encaixam os que ainda hoje duvidam deste acontecimento e criam uma infinidade de suposições com o intuito de justificar sua descrença. Afinal, não é fácil pensar que somos um minúsculo grão de areia no infinito espaço de um universo antes sagrado, que aos poucos vai sendo desvendado, aumentando as chances de não sermos seres tão especiais quanto nossa história já acreditou. De um lado e de outro, é das profundezas de cada alma que os sonhos e as fantasias, os temores e as assombrações emergem destes “encontros” e ganham significados particulares. E assim como a História de nossa existência humana, ressignificada a cada época, graças ao acúmulo de conhecimentos, podemos ampliar o sentido de certas vivências passadas, ao desvendar certas dimensões de nossos sentimentos, antes fora de nosso alcance.

coluna do dia 21 de julho de 2009

quarta-feira, 15 de julho de 2009

De mãe para filhos

As primeiras cenas do filme francês Horas de Verão (em cartaz na capital), mostram a comemoração dos 75 anos de Hélène, junto a seus filhos e netos, na casa de campo em que reside próximo a Paris, em companhia de uma antiga empregada e uma infinidade de móveis e objetos de arte de grande valor. Enquanto as crianças e adolescentes brincam e se perdem pelos campos ensolarados, os três filhos ( dois homens e uma mulher) e as duas noras sentam-se em volta da matriarca no jardim. As conversas tentam cobrir o tempo de ausência de Adrienne (que mora em Nova York) e Jérémie, o caçula, que reside com a mulher e seus dois filhos na China. Frédéric, esposa e dois filhos são os únicos que moram na França. Quanto a Hélène,a mãe, sua fala e olhares antecipam seu sentimento de que o fim está próximo, o que a leva a partilhar com o filho mais velho suas sugestões em relação ao legado artístico e de grande valor que a casa contém. Embora o filme seja muito simples e singelo no modo como irá mostrar a morte da mãe e as negociações que se seguirão entre os três filhos para decidirem o futuro da casa e do acervo artístico que ela possui, há nas entrelinhas, uma tentativa de discussão e reflexão sobre as heranças familiares, sejam elas materiais ou afetivas, diante de uma nova maneira de se estar e viver no mundo. Ao contrário do que se poderia imaginar, Hélène pede à Frédéric que vendam os quadros e os objetos de arte, que por valerem muito, poderiam ser mais úteis a eles, assim como a casa e seus móveis assinados. Frédéric não suporta imaginar a morte da mãe e muito menos a desaparição da casa de sua infância e seus objetos tão investidos de sua história familiar. Não é o que pensam seus dois irmãos que residem fora da França. Sabemos como cada filho, ao nascer, recebe um lugar dentro da família, antecipado pelo imaginário de seus pais que já sonham com seu nome e seu futuro. Mas cada criança tem sua história individual, para além de suas origens familiares e sociais, e caberá a cada um, substituir a imagem idealizada dos pais da infância, dos sabores, cheiros e ruídos deste lugar de proteção, permitindo que a família deixe de ser sua única fonte de referência. Frédéric se surpreende e sofre com a decisão dos irmãos pela venda total do patrimônio familiar, mas precisa se render ao fato de ser voz vencida. Ele se vê confrontado com a necessidade não só de renegociar com o que imaginava ser sua filiação na família, mas com seus sonhos de manter esta memória viva. Há uma exigência do mundo atual no destino de cada filho, que a primeira vista parece paradoxal. As famílias precisam cuidar e proteger seus filhos, mas precisam também deixá-los seguir suas vidas, cumprindo assim um papel ao mesmo tempo de tradição e de transformação. E, embora os sinos da tradição muitas vezes toquem alto demais e confundam o valor do novo e do velho, este filme mostra como é possível negociar as medidas destes dois importantes itens na vida de todos, quando há espaço para a coerência ( e não arbitrariedades) e respeito pelas diferenças.

coluna do dia 14 de julho de 2009

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Menina –moça

A imagem da menina -moça Maisa, a nova sensação do programa do apresentador Silvio Santos, pode ser vista como um paradigma da complexidade de nosso mundinho atual, já que ela é ao mesmo tempo o protótipo das bizarrices sedutoras que a mídia pode oferecer ao público, e o resultado do grau de liberdade e de acesso que todos podem sonhar em alcançar em sua busca de sucesso e prestígio. Maisa e seus 7 aninhos,aparece em público vestida conforme o modelo da menina prodígio dos anos 30-40 de Hollywood , a atriz Shirley Temple, que muitos não devem se lembrar, mas que marcou o início de uma época em que as crianças passariam a ser atrizes. Assim, em uma jogada mercadológica, pretendeu-se juntar em uma mesma imagem, a lembrança nostálgica da infância inocente , com seus cabelos cacheados e loiros e a caricatura de um adulto em miniatura que em um passe de mágica, é independente e espontâneo, além de rápido e inteligente em suas respostas. Crianças- adultos que prometem a nós, seus pais, que poderão enfim realizar nossos sonhos de felicidade: zero de sofrimento com muito dinheiro fácil. Nada demais se tudo se passasse no plano encantado do imaginário, e não precisássemos lembrar que atrás desta menina pulsa um ser humano infantil. Com poucas exceções, a mídia tem preferido seguir a ideologia das estatísticas do IBOPE , a mesma do mestre Silvio Santos e divulgar as gafes, os choros, as tiradas infames, ou seja os acertos e erros de Maisa, ao invés de questionar os usos e abusos de sua imagem de criança e portanto de sua condição “real” de ser humano que necessita não só de cuidados, mas de referências, limites e princípios humanos norteadores. É certo que o modelo da adultez infantil nos fascina, ao acenar com a possibilidade de manter nossas crianças em um permanente “seja feliz”, sem que tenhamos que nos deparar com nossa responsabilidade de transmissão e, portanto de limites e restrições para a obtenção de valores humanos de respeito, de privacidade, de verdade, de identidade, de preservação. Discordo, porém, dos clamores que tentam moralizar nossa cultura como se ela fosse um simulacro enganador, assim como não acredito na volta aos antigos valores tradicionais para garantir uma “ordem e trabalho” que não encontra mais eco no bonde da história, que é bom lembrar, pode até parar, ir devagar, mas não tem volta. Acredito também que não podemos deixar de valorizar o fato de nunca termos sido tão livres e soberanos para discordarmos das ideologias, legislarmos sobre nossas crenças ou escolhermos sobre nosso agir moral. Mas se de um lado, ganhamos em mais liberdade, por outro, muitas vezes nos sentimos vulneráveis e carentes de orientação na adequação de nossas ações e das dúvidas entre o certo e o errado. Diante da fogueira das vaidades, sucumbimos facilmente às promessas de prestígio e visibilidade, o que muitas vezes nos aproxima de uma versão cínica do nosso agir moral, aquela em que não há avaliação objetiva de nossos atos e nossas motivações são apenas interesseiras, fronteira tênue para a sociopatia, em que o desprezo e a incapacidade de se conformar às normas sociais, permite que se engane e se manipule os outros sem remorso nem responsabilidade,impondo suas próprias regras ainda que estas desrespeitem o coletivo. Este talvez seja nosso grande desafio: sem muitas referências passadas, nossas apostas de uma boa vida no presente e no futuro dependem cada vez mais do nosso preparo para enfrentar nossas responsabilidades para com o próximo, filhos aí devidamente incluídos.



