segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Apocalipse já


As vésperas do final do mundo anunciado pelo calendário Maia, duas noticias diferentes podiam ser apreciadas na mesma página de uma mídia digital. De um lado, uma charge em que algumas pessoas do lado ocidental assistem e comentam as imagens ao vivo exibidas por uma TV sobre o final do mundo na Austrália e no Japão (que sempre acontece antes), de outro uma foto em que algumas pessoas sentadas em círculo aguardam a passagem do dia 21 de dezembro, data mística em que eles acreditam encerrar um circulo. Ou seja, embora a grande maioria da população mundial faça piada ou descarte o valor desta profecia, há sempre uma parcela que encampa a ideia de um apocalipse, um final dos tempos, uma passagem importante. Apesar do prognóstico moderno de um esvaecimento da religião, mantém-se a crença na existência de uma força superior, de forças sobrenaturais ou de sinais que confirmam um lugar para o “divino”. Por quê? Estaria a religiosidade a serviço de tornar tolerável o intolerável da condição humana? Ou de dar um sentido especial, menos “cru” para as nossas vidas? Não parece haver consenso neste quesito, ao contrário, o assunto é sempre polêmico mesmo entre os que pertencem à categoria dos “crentes” ou seguidores de algum conjunto de dogmas ou práticas. Não é difícil aceitar  que a ideia de “Deus” seja hoje bastante flexível, variando conforme as tradições de cada cultura, ou de cada sociedade. Se não há mais uma Grande Religião, que forneça um (quase) único conjunto de valores ou que regule de forma absoluta o permitido e o proibido mantemos no mundo atual um espaço de “religiosidade” ou de espiritualidade que, para alguns, pode prover um sentido para as suas vidas, para outros fornecer códigos que os ampare e permita um guia sobre temas complexos da vida humana como a sexualidade, o casamento, a morte, o mal e o bem, a pobreza, a miséria, etc. Há pouco tempo assisti a um filme que esteve em cartaz no Brasil, um projeto coletivo, chamado “Sete dias em Havana”, que se dividia em episódios para cada dia da semana cada um filmado por um diretor diferente. Em comum, apenas a visão de cada um deles para Havana, a capital da mítica ilha de Cuba. Mas porque fazer um filme sobre a Cuba atual, alquebrada, com problemas sócio-políticos e financeiros que mantém um líder acamado, que segue propagando a seu povo um ideal revolucionário empoeirado? Uma pergunta que se assemelha e muito a muitas que foram feitas por  todos que se surpreenderam com o barulho em torno da profecia dos maias. Com origens e sensibilidades diferentes nenhum dos diretores construiu alguma tese histórica ou politica sobre Cuba, mas prestou sua homenagem ao pequeno país, destacando temas de seu cotidiano e aspectos de seu povo e sua cultura. Estavam lá o  sonho de escapar para uma vida menos dura no exterior, os "jeitinhos", a boa música, a beleza e a sensualidade, o sincretismo religioso, a tristeza dos que convivem com o exilio de seus queridos, o “mito” encarnado mas já desgastado de Fidel. Parece que estamos fadados a criar espaços em que depositamos crenças importantes para cada época. E hoje também podemos conhecer um pouco mais sobre as crenças de cada um ou mesmo sobre a falta delas.

Afia-se olhares


O que o tráfico e a exploração sexual de mulheres no exterior, a morte da enfermeira que atendeu a princesa britânica Kate, o julgamento do Mensalão ou o documentários sobre bullying podem ter em comum, além de serem pautas de notícias recentes e despertarem polêmicas ou debates acirrados? Vejamos. Tema da nova novela da Globo, o tráfico e exploração sexual de mulheres no exterior volta ao centro da controvérsia entre os que defendem os direitos humanos e os que militam pelos direitos das prostitutas. Uma leitura cuidadosa dos argumentos de ambas as partes apenas revela suas complexas tramas. Ponto para a novela que provoca tais discussões trazendo à tona um debate de questões delicadas, que habitam as fronteiras do preconceito e dos tabus além de ser um tema sob o foco das políticas restritivas de imigração de países europeus. Dois apresentadores de um programa de rádio australiano telefonaram para o hospital em que a princesa Kate Middleton havia se internado e, com gravação ao vivo e imitando a voz da rainha, pediram para uma enfermeira que lhe dessem informações sobre o estado de saúde da duquesa. Vítima da “pegadinha” , que rapidamente se espalhou pela mídia, a enfermeira teria cometido suicídio dias depois. Afinal como podemos definir o humor, sua função no mundo atual e seus limites? Se para provocar risos o humor necessita buscar a contradição, a transgressão, o deslocamento de algo, sempre de forma inesperada, também é verdade que ele pode ser violento quando, por meio do risível, humilha, faz cruéis caricaturas ou envergonha radicalmente suas “vítimas”. Ou seja, um setor que também vive em fronteiras delicadas. Ainda em andamento, o julgamento do Mensalão continua a forjar dissidências e discursos inflamados, mas são poucas as vozes que apontam para o fato, inédito em nosso país, da decisão do Supremo Tribunal Federal de punir políticos que ocupam posições de poder estabelecidas. Nem governos de direita, nem de esquerda deveriam se considerar acima da lei e o Estado não poderia estar a serviço do sistema politico ou de grupos específicos; precisaria antes, ser um bem público que pertencesse aos cidadãos. Mas que espécie de “cidadãos” somos nós, brasileiros? Estaríamos dispostos, cada um, a reconhecer a universalidade das normas quando aplicadas a nós mesmos ou não abrimos mão das benesses do poder e dos favoritismos?  Bullying, o inquietante documentário do diretor norte-americano Lee Hirsch, escolhe cinco casos emblemáticos, em quatro Estados americanos, acompanhando-os ao longo de um ano, não só para investigar com mais acuidade a violência física e psicológica entre alunos, mas ampliar o debate sobre um tema que envolve pais, alunos, educadores e policiais. Segundo estatísticas, em 2011 treze milhões de crianças americanas teriam sofrido algum tipo de bullying, nas escolas, nos ônibus, em casa, ou através de celulares e internet. Claro que em maior ou menor grau, todos nós, em algum momento de nossas vidas, mas principalmente na infância ou adolescência, somos vítimas ou sofremos gozações e/ou constrangimentos por ações de grupos ou pessoas. Até mesmo um bullying silencioso, tramado por intrigas, difamações, em que se espalham comentários boca a boca, via internet ou redes sociais. Mas o que o documentário expõe é quando esta prática ultrapassa a fronteira do permitido, viola radicalmente as leis do convívio humano e instala a lei da selva. Ou seja, em cada uma das notícias aqui veiculadas esbarramos nas difíceis e permanentes fronteiras de todo processo civilizatório, quando fica a cada um e seus descendentes a tarefa de desenvolver uma sensibilidade ética. Uma tarefa para lá de delicada, que exige daquele que cuida ao menos um reconhecimento da existência do outro. Pano para muita manga e muita discussão.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Novos guias para velhas questões


No final da década de setenta, finda a minha graduação de Psicologia em Ribeirão, parti para São Paulo em busca de especializações na área de clínica. Vinha com meu fusca e nenhum casaco de lã na mala. Soluções para as temporadas de frio foram fáceis, mas dirigir em São Paulo se mostrava enlouquecedor. A lógica era outra, as ruas quase nunca seguiam uma reta, ou mantinham-se paralelas umas às outras, as avenidas não tinham retorno à vista e as distâncias para se chegar a algum lugar ficavam infinitas. Costumava colocar no colo um calhamaço de páginas que eu comprara chamado Guia de Ruas de São Paulo, mas ainda assim era difícil entender as rotas e alcançar os destinos de chegada, e o alívio era indescritível se isso acontecesse. Quando meu filho fez 18 anos e tirou sua carteira de motorista, a cada vez que ele precisava ir a algum lugar novo, construíamos um mapa caseiro com algumas indicações importantes para evitar que ele se perdesse em algum dos “logradouros” sem saída. Afim de que ele pudesse se situar na disposição dos bairros e ter minimamente uma direção de ida e volta, compramos um mapa da cidade que ficava aberto e pendurado como quadro em seu quarto, com algumas marcas dos lugares mais comuns pelos quais ele transitava. A ideia era que aos poucos ele pudesse se familiarizar com a paisagem urbana um tanto quanto “caótica” e se sentisse mais seguro para arriscar novos caminhos. Estas lembranças me vieram à tona ao ler, na Ilustríssima do último domingo, o depoimento do escritor gaúcho André Czarnobai que, desafiado a passar uma semana sem entrar ou usar a internet, narrou dia após dia os pormenores de sua abstinência. Pensei em como os usuários do Google sentem-se a “salvo” não só por suas dúvidas e inquietações, mas por seus desejos, já que há ali uma oferta rápida e eficiente de informações que antes precisavam ser checadas em instituições, dicionários, pais, autoridades, mapas, professores, médicos, advogados, etc. Ainda que uma grande parte de gerações anteriores não aderiu ao mundo digital e pouco se utiliza da internet, as “redes” que foram possíveis serem construídas, o acesso à comunicação com amigos ou às informações diversificadíssimas vão aos poucos constituindo um Grande Lugar de Amparo, inédito e surpreendente. Se é verdade como preconizam muitos, que a nossa era se caracteriza pela falência quase total de antigas referências que nos guiavam em nossos modos de viver o presente e projetar nossos futuros, parece que as novas gerações se encarregaram de buscar novas formas que deem conta deste desamparo. Vejamos. Caso alguém queira organizar suas finanças, mas não tenha ideia de regras ou funcionamento do mercado, fazer uma maquiagem, mas não confia muito na sua escolha de produtos ou de cores, preparar um jantar para amigos queridos com um cardápio inesquecível, conferir a grafia daquela palavra que há tempos não utiliza ou fazer consultas sobre o melhor custo benefício de qualquer produto que necessite, pode dispor de todas essas informações no clicar de teclas nas pontas de seus dedos. É pouco? É possível também agendar e pagar as contas, ler em qualquer tempo sobre algum tema que lhe seja caro, assistir a um programa de TV, um filme, um show, ouvir aquela música que tantas recordações lhe traz, buscar imagens/guias de cidades, países, obras de artistas significativos ou ainda conferir/reclamar sobre qualquer produto comprado. Enfim, não há fim para o sem- número de opções que se pode encontrar armazenados à disposição dos usuários da internet. A ideia atrás da proposta feita ao escritor gaúcho era definir se sua relação com a internet estaria já no campo do vício, tal e qual uma droga. Mas a “falta” da internet nos sete dias propostos permitiu a ele perceber que sua vida ficava sem este grande recurso facilitador. Seria possível viver sem ela? Claro que sim, mas não valia a pena. Faz muito tempo que meu filho não precisa mais dos mapinhas caseiros. E se isso confirma o lugar de conforto que a Internet oferece aos jovens é importante lembrar que em qualquer tempo ou lugar as novas invenções produzidas (por nós mesmos) para ampliar o número de ferramentas que facilitem ou promovam maior satisfação a nós ou às nossas vidas, jamais nos livrarão da responsabilidade que cada um deve ter sobre seu uso.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Quem quer ser milionário?


