quarta-feira, 28 de abril de 2010

O que as cores podem revelar

Lembro-me de ter sido invadida por certa euforia quando nas décadas de 80 e 90 houve um boom na produção de desenhos animados, quase todos by Disney, uma boa desculpa para levar meus filhos e rever as clássicas histórias infantis, coloridas e impecáveis. Lá estavam Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida ou a Bela e a Fera, lindas, em sua saga de meninas a enfrentar um mundo injusto antes de poderem encontrar seus príncipes encantados. Eram animações cujas histórias privilegiavam uma lógica binária da condição humana, em que o mal habitaria algumas criaturas (em geral feias) que precisavam ser enfrentadas e descartadas para que as que fossem do bem (belas e puras) pudessem se impor. Saíamos refeitos diante da alentadora promessa de que era possível ser feliz para sempre.Talvez não tenhamos mudado muito nossos sonhos e ideais mas com certeza mudamos nossos modos de compartilhar nossas misérias e conflitos através de nossas criações artísticas. E quanto mais as obras de arte se aproximam da verdade de nossa condição humana através da ficção, mais elas podem simbolizá-la e representá-la permitindo que possamos ter um contato maior com estas verdades. Algumas animações contemporâneas são verdadeiras obras de arte, ao reproduzirem nossas fantasias e sonhos sem esconder o lado sombrio do nosso desamparo ou das nossas faltas. A infância como lugar em que cada um pode sofrer os piores abusos seja por abandono ou por aliciamento muitas vezes por desajustes dos pais continua sendo o espaço de excelência para a produção de nossas ficções. São muitas e diversificadas as animações que invadiram as telonas nas ultimas décadas, algumas re-encenando histórias como Alice no país das maravilhas, este famoso e imortal conto de Lewis Carrol, talvez porque se alimente do material onírico em que os sonhos humanos nadam. Outras embarcam em produções da nova literatura infanto-juvenil, caso de Onde moram os monstros, em que se misturam personagens reais e animados (os monstros) para nos contar como em nossa infância é imprescindível que haja este “lugar” especial e imaginário em que criamos personagens que são parte de nós mesmos, para abrigar nossos medos, nossos ódios, muitas vezes impossíveis de serem representados com palavras. Mas recentemente estreou na capital uma ousada e surpreendente animação australiana, Mary & Max- uma amizade diferente, dirigida muito mais ao público adulto do que ao infantil. É a historia de Mary Dinkle uma menina de oito anos, que usa óculos, é meio gordinha, vive solitária nos subúrbios de Melbourne,única filha de pais alienados (o pai é operário, nas horas vagas empana pássaros e a mãe se anestesia com bebidas alcoólicas, estirada em um sofá). Curiosa para saber de onde vêm os bebês escreve aleatoriamente a um estranho, Max Horovitz 44 anos,judeu, obeso, diagnosticado como portador de “Síndrome de Asperger” (uma nomenclatura médica para casos amenos de autismo) que vive no caos de Nova York. Também solitário, após se recuperar da “invasão” desta novidade em seu cotidiano obsessivamente “organizado” e asséptico, Max resolve responder a carta da amiga. Utilizando-se de marrom para o mundo de Mary e cinza no universo de Max o filme anuncia sua proposta de mostrar os tons amargos e tristes dos que se sentem marginais em um mundo que pede alegria, euforia e agilidade para acompanhar um cotidiano cada vez mais veloz e superdiversificado. Tanto Max quanto Mary transitam neste fio precário em que basta algum vento diferente ou mais dolorido para que eles se asilem em seus mundinhos solitários e fracassados. Por isso a amizade que o título do filme destaca é a possibilidade que ambos abrem ao assumirem ser cada um o interlocutor dos fantasmas do outro. Assim, ao sentirem-se menos ameaçados por suas angústias inomináveis, suas vidas podem enfim adquirir um sentido: Mary aposta no amor de Max através de seu interesse por qualquer coisa que ela diga, pense ou pergunte; Max ( com muita dificuldade) se deixa afetar pelas carinhosas palavras de Mary que jamais o condena, ao contrário, aceita-o e respeita sua singularidade e seus conselhos. E apesar dos tons sombrios de suas vidas, o diretor e responsável pela historia Adam Elliot, consegue a proeza de nos envolver sem acentuar o drama, ao contrário, utilizando-se de um fino humor. Vale a pena conferir.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Nas tramas de um crime

