sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Porque tememos a questão gay?

A Revista Época desta semana (21 de fevereiro de 2011) destaca em uma mesma reportagem, dois movimentos, um pró e outro contra a defesa dos direitos dos homossexuais no Congresso Brasileiro. De um lado o deputado (ex- BBB) Jean Wyllys, gay assumido, tenta propor um projeto de lei que institua o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo; de outro as vozes contrárias dos representantes da Frente Evangélica, da Família e do Exército. Sempre polêmica, qualquer discussão sobre a homofobia e os caminhos pensados para aumentar a participação social e política no enfrentamento da violência, do preconceito e de discriminação contribui para acirrar as lógicas perversas de opressão e incremento das desigualdades. A homofobia parece fazer parte do que Umberto Eco chama de “violência selvagem”, um tipo de intolerância que, sem qualquer doutrina, nasce dos impulsos mais elementares, mantém-se difícil de ser combatida e apresenta uma alta capacidade de sobreviver a qualquer objeção crítica e, assim, de resistir aos fatos que a desmintam. As tentativas de exclusão das pessoas homossexuais do campo de reivindicações de direitos é quase sempre acompanhada pela construção de um conjunto de representações simplificadoras e desumanizantes sobre elas, suas práticas sociais e seus estilos de vida. Os homossexuais parecem ser perseguidos simplesmente por serem homossexuais! Os setores mais conservadores da sociedade agarram-se às suas crenças e aos sistemas de disposições socioculturais, para procurar responder à “ameaça” que a diferença lhe parece representar. Buscam a segurança na norma mítica, algo que se confunde com uma idéia sobre ser “normal” : branco, jovem, heterossexual, cristão, financeiramente seguro, magro, e por aí vai.Os gays, grupo “outsider”, provocam uma inquietação maior ao reivindicar não apenas uma igualdade social, mas também uma igualdade humana. Porque a homossexualidade não pode ser considerada uma possibilidade humana? O preconceito em relação à homossexualidade é antigo. Historicamente ela já foi considerada pecado, crime e doença e em muitos lugares as três concepções coexistem. Desde 1973 foi retirada oficialmente do Manual de Diagnósticos de Transtornos Mentais (DSM) e em 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu que a orientação sexual não heterossexual não era uma enfermidade mental, nem uma preferência sexual que pudesse ser modificada voluntariamente. No Brasil a homossexualidade não é entendida pela lei como patologia e sim como uma expressão da sexualidade como qualquer outra. Mas ainda que as políticas sociais e culturais insistam em promover um debate no sentido de sua aceitação, não cessamos de produzir movimentos homofóbicos em todas as áreas da cultura. Talvez não seja mesmo fácil para a maioria de nós aceitarmos alguns traços nossos e de nossa história que preferíamos ignorar. Nossa sexualidade não é orientada pela reprodução e a extravagância dos nossos desejos está sempre a nos rondar, lembrando-nos algo que insistimos em apagar: a de que a sexualidade humana não segue a lógica ou/ou (ou macho ou fêmea) justamente por ser determinada por amores e fantasias de cada um. É pelo seu caráter desruptivo que a cultura não cessa de produzir silêncios sobre suas práticas. E quem não consegue se posicionar na alternativa entre os dois gêneros historicamente “permitidos” está condenado a viver sua orientação sexual de maneira dolorosa e conflitiva. Em geral não computamos o quão difícil é para os homossexuais concordarem com seu próprio desejo, seja por inibição, por repressão ou por princípios morais. Mesmo que as novas gerações tenham chances de ampliar suas possibilidades identificatórias, redefinir seus papéis sexuais, assumir com mais liberdade suas preferências, os homossexuais continuam a provocar o imaginário de um outro tipo de gozo, ao mesmo tempo diferente e semelhante, que atrapalha o sossego de uma identidade desejada “clara”, sem ruídos. Melhor e mais fácil qualificá-los de pervertidos e pouco confiáveis.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O lado negro do cisne branco

