quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Gula humana

Quando o filme Wall Street: poder e cobiça chegou aos cinemas, em 1987, as bolsas de valores tinham sofrido um crash de grandes proporções, e os americanos estavam em choque. O filme expunha as entranhas do mercado financeiro e o mundo ilegal de suas negociações ao mostrar como banqueiros compravam empresas, destituíam-nas de seus ativos e destruíam-nas deixando trabalhadores desempregados. Era a década em que bancos e fundos de investimentos lucravam de forma inimaginável na base do capital especulativo e Gordon Gekko (Michael Douglas), paradigma destes excessos financeiros, encarnava um dos melhores e mais ricos especuladores do mercado, um tipo agressivo que sabia como e onde conseguir informações que lhe permitiam manter o jogo “poder e cobiça”. O nome Gekko não foi pensado por acaso. Deriva-se de Gekkonidae - animal da família de répteis- silencioso, observador e sorrateiro. Na esteira da grande crise financeira de 2008 que abalou o globo, atraiu a ira universal de políticos e expôs uma sucessão de escândalos na área das finanças, estreou há algumas semanas Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme. O mesmo Gordon Gekko (ainda Michael Douglas) após oito anos preso por fraudes financeiras, lança seu livro “A ganância é boa?” e passa a fazer palestras em universidades questionando o "risco moral", a tal pirâmide financeira que todos compactuam ao hipotecar seus imóveis. Gekko, tal e qual um guru às avessas, começa a ganhar pontos junto a nova geração de aspirantes a investidores e milionários de Wall Street, que inclui os muitos estudantes de MBAs que já comandam companhias de investimentos. Um destes é justamente Jacob Moore ou Jake, o jovem idealista que trabalha nesta área em um banco e sonha em abrir caminhos em Wall Street para investimentos na chamada “energia verde”. Namorado de Winnie Gekko, filha de Gordon Gekko, Jake não tem como dividir com a amada seu fascínio pelo sogro. Desde a morte do irmão por overdose no período em que o pai estava preso, ela se afastara decepcionada e magoada, mantendo-se resistente a uma reaproximação. Winnie também não esconde o desprezo que sente pelo mundinho que fascina Jake e, ao contrário dele,comanda um blog jornalístico "sem fins lucrativos" em que são constantes as denúncias sobre o mundo corporativo. É bom lembrar que “Wall Street” era apenas uma rua da baixa Manhatan em Nova York que nas ultimas décadas foi se tornando o centro do mundo financeiro global graças ao fato de abrigar a mais famosa Bolsa de Valores. Tanto o primeiro quanto o segundo filme do diretor Oliver Stone pretendem apresentar um pouco deste mundo formado basicamente por homens poderosos ou desejosos deste poder, fascinados pelo jogo de astúcia que envolve o “ganhar sempre mais”. Um jogo cujas regras incluem farejar frestas “legais” do mercado financeiro que podem gerar lucros rápidos, mudando-se apenas os alvos e as pessoas. Mas se este jogo pode se manter dentro das leis ou de suas falhas, ele aponta para o “risco moral” como irá pregar o Gekko pós- cadeia, tentando “vender” sua experiência anterior acrescida dos riscos que ela pode conter. Existe limite para a ganância humana? Ela pode ser “boa”? Na verdade a ganância habita a seara do “gozo” humano e fascina a todos- os que imaginam que a tem e os que se sentem excluídos- e o perigo começa quando ela é de certa forma “legalizada”. Aí é como se não pudesse haver mais limites para a acumulação de capital e menos ainda para seus desastrosos efeitos à “boa e justa” convivência humana. Não importa se a busca de lucros é trágica para alguns ou se transforma em farsa para outros: permanece a cumplicidade dos interessados em manter certa imunidade e proteção mútua, até que algum furo no sistema detone alguma nova “crise”. No entanto o jogo continua e as pessoas que se beneficiam ou são prejudicadas são apenas parte deste jogo; suas chances dependem dos interesses dos que comandam as peças naquele momento. Por ser um jogo que subverte as leis e as normas para benefícios de poucos, cria-se a ilusão de um “limbo” que passa a ser objeto de desejo de todos. É assim que trocando pessoas, crises e bolhas econômicas, a roda do jogo não pára e nem cessa a reverencia aos jogadores. Mas talvez a magia do mercado financeiro esteja não na proeza dos magos que a executam, já que de tempos em tempos transforma-se em truques baratos, mas na necessidade humana de crer, de se iludir. Espaço das paixões?

