domingo, 28 de agosto de 2011

Ping pong

Uma das dificuldades que brasileiros enfrentam ao passar a morar nos USA é a diferença com que os americanos encaram sua relação com os deveres e direitos de cidadãos. É comum alguns imigrantes usarem o jargão “fazer à moda brasileira” quando transgridem certas regras que ali são consideradas preciosas como atravessar as ruas sem utilizar as faixas e faróis para pedestres ou o contrário, dirigir sem respeitar estes pedestres ou quaisquer outros códigos de trânsito. O mesmo vale para o tempo de espera para ser atendido, ou de permanência em filas. Pensar sobre estas diferenças pode nos levar a um debate (interminável) sobre um tema que tem se tornado corriqueiro em nossos noticiários: os (des) caminhos da corrupção no Brasil. Basta acessar o tema no Google para perceber quão constante tem sido as denúncias de desrespeito pela legalidade, pelo Estado de direito e pela democracia em nosso país. E a cada vez que as falcatruas de governantes, parlamentares, juízes, promotores, empresários e policiais vem à tona, chovem textos na mídia de jornalistas e leitores indignados ou de acadêmicos e cientistas sociais que tentam analisar a “história” deste nosso “jeitinho” de burlar leis e normas ou manter a impunidade dos transgressores, na geléia geral brasileira. Claro que o tema é universal. Há estatísticas que calculam que a corrupção mundial envolva mais de um trilhão de dólares por ano. Mas é verdade que cada país tem o seu modo próprio de “ser corrupto”, de tratar “seus corruptos” ou  protestar contra eles, o que não quer dizer que isto não possa mudar. A Índia, por exemplo, tem seu ativista anticorrupção: Anna Hazare, 74anos,está em greve de fome e conseguiu levar milhões de pessoas de seu país a protestar e exigir leis anticorrupção. Há dois anos, em uma ação conjunta, os jornais britânicos resolveram "censurar" as manchetes e textos de suas primeiras páginas em protesto contra o fato dos membros do Parlamento terem vetado as informações disponíveis na internet sobre seus gastos na atividade parlamentar. É possível que aqui estes atos não façam sentido ou não tenham o mesmo impacto, mas pode ser que há 20 anos as chances de nossa sociedade pressionar setores públicos a agirem diante de denúncias graves fossem ainda menores. Quem sabe a quantidade de escândalos divulgados recentemente já seja uma alteração neste termômetro. Enquanto isso não acontece, ficamos tentando entender os caminhos do que parece ser uma apatia do povo diante de certas práticas tidas como moralmente inaceitáveis, mas cotidianamente toleradas. Os prejuízos são evidentes, sobretudo em termos de cultura política, já que prevalece a tese de que o mundo é dos espertos e de que as leis não são para todos. Não é difícil imaginar que neste quadro tanto a exclusão quanto a falta de perspectiva podem gerar descrença, ou pior, a violência aparentemente gratuita contra a “ordem” social. Quem sabe o Estado brasileiro ainda não consiga se livrar de um histórico e vicioso modo de gestão patrimonial quando decide intervir e explorar, repetindo infinitamente alguns tipos de ligação com a sociedade como o clientelismo. Sociedade que responde igualmente ávida por favores e privilégios. E assim ficamos todos, com nossas grandes "bocas" à espera de abocanhar algum, e sem uma cultura que valorize o papel e a responsabilidade de cada um pelo funcionamento social, algo que exigiria certo discernimento para a importância das delicadezas, das gentilezas, enfim das regras de uma boa e saudável convivência. E é claro, sem saber os custos justos dos deveres e as chances para negociar ou exigir os direitos.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Californianas II