Texto publicado em 26 de maio de 2009

terça-feira, 7 de julho de 2009

Flipando

Os leitores que, como eu, apreciam uma boa leitura, provavelmente estiveram antenados com a realização da ultima FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, que desde 2003 acontece na primeira semana de julho e já é conhecida ( e reconhecida) pela qualidade dos autores convidados, pelo irresistível entusiasmo de seu público e pela descontraída hospitalidade da charmosa cidade. Evento mais que moderno, há muito pouco tempo nem imaginaríamos estar face a face com autores de livros que apreciamos, ouvindo-os falar sobre seus processos de criação, sobre suas vidas íntimas, suas hesitações ou esperanças. Como em todos os espetáculos, em meio aos burburinhos suscitados pelos “eleitos” e mais assediados, aqui e ali é sempre possível extrair falas de alguns escritores que se encaixam a certos anseios de seus leitores. Foi neste clima que “bebi” as palavras do escritor francês Grégoire Bouillier , em uma entrevista concedida à Folha de São Paulo, dias antes de sua chegada ao Brasil, quando afirmou ser o desafio maior da literatura, aquele de tornar compreensível ao próprio autor e aos seus leitores, o que se sofre e se experimenta pessoalmente, já que a vida nos desafia permanentemente a contá-la, e devemos aproveitar nossas dúvidas e questões para virá-las lentamente em direção à luz. Para ele, os livros mais reverenciados seriam os que falam ao ponto mais íntimo de nós mesmos, constroem nosso imaginário e inserem palavras, histórias ou situações que não poderíamos formular sozinhos. Quando alguns livros continuam a viver em nós e a nos influenciar sem que o saibamos, é porque eles nos fizeram diferença e é possível verificar em algum momento de nossas vidas, suas marcas e influências. Lembrei-me imediatamente do livro que classifico como o divisor de águas de minha vida, quando aos 19 ou 20 anos li “O jogo da amarelinha” do escritor argentino Julio Cortázar. Embora já houvesse “conhecido” Garcia Marquez, Jorge Amado e outras obras contemporâneas que desconstruíam a lógica amena dos romances de então, este livro perturbava em todos os sentidos. Com uma narrativa incomum, cujo objetivo não era o desfecho de uma trama, este anti-romance invertia a ordem convencional ao privilegiar a subjetividade dos personagens sem colocá-los em uma história de começo, meio e fim. A proposta desconcertante do autor, de que cada leitor pudesse escolher ler a obra seguindo um ordenamento linear dos capítulos ( do 01 ao 56) ou saltando segundo suas instruções ao final de cada capítulo ( começando pelo capitulo 72),já indicava sua ousadia formal. Melhor ainda era mergulhar na alma de seus personagens, que como ele, eram em sua maioria, imigrantes latinos vivendo na Paris dos anos 50 e 60, palco de questionamentos políticos e sociais, mas principalmente de encenações do que viria a se constituir uma verdadeira revolução cultural. Os diálogos, as manias, os livros, as músicas e as idéias e a ânsia de viver dos personagens já anunciavam este nosso novo mundo. Maior impacto ainda era o fato destes personagens não se levarem tão a sério, utilizando-se de uma via irônica para se referir aos seus dramas cotidianos, que revelava uma coragem em se apresentar por suas falhas, feridas e perdas. Lido no início dos anos setenta, o livro me causou um alvoroço interno, ainda que não houvessem palavras para definir meus sentimentos. Provavelmente são estas obras que chamamos de vanguarda, e que em diferentes tempos e lugares se tornam o arauto de mudanças importantes, ao apontar caminhos inesperados.

coluna do dia 7 de julho de 2009

Ser ou não ser

Figura emblemática, Michael Jackson foi sem dúvida um artista de nossos tempos. Nascido na era da mídia, cedo seu talento o alçou a ícone musical do planeta. A década de 80 foi sua. Era difícil assistir aos seus clips inovadores, verdadeiros roteiros cinematográficos produzidos com recursos e efeitos que a tecnologia da época oferecia, acrescido de sua performance corporal perfeita, e não cultuar este conjunto como uma obra de arte. Aos que bebiam de sua destreza corporal, e tentavam imitar seus passos inquietantes, ou aos que cantavam seus hits, acompanhando seus gritos e breques, suas roupas ao mesmo tempo personalista e comuns, Michael Jackson fazia história na música pop mundial. Morto aos 50 anos, dos quais 45 faziam parte de sua vida artística, nos últimos anos acostumamo-nos a assistir sua humanidade frágil, estampada na figura trágica que seu corpo se transformou. Como é de praxe em mortes de ídolos, no dia seguinte à sua morte, pudemos assistir de nosso sofá, os melhores momentos de sua arte. Há séculos que a arte e os seres humanos por trás dela,seguem fascinando a nós, simples mortais. Quem sabe por ocupar este espaço especial, que nos transporta a lugares impensáveis e conseguir reunir diferentes pessoas, atravessando barreiras étnicas, sociais e geográficas, a arte e o artista continuam a ser reverenciados sem questionamento, perpetuando o congraçamento humano em torno do sublime. Ainda que tentemos submetê-la às nossas interpretações, que insistamos em utilizar adjetivos que a descrevam, ela só continua a ser arte por desconstruir nossas expectativas e perturbar nossos sentidos. E continua a nos oferecer a possibilidade de sonharmos em ser tão especiais quanto a arte dos artistas, que o tornam único. Mas é um equívoco quando imaginamos o homem especial que existiria por trás do artista, esquecendo-nos que sua história é humana. Dono de um estilo performático inusitado, Michael Jackson desde sempre anunciou ao mundo o lado trágico de sua vida artística, sonho perseguido pelo pai de maneira doentia e autoritária. A partir de meados dos anos 90, foi o estranho mundo de Michael que passou a gerar as manchetes : seu comportamento excêntrico, sua gradual mudança da cor da pele e as acusações de abuso sexual contra menores. Suas canções recebiam menos atenção que a sua aparência - o nariz alongado, a pele esbranquiçada, o cabelo liso. Como outros ícones da música (Elvis Presley, Janis Joplin, Jimi Hendrix), Michael tentava arrastar sua arte junto ao peso e o preço de sua sobrevivência. Mas para nós, seus fãs, é sempre difícil encarar o lado humano do mito, sem reclamar de seus erros. A morte deste menino-homem, deste talentormento como o definiu Tom Zé, o reconduz ao ídolo amado e imitado que foi. Michael Jackson é lenda.

coluna do dia 30 de junho de 2009

Lóki

Quem não conhece a história dos Mutantes, grupo musical dos anos 70 que, junto ao movimento tropicália, foi responsável pelas mais criativas e irreverentes produções da época? Dali sairiam alguns hinos entoados por muitas gerações de jovens, além de nossa musa do rock brasileiro, Rita Lee. Casados, Rita e Arnaldo também sugeriam a formação de um par inovador, cujos comportamentos indicavam total consonância com os valores da contracultura, o movimento paz e amor, a estética psicodélica. Como todos os artistas que faziam parte deste momento cultural, as drogas, entre elas o chamado LSD, eram parte integrante de suas vidas. Mas os anos dourados desta formação de sucesso se desfez quando o casal se separou, culminando com a saída de Rita do conjunto. Apesar do espaço conquistado pelas letras criativas de Arnaldo Batista, a impressão que ficou no ar, é que ele não teria conseguido superar tal separação. Na semana passada, entrou em cartaz em São Paulo um documentário, Lóki, que tenta costurar este tempo em que o artista esteve vivendo in “off”. Idealizado por produtores mais jovens, que não tiveram a oportunidade de viver esta época áurea dos Mutantes, o filme contém este sentimento de descoberta amorosa e de tentativa de recuperar a importância do artista, surpreendendo o público ao divulgar depoimentos de fãs espalhados pelo mundo inteiro, dentre estes alguns de peso como Kurt Cobain ou Sean Lennon. Para quem viveu, curtiu e cantou como eu, as produções musicais da década de 70, o filme resgata o clima da época e o compromisso da maioria dos artistas jovens com um novo mundo que se abria, mais descompromissado com alguns valores tradicionais e mais livre para ousar e criar novos discursos, estilos e modos de ser e viver. Mas o documentário tem também um lado trágico: o mergulho de Arnaldo em um mundo paralelo, só seu. Embora seu irmão e colegas façam um discurso uníssono em torno da grandeza de sua arte e do papel decisivo do uso indiscriminado de LSD, há aqui e ali alguns indícios de que sua separação de Rita Lee teria provocado um rombo irrecuperável em seu mundo subjetivo. Longe de utilizar uma psicologia barata que junta trauma a um culpado, o filme tenta captar a complexidade de seu percurso, os limites de suas possibilidades e suas tentativas atuais de juntar seus pedaços nas telas que compõe compulsivamente. Jovens e adolescentes, os Mutantes despontaram do interior dos bairros paulistanos para o mundo novo da televisão e da fama. Sabemos como a adolescência é este período em que não somos mais crianças mas também não ganhamos ainda a reverencia do mundo adulto. Ficamos neste vão entre dizer o adeus necessário ao aconchego idealizado de nossa infância, e buscar alternativas fora deste mundinho infantil que passamos a não respeitar mais. É justamente por isso que a juventude se constitui no momento mais original da produção cultural e da renovação dos costumes. Particularmente nas décadas conhecidas pelo movimento da contracultura, havia no plano social um espaço importante de recepção deste novo, o que contribuiu para que as “revoluções adolescentes” fossem muito mais radicais. Mas a verdade é que nem sempre estamos preparados para enfrentar as conseqüências de vôos ousados e sem destino certo em uma etapa da vida em que nossa fragilidade é imensa e nossa auto-imagem incerta. Parabéns aos idealizadores do documentário que souberam evitar um enfoque estereotipado e preconceituoso sobre Arnaldo Batista, ao acolher com extrema delicadeza, a linguagem diferente e muitas vezes perturbadora de sua visão sobre si, sobre a vida e o futuro. Temos um mito.