Há poucos dias assisti um debate informal (mas inflamado) deflagrado a partir de um tema polêmico surgido em uma roda de amigos. A aprovação pelo Legislativo, em agosto último, de cotas de 50% nas universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas, sendo priorizados estudantes negros, indígenas e/ou de baixa renda, provocava indignação em grande parte dos presentes, às vésperas dos exames vestibulares de filhos e netos. Embora eu tenda a simpatizar com iniciativas que busquem promover inclusão social, resolvi apurar os argumentos prós e contras que ali travavam uma disputa. Havia paixão, muita paixão nas defesas dos pontos de vista e era isso que mais chamava a atenção. Afinal, as cotas para estudantes de baixa renda, negros e índios para além de escancarar as enormes disparidades do nosso Brasil desigual, pareciam não demonstrar tantas diferenças de desempenho dos “cotistas” em relação aos outros estudantes, segundo algumas Universidades que já a implantaram. O que parecia prevalecer ali, em um dos polos, era uma grande resistência para pensar novas soluções para velhos problemas principalmente quando estas ameaçavam a destituição de um conforto aparentemente “adquirido”. De certa maneira há no Brasil um consenso (para o que têm e os que não têm) em torno de certas garantias de “bem estar” social para a elite. Do lado oposto, alguém se  lembrou que o escritor afro americano Teju Cole, um dos convidados da última FLIP, a feira de literatura internacional, estranhou não cruzar com visitantes negros em Paraty. Pus-me a pensar que em meu bairro (SP) não há negros fazendo compras nos supermercados, lojas, dirigindo carros nas ruas, comendo ou bebendo nos bares e restaurantes. Detalhe, eles compõem um pouco mais da metade de nossa população. Outros frisaram como alguns países europeus, que adotaram políticas de inclusão generalista para deficientes (incluindo idosos que utilizam cadeiras de rodas ou andadores) promoveram o aumento desta população na ocupação de espaços públicos, o que poderia surpreender a todos os brasileiros, caso isso começasse a acontecer por aqui. Não estamos acostumados a ver deficientes nas ruas porque não temos políticas que promovam seu acesso aos lugares ou transportes públicos. Estes defendiam que a lei das cotas poderia servir para facilitar o acesso das classes menos favorecidas ao ensino superior. Ponto. A questão é que este tipo de discussão não se esgota em um plebiscito que pede o sim ou o não. Ela é para lá de complexa. Se por um lado nos ufanamos de nossa diversidade étnica, resultado de uma confluência de origens diferentes- indígenas,  portugueses, escravos negros africanos, das ondas imigratórias de europeus, árabes e japoneses e mais recentemente asiáticos e sul-americanos - e muitas vezes somos lembrados por promover uma integração e uma miscigenação racial, tanto os negros quanto os indígenas brasileiros sempre ocuparam posições menos prestigiadas em nossa sociedade. Acostumamos a viver aceitando que sobre o grupo "negro", por exemplo, recaiam todos os tipos de estereótipos negativos. Há também certo “sossego” em relação a uma marca brasileira, o clientelismo, em que as relações pessoais ficam acima do poder público, a lei tende a ser aplicada apenas para os menos favorecidos, enquanto uma minoria privilegiada consegue burla-las. Minoria esta que é sempre branca, sendo o “branco” não apenas uma cor, mas uma qualidade social: aquele que sabe ler, que é mais educado e que ocupa uma posição social mais elevada. E se recentemente  começa a existir um movimento de contestação destes valores, seja por meio de políticas oficiais mas sobretudo via cultura ( literatura, cinema, música, redes sociais), as desigualdades e sua “violência” no dia-a-dia continuam ignoradas. O preconceito é velado talvez porque de foro íntimo, e se reflete nas escolhas que fazemos ou nas relações que estabelecemos. Mais que isso, tendemos a colocar esta discussão como se fosse algo que não nos implica, ou seja, se há uma agencia promovendo leis, cabe-nos ser contra ou a favor, sem que seja necessário refletirmos sobre o sofrimento que esta exclusão produz. Sofrimento (no geral) do qual ninguém escapa, e diante do qual todos gostaríamos de ser acolhidos.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Fissuras


Se há um paradoxo do qual a psicanálise se ocupa é o que imana do impacto do encontro entre o bebê e o adulto e tudo o que este encontro produz de enigmático. A cada nascimento de um ser humano, aquela que o gesta pode ou não antecipar sua existência ao imaginar e criar uma representação para aquele feto que ali vive, pode ou não aceitar que ele seja um outro e não uma continuação de si ou um intruso, pode ou não se relacionar com ele atribuindo-lhe um nome e depositando nele projeções e idealizações de sua própria historia ou desejos de felicidade, de heroísmo. Estamos falando deste encontro certamente imprevisível e quase sempre perturbador que é dar a vida a um novo ser, que produz uma mudança de lugar na cadeia geracional das mulheres (e de homens), e que mesmo que para o observador externo seja um processo que ocorra de forma asséptica e bem sucedida, esconde um desconhecido em outro registro. Ou seja, toda a criação de um outro humano envolve a violência do encontro com o “outro” e cabe ao novo-ser “traduzir” este impacto e seus desdobramentos, com a ajuda dos que o cercam, durante seu longo e infinito caminho de se tornar humano. Em cartaz no MAM (Museu de Arte Moderna de SP) de setembro a dezembro deste ano a exposição “Histórias às Margens” da artista carioca Adriana Varejão impressiona pela ousadia com que ela expõe “suas” vísceras através de suas obras. Ao cruzar o umbral e adentrar nas salas somos tomados de um sentimento de estranhamento e inquietação diante de enormes e belas telas de azulejos portugueses, por exemplo, que apresentam improváveis cortes para revelar partes do corpo humano, em geral vísceras extremamente realistas. E se este primeiro momento impactante puder dar lugar a uma curiosidade sobre um certo “percurso” da obra é como se a artista fizesse um convite a cada visitante para partilhar de sua intimidade, de uma historia pessoal. Ao contrário de outras artes que privilegiam a estética ou a invenção de novos modos de dizer o mesmo, tem-se a impressão de que esta é uma arte viva, um verdadeiro “trabalho” de obra, como se as telas fossem projeções de enigmas da artista, de corpo vivo e presente, em busca de significações e traduções possíveis sobre si e o mundo. Nesta exposição em especial, organizada de tal forma que pudesse criar um percurso em ordem cronológica, quase um “resumo” de sua obra, é possível perceber um deslocamento entre uma linguagem que apresenta um funcionamento primitivo (vísceras) em suas tonalidades e intensidades, que aos poucos, mesmo fragmentados, passa a apresentar partes do corpo humano, rostos da artista com pequenos “furos” nos olhos até a surpresa da sala final, com seus mais recentes trabalhos, grandes e lindos pratos de parede que expõem frutos do mar ou frutas, em tons marítimos verde e azul, um convite ao prazer. Uma leitura barroca, que admite as aberturas, as feridas, uma entre as infinitas possibilidades de construirmos nossas representações de nós mesmos e do mundo, que por sorte pode se deslocar e ampliar. Recomendo.                                                    

Para conferir: Adriana Varejão – Histórias às margens 
MAM  SP (Parque Ibirapuera) até 16/12     Entrada gratuita

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Os políticos e os homens


O processo eleitoral dos USA não tem passado e nem poderia passar despercebido, já que a orquestração de sua economia e os rumos de sua politica externa ecoa, para o bem e para o mal, pelo mundo afora. Não pude assistir aos debates entre os dois candidatos Obama e Romney, transmitidos ao vivo, mas acompanhei as noticias da disputa, das estatísticas, do impacto de declarações de um e de outro ou ainda de seus titubeios. E chamou-me a atenção um texto do escritor Chico Mattoso que reside em Chicago, publicado no ultimo domingo pela Folha de SP, em que ele descrevia o sentimento de cansaço da maioria dos americanos em torno da campanha de seus candidatos. Seriam muitos os que não esconderiam seu mau humor diante do espaço “quase infinito” que este período pré-eleitoral ocupou nas mídias, transformando o país em um samba de uma nota só. Como ilustração deste tédio generalizado, em clima de humor negro, até o furacão Sandy teria sido aclamado como novidadeiro, desviando o foco dos comentaristas de plantão. Mas porque um processo eleitoral que pretende atrair os eleitores para a discussão e o debate provocaria tal desinteresse? Em que paragens andariam a beleza cívica do pleito, a festa da democracia, perguntava-se o escritor. Surpreendi-me com esta leitura que me parecia familiar, muito próxima ao que se assistiu com as campanhas politicas dos candidatos a prefeitos nas recentes eleições de outubro no Brasil. As acusações e denúncias de um lado a outro ao invés de espaços para o debate de ideias, as estatísticas a favor de ventos inesperados e o povo apostando de maneira geral no “novo confiável” que pudesse “calar” as encenações que, longe de fazer algum apelo aos eleitores, causavam irritação. E não foram poucos os que se sentiram aliviados ao término dos horários eleitorais gratuitos e dos espaços de propaganda política na mídia. Às vésperas das eleições americanas, o jornalista da Folha de SP Sergio Dávila (que já foi correspondente nos USA) analisava o resultado da campanha eleitoral que, apesar de se configurar em um empate, poderia favorecer Barack Obama neste 6 de novembro. Por quê? Dentre outras causas, ele apontava que Obama representaria o “mal conhecido”, ou seja, que o fato de ele ser "socialista", "muçulmano", e negro já teria sido assimilado pela maior parte da população depois de quatro anos de governo, enquanto o "polígamo", mórmon e "liberal enrustido" Mitt Romney poderia representar uma surpresa desagradável. Em São Paulo, as eleições foram ganhas por um candidato que pertence ao PT, o partido mais malhado nas mídias nos últimos tempos, ao mesmo tempo em que seus antes respeitados dinossauros eram condenados no julgamento do Mensalão. As pesquisas pós-eleições informaram que esta escolha teria sido baseada principalmente no desejo de mudança e no fato do candidato ser novo na política. Mas também no índice elevado de rejeição de seu rival tucano, que teria se descaracterizado como político confiável nas gestões anteriores. Aqui e lá, em ambas as eleições, o que parece prevalecer para o eleitorado é que existe sim um “homem” atrás do político e de seu partido e resta saber se há chances de se confiar nele, ou ao menos confiar mais do que em seu opositor. Ou seja, na tentativa de se evitar embarcar ingenuamente nos discursos prometeicos, estaria aberta a caça de algum novo índice de confiança fora do circuito do romantismo militante ou da lógica de um partido político? Estaríamos enquanto mundo global, mais sabidos a respeito de nossas mazelas humanas e mais aptos ou ousados para apostar em novas maneiras de nos organizarmos, avaliarmos e escolher nossos dirigentes?