A mídia do dia 14 de abril último divulgou em pequena nota o suicídio do ex- estudante de jornalismo da ECA- USP Fábio Le Senechal Nanni, que em 2005 invadiu a Radio USP e matou com uma facada seu colega de curso e de moradia Rafael Azevedo Fortes Alves. Há cinco anos o assassinato de Rafael por seu amigo Fábio deixou todos os que conviviam com a dupla, atônitos. O que o teria levado a este ato insano? A revista Época, por ocasião do julgamento de Fabio três anos depois, tentou vasculhar estas razões, buscando encontrar peças que pudessem compor alguma justificativa. Na casa da família de Rafael a reportagem constatou que a tragédia de sua morte e o sofrimento pela sua perda tinha sido devastador. Filho de um economista, Rafael parece ter elegido o jornalismo não só como profissão, mas como possibilidade de engajamento pessoal, social e político que gostava de compartilhar fosse pelas músicas irreverentes e de protesto de Raul Seixas, pela boina em homenagem a Che Guevara ou pelas camisetas que ele mesmo pintava com poemas que escolhia. Bem humorado e acolhedor, parecia natural que “adotasse” Fabio, o amigo “rachador” mas complicado, que em um ímpeto de confiança, havia lhe confessado seu segredo mais humilhante: o de ter sido molestado sexualmente aos nove anos por um adulto desconhecido em um vestiário masculino. Nos últimos tempos da amizade, no entanto, Rafael passou a se queixar de seu assédio insistente e reivindicativo, cogitando “separar-se” definitivamente dele. Planejava viajar com a namorada para Cuba e lá ficar por algum tempo e na noite anterior à sua morte evitou dormir na casa que dividiam. Muitos hão de concordar que temos aqui uma trama digna de ser vasculhada pelas lentes do detetive Espinosa, personagem dos romances policiais (e psicológicos) do escritor e filósofo carioca Garcia-Roza, para quem um crime é sempre um emaranhado complexo de motivos, conscientes e inconscientes, e, portanto longe de ser um problema a ser resolvido, é um enigma a ser decifrado. O sucesso dos livros de suspense policial poderia ser atribuído ao fato de que os crimes de morte ou assassinatos sempre nos despertam sentimentos ambivalentes. Ao mesmo tempo em que nos é ameaçador e o repelimos nos é familiar e nos atrai. Sabemos ser possível odiarmos intensamente alguém ou mesmo desejar sua morte e embora não haja porque justificarmos um assassinato seja ele por vingança ou por loucura já que isto não elimina o fato de ele ser transgressivo, podemos sem dúvida tentar decifrar as tramas humanas que podem acabar em tragédia. O suicídio cometido por Fabio talvez seja um destes indícios não só da violência, mas da complexidade que nossas demandas de amor podem conter. Os poucos relatos dos familiares de Fabio mostram que ele não se recuperou da violência sexual sofrida em sua infância e sua opção pelo silêncio pode ter tomado uma amplitude insuportável. Vindo de uma família de classe média, Fabio foi reportagem do Estado de São Paulo por ter conquistado o 11º lugar em um dos mais concorridos cursos da USP. Buscava talvez uma compensação ou uma alternativa ao seu destino. O acolhimento de Rafael e seus cuidados devem ter sido especiais para ele. Mas, diferente do amigo que podia investir em diferentes amizades e amores, Fabio parecia precisar continuamente de “provas” de amor, quem sabe cada vez mais impossíveis e surpreendentes para Rafael. Talvez não possamos medir a dor de uma rejeição (ainda que imaginária), o insuportável da inveja ou o dilaceramento do sentimento de impotência diante de nossos anseios de amor. Só quando eles explodem em atos violentos como o assassinato e o suicídio.

domingo, 4 de abril de 2010

As dores de amores

O sofrimento humano é sempre vivido como trágico, como algo que ao mesmo tempo desejamos que não existisse mas sabemos lá no fundo que é inerente à condição humana. Ainda que esta dimensão trágica assuma valores diferentes na cultura dependendo de sua época histórica, ela sempre se refere ao que escapa, aquilo que excede ao ideal de sustentação da existência humana. Na atualidade o amor e a sexualidade tem sido convocados a responder por nossas vidas, a curar nossos males e a impedir nossos sofrimentos. Mas nada mais pantanoso do que o terreno amoroso e sexual, responsáveis por preencher o cotidiano de todos, assim como o das crônicas e notícias que a mídia divulga ininterruptamente. São as pequenas e grandes tragédias, ou seja, os impasses e conflitos de nosso desejo de amor e sexo e das dores que daí surge que fazem parte de nossas questões do dia a dia. Quem não acompanhou o julgamento do casal Nardoni, ambos condenados pela morte de Isabela, provavelmente vítima das tramas odiosas e muitas vezes enlouquecidas que podem assaltar uma convivência que no princípio pretendeu se ancorar na esperança de viver do e para o amor? Quem não ouviu as notícias assombrosas sobre os casos de pedofilia e assédio sexual de padres católicos a menores, provavelmente acobertados pela Igreja por serem frutos de uma aposta irreal no “ideal de castidade”? De um lado botamos muita fé no amor, na espera que ele possa nos trazer paz, preencher nosso vazio, produzir um sentido para as nossas vidas. Também imaginamos uma vida sexual nos moldes do “foram felizes para sempre” ou com o desejo de ambos sempre perpetuados ou com a “perfeita” ausência destes sons ruidosos. Ainda que hoje a sexualidade esteja mais exposta, falada e discutida ela é carregada de preconceitos, medos e tabus. É difícil para a maioria das pessoas falar sobre sua vida sexual e mesmo ponderar sua importância. Nossa sexualidade difere da dos animais por produzir um desejo que não se vincula somente a reprodução da espécie, o que lhe dá não só uma diversidade de formas de expressão e satisfação, mas possibilita a vigência de desejos incestuosos ou moralmente inaceitáveis. Quem sabe por estas e tantas, na dura realidade de nosso cotidiano continuamos a viver na pele a fragilidade de nossos relacionamentos que não cessam de buscar o calor da proteção, mas nunca nos deixam imunes ao medo de sermos rejeitados, abandonados, traídos , quando não odiados, violentados. A verdade é que continuamos seguindo a trilha do ideal de amor e sexo porque a cada encontro amoroso voltamos a alimentar nosso desejo, fantasia e sonhos. O amor e o desejo, para o bem e para o mal, estão sempre impondo a riqueza e a pluralidade de suas manifestações, ainda que algumas serão bem vividas e outras produzirão angústias e conflitos. São nossas dores de amores.