Mesmo os que nunca estiveram nos USA já ouviram comentários ou puderam confirmar através de sua ilimitada indústria cinematográfica, as nuances de uma cultura que com exceção de alguns nichos diferenciados, segue sendo preferencialmente branca, cristã e conservadora, um dos fatores que propicia a formação de guetos em suas cidades, geralmente divididas em bairros especiais para negros, chineses, italianos, etc. Outra característica marcante desta cultura é uma crença quase cega na hegemonia dos caminhos da economia (e da política) de seu país, que durante anos esteve à frente no panorama mundial, exportando modelos e impondo métodos. Longe da intenção de se fazer uma crítica (ou mesmo uma análise) do american way of life, esta introdução pretende apenas refletir sobre certas “marcas” culturais. Ao viajar livremente pelas estradas americanas e visitar suas cidades e estados é difícil não perceber os vestígios de uma cultura homogeneizada, em que predominam as grandes redes de hotéis, restaurantes, lojas e supermercados sempre a exibir os mesmos produtos. O contraponto é uma imensa população de consumidores desta cultura. Por isso, ao visitar a Califórnia, em especial a Bay Area - uma extensa área ao redor da baía que banha cidades como São Francisco, Oakland, Berkeley, Sausalito, Palo Alto, Nappa Valley, etc - somos invadidos por um sentimento de surpresa. Um bom e envolvente sentimento de se estar em um pedaço do mundo em que a conjunção de certos fatores (geográficos, culturais, históricos e econômicos) altera e muito a cultura local. A região exibe uma beleza exuberante que combina águas, montanhas, praias, rochas, mas sua topografia é tão diversa quanto a população que ali vive. Para se ter uma idéia desta diversidade basta lembrar duas das mais badaladas e importantes universidades do país - com históricos diferentes -  Stanford e Berkeley- além do famoso Vale do Silício, ícone da tecnologia de ponta mundial ou o Nappa Valley, imenso produtor dos melhores vinhos do país. A pequena cidade de Berkeley, por exemplo, guarda com orgulho as marcas de seu passado de berço da contracultura, movimento que despertou gerações de jovens para a importância de sua militância política de reivindicar mudanças ou exigir reparações nas injustiças sociais. Mas na atualidade,se fosse possível escolher uma das dimensões das conseqüências desta história política e social da região,elegeria o termo “local”. Ou seja, ao contrário da cultura massificada que se observa em muitas regiões do país, na Bay Area cultua-se um modus vivendi que privilegia a cultura local. Talvez um dos exemplos mais significativos seja sua culinária e quem sabe a história de Alice Waters possa resumir estes rumos. Em plenos anos 70 na fervilhante Berkeley, na onda de um movimento hippie pela naturalização dos alimentos, Alice abre seu restaurante (Chez Parnisse) e contra a industrialização e homogeneização do consumo americano de comidas propõe uma cozinha que utilize somente alimentos orgânicos, frescos e locais. Rodeada por uma população considerada “alternativa” por suas crenças e costumes, este “estilo” se propaga e consegue tornar-se ao longo dos anos, uma marca não só da (boa) cozinha californiana, como da maneira como a economia alimentícia valoriza a produção local e investe pesado na agricultura sustentável. Para se ter uma idéia há redes locais de supermercados só de produtos orgânicos, que exibem lindas verduras, legumes, frutas além de grãos, sucos, pães, todos naturais e locais, fora os Farmers Markets (feiras de ruas) que vendem orgânicos, diretos de seus produtores. Acrescente-se a isso uma enorme população de asiáticos e latinos (em especial os mexicanos), muitos indianos, negros, alguns muçulmanos que convivem lado a lado com uma tradição de intelectuais liberais e críticos e uma bem-vinda população gay mundial: um verdadeiro melting pot. Claro que não estamos computando as dificuldades e os “restos” de qualquer forma de vida que exista pelo mundo afora. Mas é gratificante quando se podem observar certas “acomodações” interessantes entre o novo e o velho, o conservador e o ousado, as soluções criativas e os cuidados, em um país que preza o cumprimento de leis e normas sociais em favor da boa convivência. Na cola de uma visada para o futuro nada melhor do que experimentar esta verdadeira “salada étnica e cultural” em que a mistura valoriza as diferenças. Bon appetit!

