sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Memórias de carnaval

Não faz muito tempo me intrigava o fato de muitas pessoas de minha geração não contarem em seu arquivo de memórias, com um “caderninho” dedicado aos tempos de carnaval. Talvez porque o meu não fosse um caderninho qualquer, mas um bem especial, cheio de confetes e serpentinas de cores pastéis, guardados junto às bisnagas plásticas coloridas, os martelinhos sonoros, as máscaras de papel, etc. Tudo começava em meados de janeiro, após os festejos de final de ano, quando as marchinhas de carnaval (em sua maioria já conhecidas por todos) invadiam o rádio. Alguns adultos mais ranzinzas reclamavam da falta de opções que o carnaval produzia com sua força invasiva. Para nós crianças do interior, acostumadas a brincar pelas calçadas vizinhas, parecia mais do que natural podermos encher nossas bisnagas de água e praticar nossas pequenas transgressões (de olho em todos os carros que se esqueciam de subir seus vidros), devidamente amparadas pelas “leis” que passavam a vigorar até quarta feira de cinzas. As matinês que aconteciam no domingo e na terça de carnaval, com orquestras ao vivo e muitas fantasias nos salões dos clubes da cidade, eram ansiosamente esperadas. Podíamos finalmente ser maquiadas com os “rouges”, lápis e batons de nossas mães, que quando “usados” em ocasiões normais mereciam broncas fenomenais. Momentos mágicos que nos incitavam a sonhar com os privilégios de ser adultos, tempos em que poderíamos ir aos bailes noturnos desde sábado até terça de madrugada, quando então já seria quarta, e o rádio emudeceria, deixando os dias mais cinzas até a Páscoa. Era um tempo de parêntesis bem definido nas programações e rotinas de nossa vida cotidiana, que acenava com a suspensão de certas regras e a permissão de muitos comportamentos considerados indesejados socialmente, e por isso muito bem-vindo para qualquer criança. A passagem deste período de incentivo ao barulho, ao excesso e ao abuso para uma exigência de recato e silencio no pós-carnaval ou quaresma era abrupta. Para nossa lógica infantil parecia injusto os quatro dias de alegria e os 40 de silencio e luto, quando algumas famílias católicas se entregavam mais que outras aos rituais de jejum e abstinência, próprios deste período de penitência e arrependimento. As igrejas cobriam seus santos com panos arroxeados e afixavam os seus horários de rezas para acompanhar o calvário de Jesus em seus últimos dias de vida. Todos se enlutavam pela sua morte, celebrada quase em silencio na procissão da sexta-feira da paixão, dia em que estava terminantemente proibida a ingerência de carnes vermelhas e seus derivados, sendo aceito apenas as carnes de peixes, o que tornava o bacalhau, a vedete da Páscoa. Nos dias atuais, o carnaval passou a ser mais um adjetivo do que um substantivo com letra maiúscula e reverenciado. Na medida em que a religião foi perdendo seu antigo lugar hegemônico de doadora de crenças, normas e condutas sociais, o jeito “carnaval” de se divertir se ampliou e a data oficial, embora ainda pendente das comemorações católicas, se estendeu por vários períodos ano afora. Mas a festa do Carnaval, antes praticada em muitos locais do mundo, tornou-se, assim como o futebol, um ícone da cultura brasileira. A grande maioria do povo brasileiro ainda responde aos seus festejos, deixando-se contagiar pelo clima de alegria e excesso. Mais do que nunca o carnaval é a expressão de uma certa mistura entre a identidade brasileira e este período de suspensão da realidade, quebra de hierarquia e, até mesmo, inversão da ordem. Homens podem ser mulheres e vice versa, qualquer um pode usar a “fantasia” que quiser,há espaço tanto para o deboche e a irreverência quanto para a reverência aos nossos ídolos, assim como para os diferentes estilos carnavalescos que hoje confirmam a diversidade de nossa cultura: os samba-enredos, as folias dos blocos, os maracatus, frevos, trios elétricos, axés. Uma marca nacional.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ser pai, mãe, filho, filha...