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Com-paixão


Confesso não saber muito sobre Lady Gaga, além do fato de sua persistência (e perspicácia) em manter os espaços midiáticos atentos as suas (em geral bizarras) surpresas. Mas, ainda sob o impacto da morte da cantora londrina Amy Winehouse no ano passado - com quem era frequentemente comparada – a nova-iorquina Lady Gaga fez um pedido comovente ao público e aos fãs para que cuidassem de suas pop (e super) stars, lembrando que Amy tinha aberto as portas para garotas como ela, que não se encaixavam no mundo pop tradicional, ajudando-a, por exemplo, a se aceitar como diferente e especial. Achei simpática e sensível sua chamada. Recentemente uma outra reportagem incluía a cantora, que em resposta às maldosas críticas de que estaria engordando teria lançado a campanha "Body Revolution 2013" (Revolução do Corpo) ao mesmo tempo em que fazia uma revelação bombástica, a de que desde os seus 15 anos, teria sofrido de transtornos alimentares como anorexia e bulimia. Muito a vontade em seus apelos midiáticos, postou uma foto sua de biquíni, olhos fechados, sem nenhuma outra “montagem” na imagem, como a incentivar seus fãs a enviarem suas fotos naturais, principalmente àqueles que estivessem passando por situações similares ou que já tivessem superado traumas e dificuldades. A ordem seria aceitar seus corpos do jeito que fossem: magros ou gordos. A Folha de São Paulo há poucas semanas, mostrava como sua campanha teria repercutido de forma favorável em alguns setores médicos, ao revelar que o psiquiatra Takí Cordás – responsável pelo Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas de SP- teria louvado sua iniciativa admitindo que ela pudesse ajudar os 4% da população mundial de adolescentes que seriam vítimas destes transtornos, incitando-os a buscarem ajuda especializada. Com sua primeira vinda ao Brasil marcada para o dia 9 de novembro no Rio de Janeiro e em São Paulo no dia 11, em um flash mob, muitos de seus fãs brasileiros compareceram à Avenida Paulista na tarde deste ultimo sábado levantando as principais bandeiras políticas da estrela. Questionados, a maioria se dizia feliz por saber que apesar de se reunirem tendo em comum um sentimento de exclusão, desfrutavam do fato de possuir não uma madrinha qualquer, mas uma pop star do quilate de Lady Gaga, cotada entre as mulheres mais poderosas da atualidade, e que ainda assim, encabeça esta causa e convida a todos a celebrar as diferenças, que segundo ela seriam importantes na conquista da liberdade, da criatividade e da felicidade. Lady Gaga não passa desapercebida e isso parece ser o lema de sua vida artística, que caminha lado a lado com jogadas midiáticas, fruto de um marketing permanente e atento. Mas não há dúvidas de que suas escolhas agradam uma grande parte dos jovens (muitos fãs devotos), que se sentem acolhidos e amparados por um discurso que lhes faz sentido. Afinal a adolescência costuma mesmo ser uma época de nossas vidas em que nos sentimos extremamente vulneráveis, em que nossa imagem corporal é totalmente refém de nossa  incipiente ou inexistente autoestima, em que quase nunca conseguimos falar em nome de nosso “euzinho”, sempre a se sentir inadequado, fora dos padrões que imaginamos existir para outros adolescentes. As distorções da imagem corporal, comuns nos casos de anorexia e bulimia, ajudam a revelar a complexidade deste período em que temos que transpor as fronteiras entre nossa dependência e autonomia e encontrar nossos próprios ideais, ainda tão colados ao que nossos pais esperam de nós. Segundo palavras de uma fã, Joanne Angeline Germanotta ou Lady Gaga, apesar de não ser uma unanimidade no mundo musical, e alimentar continuamente os paparazzi que ficam a espera dos próximos capítulos de sua vida, tem optado de forma corajosa por agregar valor social em sua carreira, acendendo as tochas para que jovens do mundo todo apostem em seu amor próprio. Porque discordar de madame?

 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Deixem vir os pequeninos


Imagino que todos saibam ou imaginam o que significa a maratona de exames anuais – muitas vezes semestrais - que temos que nos submeter para checar nossa saúde quando nos aproximamos ou já mergulhamos na “melhor idade”. Foi numa dessas manhãs que assisti pela primeira vez ao novo programa matinal da apresentadora global Fátima Bernardes. Próximo ao dia 12 de outubro, que antes de se tornar feriado nacional em homenagem a Nossa Senhora da Aparecida era mais conhecido como o dia da criança, o programa celebrava a infância. Para meu deleite lá estavam a dupla de compositores Sandra Peres e Paulo Tatit, do “Palavra Cantada”, que há algumas décadas se debruçam sobre o cancioneiro infantil nacional recuperando canções e compondo novas. Para abrir seu programa, Fátima incitava seus convidados a cavoucar a memória atrás das canções de sua infância e dentre estas (para os que já fossem pais) quais teriam sido reproduzidas com seus filhos. Na toada destas lembranças algumas jovens mães aproveitaram para questionar o conteúdo de certas canções infantis tradicionais que ao invés de palavras de acalanto continham letras assustadoras, caso do boi da cara preta, da cuca que vem pegar, do pau que foi atirado no gato ou do cravo que brigou com a rosa deixando-a despedaçada. Qual seria o sentido delas? Por quais razões o ato de ninar bebês ou de entretê-los viria acompanhado de palavras que descreveriam ações tão assustadoras? Senti não ter acompanhado o debate que se seguiu, mas me lembrei de imediato dos contos infantis povoados de bruxas, lobo-maus e monstros. Quem tem filhos ou netos sabe o quanto as historias infantis são instrumentos para o conhecimento do mundo tanto por enunciar os problemas como por propor soluções. Elas em geral não funcionam como exemplos, mas como modos de facilitar o acesso da criança à complexidade das relações e dos afetos dando pistas para possíveis ações. Não por acaso fadas e bruxas com suas tramas cruéis ou pacificadoras continuam a fazer sucesso. Um dos motivos é porque revelam as dificuldades das relações familiares, em que filhos podem odiar aqueles que mais amam e pais podem “devorar” suas crias. Além disso, as historias  admitem a existência de sentimentos desagradáveis, mas inevitáveis como a raiva, a inveja ou os ciúmes que, sempre mal vistos e condenados por atrapalharem as relações sociais, podem ameaçar as crianças que se sentem inseguras com o amor de seus pais, que tem medo de serem abandonadas, que se sentem culpadas por disputarem um lugar especial e rivalizar com algum irmão ou em desejar ocupar o lugar da mãe com o pai ou vice versa. Ao contrário do que se imagina, portanto, as “boas” historias são as que permitem que as fantasias, os temores, os desejos proibidos sejam vividos de forma simbólica e isso acontece sempre que as crianças elegem alguma historia em especial que precisa ser contada por um bom tempo ou quando há pedidos de que sejam transformadas/ recriadas de acordo com suas necessidades, para dar conta de seus conflitos, angustias e frustrações ou dar forma a sentimentos confusos. Se a infância jamais alcançou tamanho foco na historia da humanidade é porque mais do que nunca há um consenso de que neste período as vivências são formadoras e constituintes. Isto convoca a todos que pretendem exercer a paternidade ou a maternidade, escancarando suas incertezas e inseguranças. Algumas canções antigas como as que invocam o boi da cara preta ou a cuca provavelmente cantam o desamparo  dos pais diante da “infância” que seus filhos evocam neles.

domingo, 21 de outubro de 2012

Canções de amor

Tenho a impressão de que assim como eu, algumas pessoas podem experimentar a sensação de estar diante de alguma sacada genial, algo de uma grandeza que os excede ou que “faça” muito sentido quando se deparam com determinada imagem, certo trecho de música ou frases de alguma poesia/livro. A dupla Chico Buarque e Edu Lobo, por exemplo, mestres na combinação de melodias e letras que enchem a alma, compuseram uma canção (Choro Bandido), cujos derradeiros versos parecem encerrar uma espécie de metáfora daquilo que nós humanos convencionamos chamar de “amor”. Ao cantarem que “mesmo que os romances sejam falsos como o nosso, são bonitas, não importa, são bonitas as canções; mesmo sendo errados os amantes seus amores serão bons”, os dois compositores nos lembram como a literatura, a música e o cinema conseguem se manter responsáveis por este espaço (idealizado?) de apostas nos amores. Estamos, de fato, quase sempre prontos a reverenciar as historias de amor sejam elas trágicas, loucas ou felizes. E as razões não são tão obvias. Por quê? Uma jovem amiga contava dia destes que poderia “matar” seu namorado depois que este, em uma viagem de férias, havia postado em uma rede social uma foto em que estaria acompanhado de uma linda moça. Enlouquecida, ligou para todas as amigas e imediatamente acionou seu eficiente serviço de “pronto socorro dos feridos pela flechinha de Eros” em que cada uma deveria dar seu pitaco sobre ocorrido. Durante algumas semanas entrou em “alfa” e dominada por sua ira não só proclamava aos quatro cantos os atos de tortura e vingança que seriam aplicados contra o agora “ex”, como anunciava sem culpa ou remorso suas insuportáveis manias e defeitos. Corta-lo de toda ou qualquer rede social tinha sido sua primeira ação. Ahhhh! Como ele tinha tido coragem de fazer esta desfeita a ela? E ela, como tinha sido capaz de acreditar em seu amor? Aquele verme? De dupla amorosa invejada eles passavam à lista dos “falsos ou falidos amores”. Podemos tentar colocar as lentes mais próximas, analisar os detalhes desta história, achar seus caminhos, descaminhos , razões, desrazões. Minha amiguinha andava feliz com esta nova relação. Farta de investir em alguns namorados, no passado, que cedo ou tarde a traíam e resolvida a não se ligar a mais ninguém, tinha feito uma espécie de contrato “diferente” com aquele menino. Havia sim sucumbido ao fato dele não se descolar dela nem por um segundo, sempre a reivindicar um olhar, um sorriso, a elogiar sua beleza, a proclamar seu amor, a declamar poesias ou a inventar letras no violão que cantassem sobre o lugar especial que ele lhe dedicava. Reuniu as amigas e anunciou: elas seriam testemunhas de que ali não havia namoro sério. Eles iriam se curtir enquanto fosse bom e cada um deveria administrar sua liberdade por conta e risco. Mas ela foi gostando, se acostumando a ser rainha e a viver junto a alguém sempre disposto a adivinhar seus desejos ou antecipar suas vontades. As amigas eram convidadas de vez em quando para provarem as novas receitas que ele inventava sempre inspiradas nela. Quem poderia resistir? Mas ainda sob o impacto dos tremores do passado, durona, ela insistia que esta fórmula do compromisso “descompromissado” lhe traria menos expectativas e por decorrência menos sofrimento. Quando as férias dele - já planejadas - chegaram, juntos relembraram os votos iniciais de liberdade. Nas primeiras semanas aproveitando-se do tempo que lhe sobrava, marcou cafés e jantares para conversas, trocas e risadas com as melhores amigas que lhe rendeu um doce sabor deste descompromisso. Apesar disso ele lhe telefonava com frequência tanto para lhe dar noticias quanto para reiterar sua saudade. Foi atropelada pela foto. Implacáveis, dor e sofrimento inundaram sua alma antes de cada célula de seu corpo ser tomada pela raiva. Ele havia atravessado aquela fronteira proibida. Depois de algumas (ou muitas?) semanas, o ódio cedia espaço para a tristeza e ela repetia a si mesma que se iludira com a possibilidade de viver desafetadamente aquela relação. O “amor” nem pedira licença para se deitar no sofá de sua alma. Invadira. Restava-lhe um gosto amargo das antigas certezas e uma história. Uma história que era também tão bonita, que poderia até recomeçar. Mas aí seria outra história.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Voto com paixão