Coluna do dia 23 de junho de 2009

Bullying e outros comportamentos indesejáveis

Mesmo sendo tema freqüente de debates entre os educadores ou de notícias pela mídia dos últimos tempos, o termo bullying ainda é desconhecido do público em geral. Sendo mais uma entre as muitas palavras importadas que se incorporam à nossa cultura, em inglês bullying se origina do verbo to bully que significa tratar com desumanidade e grosseria, humilhar ou ameaçar outros mais fracos e impotentes. Hoje faz parte do vocabulário de educadores e escolas do mundo ocidental para designar um comportamento (comum) entre crianças e adolescentes quando escolhem outras, mais tímidas, envergonhadas ou frágeis para fazerem sobre elas todos os tipos de zoações. Se a norma atual exige manuais que busquem curar qualquer desvio, são muitas as cartilhas sobre o bullying produzidas por especialistas ,que exibem orientações tanto para o corpo diretivo e os professores das escolas,quanto para os pais. Claro que esta forma de intimidação de alguns, sobre outros menos preparados para se defenderem, não deve ser tratada como algo sem importância. Não são poucas as vezes em que professores, diretores ou pais se sentem impotentes diante desta violência. Por outro lado sabemos ser comum que crianças ou adolescentes juntem-se para formar grupos (tribos, gangues) que permitam-lhes um plus de poder e prestígio. Ao vestirem a fantasia do “conosco ninguém pode” resvalam facilmente para o exercício tirânico da intolerância, da discriminação e da violência através de ridicularizações, ameaças e chantagens feitas à crianças e adolescentes mais frágeis ou aquelas que apresentem qualquer indício de exceção aos padrões cultuados pela sociedade. Algumas destas vítimas podem viver tais achaques de forma traumática e avassaladora. As instruções contidas nas cartilhas que tentam prever estes comportamentos em um quadro de possibilidades e chamar a atenção dos profissionais da área da educação ou dos pais são um passo a frente no sentido de imputar as devidas responsabilidades e criar uma espécie de repertório de cuidados e alternativas de ambos os lados (pais e professores). Mas há que se refletir sobre a complexidade de tais motivações. A escola é hoje o espaço em que as crianças mais permanecem durante sua vida e não por acaso estas tem se equipado cada vez mais para receber e oferecer a elas, desde o seu nascimento, todas as espécies de cuidados e saberes. Sendo assim, depois da família, a escola seria o principal núcleo de socialização da criança, e onde ela certamente dará continuidade às encenações que fazem parte de seu mundo. O brincar e o representar não são uma concessão dos adultos ( pais, professores) para as crianças, mas um exercício importantíssimo de expressão e elaboração de seus sentimentos, lembrando que nestes sentimentos estão incluídos a agressividade, a hostilidade e a ira. As tramas amorosas vividas por cada criança são protagonistas de muitas de suas encenações no seio familiar (e também na escola) em que participam de forma efetiva os sentimentos de ódio, rivalidade e ciúmes e seus derivados, as formas sádicas e masoquistas de dar ou receber. Entretanto o significado de tais dramas encenados nem sempre estão ao alcance de nossa percepção e menos ainda da criança. Se a nós cabe a tarefa de educar seja em casa, seja na escola, guardadas aqui suas diferenças, esta tarefa não se limita ao fornecimento de ferramentas e saberes. Ela é também um trabalho de inserção de um tempo especial de espera entre o que a criança demanda e a satisfação desta demanda. Tempo dos nãos, dos limites e do árduo trabalho de ajudar a criança a sair de seu mundinho fechado em direção ao complicado e jamais bem-acabado mundo compartilhado com os outros, cheio de sons e fúrias, mas também repleto de trocas e alegrias. Sem nos esquecer que os excessos merecem sempre um olhar mais cuidadoso ou um cuidado especial.

coluna do dia 12 de maio de 2009

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Panis et circenses

A expressão pão e circo remonta à lógica romana que acreditava que seu povo estaria satisfeito (e silencioso) diante do rumo de suas políticas sociais, religiosas ou éticas, se comida e prazer não lhe faltasse. Graças ao cinema, pudemos comprovar e até compartilhar do clima dos espetáculos que aconteciam nas arenas romanas, das competições e lutas sangrentas ou da catarse provocada pelas mortes em cena. Quanto ao percurso da cultura da fome, sabemos que nem sempre o pão esteve ligado ao circo. O comer e as práticas do cozinhar são considerados uma das primeiras expressões de cultura humana, que por estarem relacionadas à sua sobrevivência, continham um apelo permanente para transformar a natureza em algo exclusivo de sua espécie. E nesta passagem está implícito um quantum de prazer que foi sendo acrescentado ao ato de comer. Embora seja comum nos dias de hoje o uso desta dupla comer-prazer, o prazer do alimento já foi condenado e o ato de cozinhar e acrescentar iguarias para transformar um alimento natural em algo mais exótico e capaz de despertar o apetite e a paixão humana já foi encarado como uma alquimia de feiticeiras e bruxas prontas a exercer as tentações que culminariam com a perdição da alma humana. O jejum, assim como a reclusão e a abstinência sexual faziam parte do rol de repressões morais incentivadas a serem auto induzidas por cada crente a fim de se manterem longe dos pecados. Isso porque durante milênios os ideais religiosos foram os únicos grandes ideais, e, para alcançá-los, as pessoas deveriam aprender a se sacrificar, e até a sacrificar suas vidas. A moral moderna não perdeu seus valores, mas estes já não pressupõem sacrifícios tão severos. Por isso estão longe de nós os dias em que a função da comida deveria ser unicamente a da saciação de nossa fome. Hoje comemos com nossos olhos e podemos antecipar o prazer de degustar certas combinações de alimentos e especiarias somente com nossa imaginação. Desde o nosso nascimento,é comum que o ato de sermos alimentados com os nutrientes necessários ao nosso bom desenvolvimento físico,seja acompanhado de cuidados amorosos de nossos pais e familiares, que com histórias, caras e bocas nos oferecem ao longo de nossa existência infantil, uma enorme diversidade de gostos e delícias ( algumas nem tanto) à disposição neste nosso mundo de consumo. Cada um de nós marca em seu arquivo de memórias os cheiros e texturas destes alimentos da infância, compondo um estilo próprio ligado aos prazeres e desprazeres de então. Claro que mais tarde será possível ampliar esta experiência e levá-la a limites antes impensáveis , seja porque muito do ato de comer se liga hoje automaticamente ao prazer,seja porque o ato de cozinhar e preparar iguarias antes inimagináveis tornou-se uma prática a ser compartilhada prazerosamente a dois, ou junto aos bons e queridos amigos ou familiares. Ao menos parece que, à medida que a arte de degustar e apreciar uma cozinha diferenciada pressupõe a liberdade de experimentar o inusitado e o estranho, ampliando o espectro de nossas possibilidades, a alquimia concentra-se no endereçamento que fazemos aos que nos rodeiam.





Coluna do dia 05 de maio de 2009

domingo, 5 de julho de 2009

De qual azul falamos?