A maioria de nós acredita ser a busca da felicidade um dos maiores valores de nossas vidas. E embora o que nos torne feliz ou a idéia de felicidade seja particular e se articule com o momento histórico em que vivemos, existem alguns ícones culturais que comungam de um certo consenso quanto a sua importância. A constituição de uma família é sem dúvida um destes valores sagrados. Por isso quase todos deitam seus olhares às famílias, julgam as condutas de seus membros, aprovam, desaprovam ou criticam como se tivessem certeza quanto aos lugares certos de cada coisa, tal como um jogo de sete erros em que basta assinalarmos na imagem o que está fora de lugar. A família como a conhecemos (pai, mãe e filhos) certamente carrega desde sempre esta idealização, assim como suas contradições. Sofremos muito com nossas culpas ao imaginar que nossas famílias em nada se parecem com esta imagem feliz (claramente idealizada) em que o pai tinha autoridade e sabia como educar seus filhos, os rituais eram seguidos à risca, a mãe se ocupava do bem estar de todos, os filhos cresciam “normais” e preparados para seguirem seus destinos. Ficamos entre esta versão nostálgica e queixosa ou buscamos de forma gratuitua o modelo oposto da família “moderninha”, com pais fraternos e inseguros, mães libertas e permissivas, filhos e filhas críticos e/ou desajustados. Por onde buscar o que é ser homem, o que é ser mulher, o que é ser pai, mãe, filhos? Questão complexa, já que vivemos em um mundo com novas regras. Piores? Melhores? Diferentes, com certeza. Não somos mais os mesmos pais, mães e filhos. Nem os mesmos homens e mulheres. Ficamos sem muitas referencias e nestas últimas 50 décadas tivemos que construir na “raça” novos modelos. Entre erros e acertos, sabemos hoje que não se nasce homem ou mulher e tornar-se um deles implica em um tumultuado percurso. Se o lugar social destinado às mulheres teve um deslocamento gigante, é claro que isto teve conseqüência para o lugar destinado aos homens. Se nós mulheres passamos a desejar, a amar, a ter uma profissão, a nos divertir, a fazer parte integral da cultura e da sociedade, era mais do que esperado que tais mudanças questionassem o mundo aparentemente arrumado dos homens, cujas novas gerações já começam a encarar a si próprios. Neste sentido não só as mulheres, mas também os homens se encontram em pleno estado de errância, em um mundo novo em que deveriam estar mais autorizadas as falhas e as inseguranças. Sem um chefe da família, os casamentos são parcerias, com pactos que cada dupla constrói para gerenciar seus direitos e deveres, assim como as separações não são mais evitadas quando estes pactos afundam e se perdem. E a decisão de ser pais? Questão difícil, envolta em mitos e crenças em torno de um modelo de mãe sagrada, cujo instinto maternal por si só já lhe concederia os requisitos necessários para exercer esta função de entrega amorosa aos filhos. Quem é ou foi mãe sabe bem que ter um filho é se afastar do mundinho conhecido, mais ainda daquele idealizado, com promessas de felicidade absoluta. Não só não habitamos o nirvana quando nos tonarmos mães, como muitas vezes nos descabelamos, sentimos raiva, choramos desesperadas, nos arrependemos, nos sentimos loucas. Assunto tabu, mantido em segredo, difícil de ser partilhado mesmo entre mulheres que se sentem envergonhadas e culpadas ao imaginar que estes sentimentos são provas de incompetência e de incapacidade de amar seu(s) filho(s). Se a maternidade é este túnel sem final à vista, no qual só se entra quando se quer muito, ou quando não se tem opção, a paternidade também não está mais descrita previamente. Longe do modelo autoritário, muitos pais começam a escrever novas páginas sobre suas difíceis experiências de paternidade. No mais que bem-vindo mundo compartilhado, muitos trocam fraldas e aprendem sem constrangimentos a difícil arte de cuidar de seus bebês. Para complicar, os pais e mães têm que conviver não só com suas próprias expectativas em relação ao futuro de seus filhos, mas com o acúmulo de atenções da cultura sobre a infância em geral, o que aumenta e muito seus sentimentos de incompetência e sua insegurança diante de suas frágeis ferramentas parentais. Sabemos apenas que nossos pimpolhos precisam de nossos cuidados e muitos de nós queremos fazer o melhor. Assim, sem muitos caminhos a seguir, tentando construir pontes mais resistentes, ser pai e mãe são hoje apenas destinos possíveis, erguidos com trabalho, encima de sucessos e fracassos reiterados. E podem ser melhores se deixarmos de lado a figura mítica da família idealizada,este paraíso perdido que insistimos em manter como referencia de uma feliz eficiência.