quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Politicamente Incorretos

É no mínimo engraçado pensar nas fronteiras do correto e do incorreto como critério para as regras de cortesia ou de polidez necessárias ao nosso convívio, no mundo atual. Principalmente quando ainda “respira” a cartilha dos bons costumes que costumava ser parte importante do legado entre gerações no mundo moderno. Havia ali uma separação importante e confortável para se transitar entre a vida pública e a privada. Na primeira, todos deveriam se conter e seguir religiosamente as normas de boa conduta fosse para se dirigir às autoridades, aos subalternos ou mesmo aos pares. As “gafes” tinham um peso danado no currículo moral de cada um. Na intimidade dos lares, ali sim, era possível se desfrutar de liberdade para amar, odiar, blasfemar, judiar, enfim expor suas entranhas. Esta dicotomia consensual permitia a cada um desfrutar de um código claro para escolher entre o certo e o errado, o bem e o mal, o normal e o transgressor. Mas a rigidez dos julgamentos produzia mais um moralismo do que um agir moral. Isto porque é mais fácil e tranquilo se imaginar de posse de um saber sobre como, o quê ou porquê cada um deve ou não fazer/dizer algo. Parece que não precisamos cavoucar as razões, avaliar caso a caso ou as circunstancias.  Aos poucos o mundo privado foi se misturando ao público e as pessoas convocadas a refletir mais não só sobre seus pesares e ímpetos como aos dos outros, assim como aos meios em que transitam. À liberdade individual que cada um conquistou corresponde uma maior responsabilidade sobre suas escolhas. Zapeando a programação da TV, dias atrás, me deparei com um programa de entrevistas que falava sobre alguns comerciais que estão sendo veiculados. A pauta? Celebridades que não se importavam em ser apresentadas por suas peculiaridades não tão engrandecedoras, ou seja, em serem motivos de piada. Quem já não assistiu o grandão Ricardo Macchi  e seus 1,80metros - malhado por seus dotes limitados como ator – atuando ao lado do “ um metro e meio” e consagrado ator Dustin Hoffman ? Ou o lutador musculoso e campeão mundial Anderson Silva de terno branco a ecoar sua voz fininha em um comercial de fast food? Constrangedor ou engraçado? Ambos? A verdade é que se fosse possível reduzir nossa escalada a uma reta esta estaria sempre em ascensão como a nos lembrar que a tal evolução humana é permanente embora também o seja sua complexidade. E a evolução, como já dizia Darwin, está sempre a modificar o que já existe, assim como a buscar uma regulação ou um equilíbrio que garanta nossa sobrevivência (biofísica, psíquica, moral). Sem dúvida um raciocínio demasiadamente simples para questionarmos o lugar (de suma importância) da responsabilidade moral e com ela temas complicados como a liberdade, a espontaneidade e a preocupação com o outro. O rir de si mesmo, por exemplo, quando é o resultado de uma percepção aguçada sobre si e o outro, sobre a falta de garantias e de certezas e a necessidade de cada um assumir por sua conta e risco as agruras do viver, provoca uma identificação (permite ao outro sentir-se um igual) ou seja, poder ficar a vontade com suas faltas, seus altos e baixos,temores, amores e dores. Claro que não podemos deixar de ter uma moralidade vigente a cada época que desfrute de um acordo coletivo. Mas não dá para calcular previamente quando podemos “transgredir” de forma positiva certas fronteiras. O que ontem era constrangedor hoje pode ser engraçado. E isso não deve ser visto como um passo atrás e sim como uma evolução e com ela novos desafios.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

De mãos dadas

Não conseguia pegar no sono. Aquele vazio insuportável lhe imobilizava a alma. Ninguém pode dormir se o “dia seguinte” não existe mais, não há nada agendado, nem as obrigações de praxe, nem algo novo ou prazeroso. Nada. O cérebro pensante e o coração pulsante estavam no modo “pausado”. Pausa necessária, pois não poderia suportar nem mais uma gota de dor. Estranha sensação esta de se estar entre a dormência de quem tenta impedir a angustia e um deixar-se apagar, morrer. Não, não queria morrer. Pensar sobre isso lhe devolvia um pouco a sanidade e com ela as lembranças. Sentira certo alívio quando Pedro morrera há um ano, depois de tantas internações, tanto sofrimento. Seus olhos pediam para ir, para descansar e ela chegara a se convencer de que não havia nada melhor a acontecer no momento. E se era inevitável que ele fosse, passou a imaginar sua vida sem ele (depois de quase 42 anos juntos). Tentava visualizar-se forte, viva e disposta a encarar esta perda como uma mera contingencia do viver. Até sua vida profissional poderia ser retomada assim como alguns velhos projetos. Tudo parecia fazer sentido. Mas não agora. Nem que quisesse poderia prever o rombo que a falta dele faria. Também não encontrava palavras para descrever seu estado, o que deixava todos a sua volta, bem aflitos. Sabia que alguns conseguiam falar sobre sua própria dor, construir frases que narravam este estado absurdo, mas eram poucos, bem poucos. Não por acaso o mundo reverenciava os poetas, sempre atentos às dores de perdas e paixões humanas, as quais descrevem inventando vocábulos, usando metáforas ou comparando-as com os enigmas do universo. Não saberia explicar porque seu casamento fora tão excepcional, para ela um mero encontro de duas almas que prezavam a vida a dois. Parece pouco? Sim e não. Como construir uma parceria tão longeva e rica sem compartilhar o valor das trocas, da cumplicidade e do carinho? Depois de tantos anos juntos, a vida a dois fica quase “vida a um”. Não porque estivessem sempre juntos ou tivessem as mesmas ideias e crenças sobre tudo (ao contrário), mas porque haviam se acostumado a falar um para o outro o que pensavam, desejavam, sofriam ou causava indignação. Evitava confessar que ainda falava com ele mesmo sabendo que não ouviria respostas, contestações, apoio. Era exatamente isso: uma parte dela havia ido embora para sempre. E se a principio ela considerou a hipótese de construir algo novo, agora esta coragem andava sumida. Não foram poucas as vezes em que ambos haviam antecipado a velhice. Brincavam de adivinhar se pareceriam com aquela senhora gordinha, ou aquele careca barrigudo, se seria possível  passear de mãos dadas (como era de costume) ou se cada um precisaria apoiar seu braço no outro para dar conta dos reumatismos e desconfortos musculares. Era preciso apagar esta cena, com certeza, para que o dia seguinte começasse a existir.