O sociólogo argentino Horácio González que fez seu doutorado no Brasil nos anos 80 e agora dirige a Biblioteca Nacional da Argentina se perguntava em entrevista concedida a Ilustríssima no ultimo domingo porque um presidente como Getúlio Vargas, do qual se guarda até o pijama com o buraco da bala que o matou, não se tornou no Brasil um ícone popular da dimensão de Perón. Seriam os brasileiros menos apaixonados por política do que os argentinos? Segundo ele os argentinos teriam uma relação muito singular com as figuras de seu passado como Perón, Evita, Borges ou Gardel, transformados em mitos e, portanto sempre vivos e presentes. Sem conseguir formalizar um parecer definitivo sobre as diferenças entre as duas culturas ponderou se a falta desta tradição aqui poderia ser favorável a uma “felicidade” maior dos brasileiros, mas como um bom argentino sucumbiu à importância dos polêmicos e constantes debates produzidos entre seus conterrâneos que respiram e participam com suas entranhas da sua historia. Talvez o panorama que se delineou no período pré-eleições para prefeito e vereadores da maior e mais rica cidade do Brasil possa nos ajudar a pensar sobre este modo mais “cool” de se comprometer com os rumos da politica do país, dos estados ou das cidades. No dia seguinte às vitórias de Serra e Haddad como candidatos a disputar o segundo turno destas eleições era possível ler vários textos - alguns surpresos, outros orgulhosos, muitos tateando as causas da virada em torno da candidatura Russomano, antes líder das pesquisas. O que teria acontecido? O colunista da Folha de São Paulo Xico Sá chamava a atenção para o facevoto. Segundo ele nas ultimas semanas as pessoas teriam aberto escancaradamente seu voto no Facebook, postado suas convicções, discutido os prós e contras uns e outros, compartilhado informações sobre a idoneidade de alguns candidatos, as jogadas politicas, as ligações partidárias, as parcerias duvidosas. Mas ao contrário do colunista, arrisco colocar o peso menos na rede social – embora ela tenha sido um veiculo veloz não só de trocas, mas de compartilhamentos e, portanto de uma abrangência inédita – e mais no fato mesmo de que estes “brasileiros”, tal como nossos hermanos, teriam exposto suas preferencias politicas de forma apaixonada, acendendo as luzes antes apagadas pelo sentimento generalizado de descrença. Assim, a coragem de uns cutucava a reticencia de outros. Lembrei-me de um debate entre empresários sobre certas características especiais dos gestores brasileiros. Ao contrário de outras culturas, nossos executivos teriam muito jogo de cintura para improvisar situações que evitassem constrangimentos ou mal-estares e pareceriam mais a vontade na manutenção a qualquer custo do clima de cordialidade e tolerância. Tudo se passa como se ao excluir os conflitos, ao não se falar sobre as discordâncias ou não se reclamar os direitos se instalaria um espaço menos agressivo e mais tranquilo. Comportamentos reivindicativos ou falas mais indignadas seriam comumente avaliados como ataques pessoais desnecessários. Nosso estilo “cool” guardaria, portanto em sua origem, uma tentativa de evitar a discórdia, o debate e as discussões tão ao estilo “caliente” de nossos vizinhos. Mas ao preço de perdemos o engajamento e a responsabilidade que todos precisam ter de concordar ou discordar dos valores, de muda-los se for o caso, de se perguntar sobre qual tipo de sociedade deseja viver ou como acha que devam ser as empresas ou os políticos.

 

domingo, 30 de setembro de 2012

O que será que será?


Para quem não conhece, os filmes do diretor canadense David Cronenberg, embora cultuados, dirigem-se àquela parcela que curte e está sempre ligada à sétima arte e seus artistas (autores) singulares, já que em geral são bizarros e violentos principalmente por privilegiar os aspectos mais “animalescos” da espécie humana. Mas não era esta temática que ele anunciava no ultimo festival de Cannes (maio/2012), quando apareceu para a mídia ao lado do super-queridinho, o “bom e sedutor” vampiro Robert Pattinson da saga Crepúsculo, para falar de seu novo filme “Cosmópolis” cuja estreia no Brasil aconteceu no inicio deste mês. Ainda que considerado difícil e pesado pela crítica em geral, a estória pretende ser uma sátira-filosófica da crise geral de nossos tempos. No papel de um jovem e bem sucedido investidor da era digital, assiste-se ao personagem de RP passar um dia dentro de sua arrojadíssima limusine equipada para ser seu escritório, tentando chegar ao destino desejado, um barbeiro de infância com o qual quer cortar seu cabelo. É neste trajeto que ele irá rever o sentido de sua vida ao ser confrontado com situações inesperadas. Durante este percurso, cada personagem dos muitos que entram e saem de seu “office-car” estará representando e questionando uma fração significativa do modo de viver contemporâneo. Embora o diretor tenha dito em várias entrevistas que seu filme é sobre a esperança e que para se falar de esperança é necessário criticar duramente os modelos falidos criados por nós, os personagens, o diálogo, a intensidade, o humor acabam por produzir um certo mal estar, um tom excessivo. Na semana passada, em sua coluna semanal da Folha de SP, Vladimir Safatle parecia surpreso diante da resposta de sua filha de 12 anos a uma pergunta sua sobre como ela supunha ser o mundo em 2030. Imaginando que uma criança pudesse ter uma visão de um mundo que poderia ser moldado segundo seu desejo, a filha, ao contrário, apontava um futuro em que as cidades precisariam controlar as pessoas, as pessoas seriam obesas e os celulares funcionariam com hologramas, um espectro nem tão positivo. De certa maneira Safatle conclui como Cronenberg, que em momentos como estes, em que parece que vivemos uma grande crise, um certo caos e a falta de futuros à vista a anunciar o fim de uma era da sociedade como a conhecemos, há mais a criticar do que a sonhar. Por isso é mais cauteloso com a esperança, ao concluir que em um primeiro momento ela é recusada (como sua filha mostrou) para então retornar quando certas portas e saídas se abrem. Nesta semana entrou em São Paulo Tropicália, um documentário que apresenta um recorte da arte e da cultura do Brasil entre os anos 1967 e 1972, quando Caetano e Gil retornam de seu exilio em Londres. A década de 60 é lembrada pela historia ocidental como aquela em que os jovens de vários países quebraram inúmeros tabus e reivindicaram a liberdade de pensar, de agir, de amar, de cantar e de mudar muitas das falidas convenções. Embora o Brasil neste período tenha sido assolado pela censura cada vez mais dura da ditadura militar, o movimento tropicalista foi um aglutinador da cultura da época ao criar um tempero que incluía da música dos Beatles aos Mutantes e à Jovem Guarda, da banda de Pífaros de Caruaru aos sons afrobaianos, da bossa nova ao samba, do teatro de Zé Celso Martinez  ao cinema novo de Glauber, além da arte inovadora de Oiticica. Era um Brasil que buscava alguma identidade, uma cara nova. No final do documentário, as imagens da festa que recepcionava os baianos recém-chegados do exilio também aparecem sendo assistida pelos dois setentões, Gil e Caetano, emocionados, olhos marejados, como a conferir no pós- tempo, os resultados das intuições vividas na época sem que eles o soubessem. Demasiadamente humanos, os artistas (e os jovens) de todas as épocas costumam antecipar caminhos que eles mesmos desconhecem, ainda. Talvez porque o espírito da época não nos pertença, nós é que pertencemos a ele.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Mundo em (R)evolução?