domingo, 14 de agosto de 2011

Californianas I

Na edição da Revista Época do dia 7 de agosto há uma reportagem que questiona o grau de satisfação dos jovens com seus trabalhos e mostra que apesar do atual aquecimento da economia brasileira propiciar um aumento de oportunidades de empregos, há uma diferença entre a expectativa de um bom salário, promoções e status e a noção de “bem estar” (welfare) de cada um com seu trabalho. O que permeia o texto parece ser uma pergunta básica: é possível ser feliz no trabalho? Com várias consultas a especialistas no assunto, a matéria segue mostrando que a felicidade no trabalho existe quando anseios de diversos tipos (e não somente financeiros) são preenchidos pelas características da atividade realizada, ou seja, quando é possível para o sujeito se identificar com a natureza, o tema, o momento e o propósito de seu trabalho. O texto ainda pontua os fatores que podem obstruir e deixa receitas e dicas, mas seria preciso acrescentar que nem sempre é fácil para um jovem saber sobre seus anseios, assim como ter ferramentas para gerenciar sua própria carreira ou coragem e maturidade para  buscar  suas paixões no campo profissional, quando (e se) as conhece. Em geral as qualidades técnicas cada vez mais exigidas no mundo corporativo e as ofertas de bons salários para os mais competentes criam um mundo imaginário de carreiras promissoras, às vezes sem o real conhecimento sobre  os “altos custos” de dedicação ou de submissão à exigências de todos os tipos. Sabemos quão difícil é para todos validar a si e os seus recursos perante os outros.Por outro lado, falar sobre o “novo mundo” do trabalho exige que se analisem as transformações ocorridas nas últimas décadas e se assinale o quanto o crescimento do poder do consumidor e a importância das redes sociais contribuíram para o que hoje é considerado um grande valor: a qualidade ou  aquilo que fará com que o produto ou serviço oferecido seja visto como diferenciado do resto. Isto permitiu a abertura de um campo em que a criatividade e a inovação pudessem ser consideradas o motor e as pessoas o ponto de partida e de chegada das empresas, que por este motivo, passaram a tentar mudar seus planos de gestão tradicional, investindo em novos modelos principalmente do que hoje se chama gestão de pessoas. Em visita recente à Califórnia, pude conhecer uma empresa que tem sido considerada um dos melhores lugares do mundo para se trabalhar. Com 6.500 empregados nos Estados Unidos (sem contar os que vivem em outros países, inclusive no Brasil) a Google, que se encontra sediada no conhecido Vale do Silício e que revolucionou os sistemas de busca na internet, também se tornou em pouco tempo a companhia de mídia com maior valor de mercado nas bolsas americanas. Minha curiosidade, porém, passava pelo fato de ser uma empresa fundada e mantida toda ela por jovens desta geração. Mais, por jovens fissurados em TI (tecnologia da informação) e incentivados a contribuírem com suas idéias, não só relativas ao trabalho, mas ao próprio funcionamento da empresa. Esbanjando uma estética colorida (há bicicletas espalhadas enfrente aos blocos para a circulação das pessoas) chamou minha atenção a liberdade das vestimentas, mas principalmente a liberdade de movimentação entre blocos ou ambientes: há um permanente vai e vem de grupos de jovens (de etnias diferentes), não há horários restritos para o uso das inúmeras cafeterias gratuitas (com vários tipos de cereais, doces, castanhas, iogurtes, cenouras, frutas frescas, sucos naturais), assim como há diferentes opções de cozinhas nos vários restaurantes (também gratuitos). No horário do almoço  as mesas espalhadas pelos espaços entre blocos enchem os olhos pelo colorido dos jovens que ali se sentam. Integradas ao ambiente de trabalho é fácil ser surpreendido por mesas de sinuca, pingue-pongue, pebolim ou grupos jogando videogames. As seleções são participativas e cada um é convidado a dar seu parecer (positivo ou não) sobre o trabalho que os colegas estão desenvolvendo.Tantas regalias e boas novas levaram-me a perguntar à jovem que nos guiava se ela acreditava naquele modelo Google, ou seja, se também para ela ali seria um dos melhores lugares para se trabalhar. Ela nos contou que havia sim uma preocupação importante com o bem estar dos funcionários e um incentivo interessante para o convívio amistoso e de trocas em diversas dimensões. Mas confessou que há dois anos alocada  na área de advocacia, a qual pretendia inicialmente desenvolver com cursos extras, havia descoberto que sua antiga paixão - tornar-se enfermeira- precisava ser revista com mais carinho. Estava decidida a ir atrás deste sonho. Pensei que na verdade não há garantias - por parte de empresa alguma - de que ali você será finalmente feliz. Também não há garantias por parte dos funcionários de que eles serão eternamente gratos ou fisgados por quaisquer benefícios oferecidos pelas empresas. Mas é bom saber que em alguns lugares, empresa e trabalhador podem conviver em um ambiente de trocas de responsabilidades e compromissos, um lugar em que a liberdade seja um valor para ambos.