Cinéfilos ou não, é quase impossível ficarmos imunes ao clima de disputa e apostas, típico desta época do ano, em torno dos filmes e atores que serão agraciados com o Oscar. Difícil não cruzar com o cartaz que traz a foto impactante da atriz Natalie Portman- bem cotada para ganhar o Oscar de melhor atriz - encarnada na bailarina Nina de “Cisne Negro”. O filme produziu polêmicas e agitou o mundo das escolas de ballet sobre a exigência de disciplina ou o clima de tensão e competição entre as dançarinas. Também os profissionais da área psi foram convocados a dar seus palpites sobre o atormentado destino da protagonista. De fato, o filme coloca cada espectador como refém da perspectiva de Nina na imersão da conquista do que parece ser sua única razão de viver: obter o lugar de primeira bailarina de sua companhia. O resultado é uma sensação sufocante. Sentimo-nos aprisionados em seu corpo, ao mesmo tempo em que este testemunha a patologia de seu psiquismo. O ballet de Tchaikovsky e sua fábula, completa de forma perfeita esta trágica rota. Em quatro atos, o "Lago dos Cisnes" conta a história do príncipe Siegfried, que, coagido pela mãe a se casar com uma cortesã, apaixona-se pela mulher-cisne Odette. Em uma noite de luar encoberto,no entanto, confunde-a com Odile, filha do feiticeiro Rothbart e jura dedicar-lhe amor eterno, condenando assim Odette à morte. Interpretados pela mesma bailarina, os cisnes branco e preto seriam a representação da própria divisão de nossa condição humana. Enquanto o cisne branco obedece ao rigor e ao controle, com movimentos perfeitos, mas contidos, o cisne negro pede a catarse e se impõe. O bem e o mal, o amor e o ódio deverão poder ser expressos por Nina, assim como a contenção e a erupção de sua sexualidade. Do começo ao fim, sentimo-nos parte dela e com o fôlego suspenso, seguimos juntos ao infernal desmonte das frágeis ferramentas psíquicas com as quais ela sobrevivia e que no limite máximo lhe possibilitaria viver/ser/dançar o cisne branco. Não o negro e tampouco os dois. Ser obrigada a entrar em contato com este seu outro lado provoca-lhe uma ruptura que a faz perder a noção do eu-outro/ dentro-fora. Nina passa a alucinar e já não pode distinguir o que é sua imaginação da realidade. Temos a impressão de que seu universo psíquico não está mais em condições de exibir os sinais de seu sofrimento. Habita outra lógica, que não inclui a alteridade. Nina está aprisionada em seu mundinho. Sozinha com seus fantasmas. O mundo externo, das bailarinas, do diretor, da mãe, do palco e da platéia são atores coadjuvantes desta outra cena, interna. Talvez por isso o filme provoque reações diversas: a “com-paixão”, ou seja, a possibilidade de nos abrirmos ao negativo, vivendo com Nina as dores que não podem ser sofridas, suportando o sufoco do que não consegue ser dito, apenas atuado, ou a intolerância/estranhamento a este excesso. Seja qual for, saímos com a certeza de que nosso universo psíquico habita as águas da complexidade e de que não é nada fácil encararmos as vias indiretas e inquietantes de suas patologias.

Para conferir: Cisne Negro (Black Swan)
EUA , 2010 - 108 min.
Direção: Darren Aronofsky Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Aquele que sabe sobre mim

“Como psicóloga/psicanalista, o que você acha?” Em geral esta pergunta já denuncia a inquietação de quem a faz. No convívio social, fora do consultório, é comum aos profissionais que se dedicam ao estudo das almas serem questionados pela complexidade da vida humana e por seus comportamentos inesperados ou enigmáticos. Aquele que questiona, muitas vezes acredita que haja uma “normalidade” bem situada e previamente delimitada, e sua argüição pode conter várias apostas. A de que o psicólogo sabe algo a mais sobre ele e sobre os outros. Que pelo seu saber, ele possa habitar uma dimensão humana outra, que o exclui do rol dos comuns e o coloca em um lugar especial, quem sabe imune aos desvios, dores e excessos (o que legitimaria sua resposta). Ou ainda de que a “loucura” ou o comportamento desviante que motivou a questão tenha como ser extirpado. De uma certa maneira é esperado que busquemos um padrão médio de comportamento, de pensamento, de valores e reações emocionais diante da vida. Isto incrementa nossa crença na existência de formas de vida em que não seja preciso questionar a nós ou aos outros ou que possamos viver sem “sofrer” o impacto de nossas relações com os que nos rodeiam, os que são diferentes, ou nos causam estranhamento. Somos todos um pouco normopatas, e a normopatia parece incurável. Além disso, o fato de nossa cultura estar calcada no bem-estar e na ética do sucesso faz com que o sofrimento seja um elemento extremamente perturbador e, assim como o tédio e o estranho, disfunções a serem eliminadas. Há por isso uma corrida aflita aos catecismos ou aos entendidos, na busca de certezas sobre o “bem” viver. Para a psicanálise, no entanto, é um equívoco entender o sofrimento psíquico como produto passível de ser capturado apenas pela nossa consciência ou algo a ser eliminado com algumas boas orientações. Diante de um excesso de dor, de enigma, de violência (crueldade ou sexualidade), por exemplo, e na falta de alguém que possa “traduzir” ou aplacar tal impacto, nossa mente faria uso de um recurso que promove um fracasso das funções mentais, ocasionando rupturas, colapsos da memória e mesmo uma desarticulação no equilíbrio psicossomático. Esta seria a origem de nossos estados desarmônicos, ou seja, de nossos sintomas psíquicos. A maneira como construímos nossas medidas de proteção para estas urgências dão o toque sobre a estética de nossas patologias. Algumas mais “lesivas”, que implicam em uma maior alienação social, outras menos. À diferença de outros métodos de leitura de nosso funcionamento, aos psicanalistas o “saber” sobre os sofrimentos psíquicos de alguém não está dado a priori. Embora ele se ofereça para participar desta empreitada de criação e produção de sentido, ora propiciando, ora conduzindo, ora acompanhando, ora significando, ora respondendo, ora questionando é mister que ele possa suportar sua própria ignorância em relação ao que virá. O que se tece ali, a dois, é a possibilidade de uma apropriação delicada da história e a abertura para que aquelas medidas compensatórias “inventadas” no sufoco, possam vir a fazer parte da história daquele individuo, seja para serem agregadas, descartadas ou mesmo modificadas. Qualquer escolha terá seu ônus. Sempre.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Tão longe, tão perto