Estávamos em um grupo que conversava sobre o evento, minutos antes que o palestrante entrasse para a sua conferencia. Físico bastante conhecido por divulgar suas ideias na mídia, perguntei-lhe porque alguns de seus colegas deixavam a profissão e tornavam-se uma espécie de pensadores a questionar o mundo e seus rumos. Com um sorriso irônico comentou que, ao longo de suas carreiras muitos físicos transformavam-se em filósofos medíocres. Não era o seu caso, pensei. E de certa maneira sua palestra respondia minha questão. Para encerrar o FDC Experience, um evento que pretendia mesclar arte, história e cultura e discutir as inter-relações entre gestão e brasilidade com o intuito de refletir sobre modelos futuros de gestão, ele havia escolhido falar sobre a importância da consciência de nossa insignificância. Apresentando-nos o universo espacial com suas milhares de galáxias e a nossa (Via Láctea) a qual pertence a Terra, o Sol e a Lua - tão reverenciados pelos inúmeros mitos de nossas origens- fomos sendo submetidos a esta nua e crua realidade. Graças ao acaso circunstancial da localização precisa entre o planeta Terra e sua “boa” estrela, o Sol, teria sido possível haver vida (e continuar havendo), ao podermos desfrutar de luz, de agua, de ar (oxigênio). O universo galáctico teria suas próprias leis de funcionamento, incontáveis estrelas que nascem vivem e morrem, muitas galáxias em formato de espiral cujo “ralo” seria um buraco negro “aspirador” e a ciência – leia-se todo o conhecimento produzido por nós, humanos  -  não desistiria de vasculhar sinais de vida inteligente (ainda não encontrados) ou indícios do tempo de vida restante de nosso planeta que depende de seu sol. No cálculo aproximado da formação deste imenso universo, a vida seria recente, mas decididamente não somos e nunca fomos o centro do universo. E se na foto de uma galáxia mal delineamos os pontinhos que comprovam a existência das estrelas e dos planetas, fica claro que não estamos nela. Não. O propósito estava longe de ser apocalíptico. Era sim um convite a reflexão, ao papel – a responsabilidade - que cada um teria sobre sua vida e a dos outros do planeta. Um convite a repensar os rumos de um mundo que nos pertence. Para uma plateia composta principalmente por gestores e empreendedores cujo futuro precisa estar planejado e os resultados necessitam acontecer em curto prazo, nada mais angustiante, ainda mais quando imersos em um sistema que premia a competividade, modelo pouco produtivo para um trabalho conjunto. E se a nossa foto de consumidores - comendo, bebendo, comprando, acumulando e trocando - já começa a apresentar sinais de um amarelo envelhecido, o futuro anuncia a importância do “ser humano”. Um ser humano que urge tomar para si as rédeas de sua vida sem se esquecer de que há outros ao seu redor. Que precisa inventar uma vida que não gire somente em volta de si ou da família, mas inclua a comunidade, o coletivo. Palavras fortes, comoventes até, mas distantes desta realidade e difíceis de serem administradas, pois portam o desafio da convivência com a diferença - racial, étnica, religiosa ou econômica – e impõem pensar um modo pelo qual pessoas diferentes umas das outras se relacionariam nas cidades e nas empresas, garantindo sua qualidade de vida em um modelo de cooperação. Otimista demais? Como lidar com o fato de se precisar de pessoas com as quais não se está conectado intimamente, as quais não se conhece bem ou não se goste? Quais as chances de nos tornarmos um “ser humano” mais preparado para esta vida adulta e complexa em que a confiança, algo intangível seria o combustível da vez? Questões que não só os físicos e os gestores se ocupam hoje, mas que parecem convocar todas as disciplinas a ultrapassarem suas fronteiras para pensarem o futuro deste “ser humano”.

 

 

 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Acreditar em que(m)?


Próximos a mais uma eleição para prefeitos e vereadores, propagandas eleitorais correndo soltas, parece que paira uma certa apatia generalizada na população. É possível que a falta de confiança nos candidatos (sejam eles de que partido forem), imprescindível para que haja possibilidade de esperança de mudanças, esteja ligada a constatação geral de que nossos políticos reduziram drasticamente seu compromisso com algum futuro das cidades, ou do país e passam seus dias atrás de acordos e conchavos que garantam as benesses de suas carreiras, as vantagens pessoais e as ligações importantes com o poder e o dinheiro. É desolador imaginar que a maioria dos discursos é vazio, meras propagandas enganosas, sem qualquer comprometimento real com o futuro. E quando a suspeita de se estar sendo enganado ou ludibriado se mantém por um longo tempo não só os candidatos perdem, mas o sistema como um todo. Um funcionamento corrupto mina a confiança nas instituições e no Estado, cria um clima de desconfiança e descrença, dissemina insegurança e sentimento de impotência. A pergunta intrigante fica por conta de um certo “deixa estar” característico de um modo “brasileiro” de ser e viver. No ultimo domingo, 9 de setembro, o caderno Aliás do Estadão trazia uma reportagem sobre a Comissão da Verdade recém nomeada para investigar os “porões” da ditadura militar, ocasião em que muitos desapareceram deixando suas famílias a deriva, sem noticias sobre suas mortes, seus corpos. O texto cobrava uma maior abertura de suas reuniões, com ampla divulgação dos depoimentos dos familiares de desaparecidos políticos, muitos feitos pela terceira geração, com sobrinhos ou netos. Como a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça ou punir, não haveria sentido não expor à sociedade as atrocidades cometidas no passado recente do país. Afinal porque não investir na verdade como ferramenta de conscientização, como elaboração da nossa história, como construção de nossa memória histórica? A pergunta aflita do autor escondia seu temor de que tudo não passasse de mais um protocolo, sem chances de produzir algum debate publico ou algum impacto social sobre tal passado vexatório. Seu comentário não passou batido porque, recém-chegada de Berlim, pude constatar como, ao contrário de tanto sigilo, a Alemanha se decidiu por uma espécie de aprendizado moral e cultural que surpreende a todos que a visitam, ao manter um museu a céu aberto, em que todos, turistas e moradores respiram história, uma história em grande parte vergonhosa, da qual ninguém se orgulharia. Só para lembrar, em 1945 ainda não havia na era moderna um país que caíra mais fundo do que a Alemanha: sua soberania foi extinta, sua infraestrutura esmagada, sua economia paralisada, suas cidades reduzidas a entulho, a maioria da população estava faminta e desabrigada, havia sobreviventes em campos de prisioneiros de guerra e todo o país estava ocupado por exércitos estrangeiros. Nos anos seguintes os alemães queriam esquecer, deixar para trás o racismo, o imperialismo, o ódio, a artificialidade da superioridade pregada pela ideologia nazista. Aquilo nunca mais deveria se repetir. Ao final da Segunda Guerra Mundial (1945) com o país dividido em quatro zonas comandadas por soviéticos, franceses, britânicos e norte-americanos, vencedores da guerra, o intuito era apagar as marcas do nazismo e empreender um processo de reconstrução. Mas a União Soviética na pessoa de seu líder Stalin se recusou a participar do programa de recuperação, temendo por em risco a hegemonia de Moscou no leste europeu. Assim, com acordos diplomáticos, em 1949 a Alemanha racha em duas: República Federal da Alemanha e  República Democrática Alemã. Em 1961, decididos a conter o fluxo de refugiados, os comunistas erguem o Muro de Berlim, separando amigos, famílias e uma nação até 1989. Hoje, a 22 anos da reunificação, Berlim é uma cidade que não teme seu passado e parece estar sempre aberta ao futuro, ao fluxo de pessoas e culturas. Sua população tem em que(m) acreditar. 

Um certo (e modesto) olhar


Documenta de Kassel? Já tinha ouvido falar sobre esta exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos na Alemanha e me empolguei com a ideia ir até lá conferir sua fama. Depois de uma semana de mergulho na cultura berlinense nada parecia mais apropriado, inclusive pela oportunidade de viajar pelos moderníssimos trens alemães. Cidade de uns 200 mil habitantes, Kassel recebe a todos que chegam a sua estação para a Documenta com um tapete vermelho. Um jeito simpático e de certa maneira despojado de anunciar a importância deste período de cem dias em que a cidade é sede desta respeitada mostra. Também um jeito de avisar os desavisados (meu caso) que se está diante de um evento muito maior do que se imagina. Em sua 13ª edição, a primeira foi idealizada em 1955 por Arnold Bode, professor de arte e design que, diante de uma Alemanha pós-guerra devastada (também) culturalmente pela ditadura nazista, pretendia abrir um amplo debate sobre as artes, preservar as tendências e reposicionar a Alemanha no circuito internacional cultural. Quando se é um visitante do país na atualidade, não é difícil se deparar com este espírito de reconstrução não só geográfica, política ou cultural, mas moral. Há um grande empenho não mais em romper com a herança sombria do passado, mas em repara-la continuamente. O primeiro olhar de quem desce na estação central da cidade fica capturado pelo “colorido” formado pelas pessoas. São muitos os que fazem parte do mundo das artes e se organizam para estar em algum momento na cidade. E quando se tem apenas dois dias um planejamento dos espaços e artistas a serem visitados é mais do que necessário. De cara somos imersos em um mundo habitado por pessoas que pensam a arte atual como uma forma de surpreender, de trazer novos sentidos ao que já se conhece. De apresentar nosso mundo arte-cultural como um enorme espaço sem fronteiras, mesmo quando são apresentadas suas diferenças e marcas. Uma arte engajada, que quer pensar o futuro da vida humana por meio de todos os debates possíveis, em relação à natureza, as novas formas de política, a sustentabilidade ou ainda nas formas de sobrevivências econômicas, éticas e emocionais. Arte em movimento, sempre a absorver os novos conhecimentos, a se renovar. Para a curadora desta edição, a escritora ítalo-americana Carolyn Christov-Bakargiev, uma arte que não é feita apenas por artistas, mas que inclui historiadores, filósofos, físicos, ativistas ambientais, todos convidados a refletir sobre as incertezas e os riscos que nos rondam, sobre a situação do mundo atual. Por isso seu time foi composto por gestores provenientes das áreas de artes, filosofia, biologia, física, antropologia, política, arquitetura e economia, e as obras de 150 artistas de 55 países, escolhidas sem que o critério fosse necessariamente fazer parte das estrelas do cenário contemporâneo. Utilizando, além dos museus e o parque, um grande e eclético numero de espaços espalhados pela cidade para as obras - a nova e a velha estação de trem, hotéis, bunker, campo de concentração, um hospital desativado - o panorama geral estava mais para o sensível e significativo do que para o espetacular e majestoso. Talvez o exemplo mais interessante desta caracterização seja os dois trabalhos da dupla canadense Janet Cardiff  e George Miller. Em um deles, talvez o mais genial, cada visitante deveria seguir o monitor de um Ipod em uma visita guiada pela voz da artista na movimentada estação de trem, percorrendo o mesmo percurso que ela fez no dia da gravação do vídeo, surpreendendo-se com as intervenções de bandas, bailarinas, vozes, sons de pelotões nazistas, silêncios ou ainda interrupções artificiais. É inevitável que o passado e o presente, o real e o virtual se entrelacem. A mesma dupla assina outro emocionante “sound art”, com caixas instaladas entre as árvores do Karlsaue Park ( o majestoso parque da cidade) que recriam os bombardeios da segunda guerra mundial, o transporte de judeus aos campos de concentração e termina com vozes maravilhosas de um coral. Belíssimo!