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Razão e sensibilidade

Aos 80 anos o ator e diretor Clint Eastwood parece habitar aquele limbo perseguido por alguns, a tal da sabedoria, que longe de ser um acúmulo de conhecimentos, é uma conquista que exige converter o que se aprende em algo que faça sentido, que conceda respostas sobre si e o mundo. Figura tarimbada e antiga do cinema acostumamo-nos a vê-lo desfilar os tipos hollywoodianos como ator, antes que ele começasse a se deslocar para as câmeras e utilizá-las como lentes de sua visão de mundo. Apostando que o cinema pode sim intervir na consciência da realidade e que um bom filme pode fazer um retrato histórico daquele momento que apreende e ajuda a recontar o passado, ele coloca alguns holofotes para iluminar um pedaço importante da historia da África do Sul e seus conflitos. “Invictus” começa com a eleição de Nelson Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul, um líder político reverenciado pela população negra e por uma minoria branca politizada, mas que ficou confinado durante quase três décadas em uma prisão em Robben Island. As leis de segregação racial já existiam na África antes da segunda guerra mundial, mas ganharam força a partir de 1948 com a vitória do Partido Nacional ( os“afrikaners”) que estabeleceu a existência de quatro grupos distintos na sociedade, brancos, negros, mulatos e asiáticos, vivendo em locais determinados, bem definidos socialmente e separados entre si. O apartheid atingia assim a habitação, o emprego, a educação e os serviços públicos e favorecia ostensivamente a permanência no poder de uma minoria branca. À maioria negra restavam trabalhos forçados e condições de vida precária. Foi só a partir de 1990, que o então presidente Frederick de Klerk, acuado pelas pressões estrangeiras que passaram a condenar oficialmente o apartheid, liberta seus líderes políticos. O mundo globalizado imanava seus ideais de homogeneidade e exigia dos regimes políticos e das religiões o fim das diversas formas de preconceito e segregação. Mandela assume um país imerso em uma das piores crises econômicas, ciente de que sua eleição intensifica a rusga entre brancos e negros. Sua África está à beira de uma guerra civil. A partir daí Clint Eastwood nos dá a impressão de fazer das idéias e pensamentos deste líder, as suas palavras. Na época com 75 anos, Mandela intui que não basta fazer um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito, nem proclamar a existência da igualdade como se ela fosse natural e essencializada. Que a diferença, sendo algo que nós produzimos, não é algo que se apaga ou se ignora e que uma intervenção na produção da diferença exige estratégias que dêem conta da dinâmica e da complexidade das questões humanas e das relações de poder que permeiam as definições de quem é igual e quem é diferente. “Invictus” é também o poema de um autor inglês, lido e relido por Mandela, que o utilizou para manter a esperança e a sanidade durante os longos anos que esteve preso. Um trecho em especial, dá o tom da mensagem de Clint, pelas idéias de Mandela : "Não importa o quão estreito seja o portão e quão repleta de castigos seja a sentença, eu sou o dono do meu destino, eu sou o capitão da minha alma". É o futuro e a coragem de encarar seu leque de possibilidades que pode permitir o confronto com os conflitos e abrir caminhos para novas verdades. Se o esporte pode unir países, etnias e inimigos em torno de uma paixão, o rúgbi (ícone da “tribo” branca sul-africana) será usado para reconciliar negros ressentidos e brancos temerosos.