O professor e crítico literário americano Harold Bloom que se dedica há algumas décadas ao estudo de Shakespeare costuma dizer que o dramaturgo inglês inventou o humano. Assim como outros, ele tenta entender o fascínio de todos sobre a obra de Shakespeare - cujas peças não cessam de ser revisitadas, atuadas e lembradas - atribuindo-o à sua capacidade inquietante de atravessar os obscuros labirintos da mente humana, desnudando paixões, iluminando desejos ou apontando os grandes fantasmas que perseguem a alma humana. De certa forma o filme “Shakespeare apaixonado” de 1998 é um produto desta duradoura paixão e mostra um diretor que faz uso de um material histórico de maneira livre e inventiva ao transpor o enredo de Romeu e Julieta para a vida de seu autor. No filme o teatro e a Inglaterra de Shakespeare são reconstruídos e mostram como em sua época, suas peças se adaptavam ao gosto do público (e às capacidades da trupe), talvez porque houvesse ali um poeta ousado e antenado tanto com este público como com o mundo ao seu redor. Os estudiosos da obra shakespeariana marcam sua passagem, a partir de Hamlet, para uma nova forma de expressão, em que os personagens passam a indagar sobre si e seus dilemas. É o texto poético, a arte, antecipando as mudanças do mundo e narrando a vida. Em uma época de grande padronização, em que as tradições se impunham e as hierarquias precisavam ser respeitadas, os poetas eram reconhecidos e legitimados por oferecerem um sentido às questões humanas. Passado alguns séculos, com todas as mudanças que assistimos, a literatura e o cinema continuam a oferecer este espaço de reflexão sobre nós mesmos. Parece que estamos condenados a narrar nossas historias para responder sobre nossas vidas. E hoje, com as redes sociais, cada um de nós pode “inventar” historias sobre si e compartilhá-las com a imensa camada virtual que nos acompanha. Pode? Nem todos. A rede social é um enigma sem fim para muitos ou algo em que não se pode confiar, configurando-se em um grande dilema para muitos pais. De certa forma, ao nascermos herdamos um mundo que nos antecede e que nos é apresentado por aqueles que nos cuidam. Precisamos ser sintonizados na cultura para “existirmos” e na nossa infância é importante que acreditemos em um mundo mais ou menos estático em seu jeito de funcionar. Já a adolescência precisa ser turbulenta, revolucionária, seja para as grandes rupturas ou para as novas e pequenas invenções. Diferente da antecipação dos poetas, mas na mesma linhagem dos que escrevem o futuro, os adolescentes captam os desejos irrealizados que pairam na cultura e colocam-lhe vozes. Quando avançamos na idade, a proximidade com a finitude nos devolve um lugar mais acovardado, mais disciplinado e voltamos a desejar que nada vá contra a “ordem natural” das coisas. Mas se não sabemos como o mundo em que vivemos está funcionando não podemos ser “transmissores” de regras e limites para nossos “babies”. É a historia nos convocando.
sexta-feira, 3 de junho de 2011
Nossas histórias
O mundo, as pessoas e as “gafes”
Colunas e reportagens deram destaque nestas ultimas duas semanas a uma série de “gafes” – comportamentos/ frases/piadas - cometidas por figuras públicas em geral, que teriam exposto por vezes o lado cruel e racista, por outras o preconceito, a intolerância, o desprezo ou o abuso que podem permear as relações humanas. O ex-ministro Delfim Neto teria dito ao comentar nossa data da abolição da escravatura que nos dias de hoje já não se podia contar com este “animal’ em casa referindo-se as empregadas domésticas. Uma moradora de Higienópolis teria confessado temer que o bairro passasse a receber uma população “diferenciada” com a construção de estações de metrô – mendigos, vendedores-ambulantes, etc. Ed Motta postou comentários elogiosos sobre o povo de Curitiba e do Sul em geral, em sua opinião, muito mais bonito que as pessoas do Norte e Nordeste, bem mais feiosos. Rafinha Bastos também postou uma frase infeliz sobre o dia das mães, ao marcá-lo como triste para os órfãos, usando um tom de deboche, enquanto o repórter do CQC Danilo Gentili faria uma brincadeira de “mau gosto” com os judeus mais velhos do bairro de Higienópolis, lembrando-lhes o medo que os vagões do metrô os levassem a Auschwitz. O agora ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) Dominique Strauss-Kahn foi preso em meados deste mês em Nova York por tentativa de estupro contra uma camareira do hotel em que se encontrava hospedado. O cineasta dinamarquês Lars Von Trier em uma entrevista coletiva dada em Cannes, logo após a exibição do seu filme “Melancolia”, mesmo sendo de origem judaica, disse que compreendia Hitler e diante de algumas provocações acabou afirmando que sim era um nazista. Já o ministro Palocci manteve o silencio diante da ruidosa denúncia de seu enriquecimento ilícito no governo anterior. A internet trouxe esta incrível rapidez na troca de informações, assim como um amplo e inédito espaço para exposição de idéias que, como vimos, pode servir para alguns empunharem seus revolveres e afiarem suas críticas ou revelarem seu descaso com certos cuidados e delicadezas necessárias para o convívio e o respeito entre as pessoas. Nas “gafes” relacionadas acima temos desde o gozo pelo exercício do poder, da arrogância, até o desrespeito pelos deslizes, pelas palavras mal colocadas, pela pena ou vergonha vivida. Ou seja, nosso mundo atual está representado aqui tanto em seu discurso triunfalista de sermos os representantes do melhor dos mundos - internet, transparência das ações/ falas/ ausências - como no seu contrário, ao expor o pior de nossa condição humana, nossos porões, responsáveis por afiar nossos preconceitos quando atribuímos ao outro características ou discursos nossos e de nossa historia que preferimos ignorar ou apontamos as falhas sem incluir nelas os fatores humanos, sem reconhecer sua complexidade. Quem sabe esta “divisão” seja a expressão de nosso conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar, divisão necessária para que a convivência social que já nos parece tão complicada, possa aqui e ali tentar achar um certo equilíbrio.