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Feridas expostas


Por ocasião das ultimas Olimpíadas de Londres várias reportagens de diferentes jornais aproveitaram o tema para publicarem textos que ressaltavam fatos da longa história deste evento, muitos sobre as tensões advindas das dificuldades da convivência inevitável com a diversidade dos povos e suas culturas. Uma delas relembrava a realizada em1936 em Berlim, palco das Olimpíadas de Hitler, que aproveitou a ocasião para fazer uma pomposa propaganda de seu regime tornando-a um momento histórico de sua glória, a despeito do desejo do Comitê Olímpico Internacional de vetar tal acontecimento diante do mal estar da ascensão do 3º Reich. Em 1972 a Alemanha sediava novamente as Olimpíadas e quem sabe pretendendo sacodir um pouco tanta poeira construiu a Vila Olímpica de Munique com capacidade para 16 mil pessoas, e um estádio (75 mil m²) que exibia uma inovadora obra de arquitetura, com teto suspenso de lona transparente. Mas na manhã do dia 5 de setembro, um grupo de palestinos da organização Setembro Negro invadiu os dormitórios da delegação israelense, assassinou dois de seus atletas e fez outros nove de reféns em troca da libertação de 200 árabes prisioneiros em Israel. Por muito pouco a Olimpíada não se interrompeu. Qualquer um que decida visitar Berlim nos tempos atuais não conseguirá deixar de lado a historia desta cidade que carrega as cicatrizes mais violentas da historia (e da alma) alemã. Afinal não é pouca coisa ter sido a sede da ascensão e queda do nazismo (e seus horrores) e em seguida ser dividida em duas, “cedendo” ao longo de anos uma parte de seu corpo ao regime comunista soviético. No entanto o que mais surpreende é perceber que hoje a cidade expõe suas feridas sem nenhuma concessão, lado a lado com as melhores atrações das vanguardas culturais, artísticas e musicais. Exemplo disso é a visita que se pode fazer a partir do histórico Portão de Brandemburgo, marco do inicio da cidade no século XIII, saqueado por Napoleão em 1806, terra de ninguém no período pós- segunda guerra e principal ícone da queda da Cortina de Ferro em 1989. Pode-se conferir como Berlim lida com seu passado ao caminhar alguns quarteirões a partir dali em direção ao Memorial do Holocausto (2005), uma enorme e contundente sequência de pilares retangulares de concreto cinza escuro que lembram lápides de túmulos, com alturas variadas. Idealizado pelo arquiteto americano Peter Eisenman em memória aos judeus mortos sob o regime de Hitler- embora não haja nenhuma menção às estas vítimas - convida o visitante tanto ao sentimento de paz e liberdade quanto ao de claustrofobia ao recriar um clima de isolamento e desorientação nos altos corredores. Próximo dali, em outro capítulo da história a céu aberto, é possível ver partes do Muro de Berlim ou suas cicatrizes marcadas nas ruas, visitar a sala do Silêncio (ONU) que incita os visitantes a refletirem sobre a paz, se inteirar sobre a vida do lado socialista de Berlim no memorial e Centro de Documentação do Muro que esmiúçam sua construção e queda, assim como os curiosos métodos utilizados para atravessar a fronteira. Tudo isso ao redor da agora moderníssima praça Potsdamer ,vinte e três anos atrás  cortada pelo muro (que chegou a ter mais de 150 quilômetros de extensão),em que também é possível visitar o recém aberto centro de documentação Topografia do Terror, construído sob os antigos calabouços do aparelho policial nazista, quartel-general da SS e da Gestapo, onde mais de 15 mil adversários do regime foram aprisionados e torturados. Intrigante é também perceber que este passado histórico e seus fantasmas não impedem Berlim de ser louvada por sua cultura, salsicha e cerveja, uma cidade que recebe de braços abertos muitos estrangeiros, muitos jovens, artistas, abriga uma enorme comunidade de turcos e exibe uma das melhores economias da Europa. Se é fato  que suas cicatrizes compõem sua identidade, não há como não reverenciar certa coragem na exposição de sua alma.

Sãos e insanos medos


Ano passado, ainda sob o impacto da fantástica ascensão da rede social Facebook, um programa de TV, atrás de respostas para tanto sucesso, entrevistava uma das jovens responsáveis pela equipe que alimentava a empresa com “boas ideias”. Na tentativa de responder ao repórter sobre o processo de criação ou mais propriamente de reflexão sobre os anseios e preocupações da nova geração, ela citava dois slogans considerados pontos de partida: não ficar siderado pela utopia da perfeição e forçar uma ultrapassagem pela barreira do medo. Em resumo, se o feito é melhor que o perfeito, o que você faria se não tivesse medo? Embora panfletária e charmosa, a frase bordeava alguns dos dilemas de novas gerações, sempre às voltas com a dupla liberdade X segurança. Um deles seria o medo. Não o que comanda o mantra que as gerações anteriores costumam rezar sempre que percebem não terem mais à mão as antigas referencias para as suas vidas, mas um medo de ordem mais endêmica, mais visceral. Generalizado, como diria uma jovem amiga. Convicta de que as ameaças para a existência humana eram mais óbvias, os perigos mais reais e havia menos mistérios sobre o que fazer para aliviá-los, acha que os riscos de hoje são mais incertos, o que causaria muita insegurança e uma busca sem fim por segurança e estabilidade. Assim se situa. Os estilos de vida, crenças e convicções estariam mudando rapidamente antes de terem tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades o que contribuiria para que os empregos e os relacionamentos em geral parecessem voláteis. Engenheira de produção, minha aflita amiga também discorria sobre o panorama das empresas nas quais trabalha que exigem competência, desempenho competitivo, iniciativa e autonomia e nem sempre oferecem as antigas garantias de leis trabalhistas. Ao invés disso, incentivam o mercado da subjetividade em que cada um pode ser medido como “looser” ou  “winner” conforme se adapte ou não profissional e financeiramente aos seus valores. E para os que se sentem meio perdidos, que busquem ajuda dos novos especialistas, os “coach”. É verdade que desde que a vida humana passou a ser regulada pela tecnologia e a busca da felicidade passou a fazer parte do avanço biotecnológico, todos precisam de força, memória, atividade. Sai o regime das certezas, abre-se o da multiplicidade, grande fonte de angustia. Tudo é temporário. O surpreendente é que minha amiga, longe de fechar suas questões e transforma-las em verdades, avaliava-as sob o prisma de sua geração, que não possuiria o mesmo preparo que a de seu irmão mais novo, por exemplo. Ele já pertenceria à geração Z (de zapear) um nativo digital que, segundo ela, teme menos esse futuro, gosta das provocações e encara com bom humor a falta de certezas e heróis. Age como se fosse natural sermos todos pessoas comuns, não se impressiona com o excesso de informações que precisa filtrar e parece usufruir mais os benefícios do que os riscos da evolução tecnológica. Nas redes sociais sabe cultivar os laços e obter benesses do espaço de trocas, acolhimento e solidariedade. Confiança necessária para o tipo de trabalho que faz em que as pessoas se organizam em clusters ou em outras formas de cooperação. Ela se aflige quando percebe que nestas poucas décadas, o futuro que levava séculos para chegar, depois 100 anos, 50 e agora mal cumpre os 5 anos, nem lhe deixa espaço para um respirar aliviada. Já seu irmão deve saber que vive no futuro, um futuro cada vez mais focado no intangível. Se ele tem medo? Com certeza, de outras coisas.

Próxima parada: Rio 2016


No último dia 5 de agosto no caderno Ilustríssima da Folha de SP o chinês Ai Weiwei, artista engajado de seu país, escrevia um texto ainda sob o impacto da cerimonia de abertura das Olimpíadas de Londres. Crítico, comparava-a com a pompa apresentada em Pequim 2008, que segundo ele, tinha de tudo, menos um sentimento de autenticidade do povo chinês. Na contramão das críticas de muitos sobre o que acharam ser britânica demais para o restante do mundo, Weiwei proclamou a inglesa de festa de verdade, que refletia sua sociedade civil, sua gente, seus valores, sua história, da rainha à enfermeira. Sem esconder uma admiração invejosa, destacou o fato de ser a Inglaterra uma nação de indivíduos e não de um (único) partido. Concordei (meio secretamente) com ele. Em meio a alguns que torciam o nariz para a cerimonia de encerramento que aconteceu no domingo, 12 de agosto - que de certa maneira completava a da abertura - fui tomada pela emoção quando vi surgir na tela, ícones importantes de minha geração. O que podia ser considerado brega e clichê me parecia uma ideia honesta e simples que agradava e muito ao público presente. Em um mundo em que a tecnologia pode fabricar efeitos especiais de tirar o fôlego de qualquer cidadão, a Inglaterra com sua tradição de peso inquestionável escolhia apresentar sua cultura de forma singela e alegre. Tal e qual uma grande festa musical, o que se via era um verdadeiro desfile do cancioneiro pop britânico com grande parte de seus  símbolos de ontem e hoje juntos. George Michael, Annie Lennox, Pink Floyd, Spice Girls, The Who, Queen, Oasis foram alguns que surgiram acompanhados dos quase quatro mil voluntários que se dispuseram a cantar e dançar. Lá pelas tantas, imagens de John Lennon, depois de Freddie Mercury, projetadas no telão levavam a plateia ao delírio. Nem mesmo o peculiar humor inglês ficou fora, representado por Eric Idle, do Monty Python. A boa música produzida pelos ingleses e dirigida principalmente aos jovens foi escolhida para brilhar naquele encerramento. Para nós brasileiros, o final daquela cerimonia significava o passe do bastão: - Agora é de vocês, sua hora de preparar a cidade e organizar a “infra” para poder acolher e receber com dignidade os mais de dez mil atletas e os milhares de turistas que prestigiam esta festa esportiva. Uma festa que graças aos novos recursos de comunicação parece estar sendo realizada logo ali, ao lado da casa de cada um. Que ao longo dos séculos em que se repete guarda um desejo humano de superação de limites físicos e mentais de corpos. Que pela primeira vez apresentou atletas de ambos os sexos de todos os países participantes. Que ousou mandar para casa os atletas que não compreenderam o sentido da “reunião” de povos e, portanto da convivência com a diversidade, com o estrangeiro. Que apostou, em sua organização, na “inspiração” que legaria às futuras gerações. Um modelito que poderia ser levado em consideração pelos brasileiros que se ocuparão da organização da próxima olimpíada. No entanto, numa visada geral, não são poucos os brasileiros que andam antecipando seu sentimento de vergonha para os possíveis furos de nossa hospedagem. Este mesmo ceticismo surpreendeu o governo federal que imaginava uma grande mobilização pública em torno do tão esperado julgamento do Mensalão. Em uma recente reportagem jornalística as câmeras mostravam o pátio da Esplanada vazio e nem todas as cadeiras reservadas aos interessados ocupadas. Esta é talvez a grande e nefasta consequência de episódios não transparentes em seus custos e processos, que além de não produzirem benefícios para a população, engordam os bolsos de políticos e empresários gulosos. Se a organização de um grande evento como as Olimpíadas é sempre uma preocupação para qualquer país que a realize, fica para cada um de nós, cidadãos brasileiros a tarefa de encontrar modos que nos ajudem a prevenir (ou alardear) a corrupção que em geral se associa a isso. Alguma ideia?

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Tempo, tempo, tempo, tempo.