Para conferir: Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme
titulo original: (Wall Street - Money Never Sleeps) 2010 (EUA)
direção: Oliver Stone
atores: Shia LaBeouf , Carey Mulligan , Charlie Sheen , Michael Douglas, Susan Sarandon

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Simples reciclagens

Garrido arqueou as sobrancelhas para expressar sua conclusão: se o Brasil era campeão em reciclagem de latinhas de cervejas, que tal reciclar pessoas? Um negro de cinqüenta e poucos anos, olhar penetrante, coração aberto, Garrido falava para uma pequena platéia composta de profissionais da área psi, sobre seu projeto de recuperação e “reciclagem” de pessoas. Sendo ex-boxeador, há alguns anos atrás, abril de 2004, parecia que seu sonho se realizaria. Depois de anos treinando o filho Fabio batendo em geladeiras, pneus e surdinas de caminhão pendurados na academia da família - Vila Ré, Zona Leste da cidade de São Paulo- este iria enfrentar o então campeão em uma luta que valia o título brasileiro dos meio-pesados pela Confederação Brasileira de Boxe. Mas foi duramente nocauteado, e além de ficar entre a vida e a morte, sua carreira (e com isso o sonho de um lugar especial) ficara abortada pela contusão cerebral que sofrera. Tempos depois, trabalhando como segurança no centro de São Paulo, ao ver crianças cheirando cola e fumando crack, Garrido resolveu trazer a idéia da geladeira velha, os restos de carros/ pneus usados e algumas pedras para improvisar uma academia de boxe e oferecer a quem quisesse, um espaço para treinar. Logo a idéia cresceu e o antigo espaço sob o Viaduto do Café, local de tráfico de drogas e de desabrigados tornou-se referencia no bairro do Bexiga, atraindo moradores e até empresários que se sensibilizaram com a “paixão” com que Garrido se dedicava ao resgate de qualquer pessoa em vulnerabilidade social, desde crianças de rua, ex-detentos, meninos recém-saídos da Febem, catadores de lixos, moradores de rua,etc. Em meio ao pensamento contemporâneo marcado pelo ceticismo e pelo individualismo, ouvir alguém falar de forma ao mesmo tempo despretensiosa e apaixonada sobre as possibilidades de se abrir ao outro, mesmo em face às mais pungentes adversidades é no mínimo alentador. A maioria dos que o assistiam se surpreendia pela forma simples com que ele afirmava o resgate de pessoas totalmente excluídas da rede social.Parecia mal se dar conta da potencia de seus projetos pessoais e da aposta sensível na resposta positiva de seus investimentos no outro, mesmo com todas as evidencias de falência. Paradoxalmente o boxe acenava com um destino para a violência, uma violência submetida às regras, à disciplina e, portanto capaz de gerar vida e ajudar na criação da realidade compartilhada. Já se vão seis anos e Garrido continua com sua “garra”. Seu projeto cresceu, ganhou a parceria da amiga Cora Batista que há anos trabalhava com assistência social às mulheres e chega à terceira ponte (no bairro de São Miguel Paulista) transformada em espaço aos moradores pobres locais ou a quem se interessar por “novas oportunidades, disciplina, e autoestima” segundo suas palavras. O Cora Garrido Boxe ou o Projeto Viver continua transformando alguns que vivem assujeitados pelo medo,pela violência,pela falta de oportunidades ao oferecer uma brecha de acesso à vida, uma “reciclagem” do desejo que permite a construção de um sentido, em um clima de trocas e solidariedade.Garrido leva a mesma“palavra” aos seus pupilos, incitando-os a manterem seus espíritos abertos à multidão dos excluídos, marginalizados, pobres em geral.Algo como a construção da tal responsabilidade social. Sua frase preferida é a que reafirma sua aposta: transformar “pessoas em seres humanos”, “reciclá-las”. Mas a que mais toca é a que diz que isto é simples, muito simples, basta querer fazer.