Idosos ao invés de velhos, afro-descendentes ao invés de negros/pretos/crioulos, portadores de necessidades especiais ao invés de deficientes. O dicionário do politicamente correto não só não cessa de aumentar, como funciona hoje mais como medida do certo e do errado e até do bem e do mal. Nascida nos USA, no intuito de fazer valer as leis dos direitos humanos contra os constrangimentos sociais provocados por quaisquer preconceitos ou discriminações, a expressão politicamente correto pretendia ser um arauto da igualdade entre os seres humanos, mas toma aos poucos um lugar de cartilha de bons costumes quase sem ligações com sua origem ideológica, reduzindo-se a um esforço de “elegância” ou “delicadeza”. Assim como esperamos que as pessoas não espirrem ou falem alto, as expressões do politicamente correto tornaram-se tentativas de agradar e ser cortês e não mais de evitar possíveis sentimentos hostis em nossa tarefa moral de reconhecer e respeitar o direito e a liberdade de cada semelhante para viver ou fazer as escolhas de vida que lhe cabem, sem que isto o coloque em situações desconfortáveis ou humilhantes. Por ser cartilha, passamos a fiscalizar e patrulhar os politicamente incorretos dos quais nosso presidente é um dos campeões. Rei de discursos inesperados e palavras mal colocadas, Lula causou polêmica com direito a vozes a favor e contra quando expressou seu ressentimento para com os brancos de olhos azuis, ou aqueles que em sua visão formariam a grande maioria da elite rica do ocidente, responsável pela quebradeira geral do mercado financeiro mundial. Sem pretensões de avaliar a fala de nosso presidente fartamente discutida pela mídia, apenas tomo-a como exemplo para refletir sobre o significado ambíguo do politicamente correto que muitas vezes faz uma discriminação ao contrário, apenas com o intuito de amenizar conflitos e polêmicas ou imputar o incorreto aos que assim julgamos inferiores. Na verdade a maior parte de nossas ações evita negar a nós mesmos o quanto escapamos ao controle de nossa razão e nos colocamos, sem nos darmos conta, sob o império de nossos desejos, seja para buscar satisfação, prazer e prestígio ou evitar frustrações. Também não notamos nossos sentimentos de inveja, desprezo ou raiva, e em um contínuo exercício de evitar ambigüidades optamos pelo “o inferno são os outros”. Assim, ao buscar um eterno retorno a alguma origem mítica em que haja só certezas e verdades sem questionamentos, ficamos a vontade em exercer nosso patrulhamento em qualquer fala espontânea ou irônica que deixe transparecer a fragilidade de nossos modelos, normas e convenções. Se o politicamente correto nasceu como uma reação aos preconceitos e à discriminação, hoje tornou-se caricatural e muitas vezes esconde sob sua máscara, uma velada censura a tudo o que confronta o esperado e o “normal” e desconstrói as expectativas. Mas este espaço "anormal" que tentamos evitar pode muito bem ser habitado pelo humor, aquele que inesperadamente nos mostra as fissuras de nossa tão sonhada perfeição e acusa com certa compaixão, nossa irmandade humana sempre ameaçada pelo desejo de poder, pela competição ou pela hostilidade. É no riso e porque não na gargalhada, que podemos nos sentir mais próximos uns dos outros, ao intuir que cada um tem seus limites, seus tropeços.


coluna do dia 07 de abril de 2009

sábado, 4 de julho de 2009

Como 2 e 2 são 5

Há um consenso em torno do fato da literatura moderna ter sido um dos fatores que auxiliou o homem a aprender a falar de si. Desde que a leitura de livros tornou-se prática comum, é de praxe seguirmos indicando ou buscando indícios de narrativas que falem sobre o nosso mundinho e que contem estórias de personagens como nós, banais, às voltas com nossos desassossegos, angústias e dilemas, principalmente amorosos. Na semana passada noticiou-se o lançamento de mais um livro escrito por Chico Buarque, compositor de algumas das mais belas músicas brasileiras feitas nestas últimas décadas. Aguardado pela mídia que anunciou exaustivamente o sumiço do autor por estar concentrado neste projeto literário, Leite Derramado é a história narrada por seu próprio protagonista, o Sr. Eulálio Montenegro d'Assumpção ( com “p” mudo ), que tenta costurar as origens elitistas de sua família, sempre próxima ao poder, fosse do Império ou da República Velha, mas que se encontra abandonado em um hospital do Rio de Janeiro. Aos 100 anos, sem seus privilégios e poses, resta-lhe contar e recontar ( entre delírios e devaneios) sua vida aparentemente venturosa. Agradável e irônico, o livro tenta mostrar os ingredientes da ginga e do jeitinho brasileiro diante de questões de peso como a presença da escravidão, a convivência ambígua dos “brasileiros” com as diversas etnias que os compõem, a atração pelos privilégios de classe e sua capacidade corruptora de abrir portas sociais e bons negócios com os governos, mas traz como eixo principal e motor das lembranças deste ancião, sua paixão por Matilde. Morena de cor escura, mulata não confessa e bem ao gosto do desejo masculino, Matilde provoca lembranças ambíguas a este marido e narrador, que mesmo contra as expectativas de sua mãe, casa-se com ela e é em seguida abandonado em pleno período de amamentação de sua filha Maria Eulália. Os relatos de Eulálio se concentram neste breve mas intenso casamento, em que felicidade e traição serão o mote para as ficções que ele, bem ao modo de Bentinho e suas suspeitas não comprovadas sobre Capitu, irá construir a respeito do destino e das razões do sumiço de sua amada,odiada e desprezada esposa. Tal como o alicerce de qualquer construção, os romances nos capturam pela via destes elementos, mesmo que nos tragam informações históricas ou reflexões filosóficas mais nobres. O desejo de um homem por uma mulher ou a grande paixão de uma mulher por algum homem, os percalços desta busca humana por alguém especial que comprove, ainda que por algum tempo, que se pode ser amado, a descrição das dores provocadas pelo ciúme, sempre presente, sejam os motivos reais ou fantasiosos. Este trivial triângulo amor-ódio- ciúmes é o responsável pelas fantásticas cores de felicidade, prazeres, dores e sofrimento, que fazem parte das relações amorosas de todos. São nossas relações amorosas desde nossa infância, as responsáveis pela construção de nossas ficções. São elas que servem de ponte de contato com o mundo e nos auxiliam na composição de um lugar para nós, além de nos fornecer uma história que poderemos achar especial, mas que trará em seu bojo a repetição destes anseios de cada um.



coluna do dia 03 de março de 2009

quinta-feira, 2 de julho de 2009

heróis e/ou vítimas

São inúmeros os filmes americanos que trazem a figura de veteranos da guerra do Vietnã, em geral vítimas de um heroísmo culposo, em que as insígnias ou medalhas recebidas como reconhecimento, são guardadas ao lado da memória trágica de mortes sem sentido. Muitas vezes estas figuras são apenas sobreviventes que lutam sem cessar com suas lembranças. Afinal a guerra, é bom que não esqueçamos nunca, é aquele período em que matar um outro ser humano, em geral um interdito universalmente aceito, passa a ser não só permitido como incentivado, a ponto de nomearmos como inimigos às vezes, pessoas que fazem (ou faziam ou ainda farão) parte de nosso cotidiano. O herói de guerra em geral reverenciado pelo seu país, vive quase sempre esta mistura ingrata entre ocupar um lugar idealizado e romântico de homem destemido e corajoso, capaz de lutar pelas causas mais nobres e resolver sem pestanejar os mais difíceis obstáculos, ao lado de seu inferno de lembranças que coloca em dúvida quase sempre, a própria capacidade humana ( incluída a de si próprio) de ser capaz de amar e conviver com seu semelhante. Ninguém melhor do que Clint Eastwood para encarnar tal herói. Em seu último filme, Gran Torino, em cartaz na capital, ele dirige e encena um ex-combatente da guerra da Coréia que mora em um decadente bairro americano de Detroit invadido por imigrantes. Seus vizinhos são “chinos”, assustados e impotentes diante da guerra das gangues (mexicanos, coreanos e negros) que buscam aliciar seus conterrâneos para engordar suas equipes e fazerem parte de um mundinho paralelo de poder em troca de proteção e dinheiro. "Não há escolha para os meninos," diz Sue, referindo-se ao destino de seu irmão, assediado insistentemente pela gangue de sua etnia. Não estamos longe dos pequenos brasileiros que se infiltram no mundo do tráfico das favelas por falta de outras alternativas. Walt Kowalski, personagem de Clint, encarna a contradição do herói de guerra vietnamita que tem horror às suas lembranças de matador, mas não só guarda todos os tipos de armas prontas para serem usadas contra possíveis perturbadores, como odeia a invasão de seu bairro por estes “chinos” que mal falam sua língua, não cortam sua grama e não cuidam dos telhados de suas casas. Ainda que romanceado, o filme vai tratar dos caminhos desta dificil convivência, mas nos lembra um cenário cada vez mais comum da “guerra” surda que se assiste em alguns lugares da Europa e dos Estados Unidos a respeito das relações entre os nativos e os imigrantes. Em períodos de crise financeira mundial, em que estas duas grandes potências assistem sua economia ser solapada, seus imigrantes que quase sempre elegeram os novos lugares para sobreviver,não só ficam jogados à sua própria sorte, mas ao serem nomeados inimigos, passam a encarnar o mesmo e velho fantasma que alimentam as grandes e pequenas guerras: transformam-se em objetos não desejados, passíveis de serem odiados em sua diferença e algumas vezes eliminados como dejetos sem valor humano.