Ecos de uma morte anunciada


Não teria sido necessário ler os incontáveis textos escritos no pós morte de Amy Winehouse. Bastava escutar os comentários: homens e mulheres, jovens, adultos e velhos, todos tinham algo a dizer sobre esta moça inglesa, judia e tão nova, cuja linda voz ecoava longe, mas não parecia se importar em ser noticia permanente da mídia que explora o lado “B” da vida alheia, no seu caso, o lado negro e árido dos que tentam sobreviver às duras penas, anestesiando-se até a morte, já que o que chamamos de “vida” parece- lhes acenar com demandas impossíveis de serem cumpridas. Houve os que se chocaram e lamentaram a rapidez com que esta menina se foi, os que confessaram ser sua morte inevitável diante das idas e vindas do uso de álcool e drogas, os que fizeram piada de sua vida desregrada e os que se aproveitaram para usá-la como exemplo do que não se deve ser ou fazer. Assim também eram as imagens divulgadas sobre sua vida: ora a mocinha provinciana que frequentava pubs londrinos com amigos e ressuscitava a soul music com sua voz poderosa, ora a cantora famosa que fazia muitos de seus shows totalmente alcoolizada ou drogada. Algum consenso? Talvez o adjetivo excessivo, para o bem e para o mal.
Figura alternativa, com dezenas de tatuagens e penteados exagerados, Amy mostrava um talento exuberante ao inundar os ouvidos dos loucos por uma boa musica e surpreendia pela indiferença com que encarava a exploração da mídia sobre sua vida errante. Deixava-se fotografar em condições físicas precárias, às vezes exibindo seu corpo emagrecido ou assumindo um ar de franca rebeldia com cigarros na boca, copos e garrafas na mão. Resta deixar de lado os voyeurs de plantão, e acompanhar seus inúmeros fãs que souberam homenageá-la, respeitando seu universo controverso cujo percurso fazia o roteiro oposto da cartilha que todos seguimos a fim de alongarmos cada vez mais nossas vidas. Perplexos, não desejavam sua morte e exibiram uma comoção sincera quem sabe por acompanharem de perto o tormento de sua vida exposto na maior parte de suas  composições. Muitos cantaram no mesmo tom de sua dor ou de seus pedidos de amor. Outros se perguntaram mais de uma vez se sua música poderia salvá-la de seu inferno. Quem sabe desconfiassem que suas canções tentavam de forma intuitiva (e desesperada) dar  sentido ao que em sua vida  lhe parecia sem sentido.

sábado, 13 de agosto de 2011

Quem quer casar?