11desetembro.com

Todos temos lembranças de mortes ou historias de lutos importantes que trazem a marca de um rompimento com nossa reticencia em relação ao fato de que cedo ou tarde, um dia morreremos. Assim como o tema da sexualidade, ficamos desorientados quando precisamos explicar para uma criança o que significa a morte de alguém com quem ela já havia feito um vinculo amoroso. Tememos que, tal como nós, ela também venha a se sentir ameaçada por este  sentimento de se saber  a vida tão frágil, e por isso tentamos adiar seu contato com o real da morte, afim de não “perturbar” suas chances de construção de um mundo de sonhos e fantasias que delineiem um possível (e bom) futuro. Também é verdade que as lembranças ou vivencias em torno da morte de entes queridos são absolutamente pessoais. Buscando em minha memória estas lembranças posso reconhecer que as mortes importantes começaram a acontecer quando eu já era adolescente. Cavoucando a infância vivida em uma cidade do interior no seio de uma família católica, o dia de Finados era um feriado reverenciado pela população que acorria ao cemitério local. Mas longe de evocar cenas melancólicas ou pesadas, em minha memória essas manhãs eram ensolaradas e minha mãe se punha bonita e arrumada, buscava as flores previamente encomendadas em sua floricultura preferida e nos levava para ajuda-la na tarefa de enfeitar o túmulo onde seu pai e seu irmãozinho de 6 anos estavam enterrados. Havia satisfação na maneira como ela procurava uma harmonia estética para dispor as flores de modo a formar lindos arranjos nos inúmeros vasos ali existentes. Nas fotos, meu avô, seu pai, aparecia rindo simpaticamente. A de seu irmãozinho, mais amarelada, indicava um tempo bem mais remoto, quase mítico. As historias ali contadas sobre meu avô eram as melhores possíveis, alinhavadas por um contato amoroso e um reconhecimento de sua importância para a família. Não era raro ouvi-la lamentar (sem mágoas) o fato de termos sido privados da possibilidade de conhecê-lo e conviver com sua enorme “vitalidade”. A morte podia ser tema de um passado cujo resgate era quase indolor. Nesta ultima semana pudemos rever pela mídia as imagens de um 11 de setembro fatídico para o mundo todo, em que aviões se atiraram às duas torres mais imponentes do skylight nova-iorquino forçando seu desmoronamento e tirando a vida de um numero sem fim de pessoas. Imagens se fixaram nos rostos de desespero dos que assistiam impotentes, dos que  choravam copiosamente diante daquela tragédia absurda, dos familiares que se aproximavam perplexos e se punham angustiados de plantão a espera de noticias de seus entes queridos. Dez anos depois há inúmeras reportagens sobre estes mesmos familiares, cada um relatando sua historia, uma historia que a despeito de se passar pelo mesmo e terrível acontecimento, compõem os mais diferentes textos. Em sua obstinada missão de entender o funcionamento psíquico humano, em 1917, Freud escreveu um texto intitulado “Luto e melancolia” em que tentava mostrar como o luto seria uma tristeza reativa (e esperada) à perda de alguém querido (podendo ser também de um ideal ou algo importante), que afastava a pessoa de seu cotidiano normal e transformava temporariamente seu mundo em pobre e vazio. Mas também apontava como para outros, os mesmos fatos produziam melancolia (ou depressão), como se ao invés do seu entorno, o próprio sujeito passasse a se sentir incapaz de olhar o mundo e dota-lo de algum significado que pudesse conforta-lo. Sobre ele pesaria uma desesperança condenando-o a transitar nostalgicamente pelas cinzas do passado e impedindo-o de formular novos projetos. Longe de abordar a complexidade deste modo (penoso) de funcionar, não deixa de ser interessante ler estas historias e constatar como alguns podem encarar a contingencia do viver enquanto outros mergulham no espaço da melancolia.