coluna do dia 25 de março de 2009

In-certezas

O filósofo esloveno Zizek, que vive agitando de leste a oeste este nosso mundinho moderno com seus barulhentos discursos disse que vivemos tempos tão extraordinários, que precisamos compreender plenamente o que está acontecendo antes de podermos agir de modo sensato. “Me sinto como um mágico que mostra apenas cartolas, nunca coelhos", diz ele. Nossos conflitos não são mais direita contra esquerda, oriente contra ocidente, ou norte rico e sul pobre, apenas uma preocupação crescente e constante em cobrar das nações que respeitem os direitos humanos fundamentais de cada indivíduo e zelem pelos direitos econômicos e sociais. Zizek parece convidar-nos a refletir sobre o papel do filósofo na atualidade, que sem soluções definitivas para os caminhos humanos, busca incessantemente entender suas possibilidades. O fato é que o mundo tem se tornado de um lado um monte de indivíduos em busca de princípios seguros para viver e acreditar, e de outro instituições de quem se espera um discernimento na hora de protege-los contra os crimes e as violências dos que nunca irão cessar de transgredir. Foram poucos os que não se indignaram com o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho quando excomungou a mãe e a equipe médica que decidiu abortar os gêmeos que a criança de nove anos portava em seu útero, graças ao assédio sexual que sofria de seu “pai-drasto” desde os seis. Muitos dos mais fervorosos católicos sucumbiram diante do desumano destino da continuidade de tal gravidez. O fato não só suscitou discursos inflamados entre o presidente Lula e os representantes da igreja Católica, como repercutiu em toda mídia, abrindo ao público a possibilidade de refletir sobre as diferenças entre os discursos de fé de qualquer religião e os deveres de um Estado quando seus cidadãos são ameaçados em seus direitos de viver. Mas é interessante se deparar com comentários os mais diversos possíveis que, graças a internet, ficam ao acesso de todos que queiram buscar uma amostra da convivência dos diferentes discursos. Foi assim que pude ler em alguns blogs, comentários de católicos defendendo o bispo e suas convicções, o que traz a tona a questão que paira atrás desta disputa de verdades. Diante das leis católicas qualquer aborto é uma afronta contra a vida humana, a qual nenhum humano pode dispor ao seu bel prazer. Esta não é uma questão simples de se resolver já que para nós, ocidentais, a tradição da moral católica que exalta a condição humana a ser especial e não uma espécie animal que estaria no topo da escala evolutiva, proclama a vida intra-uterina como algo a ser zelado sem questionamento. Por outro lado, as religiões incitam seus seguidores a contemplarem o mundo dos não religiosos como um vasto teatro de imorais, condição para que cada seguidor possa se sentir íntegro e moralmente superior. Fica assim facilitado ao crente seguir sem pestanejar os preceitos de sua religião que em troca lhe promete as certezas sobre si, o mundo, a vida, a morte. O episódio da menina de nove anos que engravida do pai apenas vem mostrar que as máscaras de certezas são duras até que comecem a rachar. E as rachaduras não são mais do que as dúvidas que não podem parar de crescer e nem de mudar com o tempo, enquanto as certezas são caminhos sem saída. Não é fácil a ninguém pôr pontos de interrogação em suas certezas e se permitir duvidar sem perder o rumo. Resta, portanto a quem não crê em certezas absolutas, interrogar a tudo o que lhe é imposto contando apenas com sua confiança no valor da vida e tendo como companhia as incertezas. Os coelhos da mágica de Zizek seriam as promessas da certeza, que devem ser evitadas.


Coluna do dia 17 de março de 2009

quarta-feira, 1 de julho de 2009

As mulheres e os homens

Só faz três décadas, mas pelo menos na cultura mais ocidentalizada, o dia internacional da mulher já está incorporado ao calendário de todos. Nossas caixas de e-mails se enchem de textos enaltecendo nossas garras, nossos feitos, nossas conquistas. Ganhamos cumprimentos, flores, trocamos umas com as outras elogios, enfim, sentimo-nos a altura da importância concedida pelo mundo ao nosso gênero. Vale lembrar que o dia 8 de março não foi escolhido aleatoriamente já que buscava marcar uma data histórica na luta das mulheres por seus direitos, acontecida em uma fábrica de Nova York no ano de 1857. Lá se vão um século e um tanto e podemos dizer, sem que isso soe como um anseio otimista, que o lugar reservado às mulheres na cena social (e sexual) foi alterado e ampliado. Teóricos de todos os campos se dedicam não só a apontar as mudanças importantes nas condições sócio-políticas da mulher e as simetrias quanto a distribuição de poder e de autonomia em relação ao sexo masculino, como também tentam prever qual será o cenário das próximas décadas diante destas transformações. Enfim, podemos dizer que neste último século, as luzes estiveram nos iluminando e os holofotes tentaram cobrir nossa história e as crenças, superstições, medos e enigmas com os quais os homens tentaram entender nossos desejos, nossa capacidade de gerar e criar outros humanos e nossos anseios de sair da margem das decisões sobre os rumos da humanidade. Mas estas mesmas luzes fizeram com que passássemos a olhar mais de perto um mundo masculino que se manteve intacto e inquestionável. Quem são, o que querem, de que precisam e o que temem os homens? Sempre chamados a defender, proteger e lutar para manter os tesouros, a pátria e a descendência ou buscar soluções para os desafios que a natureza impunha, os homens jamais puderam questionar seu lugar de dono de todas as coisas e, portanto de machos fortes, viris e corajosos. Ser homem sempre significou não ser passivo, frágil ou covarde, além de ter que criar e mostrar o tempo todo aos outros homens as marcas de sua virilidade. Muitas vezes esta marca significou utilizar a mulher como um troféu, fosse pela destreza da conquista da dama mais cobiçada ou mesmo pela quantidade de mulheres seduzidas. Ainda que persista na cultura um pouco destas duas imagens, a das mulheres sem muito direito a escolhas e a dos homens que passam a vida provando sua masculinidade, sabemos que as próximas gerações de homens e mulheres terão que desenhar novas rotas para seus gêneros. Nem lá e nem cá, homens e mulheres são diferentes e assim deverão continuar. Mas homens e mulheres podem deixar estes antigos e mofados cânones cujas regras são prévias e ultrapassadas e construir caminhos mais criativos que combinem mais com nosso colorido e diversificado mundo contemporâneo. Atrasada, mas em tempo, parabéns a todas as mulheres neste 2009. E aos homens cuja sensibilidade permite saber serem elas uma parte importante de suas vidas.

