terça-feira, 22 de junho de 2010

Paixão consentida

Estréia do Brasil na copa do mundo de 2010. A maioria dos estabelecimentos, empresas, escolas e serviços se organizam para que o país possa parar. São poucos carros nas ruas, muitos almoços com telonas e o verde-amarelo a encher os olhos de todos. O técnico de futebol que vive em cada um de nós, brasileiros, seja homem, mulher, criança ou idoso, assume seu posto de análise e vigia, enquanto Dunga, tanto pode ganhar como perder pontos, a depender do desenrolar da partida. Não deixa de ser interessante perceber que quase todos nós temos lembranças significativas em torno do clima especial que se instala em épocas de Copas do Mundo. Das expectativas, das decepções nas derrotas, do júbilo pelas vitórias. Dos jogos acompanhados ao redor de um rádio (para os mais “antiguinhos”), na tela branca e preta ou finalmente nas coloridas. Dos buzinaços e cortejos de carros após algumas conquistas de títulos. Desde algumas décadas, os jogadores escolhidos um a um para jogar na seleção brasileira de futebol das copas mundiais, habitam este lugar de limbo, e tanto podem seguir direto ao paraíso, eternizados por suas jogadas inesperadas e criativas e seus gols de craques, ou ao inferno, por suas falhas imperdoáveis. Sendo ou não o país das chuteiras, a verdade é que por várias e nem tão simples razões, o futebol vem se mantendo como uma poderosa paixão, capaz de despertar um forte sentimento de irmandade e identidade nacional. Mas ainda que haja uma concordância em torno de seu alto valor sócio-cultural e uma reverencia à sua arte pelo mundo afora, parece difícil escrever sobre o tema ou sobre a forte emoção que ele provoca. Como explicar o que causa frisson e admiração geral ao estilo de nossas partidas? Ou o fascínio de seus torcedores, capaz de derrubar as fronteiras raciais e sociais? Claro que existem outros tipos de esportes coletivos cujas características capturam torcedores, mas nenhum se compara ao futebol. Talvez por permitir que suas jogadas sejam mais abertas ao estilo e à intuição de cada jogador e menos submetidas às estratégias prévias que exigem somente técnica e perfeição, é que ouvimos comumente a expressão “futebol arte”. E assim como acontece em nossa música, difundida e reconhecida para além de nossas fronteiras geográficas, nosso futebol se alimenta desta liberdade que todos os brasileiros têm ao seu alcance, independente de origem e estudos. A de brincar com a bola nos pés desde que nascem ou a de gritar gol se a bola entra em qualquer trave improvisada. E pode se constituir em uma meta para centenas de jovens que sonham em vestir as camisas de seus clubes ou da seleção ou proporcionar uma experiência única de compartilhamento informal e gratuito de alegria. Claro, nem tudo são flores. Na medida em que nosso futebol se transforma no melhor do mundo, nos ombros de cada jogador eleito repousa o fardo que carrega a expectativa não só de todo um país, mas de muitos apreciadores estrangeiros. Não é difícil imaginarmos como cada um deles poderá se sentir intimidado e/ou temeroso diante da possibilidade de não conseguir corresponder a este tipo de exigência. Haja confiança!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O si mesmo

Fala-se muito no sentimento de si, no amor a si mesmo, na badalada auto estima e parece haver um certo consenso sobre o fato de em nosso mundo atual haver mais espaço para uma exaltação do eu. Para quem aprecia literatura, por exemplo, a estética das narrativas da época áurea do romantismo privilegiava o recato em relação a uma exposição vaidosa de si, o que fazia com que os personagens fossem discretos quando se descreviam aos outros, evitando valorizar em demasia seus talentos, atos ou renúncias. Eram tempos em que a etiqueta social carregava normas bastante específicas e a elegância implicava em uma reserva da intimidade de todos. Se pudéssemos ser simplórios com um tema tão complexo quanto as práticas sociais e culturais de cada época, era só fazer o jogo do “contrário”. Tornou-se prática comum o falar de si, o que inclui livros, blogs, entrevistas em que o personagem é o próprio sujeito, sua história, seu passado, suas idiossincrasias, suas receitas, sua maneira de estar e pensar a vida. E não há restrições de verbos e adjetivos enaltecedores. Transformamo-nos em narcisistas. Mas é bom que se saiba que o mito de Narciso não cabe apenas na frase do amor a si mesmo. Desde seu nascimento o belo Narciso estava condenado a não se olhar, pois isto implicaria em sua morte. Apaixonada por ele, Eco não consegue mais do que sua indiferença e acaba por morrer, deixando “ecoar” para sempre seu lamento. Responsabilizado pela morte dela, Narciso é conduzido à lagoa em que Eco morrera e ao contemplar sua imagem refletida nas águas, apaixona-se por si mesmo e morre. Estamos diante da característica principal do narcisismo, esta etapa a qual todas as crianças precisam passar como parte importante da formação de uma imagem de si mesmos, quando o olhar dos pais devolvem a elas sua adorável imagem e os outros são apenas reflexos deste si mesmo, não sendo possível enxergá-los como diferentes porque sua fragilidade não lhes permite saber que desde o começo de sua história, estes “outros”estão à sua volta para amar, cuidar, punir, frustrar, trair. Por isso Narciso oscila constantemente entre a euforia pelo reconhecimento de uma imagem engrandecedora e adorada e a agressividade contra o espelho que muitas vezes (e no decorrer da vida cada vez mais) lhe nega esta imagem idealizada de si. Mas Narciso é também um mito lembrado na era atual porque encarna nosso anseio de ser alguém que ao ficar fechado em um grande amor por si mesmo, não precisa de mais ninguém. Quem de nós já não teve seus sonhos de autonomia total, longe de todos e tudo, somente em “paz” consigo mesmo, sem a necessidade de ter que “responder” a todas as demandas de seu meio e mais, a todas as demandas de sua consciência crítica, aquela que mede de modo permanente e infernal a imagem que achamos que temos de nós, a imagem que achamos que os outros tem e aquela que queríamos ter? Ao contrário do que imaginamos, no entanto, para se ter uma boa “auto estima” é necessário reconhecer de alguma forma não só que o controle sobre esta “imagem de si” não está em nossas mãos mas que ela é altamente instável e precária. Portanto, um sentimento de si que possa compensar esta fragilidade é sempre uma conquista, pois implica “suportar” que os outros tenham uma imagem de si mesmos diferentes, assim como refletem nossa imagem de maneiras as mais inesperadas. Se esta descoberta nos expõe ao curso da vida, ela introduz ao nosso antes pobre vocabulário, uma infinidade de verbos e adjetivos novos. (Claro, nem todos prazerosos)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Busca-se sentido