Percebia-se aflito. A data meio temida e meio ansiada em que o martelo dos 30 anos bateria sem voltas já havia passado, mas não a sua agonia. Como as pessoas o viam? O que elas esperavam dele agora? Será que do lado de “fora” seria possível perceber o descompasso entre sua imagem de homem de negócios - terno, camisa e gravatas impecáveis – e aquela sensação desesperadora de menino desprotegido? Se a vida ganhava sentido pelo futuro que cada um traçava para si, porque o dele lhe parecia escrito ainda no livro infantil? Tinha acabado de trocar seu carro por outro mais novo e mais possante e pago um bom bocado para transformar seu interior em uma espécie de estúdio musical com uma acústica impecável. Suas milhas não haviam se transformado em passagens porque ainda não conseguia se decidir entre Amsterdã ou Berlim para as próximas férias. Este item merecia uma boa pesquisa na internet o que lhe demandaria um certo tempo. No entanto, o coro dos “adultos”- neste que todos tratavam como sendo o inicio do segundo tempo - era categórico. Estava na hora de pensar em se casar! Não que esta questão tivesse lhe passado despercebida, até porque nos últimos dois anos o numero dos amigos casados engrossara consideravelmente. Mas todas as vezes que tentara se imaginar vivendo uma vida mais ou menos parecida com a deles o chão lhe faltava, a respiração acelerava e um súbito sentimento de pânico lhe envolvia. Sentia-se despreparado para ingressar neste complexo e assustador “mundo adulto”. Seu namoro, ainda que já acumulasse uns pares de anos, seguia uma rotina agradável, mas principalmente suportável. Já o casamento acenava-lhe uma passagem definitiva, sem volta. Ele pressentia serem ventos internos, algo que dizia respeito a si e aos recursos que pareciam lhe faltar para administrar tantas responsabilidades. Mais do que nunca o significado da palavra amadurecimento lhe escapava e seu processo lhe parecia inalcançável. Entre a angustia paralizadora que a visão deste futuro oferecia e o torpor aparentemente tranqüilizador de seu cotidiano seria preciso “construir” um novo espaço. Ele estava certo disso. Mas ficaria para depois. Acabara de receber noticias interessantes sobre a vida noturna de Berlim.











Quanto custa viver?

Sob diferentes temas repete-se na mídia um coro em torno do temor de um mundo sem “governo”, ou melhor, sem sujeitos preparados para manter a existência desta nossa civilização de terráqueos. Diante da percepção da instabilidade de governos, partidos e mesmo da precariedade do antes vigoroso mercado econômico, resta um olhar expectante ao nosso universo “humano”. Quem seremos? Como viveremos? Muitos se debruçam sobre as novas gerações e, diante de um exército de jovens hightecnologicamente mais preparados, constatam horrorizados seu despreparo no quesito “custos” do viver. Seriam mimados à espera de um mundo que lhes acene com bonificações e boas surpresas. Não parecem dispostos a pagar qualquer “quantia” em pró de um funcionamento mais justo e saudável da sociedade. De outro lado, impregnados ainda por uma moral do sacrifício, herança de nossa tradição judaico-cristã, para nós, geração dos mais velhos, é difícil imaginar um mundo humano em que Deus, adultos, professores e pais não sejam mais os fiadores nem os únicos detentores das normas do viver. Esquecemos que criticamos nossos pais pela rigidez de seus valores ou pelo culto hipócrita a uma moralidade de aparência que insistia em ocultar as contradições, o sexo, as fragilidades e as maledicências. Apostamos em nossos filhos- pequenos príncipes - e sentimo-nos livres para nos incumbir de uma missão gloriosa ao oferecer-lhes felicidade, liberdade e o melhor da vida em troca de uma boa dose de orgulho ao constatar sua dependência amorosa, seus progressos, suas façanhas. Eles seriam tudo o que não pudéssemos ser ou conquistar. A verdade é que certos deslocamentos e mudanças de valores acontecem sorrateiras, ao largo de nossas possibilidades de apreensão. A ciência nos contemplou com saberes que substituíram nossas “magias” e superstições. Temos novas crenças e nossas ousadias passam a conter novas medidas. Sentimo-nos cada vez mais cidadãos do mundo e menos enraizados em nossas culturas locais. A felicidade, por exemplo, não é mais algo que estaria negado a priori graças à nossa dívida eterna com um Deus que nos concedeu a vida. Ela estaria ao alcance de todos, é quase um direito. Torna-se difícil constatar que temos valores tão díspares entre as gerações o que talvez nos dê a impressão de que o “custo” do viver anda sem preços definidos. A percepção de uma “virada” moral escancara uma falsa possibilidade de viver grátis, sem que seja necessário pagar preço algum. No extremo oposto aos sacrifícios e renúncias esperados de todos para alcançar um “paraíso”, estariam as luzes e estrelas de nossa era tecnomidiática que acena com promessas de acesso imediato, sem dores ou custos. Como ajustar os preços? Quanto custa viver? Um livro recém lançado no Brasil e escrito por um jornalista americano – O preço de todas as coisas –  embora tenha um enfoque econômico, problematiza o modus vivendi atual em que nossas escolhas estariam pautadas pelo preço que acreditamos pagar por elas ao mostrar que a atribuição de preços é muito mais complexa (e fascinante) do que sugerem as máquinas calculadoras. Mostra, por exemplo, que o grátis, como princípio, não existe, mas que ficamos capturados na ilusão de conseguirmos algo de graça, estratégia fartamente utilizada pelas promoções. Enfatiza o lugar da cultura, que além de ajudar a estabelecer os custos numa sociedade, dá uma narrativa aos preços e termina apontando como a confiança nas instituições (graças a sua transparência), ao permitir  que uma população se identifique mais com seus pares, possibilita uma melhor fluência nas transações econômicas. A verdade é que a felicidade e a liberdade – sempre valores transitórios que dependem de inúmeras circunstâncias e época - parecem habitar compartimentos opostos à seara que comanda os “custos do viver”. Se nossa geração pagou um preço ao buscar uma vida mais justa  e mais prazerosa para todos , a geração atual ainda tateia o preço destas conquistas para estipular outros sobre o que aspiram viver ou vivem. Até porque tudo o que criamos como cultura só adquire sentido se puder ser compartilhado ou se despertar paixão em boa parte dos viventes, mesmo que tocado em outros tons. Mas tem sim o seu preço.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Funeral de ideais