coluna do dia 10 de março de 2009

O conforto da liberdade

A frase sempre repetida de que nunca se deve pertencer a um clube que nos queira como membro me soava estranha, mas talvez por ser demasiado familiar. Revirando as lembranças, tal frase passa a fazer sentido, já que evitei aceitar qualquer carteirinha que me filiasse à militância de alguma causa que exigisse paixão absoluta, mesmo que me custasse frustrar expectativas de algumas pessoas queridas. Na década de 70, por exemplo, época em que as universidades abrigavam um consistente movimento estudantil, esperava-se que cada aluno se filiasse a alguma das facções políticas. Os que se negavam a participar formavam o grupo dos “burgueses alienados”. Na outra ponta estavam os mais fanáticos, maoístas convictos, sempre prontos a catequizar aos que se dispusessem a estudar o sagrado livro vermelho e conhecer passo a passo a história da revolução chinesa. Para eles a China ainda mostraria ao resto do mundo (ao contrário da Rússia), que a ideologia marxista que apostava ser possível um mundo igual para todos, sairia vitoriosa e provaria ser viável social e politicamente. Aos olhos do mundo contemporâneo tal utopia não é só passado, mas ultrapassado, já que suas chances de realização se mostraram avessas às paixões humanas ocultas, estas que nos assediam implacavelmente e se derivam de nossa sede de poder e gozo, tornando a ambivalência a medida mais próxima de nossas aspirações solidárias e a tarefa de reconhecer a alteridade , exaustiva e infinita. Sabemos o quanto os sistemas totalitários destruíram em nome do amor, e legitimaram seu desejo de destruir pela exaltação apaixonada de muitos por uma mesma causa, ou seja comungando apaixonadamente pelo ódio ao diferente, efeito desastroso do amor ao idêntico. Mas a década de 70 também foi palco de uma das mais polêmicas e talvez a melhor revolução que a humanidade produziu. Esta revolução não foi imposta como uma cartilha a ser seguida ou como uma ideologia prêt-à-porter a ser engolida goela abaixo. Também não precisou de armas ou de aliciamentos. Ao contrário, ela foi uma revolução individualista, fruto do desejo de cada um de nós, que ao seu modo e à sua conveniência, ansiava por um mundo mais livre de constrangimentos, preconceitos e crenças sem sentidos que assolavam os costumes e as regras de convivência. Uma revolução de todos os que acreditavam sermos iguais na liberdade de decidir quem gostaríamos de ser, desde que isso não implicasse em prejuízos ao convívio com os outros. Quem assistir ao filme Milk – a voz da igualdade (Oscar de melhor ator para Sean Penn) poderá desfrutar do clima que os jovens da década de 70 viveram em torno de sua grande questão: encontrar um sentido, um propósito para suas vidas, baseados mais em suas próprias existências reais e em suas experiências cotidianas do que em antigas crenças, religiosas ou místicas, que ditavam verdades sem chances de contestações. Eram estas vivências que nos incitavam a buscar respostas sobre as razões de certas restrições aos nossos prazeres ou ainda os motivos pelos quais algumas pessoas deveriam ser rejeitadas, excluídas de seus direitos de cidadãos só por não terem a mesma cor de pele, a mesma religião, a mesma posição social ou ainda por fazerem escolhas sexuais diferentes do que era esperado. Passadas algumas décadas, podemos dizer que nossos filhos, mesmo à revelia de alguns, poderão desfrutar deste conforto. O conforto de serem livres para buscarem uma boa razão para viver em um mundo que oferece uma multiplicidade de opções para isso.

Coluna do dia 03 de março de 2009

Trapaça, sorte, destino e criatividade

Conta a lenda que o diretor britânico Danny Boyle se irritou com aqueles que compararam seu filme ( Quem quer ser um milionário, prêmio de melhor filme no Oscar deste ano) ao brasileiro Cidade de Deus. A comparação não é fortuita, a começar pelo nome original em inglês, Slumdog Millionaire, referência direta ao favelado Jamal que participa de um programa televisivo de perguntas e respostas de enorme audiência na Índia e está prestes a se tornar um milionário. Além disso, o filme explora as tentativas de sobrevivência destas crianças excluídas de qualquer possibilidade de uma rota de vida decente, ao mostrar as mais variadas soluções que os três mosqueteiros ( dois irmãos e uma menina) encontram para driblar sua orfandade prematura e seu desamparo absoluto. Com todo o esmero da produção de Bollywood, o promissor setor cinematográfico e motivo de orgulho dos indianos, não é a história, quase um conto de fadas contemporâneo, que faz deste filme um vencedor. Também não é só o peso da miséria mostrada em seu lado mais cru e o seu contraponto, ou seja, toda a impotência dos que vivem à margem de qualquer assistência privada ou pública e que por isso ficam sujeitos a todos os tipos de exploração. A genialidade é do diretor, que soube aproveitar tais ingredientes para seu roteiro e criar uma nova linguagem , transformando a vida comum dos favelados do mundo em algo instigante. O trio formado pelos dois irmãos, Salim e Jamal e pela linda Latika, três sobreviventes de um ataque de hindus aos favelados muçulmanos de Mumbai, tenta seguir vivendo no jogo de vida e morte que lhes demanda um drible constante, mas deixa suas marcas e impõe suas escolhas. Nada que nossos meninos de rua também não façam, como servir de guias a qualquer tipo de turismo ou pedir dinheiro nos faróis acompanhados de bebês nos colos ou de crianças cegas, ou seja, fazendo uso de qualquer artifício que possa seduzir ou constranger aos que deixarão algumas moedas. O que transforma em beleza este espetáculo sórdido é o forte laço selado entre os três. Salim cumpre sua sina de irmão mais velho sob a lembrança do grito de sua mãe para que fujam e escapem da morte. Ele vai cuidar e proteger seu irmão. Jamal se encarrega de cuidar de Latika, a menina que ele adota à revelia de seu irmão, mais preocupado com as rasteiras de todas as ordens que ele terá que se livrar. Assim o filme anuncia desde o seu início que o privilegiado e, portanto premiado com a sorte maior, será Jamal. É ele quem deverá ser poupado por seu irmão de toda a cumplicidade obrigatória que o mundo do crime demanda. É ainda ele quem deverá receber o amor de Latika , que jamais deixará de reconhecer o carinho com que Jamal a embalou. Por isso a mensagem do filme é e não é ao mesmo tempo aquele tipo de frase que diz que o amor pode salvar. Na verdade, quando é possível que o espaço do amor entre as pessoas sobreviva, ele, o amor, pode funcionar como uma aposta. Não é pouco saber que se é amado.


Coluna do dia 24 de fevereiro de 2009

Valquírias

O filme que trouxe Tom Cruise ao Brasil em turnê de divulgação estreou neste final de semana na capital. Baseado em fatos reais, o título refere-se à Operação Valquíria, espécie de senha para que o exército reserva nazista entrasse em operação, caso acontecesse qualquer inquietação interna que ameaçasse ao partido ou a Hitler. É fato sabido que Hitler reverenciava o compositor alemão Wagner, anti-semita confesso e autor entre outras grandes obras, da ópera Valquíria. O nome desta operação guardava, portanto um valor de sustentação da posição do Führer, mas será re-utilizado por um grupo de militares para armar um golpe em que ele e sua alta cúpula seriam assassinados no intuito de devolver a dignidade e a ética ao exército alemão e à própria Alemanha. O filme começa com o coronel Stauffenberg, personagem de Tom Cruise, em meio aos ataques dos aliados, registrando em seu diário de guerra sua revolta sobre os rumos e os crimes da empreitada nazista, e a premência dos militares em planejarem este basta. Outro filme em cartaz na capital, O Leitor, mostra o julgamento de um time de mulheres trabalhadoras alemãs,condenadas por compactuarem com os crimes nazistas ocorridos dentro dos campos de concentração. Ambos os filmes encenam tímidas tentativas de dividir com o mundo, a radiografia da cumplicidade dos alemães com as atrocidades contra a humanidade cometidas na era nazista. Quando os militares envolvidos com a Operação Valquíria percebem que seu plano havia sido frustrado, alguns se suicidam e outros morrem fuzilados em meio a bravas palavras de urras a uma Alemanha livre. O tom do filme tenta ressaltar a dissidência e por isso,a preocupação destes alemães, em serem lembrados por discordarem das ações de seu chefe supremo. Mais intimista, O Leitor nos mostra com delicadeza a complexidade da alma humana e faz deste filme ( que recebeu 5 indicações ao Oscar) uma espécie de reflexão apurada sobre os caminhos da xenofobia, esta intolerância humana ao estranho e ao diferente, que geralmente justifica os piores momentos de nossa história . É assim que de tempos em tempos, vemos surgir no cenário global, movimentos coletivos de rejeições ao diferente, em geral alimentados por estratégias políticas que visam naquele momento, culpabilizar certos setores da sociedade como ameaçadores. Notícias daqui e dali sobre vítimas de grupos neo nazistas em diferentes partes do planeta nos parecem bizarras. Na Europa cresce o temor de que a concorrência de fora represente uma ameaça, e o imigrante se transforma em bode expiatório alimentando a idéia de que a classe média necessita se proteger. Perplexos, ouvimos tocar novamente o velho refrão da música da intolerância humana, insuflando os conflitos e as diferenças. Foi após décadas de sua morte que Richard Wagner, conhecido em seu tempo por manifestar-se contra os judeus, tornou-se o músico preferido de Hitler. Mesmo sendo reconhecidamente um gênio da música, que revolucionou a concepção de ópera, sua obra está proibida de ser executada em Israel, que acredita não ser possível admirar sua obra, dissociando-a de sua aversão ao povo judeu. A ópera Valquíria baseia-se na mitologia nórdica em que as valquírias seriam deusas da guerra prontas a resgatar os guerreiros mortos e transformá-los em heróis. Aos poucos as valquírias passaram a representar o lado obscuro da alma humana, capaz de odiar o estranho, tão familiar a cada um. De um lado a outro, ambos os filmes nos lembram que a história humana vive e revive períodos em que nos juntamos no intuito de avançar na conquista de nossa liberdade de pensamento e de respeito às nossas diferenças e outros em que as luzes se apagam e atribuímos aos nossos semelhantes- diferentes, a justificativa de nossos medos e nossa hostilidade.