O mundo hoje pede alegria, confiança, euforia, velocidade. Precisamos demonstrar que vamos conseguir nossos objetivos e que tudo vale a pena. Este parece ser “o segredo” do sucesso e da felicidade e muitas vezes embarcarmos na promessa de que a felicidade e o bem estar estaria ao alcance de todos que souberem se organizar para bem produzir e consumir. Seria esta nossa utopia pós moderna? Acreditar que o saber tecnocientífico que nos antecede guarda toda e qualquer interrogação sobre nossa humanidade e seu futuro e a nós resta aprender a 'gerir' da melhor forma sua eficácia, a valorizar sua gestão? Caberia às futuras famílias e escolas transformarem-se em experts ,aptos a enquadrar cada novo ser humano em categorias ordenadoras previamente estabelecidas, que pressupõem uma descrição detalhada e cada vez mais refinada, em um movimento classificatório que tende ao infinito? Etiquetados, poderíamos finalmente ser “desviantes”, desde que com alguma causa cientificamente explicada, bem descrita. Alguns teriam pânico, bulimia, esclerose múltipla, outros TDAH (transtorno de déficit de atenção e de hiperatividade), depressão, transtorno bipolar, etc. A verdade é que o paradigma contemporâneo tenta anular qualquer interrogação frente ao sofrimento, ao improvável, em uma luta contra o insuportável da experiência humana da ambivalência. Insistimos em tornar o mundo legível, instrutivo, em naturalizar a experiência humana, transformando nossas opções (fruto de nossa subjetividade) em necessidades naturais. Mas o preço pelo congelamento de nossos conflitos é alto e produz um esvaziamento da vida subjetiva, um embotamento da criatividade. Perdemos uma parte importante de nós mesmos. Um fenômeno ilustrativo deste dilema é o aumento de drogaditos. Em geral fazemos um grande estardalhaço (com razão) em torno dos usuários de cocaína ou de crack , pessoas que se tornam zumbis, totalmente apassivados em sua anestesia diária e interminável.Mas estes “desviantes” nos informam, de alguma maneira, sobre nossos sintomas sociais, ao demonstrarem sua inaptidão para as experiências humanas de sofrimento, de dúvidas, de excesso ou carência de sentidos.
E o que nos faz humanos?
Poderia ser nossa possibilidade de falar, que em sua origem apontaria para a necessidade de nos comunicarmos uns com os outros. A condição humana não pode prescindir da relação com um outro. Nascemos prematuros e não conseguiríamos sobreviver se não fossemos cuidados por um outro. Mas não basta ser um outro anônimo, qualquer, sem um endereçamento para cada um de nós. Precisamos que seja alguém que dê um sentido à nossa existência, nos dê um nome, um legado simbólico, uma origem que nos anteceda. Algo que nos possibilite contar alguma historia sobre nós, nos situar, poder dizer de onde viemos e para onde queremos, sonhamos ou podemos ir. No percurso que cada um faz, levando suas heranças em busca de novas conquistas há sofrimentos, há dores que expressam nossas impossibilidades e que precisam e podem buscar circulação de sentidos,que permitam fluir, criar, inventar e produzir caminhos novos e inusitados. Se nossas escolhas forem por caminhos que se mostrem fechados, há sempre novas chances de "reconstrução" de nós mesmos e novos futuros à frente. Para quem como eu, que trabalha com a escuta de vidas humanas, é sempre alentador se deparar com o fato de que tenhamos recursos inimagináveis para lidar com situações as mais atrozes.Muitas vezes absorvemos essas experiências e as transformamos em novos sentidos para as nossas vidas.