Em um texto publicado recentemente no caderno  Ilustríssima da Folha de SP, a professora da USP e crítica literária  Leyla Perrone-Moisés discorria sobre as inúmeras tentativas de se anunciar  a “morte” da literatura durante o século que  passou. Que literatura? Em sua opinião, haveria de se reconhecer as mudanças ocorridas no mundo, nos leitores e nos escritores, além de se fazer um retorno às origens do termo cuja pretensão seria a de abarcar o conjunto das obras escritas e não ser um critério de valor das mesmas. Ou estaria esta insistência em celebrar tal funeral ligada a um certo tipo de textos que interroga e desvenda o homem e o mundo de maneira aprofundada, complexa e surpreendente? Este debate me fez recordar o filme Meia noite em Paris, em que o diretor Woody Allen, com a licença poética que somente os “velhinhos” reverenciados pela crítica se apropriam sem nenhum protesto, nos brinda com uma Paris dos sonhos de todos. Eleita por unanimidade como a mais linda cidade de nosso globo, é a Paris em sua fase áurea, em que intelectuais e artistas do mundo todo sonhavam poder viver e desfrutar de seu clima avant guarde que interessa ao diretor nova-iorquino. Com uma fotografia que enche a alma de qualquer um, Paris é mostrada em sua beleza estarrecedora e com Woody Allen realizamos nossa fantasia de viver neste passado ao sermos apresentados a Hemingway, Cole Porter, Picasso, Dali, Toulouse-Lautrec e outros. Assim como a professora em seu texto sobre a morte da literatura, Woody Allen, através de seu personagem principal - um roteirista de cinema hollywoodiano que decide realizar seu velho sonho de escrever um livro - nos conduz a esta época fervilhante em que a arte de escrever, de pintar, de compor músicas estava comprometida de fio a pavio com as ansiosas perguntas (sem respostas) sobre o sentido e o destino da vida humana. Buscando os segredos de se escrever um “bom” livro, o protagonista quer beber na fonte de seus ídolos, que lhe parecem distantes e preservados do mundo frívolo e despojado em que vive com sua noiva e seus sogros. Quem sabe por sermos seres humanos comuns que temos que suar para viabilizar nosso destino e “inventar” formas de negociar com os parâmetros internos e externos de cada época, gostamos de supor uma dívida impagável com um legado pomposo da transmissão cultural. Mas tanto a crítica Leyla Perrone-Moisés quanto Woody Allen fogem da melancolia queixosa dos “bons tempos que não voltam mais” ou dos jargões que congelam a idealização de um passado. Afinal, nunca se produziu tanto no mercado de livros, filmes, artes, músicas. Talvez, como nas palavras de “Paciência” do músico pernambucano Lenine, é preciso que possamos apostar mais no fato indelével de que a vida não pára e é tão rara. A vida só pode ser admirada pelo que se espera dela e não porque será boa. Ela é única.