coluna do dia 17 de fevereiro de 2009

Palavras de mulher II

Na semana passada eu quis marcar o nascimento desta coluna lembrando a todos a importância da existência na época atual, de espaços que divulguem as palavras das mulheres. A verdade é que não nos damos conta de que a história contada e escrita pelas mulheres é um fato recente. Também não levamos em consideração o quanto precisamos de outras mulheres que possam falar ou escrever sobre si mesmas, para que aos poucos possamos construir um acervo de pensamentos e reflexões ou sentimentos e intuições próprios, que nos permita sentir aquele gostinho bom de estarmos sendo compreendidas em nossas dúvidas e dilemas, ou em nossos anseios e sonhos. O século XIX produziu inúmeros romances, quase todos escritos por homens sobre as mulheres que eles viam, mas também sobre as mulheres que eles desconheciam e muitas vezes temiam. Também foi o século do amor romântico, do amor verdadeiro, que acabou nos presenteando com sua bandeira que prometia desbancar qualquer ato ou pensamento interesseiro. Como adeptas instantâneas deste romantismo, apostamos na possibilidade de sermos mais do que mães e mais do que esposas. Fomos além e às duras penas inauguramos um novo século com uma nova mulher. Com muitos erros e acertos, tentamos definir melhor nosso papel de mãe, de amante, de mulher, de profissional, de política, de intelectual. Ávidas pelo tempo desperdiçado em tão longa história da humanidade, muitas vezes nos perdemos em tentar conciliar tantas responsabilidades, ou tantos investimentos. Paciência. É necessário um tempo para a acomodação de tantas mudanças. É este tempo que pode fazer com que cada uma de nós reflita sobre suas experiências e contribua para que este gênero humano, tantas vezes mal interpretado, possa ocupar seu lugar no mundo com menos alarde. Para que a pergunta tantas vezes repetida sobre o que quer ou o que é uma mulher não fique pendurada no vestiário dos homens, como se não houvesse uma resposta digna e consistente. Para que possa simplesmente existir um espaço de respeito para o nosso gênero, com suas diferenças, idiossincrasias, jeitinhos, desejos. Ainda que seja para fazer sobreviver este nosso lado romântico, um pouco distante da matemática masculina, justamente porque desconstrói as certezas absolutas ao interrogar incessantemente o porvir e suas possibilidades. Afinal são as diferenças entre os gêneros humanos que podem aumentar o espectro das cores do arco –íris de nossas experiências. É também quando podemos colocar a dúvida e não a certeza no centro de nossas vidas, que ela, a Vida, passa a ser mais interessante e pode adquirir novos sentidos.


coluna do dia 10 de fevereiro de 2009

As palavras das mulheres

A frase era ao mesmo tempo simples na definição das direções, mas pretensiosa se houvesse uma afirmativa da minha parte. Há um ano nascia esta coluna, graças a minha querida editora Rosana Zaidan, que esperava que eu pudesse ser a Danuza Leão deste jornal. A referencia a esta corajosa colunista, que não se furtou em expor as mazelas do ser mulher não era gratuita. Afinal, ser mulher na era atual significa poder ser autora, poder falar, gritar, reclamar, pedir, negar, gostar, desgostar, discordar... tantos verbos poderosos que nos eram negados socialmente há muito pouco tempo atrás. Em geral as análises que são feitas hoje sobre o papel da mulher, mesmo quando feitas pelas próprias, ou privilegiam um certo ressentimento e portanto incitam a busca de uma igualdade dos sexos, ou apontam de forma nostálgica tudo o que a mulher perdeu ao se emancipar e passar a ser responsável por suas escolhas e atos. Impossível não mencionar um terceiro discurso utilizado por um verdadeiro exército de homens e mulheres que se ocupam em apontar um futuro sombrio para a humanidade desde que as mulheres-mães perderam o adjetivo sagrado e assim colocaram a família em risco de extinção. Mas as palavras só adquirem um sentido quando podemos utilizá-las após algum tempo em que estamos vivendo o novo, pois é assim que elas podem exprimir não só os sentimentos que nos assombram ou os que nos doem, e sim aqueles que passam a adquirir um significado importante para cada época. E o que talvez seja mais importante na atualidade é que aos poucos, muitas pessoinhas das novas gerações, vão tratando de realizar esta acomodação aos novos espaços, ao descobrir nichos e adjetivos inéditos, ajudando a compor um repertório próprio de mulheres contemporâneas, estes seres que já foram tão enigmáticos em sua essência, mas que hoje só desejam ser respeitados por sua condição humana. E o respeito como medida não cabe só às mulheres, mas a todos os que de alguma forma, ousam questionar as normas de tempos e tempos, e assim fazer a humanidade caminhar sempre em busca de um mundo melhor, ainda que isto não signifique extinguir o pior. Aos poucos estas pessoinhas que chegam e às duras penas conseguem assumir o leme de suas vidas, sejam homens ou mulheres, começam a nos mostrar um novo modo de se relacionar. E neste, o respeito aos cuidados que um tem que ter com o outro tem um peso muito maior do que os tratados convencionais. Sem esquecermos que em geral, só respeitamos aqueles que por seus atos e gestos cotidianos, nos fornecem pistas de serem respeitosos com os que os rodeiam. Palavra de mulher!



Coluna dia 3 de fevereiro de 2009

Cafonagens

Sem dúvida a comunicação veloz e em tempo real de fatos e idéias que acontecem por este nosso mundo afora, se não nos torna mais inteligentes, pelo menos nos oferece um panorama mais completo da diversidade e complexidade do caldo humano. Entre crises econômicas e políticas generalizadas e conflitos bélicos com data de vencimento ultrapassada, a posse de Barack Obama no último dia 20 de janeiro conseguiu mobilizar uma grande parte do contingente humano do planeta que, de olhos e ouvidos fixos em suas palavras e promessas, sentiu-se convocada a apostar em uma nova era. Imbuídos da responsabilidade de sua jornada, a ala dos democratas americanos se esmerou nos detalhes do cenário que mostrava ao mundo uma imensidão de pessoas reunidas à espera da consagração de seu novo e inusitado presidente. Silenciosos e emocionados, todos os presentes pareciam beber cada frase pronunciada. Por seu lado, Barack Obama não decepcionou aos que ao vivo ou virtualmente prestaram atenção ao seu discurso. De forma serena e calma, ele anunciou o fim de um período de infância ávida, feliz e sem limites da humanidade e pediu a cada um que se sentisse responsável pelo futuro da mesma. Jornais de todo o mundo encheram suas páginas para analisar ou prever os resultados deste momento histórico particular e dos tempos que nos esperam. Otimismo ingênuo e cafona? Ceticismo cínico? Desconfiança preconceituosa? Descrença árida e depressiva? Sim, há espaço para todos estes sentimentos. Mas há também uma tendência do mundo intelectual em encarar a figura carismática de Barack Obama como o messias certo no momento certo, e, portanto capaz de capturar e seduzir a massa humana, carente que está de líderes que acenem com alguma saída ou algum futuro que reconsidere a raça humana e restitua a crença de que é possível haver convivência justa, pacifica e respeitosa entre os humanos. Sim, é próprio da massa ávida e desamparada buscar figuras dispostas a vender algum discurso prometeico. Em 2003, empossado como presidente, o metalúrgico Lula não conteve as próprias lágrimas ao ver realizado o improvável. Mas, embora ele tivesse protagonizado uma mudança radical, ao permitir que qualquer cidadão brasileiro pudesse almejar o cargo mais poderoso da Nação, também mostrou-se desastrado e atrapalhado nas negociações políticas que tal cargo demanda. Barack Obama pode até guardar certas semelhanças com a surpreendente chegada de Lula ao poder, que descartou de forma inédita a importância de sua origem humilde ou do seu parco currículo. Sabemos o significado de um presidente negro americano ter sido eleito com uma das maiores votações de seu povo. No mínimo muda a maneira como as crianças negras vão olhar para si mesmas. De resto não vejo nenhum impedimento até o momento, no fato de milhões de pessoas do mundo inteiro, depositarem na figura simpática e séria de Mr.Obama, aquilo que se tornou um dos bens mais preciosos da atualidade: confiança.