O ano era 1972, o andar era o oitavo e na sala tocava insistentemente o álbum “Clube da Esquina”. Pensando bem, é provável que as meninas que dividiam o espaço comigo naquele apê não tivessem coragem suficiente para barrar meu entusiasmo e colocar algum limite naquele ato insano de repetir à exaustão cada uma das faixas. Há uma vaga lembrança de momentos em que baixava certo sentimento de vergonha quando então eu carregava minha vitrola Phillips preta para a varanda, fechava a porta de vidro e podia me entregar livremente ao fascínio e à emoção que aquelas músicas me despertavam. Quem eram aqueles rapazes desconhecidos, aquele negro com voz de “Deus”, aquelas melodias inesperadas, mistura de música clássica e folclórica com uma pegada de rock e brasilidade? De alguma maneira eu intuía estar vivendo um momento que marcaria um antes e um depois. Mais por sorte do que azar (ali eu queimava toda a minha mesada) a melhor casa de discos de Ribeirão Preto ficava enfrente a praça XV, passagem obrigatória e diária para que eu pudesse conferir todos os lançamentos (que não foram poucos) daquele ano: Caetano com o disco “Transa”, Gil e seu “Expresso 2222”, os Novos Baianos e  “Acabou Chorare” são apenas alguns que disparam lembranças  e me carregam ao tempo em que minha vida acadêmica se confundia com um novo mundo que eu acreditava estar aos meus pés. Tempos de repúblicas estudantis, de novas e importantes amizades, de expansão do conhecimento, de amores nunca antes vividos. Ainda conservo meu acervo de LPs que guardam esta parte importante de minha história. Estávamos em plena ditadura militar e estes ousados “meninos”, cada um ao seu modo, produziam uma revolução via música brasileira ao colocar em verso e sons tudo o que nós jovens, precisávamos para entrar na dança da contracultura. Milton Nascimento e os mineiros desciam com sua new musicalidade, Caetano e Gil voltavam de seu exilio londrino dispostos a quebrar paradigmas, os Novos Baianos, moleques talentosos, decidiam inaugurar uma vida coletiva em um sitio em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Ao time é preciso acrescentar Chico Buarque, cujo “barulho” se concentrava nas letras, que cantavam a descabida censura, a malandragem carioca, as facetas de nossa brasilidade, os amores do ponto de vista das mulheres ou dos homens. Foi com estes grandes e queridos companheiros de vida que me deparei esta semana quando, em uma mesma página de algum jornal digital anunciavam-se Milton em seus 40 anos de carreira, Caetano fazendo 70 anos e Chico lançando mais um CD ao vivo intitulado "Na Carreira". O tempo, inexorável, mostrava sua cara. Como a me consolar, ao ligar o rádio de meu carro, quase tive que parar para poder curtir melhor a beleza da letra da música “Essa pequena” de Chico Buarque, em que ele canta a passagem do tempo comparando sua perspectiva com a da “pequena”. Verdade dura, poesia pura. Voltei ao ano de 1972, quando entrei na faculdade em Ribeirão Preto e tinha certeza que o mundo era pequeno demais para meus sonhos. O tempo nem era uma questão. Confiram:

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela

Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la

Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai

Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena

A cabeleira do Zezé


Jovem e sensível, a professora de uma escola infantil me contava sobre um assunto ao mesmo tempo delicado e perturbador que teria surgido em uma reunião de pais. Em meio a um importante debate sobre o futuro das famílias, dos pais e da educação dos filhos, alguns teriam questionado como seria quando as crianças de pais homossexuais começassem a frequentar as escolas, tendo que enfrentar o fato de possuir dois pais ou duas mães. Que futuro estaria reservado para estas crianças? Como responder à surpresa das outras? Ao invés de preleções de caráter moral a favor ou contra ou de previsões ameaçadoras do bem estar familiar, ela preferiu deixar ao futuro a tarefa de acomodar (ou não) tais mudanças. Mas lembrou que, a despeito de tendermos a considerar nossas crenças eternas, não seria difícil conferir as transformações sofridas no seio da família nestas últimas décadas. O tema, polêmico, esquentou ainda mais o debate sem, contudo, chegar a um consenso. De fato tentamos esquecer que para além de nossas origens biológicas ou de famílias “bem constituídas” há uma infinita variedade de caminhos e escolhas que constituem a historia de cada um. Mais confortável imaginar que nossas historias possam ser asseguradas (melhores?) se cumprimos certos protocolos - mesmo com datas de validade expiradas - talvez na tentativa de dividir a responsabilidade (sempre dura) sobre nossos futuros. É o caso desta nova disposição familiar, baseada em uma relação homoafetiva, com filhos gerados por inseminação artificial ou adotados. Estariam estas crianças condenadas a ser “diferentes”, sem chances de felicidade, ou vale a regra de que no final das contas, para que uma família passe a existir, é preciso basicamente que se queira isso? Se há boas noticias nas mudanças que aconteceram e continuam a acontecer nas famílias atuais, é que elas finalmente se livraram de alguns séculos de hipocrisia e dissimulação. Antes era crucial que se mantivesse a fachada dos casamentos e se escondessem as tensões sexuais, as violências e os constrangimentos dos lares. Maridos podiam manter uma alegre vida erótica fora de casa. Homossexuais se casavam com o sexo oposto, tinham filhos e quiçá mantinham ligações homoeróticas na calada da noite. Às mulheres restava conformar-se em viver à margem da vida pública, sem direitos, sem voz. Violências veladas ou encarnadas eram encenadas, mas guardadas no silencio dos segredos sob a égide da vergonha e da humilhação. Foram as últimas gerações que exigiram de si e dos outros uma coerência entre o sentir e o fazer. A partir daí pudemos constatar  como as identidades sexuais são incertas, como cada um de nós porta tanto traços femininos quanto masculinos, como é difícil saber o que é ser mulher ou homem, pai ou mãe. E, embora os gays finalmente pudessem sair do armário e assumir seu amor pelo mesmo sexo, nem por isso ficaram livres de viver seus (nossos) dilemas de identidade. Mas mesmo sem as antigas certezas e com milhares de questões difíceis e em aberto, a família continua sendo o laboratório da experiência humana, o lugar onde os dramas são experimentados e o amor pode acontecer. O espaço em que cada um ganha uma data de nascimento, uma origem, um passado. Minha amiga professora tinha razão. É provável que no futuro a marchinha de carnaval que ecoa o refrão “será que ele é” não guarde o mesmo sentido.

sábado, 4 de agosto de 2012

Deitado eternamente


Quem se propõe a fazer um recenseamento via web de reportagens que tomem o “Brasil” como tema, seja para avaliar junto aos outros, seu papel político, econômico ou cultural, para analisar suas condições de sede da Copa do Mundo (2014) ou das Olimpíadas (2016), prever seu futuro como nação, ou somente para tentar compor uma imagem mais ou menos consensual sobre sua “marca”, fatalmente se depara com vozes dissonantes, algumas bem negativas outras nem tanto. Tomemos por exemplo, uma pequena pesquisa feita com os estrangeiros que participaram da Rio+20 que elegeram o povo brasileiro como o melhor produto do país e reclamaram do caos do trânsito ou dos preços nas alturas. Nenhuma novidade. É verdade que as reportagens sobre cultura são geralmente elogiosas e as sobre política e sociedade, bem menos. Estamos acostumados a ser mal avaliados (por estrangeiros ou não) e curiosamente não parecemos nos importar quando correspondentes estrangeiros evidenciam as diferenças sociais expostas em nossas metrópoles com suas favelas, crianças pobres pelas ruas ou o descaso em relação à devastação ambiental. Também não ligamos quando vemos propagados de forma positiva, mas estereotipada, nosso samba, carnaval, mulatas ou futebol. É certo que recentemente passamos a receber maior atenção da mídia exterior de olho em uma economia que não se abateu com a crise da Europa ao manter um índice baixo de desemprego, um PIB razoável e um cenário em que “nascem” 19 novos milionários por dia, sobe a procura de executivos brasileiros para controlar empresas mundiais e jorra petróleo em nossas costas. Na onda deste inédito interesse por nossa “brasilidade”, pesquisadores de marketing/comunicação saíram em busca dos indícios de nossa marca Brasil, associando-a a alegria, solidariedade, sensualidade, cor, calor, inovação, juventude, valores que estariam em alta pelo mundo, mas que não parecem fazer muito “vento” na percepção que temos de nós mesmos. Por quê? Parece haver consenso de que não temos uma tradição de agregar valor ao que nos é próprio o que nos levaria a permanecer fascinados com o “estrangeiro”. Alguns atribuem isto à singularidade de nossa historia colonial acrescido de um insistente baixo índice de confiança em nossos atributos. A verdade é que não conseguimos responder muito bem porque estaríamos sendo a bola da vez e mesmo reconhecendo o grande potencial de nossa cultura ainda não nos apropriamos de nosso jeito de cria-la, pensa-la, consumi-la. É como se nossa brasilidade escorregasse como um líquido, difícil de se deixar analisar. Nos anos 20, o polêmico  Oswald de Andrade ousou proclamar o movimento antropofágico com a finalidade de incentivar o que intuía já fazer parte de nossa cultura, ou seja, a assimilação da cultura europeia – dominante na época – com o intuito de degluti-la e remodelá-la segundo a realidade brasileira. A ideia de antropofagia  cai como luva para uma tentativa de análise da marca Brasil. Ou seja, o que muitas vezes é visto como reverencia ao de “fora”, ou ao mais civilizado/valorizado/reconhecido, seria na verdade um jeito brasileiro de emprestar, de “comer” os modelos/conceitos estrangeiros para em seguida transforma-los, reinventa-los. Assim ficamos sem muitas teorias que nos expliquem, mas mantemos nossa marca de improvisação. De certa forma, palatável com as inconsistências/ liquidez deste mundo contemporâneo.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Casa de Bia