É possível que tenha passado despercebida a muitos de nós, a rápida e surpreendente queda da ditadura na Tunísia, movimento que começou em dezembro de 2010 com a manifestação de alguns jovens e tomou proporções inesperadas, obrigando o presidente Ben Ali a deixar o poder, menos de um mês depois. Sem dar tréguas, os manifestantes ainda conseguiram impedir uma tentativa de transferência inconstitucional de poder, reivindicando eleições que deverão se realizar em médio prazo. Já batizada de Revolução de Jasmins, em seu início os protestos foram anunciados como “uma revolta dos jovens”, sem a liderança de qualquer oposição formal. Mas a distribuição de informação crítica pelas redes possibilitou uma rápida e diversificada adesão de pessoas: as ruas foram invadidas por estudantes, advogados, blogueiros, artistas, hackers, donas de casa, crianças, médicos, professores, feirantes. Homens e mulheres marcharam lado a lado, de mãos dadas, cantando a favor de direitos civis para todos. A excitação contagiante diante da liberdade de manifestação recém reconquistada passou a conviver lado a lado com o medo e a ameaça de violência. Apesar do saldo de centenas de mortos e feridos, as ruas exalavam falas e risos. Corte! Ato contínuo, nesta última semana o Egito foi palco de um mesmo movimento pró liberdades democráticas. Milhares de pessoas saíram às ruas para pedir o fim do regime do presidente Hosni Mubarak, 82 anos, há 30 anos no poder. Rapidamente o governo tentou bloquear o acesso à internet, reprimiu com violência e decretou um toque de recolher. Mas as manifestações já alteraram o balanço de poder no país, com a nomeação de um vice-presidente, a troca do primeiro-ministro e a perspectiva de mudança nas eleições de setembro, além de impedir que Mubarak passe o governo ao filho, uma tradição entre regimes autoritários do mundo árabe. As tentativas do governo para bloquear a internet e a entrada e saída de informações, não conseguiram evitar a transmissão do que acontece ali, assim como a organização dos que protestam. Paul Salem, diretor do Centro Carnegie para o Oriente Médio, surpreendeu-se com o fato de milhares de pessoas na Tunísia e no Egito terem se mobilizado para reivindicar os direitos humanos e civis, a democracia social e a justiça econômica. Para ele, nos últimos 30 anos, a única oposição verdadeira aos regimes autoritários árabes era o movimento islâmico, mais ideológico do que político. Embora acontecendo no Oriente, distante não só da geografia, mas dos valores de nossa cultura ocidental, estas “revoluções” chamam a atenção por afirmar a força da rede fartamente utilizada pelas novas gerações. Ao contrário de muitos prognósticos pessimistas em relação aos jovens do mundo atual, estes, além de assimilarem rapidamente o conhecimento técnico das novas ferramentas que incrementam a velocidade da troca de informações, desfrutam de uma nova possibilidade de confrontar o instituído e o que pode ser novo. Embora sejam outros os métodos, talvez mais eficazes e menos bélicos, a História nos conta que a paz sempre depende do quanto se pode desfrutar dos ganhos da instauração das leis, da comunidade e da civilização. De alguma forma, “as redes sociais” parecem conseguir produzir referencias importantes que ajudam a formalizar alianças entre seus usuários e promovem verdades que passam a fazer parte de uma norma ou valor social, gerando estilos e maneiras de se viver. É como se cada “membro” pudesse desfrutar de um reconhecimento e sentir-se parte da irmandade humana.