Coluna do dia 27 de janeiro de 2009

A gaze de Gaza

As atenções e os holofotes do mundo estão (novamente) voltados para o Oriente Médio, mais especificamente para a faixa de Gaza, território árido e retangular na ponta sudeste do Mediterrâneo, que abriga 1,5 milhão de palestinos, a maioria muçulmanos e pobres,um panorama bem diferente de seu vizinho Israel, gigante econômico e militar com seus 7 milhões de habitantes. Embora o conflito entre os dois povos venha se perpetuando há mais de meio século e muitas das cabeças mais brilhantes do mundo se debrucem sobre ele, não parece haver solução à vista. De tempos em tempos, assistimos o sofrimento e a destruição arbitrária de vida de pessoas de ambos os lados. Que a guerra é a mais insensata das criações humanas todos sabemos, mas ainda assim costumamos apostar que sejam quais forem os conflitos,eles tendem a ser solucionados, mesmo que seja pela exaustão dos argumentos ou ainda pela intervenção de órgãos internacionais como as Nações Unidas. Não parece ser o caso deste. Como conjecturou o maestro Daniel Barenboim, nem Israel irá desistir da legitimidade da ocupação de seu território, conquistado há apenas 60 anos graças às negociações internacionais do pós-guerra, nem a Palestina abrirá mão do que antes lhe pertencia o que significa que existem dois povos, ambos totalmente convencidos de seus direitos de habitarem o mesmo pedaço de terra. Mas apesar da semelhança dos propósitos que alimenta permanentemente a obstinação e o ódio mútuo, há diferenças importantes que compõem a história e a cultura de cada um destes povos, assim como há uma incontestável supremacia econômica e militar de Israel que controla não só o espaço aéreo e marítimo, como a maioria dos pontos de acesso à região. Talvez o fato de Israel haver confeccionado cuidadosamente e desde sempre uma nação armada até os dentes para se defender de quaisquer inimigos, em que cada cidadão é também um soldado, tenha promovido o aparecimento de grupos ditos terroristas ou fundamentalistas como o Hamas e o Hizbollah, configurando um círculo eterno em que sempre é possível a cada um dos lados responsabilizar um ao outro pelos litígios constantes.A nós, resto do mundo, que assistimos as muitas cenas de sangue e desespero, resta conviver com um incômodo sentimento de impotência, ou tentar perscrutar através de seus próprios habitantes, aquilo que somente eles podem nos revelar.Quando diretores como Amos Gitai e mais recentemente Eran Riklis passam a mostrar ao mundo através de seus filmes as mazelas do cotidiano e das vidas israelenses em seu convívio inevitável com os ex-donos( e supostos inimigos) de seu território, podemos construir uma imagem mais próxima da realidade conflitiva deste país, em que uma em cada três pessoas é imigrante, vindo de todas as partes do mundo.Se a ideologia sionista pós holocausto dava coesão à diversidade cultural de todos estes judeus na construção um país com um território e uma língua comum,aos poucos as diferenças étnicas e religiosas passam se impor. Percebe-se, por exemplo, uma falta de identidade nacionalista nas gerações mais jovens que começam a evitar aberta ou silenciosamente o Exército, desde sempre um fator aglutinador desta sociedade, ou a questionar a utilidade da ocupação de Gaza e da Cisjordânia, já que a guerra entre palestinos e judeus afeta a cada um dos que tem sua raiz naquela região. Por seu lado o diretor palestino Hany Abu-Assad permitiu que o mundo assistisse o questionamento de dois jovens palestinos, messias escolhidos por Alá para desenvolver a missão suicida, mas considerada sagrada por seu povo em sua eterna vingança pela ocupação israelense de seu território. Sem tradução para o português, Paradise Now ( em uma clara alusão sobre a crença de que estes mártires irão de encontro ao paraíso e receberão sua recompensa divina) mostra que muitos jovens palestinos se dividem entre sua fé religiosa que lhes exige uma submissão cega aos preceitos de Alá, e seus ideais menos sagrados, aqueles que todos os jovens do mundo compartilham, na esperança de poderem cantar,namorar, sonhar,estudar, trabalhar ,etc.

Coluna do dia 20 de janeiro de 2008

Última coluna

Não faltaram temas polêmicos, nem aqueles que revelam o que desejamos que permaneça oculto, na complexa rede de sustentação das sociedades humanas modernas. Crimes e violências em todas as camadas sociais, devastação contínua e cotidiana do planeta, conflitos inéditos e difíceis com seus imigrantes em países considerados evoluídos, eternos e insistentes embates étnicos e religiosos, são apenas alguns deles. Mas a crise financeira que estourou no final de 2008 não só surpreendeu a quase totalidade do mercado econômico mundial, como conseguiu quebrar a confiança que cada cidadão, independente de sua origem ou moradia, nutria em relação às promessas de um mundo cuja economia pairava acima de governos ou fronteiras geográficas e políticas. Como a história do rei que é convencido a desfilar para seu povo sem suas vestes majestosas, acreditando que só a ele eram invisíveis, em um primeiro momento a perplexidade e o medo nutrem nossa tentativa de negar a realidade. Preferimos imaginar alguns deuses reunidos em um Limbo Mundial, onde decisões sábias poderão modificar o destino dos estragos e amenizar as conseqüências futuras. Ou ainda quem sabe apostar que sendo parte de um país ainda não desenvolvido, estaríamos isentos dos tributos da crise por merecermos a misericórdia dos mais ricos. Impotentes, não sabemos ao certo o que nos reserva este tal Mercado que hoje dirige o grande trem da economia do mundo, o mesmo Mercado que abriu a todos os habitantes do planeta que quisessem e “pudessem”, a possibilidade de escolher e gerenciar sua vida financeira nos toques das teclas de seu computador. Moralmente destruído, o Mercado assiste seu poder em declínio acelerado, enquanto empresas de todos os lugares rezam para que seus respectivos governos coloquem a mão em seus bolsos ( via contribuição de cada cidadão) para evitarem um “mal maior”.Sem muitas instituições internacionais legítimas que possam ocupar um lugar que transmita a confiança necessária para se avaliar as raízes da tal crise ou delinear novos caminhos mais satisfatórios, o Mundo revela sua fragilidade. Um grande hiato, normalmente imperceptível, vem nos mostrar que entre o trabalho de cada cidadão que ajuda a produzir e a gerenciar os objetos ou serviços que serão consumidos e as ações de empresas as mais variadas, negociadas às vezes sem que seja necessário que tenhamos notícias de seu funcionamento ou importância, estão os milhares de habitantes, pequenos, médios e grandes investidores, que aprenderam a “jogar” a roleta do vai e vem, sobe e desce, compra e vende apenas em função de uma lógica que privilegia o número de apostas conseguidos muitas vezes sem ligação nenhuma com o valor real da empresa. Se é verdade que este descompasso tenha alimentado a crise de que falamos, talvez devêssemos apostar para 2009 na reflexão do que cabe a cada um de nós enquanto cidadãos deste Mundo, parte que somos deste planeta maior,nossa casa, nossa vida. Lembrando que a esperança precisa ser a última que morre, que venha uma Ano Novo!

Coluna do dia 30 de dezembro de 2008