Para conferir:
Cora Garrido Boxe (Projeto Viver)
Email: coragarrido@gmail.com

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Confiar desconfiando

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos divulgou recentemente uma propaganda que parece ter a intenção de afirmar e resgatar algo precioso para seu funcionamento: a confiança. Não há como negar uma certa tradição desta instituição que, mesmo em meio as várias tempestades político-sociais do país, consegue manter sua credibilidade. Não titubeamos em mandar não só cartas, mas itens diversos para todo e qualquer lugar deste Brasil e do mundo. No fundo apostamos que irá chegar. Em geral chega. A propaganda que está sendo veiculada também nos cinemas, conta a história de um menino extremamente desconfiado. Nas cenas que se sucedem, ele tanto desconfia que seus pais não sejam verdadeiros como fica estudando minuciosamente um cachorro quente sem coragem de comê-lo. Já mais adolescente ele chega ao correio e pergunta à atendente se seu Sedex chegaria para a fulana que mora na cidade X. Sorridente, ela recebe prontamente o pacote e lhe devolve um “sim” cheio de certeza. Ele acredita. Está curado. Na simplória maneira de retratar o percurso da desconfiança até a aquisição da confiança a propaganda também aponta a importância desta última para o bem viver. Não por acaso. O mundo contemporâneo com seus riscos e sua permanente busca de segurança exige que cada um de nós possa contar com uma confiança básica, quer dizer, uma capacidade para confiar que inclua a desconfiança. Na difícil tarefa de aprendermos a lidar com os sentimentos (nossos e dos outros) é importantíssimo que a desconfiança que surge diante das separações e frustrações inevitáveis possa ser articulada a uma confiança nas pessoas e no meio em que vivemos. É comum que algumas propagandas que visem despertar a nossa “confiança” para determinados serviços ou produtos exibam cenas em que bebês- cuja fragilidade é sempre notória - são arremessados ao ar por seus pais: em foco a expressão de medo, tensão e excitação até o retorno ao abraço vigoroso e protetor que os recebe. Uma cena paradigmática do exercício da “boa” confiança pois implica que se possa admitir o medo diante da percepção de um perigo externo real sem que este impeça a exposição voluntária ou intencional ao perigo e ao medo justamente por se apostar tanto no fim do perigo quanto no fato de que o medo será tolerado e dominado. Confia-se (a revelia das ambivalências e tensões) que se sairá ileso e seguro desta experiência. Claro que estamos falando de uma confiança ideal, já que no duro e intranqüilo percurso de nos tornarmos adultos, nossa confiança faz embates sem fim à desconfiança e muitas vezes não podemos ou não conseguimos sair dos extremos em que ficamos retidos ou em uma confiança idealizada e indiscriminada em que acreditamos ingenuamente para em seguida desconfiar, descartando os sinais de perigo ou a sensação de medo, ou na desconfiança de tudo e todos que nos impele a manter distancia e controle, “confiando” demasiadamente em ferramentas nossas ou externas contra todos os perigos. Na verdade a propaganda dos Correios, ao exibir o sorriso acolhedor da atendente e o pronto levantar de seus braços em direção ao pacote do adolescente, deixa no ar a grande dica: a construção de nossa confiança precisa ser um projeto que implique a presença de um outro confiável, que suporte nossas ambivalências, medos, ódios, amor, etc.