Os leitores que acompanham minha coluna já sabem que todas as vezes que viajo ao Rio de Janeiro acabo encontrando maneiras de registrar minha paixão por aquele pedaço do mundo. Confesso que minha empolgação tem início desde que surge, no horizonte, um motivo para a visita, o que significa comprar passagens, escrever para os amigos, marcar conversas e matar as saudades de “todos”, pessoas e lugares. A exuberância da geografia em torno da baía de Guanabara e adjacências já se oferece plena com a aterrisagem do avião no aeroporto Santos Dumont e se mantém surpreendente aqui e ali dentro do taxi, mesmo em dias nublados e frios, caso deste último final de semana. Se não me canso de admirar tanta beleza estética, também me contagio com o “carioquês” , um estilo de vida, de relação com a cidade e com o povo que me parece sui generis. Premiada, pela primeira vez fiquei hospedada no bairro de Santa Tereza, em casa de uma amiga querida. Bia, sua casa, marido, filhos, genro, noras, cachorros, compõem e expressam bem uma parte importante deste estilo carioca de ser, que não apenas ama sua cidade, conhece a fundo sua história e sua cultura, mas vive profundamente engajado com seus problemas e soluções. O que é isso? Talvez uma espécie de ocupação responsável e amorosa da cidade, de utilização de seus espaços, aproveitando o que ela oferece de bom e mobilizando-se contra os maus. É incrível como uma apropriação da cidade ou do bairro em que se mora pode fazer diferença na maneira como as pessoas convivem umas com as outras, tornando-as ao mesmo tempo críticas e abertas ao diferente. Nossas andanças matinais pelo bairro foram verdadeiras aulas da história da ocupação de Santa Teresa, com paradas obrigatórias para as vistas que o alto do morro oferece da Baía de Guanabara e para os casarões e palacetes que conservam uma parte do Rio Antigo - ocupada pelos que aqui aportaram a partir da chegada da corte de Portugal e escolheram o morro para viver porque a vista era linda, a água boa ou o clima mais ameno. Também escritores e artistas desde sempre se sentiram atraídos, seduzidos por seu charme. Onde hoje funciona o Parque das Ruínas, por exemplo, foi a casa da mecenas Laurinda Santos Lobo que reunia em seus saraus os artistas da época. E se o glamour deu lugar à desolação quando as favelas passaram a dominar o entorno, Santa nunca saiu de cena, sendo o alvo preferido, nos anos setenta, dos artistas que chegavam da Bahia, São Paulo ou Minas e viam ali, juntos, charme e vida barata. Hoje seu visual mantém certa mistura entre o antigo reformado/novo e o descuidado, suas poucas ruas “largas” não tem lugar para estacionar carros, em suas vielas passeiam moradores que se cumprimentam e muitos turistas que batem pernas, uns com mapas na mão, outros a se perder pelas vielas deixando-se surpreender pelas galerias e ateliers de artes, pelas lojas coloridas, pelos restaurantes de comida natural, nordestina, mineira, carioca. A noite são os jovens que invadem os bares (um pouco mais baratos que na cidade) quase todos exibindo música ao vivo de boa qualidade. Ao lado de sua recém Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o bairro possui a AMASP, uma antiga e atuante associação de moradores que no momento, entre outras reivindicações, briga para ter de volta os famosos bondinhos, desde que no ano passado um deles descarrilou, deixando cinco mortos, mais de 50 feridos e expondo o descaso dos governos com sua manutenção. Muitos dos moradores exibem a foto do bondinho em suas janelas, fazendo coro com o movimento e tornando público seu desejo pela volta do funcionamento original de suas linhas que serviam prioritariamente a comunidade a preços módicos, ao invés do plano atual de transforma-los em turísticos. Mesmo os que nunca foram a Santa Teresa conhecem estes charmosos veículos que ali circulam desde o século passado e contribuíram para ampliar o charme especial e romântico do bairro, seguindo a rota do tempo no sobe-e-desce de suas ladeiras. Na volta de nossos passeios, já na mesa que dá para a horta e para as plantas de Bia, tomando um suco verde caseiro e jogando conversa “dentro” pensava como era inevitável que minhas lembranças se sentissem em casa com aquele jeito “interiorano” de viver em que as pessoas se conhecem, sabem os nomes, os endereços, a história de cada um. Alguém mexeu no portão de Bia: era o feirante que vinha entregar as frutas, verduras e legumes que ela havia pedido de manhãzinha.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Por quais livros/autores dobram os sinos?


Ainda que alguns críticos/intelectuais (poucos, ainda bem) torçam o nariz para a “festa” literária que acontece anualmente em Paraty, seria muito proveitoso perguntar por que ela continua sendo um evento disputado após 10 anos de existência. E nesta toada, analisar seu sucesso não só pelo prisma do espetáculo ou mesmo do lugar que a literatura “ainda” ocupa no mundo atual, mas também pelo surpreendente número de leitores brasileiros – em um país quase sem tradição literária - que continuam a reverencia-la. E o que buscam estes “leitores”? Não é fácil responder a esta questão quando se acompanha os comentários espalhados pela mídia, tanto de “turistas” que ali comparecem ou dos inúmeros jornalistas que cobrem o evento. Mas a própria diversidade dos enfoques já anuncia a consagração deste que é um dos maiores e melhores acervos de nossa história humana: as narrativas que cumprem essa função integradora do corpo social ao acompanhar os desafios (internos e externos) de cada época. E, se a iniciativa de se fazer uma feira/festa literária tem seus interesses capitalistas, com editoras e autores sonhando em aumentar suas cifras, a proposta de tornar acessível ao público (em geral) um pouco mais do produto dos que dedicam parte de suas vidas a escrever sobre algo que interessa a muitas pessoas do mundo todo, não deixa de ter um efeito midiático interessante. Ao lado da tietagem que normalmente caracteriza algumas relações entre leitores e autores, há o fato inusitado de se forçar um escritor a “falar” sobre seu processo criativo, as escolhas de seus temas, a relação de suas narrativas com sua própria vida, enfim, faze-lo refletir sobre o lugar que a escrita ocupa em sua vida e como ele percebe/analisa o interesse de seus temas para o público. É neste confronto que se percebe a variedade das análises - sempre particulares - que acabam compondo um leque imenso de possibilidades de narrar nossa história coletiva. Pode estar a serviço de uma ampliação do contato consigo próprio, da preservação da memória ou o contrário, da tentativa de confundi-la; pode falar da própria literatura, das cidades, das injustiças sociais; pode dizer o que ainda não foi dito ou pode simplesmente guardar um anseio de ser lido/reconhecido por muitos. Os verbos também podem deslizar para o entreter, perpetuar, transmitir, refletir, e assim vai. E para isso vale falar sobre as entranhas humanas , seja para apaziguar ou impulsionar seus fantasmas. Sobre os fracassos, a solidão, o desamparo, os amores, os lugares e as pessoas que lhe são importantes; sobre os aspectos políticos e sociais do mundo, a violência, as injustiças ou a vida banal nas cidades. Como vimos não há limites. A leitura de uma boa obra pode ser uma experiência transformadora para alguns leitores, mas é basicamente uma experiência “humana” em que cada um se reconhece e dialoga com seu semelhante independente das diferenças étnicas culturais ou das distancias geográficas entre quem escreve e quem lê. Se uma análise crítica deve tentar compreender mais do que conjecturar ou agourar, podemos deixar registrado com certa satisfação que a Flip tem propiciado um bom e inusitado debate de ideias entre escritores de diferentes culturas e idades além de dar visibilidade para a literatura. E se ela, a literatura, estrela máxima do evento, consegue se manter sendo a memória cultural de uma era, se em última instancia é isso que se constrói e conserva quando se escreve, é bem capaz que os livros continuem a ser escritos e lidos. Oxalá.


domingo, 8 de julho de 2012

Corpos à deriva


O caderno da Ilustríssima (Folha de São Paulo) do domingo 1°/07/2012 trazia em sua capa uma foto impactante, um corpo mantido no ar por um guindaste, uma massa inerte. A reportagem denunciava as execuções públicas que voltaram a ser permitidas no Irã a partir de 2009. Acontecida dias antes em uma cidade próxima de Teerã, e aberta propositalmente à população que se dividia entre olhares espantados e bocas caladas ou em manifestações de júbilo pela pena aplicada, os dois homens enforcados teriam cometido crimes inaceitáveis na cultura do país, um estuprador e outro traficante. Mas na pergunta que permeava a reportagem sobrava espanto: porque retornamos a processos violentos de punições quando, já no século XXI, teríamos modos mais “civilizados” de tratar nossos “fora da lei”? Ou seja, porque haveria uma espécie de retorno do primitivo, como se o processo civilizatório da humanidade guardasse eternamente seu avesso, nosso lado animal? Não parece ser uma questão fácil de ser respondida, afinal não foram poucos os que se debruçaram sobre a história de nossa “civilização” e pensaram sobre os seus fios evolutivos, marcando as formas de poder e de alienação, assim como os avanços na construção de uma convivência em que cada um, individualmente, poderia se responsabilizar por sua ‘cidadania’ a partir do compartilhamento de certas normas e leis que balizariam os direitos, as obrigações e as punições aos infratores. Parecem existir certas figuras paradigmáticas de nosso estofo humano que se repetem ali e aqui desmascarando ora nossa violência, ora nosso lado perverso, ora o grotesco, enfim figuras do excesso, do nonsense, que denunciam o caldo virulento que nos compõe. Ao ler a reportagem, me lembrei de certas cenas de filmes, alguns sobre a vida na Idade Média e outros sobre a ocupação do Oeste americano. Na Idade Média todos viviam sob os códigos religiosos, as leis eram principalmente divinas e sagradas e as pessoas estavam condenadas a ganharem os céus por suas virtudes ou o inferno por suas transgressões e ousadias. Em geral nas cenas de execuções públicas em que corpos ardiam no fogo do “inferno” ou cabeças eram decapitadas, a população entoava verdadeiros mantras, exorcizando aqueles que teriam merecido tal pena e aliviados por terem “Alguém” que vigiasse e se responsabilizasse por estes destinos. Já os famosos faroestes, em que as cenas de enforcamentos eram parte da tentativa dos xerifes para fazer valer a lei e a ordem naquelas “terras de ninguém”, aquele circo se fazia necessário para que cada morte pudesse ter um valor diferente das outras cometidas sem o respaldo da lei. Um tempo já moderno, mas de implementação do permitido e do proibido, de construção de um espaço em que a convivência pudesse ficar minimamente garantida pelo consenso entre os homens, para que cada um, individualmente, soubesse que apesar de ser livre para decidir sobre muitas coisas, os dois interditos fundamentais da humanidade, ou seja, o tabu do incesto e do assassinato precisariam ficar permanentemente  validados. Mas como entender o retorno destas execuções públicas no Irã, em um tempo em que não haveria mais motivos para “festejar” ou “discriminar” e sim se envergonhar destas mortes sem mediações, quase “animais”, senão como um dispositivo truculento dos que detém o poder e que certamente enviam um “aviso” a todos os que se pretendem dissidentes? No mesmo domingo várias matérias na web chamavam a atenção para o retorno do mito de Fausto, estreando nos cinemas de São Paulo. Embora esta versão se baseie no livro escrito por Goethe na Alemanha dos anos 1808, o mito já existia sem uma autoria definida desde o século XV e sua reincidência só nos revela o quanto Fausto em seu pacto com o diabo, é a manifestação de nosso eterno desejo moderno em não precisar pagar a parcela de renúncia, ou seja, nós em busca do absoluto, da não-morte, do gozo do poder total, do divino. A reportagem da Folha, ao final, estaria às voltas com mais uma das previsões sobre o destino da história humana, o fim do mundo sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança?