sexta-feira, 23 de março de 2012

Os que se importam

Dia destes um jovem executivo confidenciava a um colega de trabalho que, à diferença de seu antigo terapeuta, o atual se importava com ele, e isso fazia diferença. Seu comentário me remeteu a um recente relato de uma amiga que lamentava a forma constrangedora com que alguns médicos conveniados ao seu plano de saúde, faziam questão de frisar que ela estaria desfrutando de seus preciosos conhecimentos apesar de eles estarem sendo muito mal pagos. A morte do geógrafo Aziz Ab’Saber ocorrida nesta sexta dia 16 de março espalhou vários obituários pela mídia que tentavam informar ao público aspectos relevantes de sua biografia. Quem foi este homem? É possível que a quase totalidade do meio acadêmico conhecesse sua importância e soubesse que ele era integrante da Academia Brasileira de Ciências, presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), além de ter sido presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) entre 1982 e 1983, onde trabalhou pelo tombamento da Serra do Mar. Também é quase certo que muitos soubessem ser ele uma fonte básica e obrigatória para qualquer debate sobre a questão ambiental brasileira não só por seu vasto conhecimento em áreas como a ecologia, biologia evolutiva, geologia, arqueologia e geografia, mas por jamais se furtar em marcar sua presença como agente politico sempre em busca de soluções para o bem coletivo, sobretudo quando o assunto dissesse respeito aos riscos ambientais. Graças a certas “armações” do destino, no entanto, pude ser uma observadora mais próxima da figura humana de Aziz Ab’Saber, alguém que desfrutava de uma inquietude incessante diante do sentido de se estar no mundo e parecia “se importar” em transformar seu conhecimento em “produto utilizável e acessível” ao maior número de pessoas possíveis. Sabiamente, nas últimas décadas, se aproximou dos jovens e deixava explícita sua ânsia em despertá-los para a sua importância no futuro da boa vida humana, fosse com a construção de  uma preocupação com a natureza, mas sobretudo com a construção de uma consciência “política” , uma noção do papel que cada um deveria ter para consigo, com o outro e com o mundo em que vive. Em um mundo com parâmetros menos definidos como é o que vivemos, em que se ganhou muito em liberdade e em poder tecno-cientifico, há poucas diretrizes sobre os modos de se organizar a vida em comum, principalmente para uma geração marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. Sobram chamadas para os prazeres que podem ser cada vez mais facilmente conquistáveis, mas faltam convites que possam dizer sobre a condição humana e sobre o também “prazer” de poder fazer parte (importante) de um mundo que ainda precisa de bons legados para ser transmitidos aos que nos sucedem. Alguém que se disponha a intermediar a herança com a criação. Obrigada professor!


segunda-feira, 19 de março de 2012

O sentido da doença

Sob o instigante título “A ciência olha o escuro” a matéria do caderno Aliás do Estadão do último domingo, 11 de março, dava voz ao médico oncologista Siddhartha Mukherjee , autor de  “O Imperador de Todos os Males: Uma Biografia do Câncer” . Vencedor do Prêmio Pulitzer de 2011 na categoria não ficção, Mukherjee se propõe a desmistificar o câncer, o mal que atinge um número sem fim de humanos pelo mundo afora, e que, segundo ele, só é reconhecido consensualmente por sua descrição de um crescimento anormal de células e pelo fato de colocar a todos em pé de igualdade diante do aspecto trágico de se estar doente. Avanços e pesquisas à parte, a reação de cada ser humano para com sua doença é sempre diferente e particular, motivo pelo qual ele insiste na mistura de arte e ciência da Medicina ao enfatizar a sensibilidade na visão que cada médico deveria ter de seu paciente. Sua leitura nos faz recordar que as representações sociais das doenças não são fixas, ao contrário, constituem-se e se modificam através da história, assim como os tipos de doentes. Entre os séculos XIX e XX, por exemplo, de uma visão romântica sobre a tuberculose, que a associava à criação artística, passou-se a encará-la como  um produto da pobreza e de descuido público. Susan Sontag também fez referência às representações culturais do câncer e da tuberculose em seu ensaio “A doença como metáfora”- escrita em meio a sua própria luta contra o câncer- representações estas produzidas tanto pela literatura ficcional quanto pelos discursos médicos/psiquiátricos que privilegiariam a ideia de doença como um mal social ou como uma punição ao ser humano. Nesta mesma linha de raciocínio, o conceito de saúde, ao também sofrer influências de seu tempo, seria entendido hoje como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente como a ausência de doença. A maioria dos leitores concordaria que a saúde é praticamente um dever que também inclui a perfeição corporal e a felicidade plena, o que faz com que todos se sintam convocados a pautar suas vidas na busca da saúde perfeita, sob pena de ser moralmente responsabilizados por estas falhas. De forma grosseira, na tentativa de se realizar um mapeamento completo/absoluto da saúde, a “psicossomática” passou a ser encarada como um setor da Medicina que almejaria descobrir a natureza exata da relação entre as emoções e as funções corporais e analisaria as doenças sempre pela relação causal com que o psíquico participa de qualquer doença. Na ponta final, toda doença poderia ser interpretada como um acontecimento psicológico, o que estimularia a crença de que adoecemos porque (inconscientemente) queremos adoecer e por isso podemos nos curar pela mobilização de nossa vontade, e pior, estaríamos aptos a escolher entre morrer e não morrer da doença. Haja onipotência!  Parece haver um pacto entre os que “curam” e os que precisam ser curados. Ambas as fatias comungam da ideologia vigente na atualidade de que as insatisfações ou desconfortos seriam desvios que devem ser suprimidos. A boa vida estaria associada à aquisição de habilidades e competências e a experiência de sofrimento acenaria a falência das obrigações existenciais. Tal tentativa de “ajuste” sem brechas acaba por desvelar o quanto as doenças carregam – desde sempre - o significado de maldição, mudando apenas seu sentido e justificativas a cada época. Permanecem tabus e disseminam o temor justamente por nos colocar frente a frente com nossos limites. Diante da dor/sofrimento (nosso ou do outro) não é dificil recuar, nos espantar ou sentir horror, o que nos faz buscar incessantemente formas sempre mais sofisticadas de cercear ou controlar os males da alma e do corpo. Também é este terror, surpresa ou curiosidade que sentimos diante de certas vidas marcadas pelo trágico, excêntrico ou estranho, que obstaculizam a tarefa clínica dos que se ocupam de cuidar. É sobre a complexidade destes cuidados que Siddhartha Mukherjee  tenta chamar a atenção em seu livro, ressaltando a importância do confronto com a emergência da subjetividade e suas consequências, mas principalmente a possibilidade de exercer um trabalho que potencialize o espaço do posicionamento de cada um frente a sua dor e sua doença. Não podemos nos esquecer de que a saúde mental/corporal como ideal e como bem comum, assim como o anseio da ciência em buscar eliminar nossos males são sintônicos com o desejo humano de silenciar as vozes destoantes, enigmáticas e por vezes dolorosas da experiência do adoecer. Buscamos incansavelmente um sistema de proteção contra qualquer sofrimento insuportável.

domingo, 11 de março de 2012

Paixão/ medo do novo

Na visada diária pelos jornais digitais, a foto de um casal de homens jovens e risonhos chamava a atenção pela manchete que a acompanhava. Em 2009, ao pleitear ao conselho do Club Athletico Paulistano (do qual seria sócio desde pequeno), a inclusão de seu companheiro como seu dependente, o cirurgião plástico Mario Warde Filho teve seu pedido vetado. Qualificando-se vítima de discriminação, o casal foi à Justiça e no mês passado obteve uma decisão favorável. A divulgação da notícia pela mídia abriu o debate (mais que atual) sobre as parcerias gays. Aqui e ali os membros desta centenária e elitizada associação se posicionaram, alguns para defender a igualdade de direitos e apoiar a decisão da justiça que reconhece uma entidade familiar na união estável entre pessoas do mesmo sexo, e outros (a maioria) que, inconformados diante da possibilidade de conviver tão proximamente com o que lhes soa “estranho”, justificam sua indignação invocando a manutenção de uma “ordem moral” imaginária. A ideia de “clubes” assim como de condomínios privados parece conter uma aspiração (tipicamente humana) de encontrar e ocupar um lugar plenamente satisfatório onde reinaria a absoluta harmonia, a completa satisfação e nenhum ruído perturbador. Há temas recorrentes da história humana como a escravidão, os genocídios e as diversas formas de intolerância que se utilizam do recurso (também tipicamente humano) de justificativas imaginárias (quase sempre inconscientes), o que contribui para ampliar o imbróglio de uma grande fatia de nossa historia. Na Ilustríssima do dia 4 de março último, a matéria intitulada “A mitologia das ideias” discutia o fato de que a razão humana teria evoluído menos para aumentar o nosso conhecimento e nos aproximar de alguma verdade sobre nós ou o mundo do que para confirmar nossos sentimentos, palpites ou intuições. Nossa porção racional procuraria elaborar argumentos “racionais” que justificassem nossas conclusões- geralmente a serviço de nossos interesses/crenças - e se poria a convencer o mundo de sua correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Não. Isto não é uma crítica, antes uma constatação, a de que nossas paixões e medos seguem nos norteando. À medida que nossas sociedades tornam-se mais complexas, também parecem mais inconsistentes, construídas sobre contradições sem síntese possível. Vivemos um ciclo sem fim em que tentamos responder interrogações, buscar sentido e certeza, que logo mais se afastam para dar lugar a novas perguntas. São zonas de desconforto, por isso buscamos o “conforto” do conhecido, do mesmo. E se há algo que se impõe e ao mesmo tempo nos causa temor é a ideia de que nossa identidade sexual seja uma questão em aberto, que passamos a vida construindo e tentando, inutilmente fechá-la. A intolerância com a ambiguidade e ambivalência da sexualidade alheia é proporcional àquela que sentimos diante de nossas indefinições, que por serem insuportáveis e jamais admitidas, transformam-se em tiros nas janelas dos que transgridem o modelo binário de escolha sexual e amorosa, caso de homossexuais, transexuais, etc. Recentemente entrevistado pelo programa Roda Viva, o cartunista Laerte, que causou (e vem causando) estupefação desde que resolveu passar a se vestir de mulher, surpreendeu ao público que o assistiu ao responder muito à vontade e ao mesmo tempo com clareza e consistência sobre suas dúvidas e inquietações. Sem pretender qualquer postura panfletária ou militante, Laerte reivindica o direito de não se “enquadrar” nas duas opções de gêneros que a cultura oferece por acreditar que as possibilidades humanas possam ser mais amplas. Sua postura, ao invés de acirrar os prós e contras, promoveu um debate honesto e corajoso com seus interlocutores e pode ter contribuído para abrir nichos novos para se pensar os destinos da complexa sexualidade humana em um futuro nem tão distante. Para uns, talvez para a maioria de nós,o medo sobrepuje a paixão pelo novo. Para outros e poucos, o contrário. Resta constatar que ambas as posturas podem vir a fazer parte da vida de cada um de nós.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Ressonâncias do (e no) Oscar

O Oscar é a premiação mais badalada (e ansiosamente esperada) por todos os que apreciam minimamente a sétima arte. Ano após ano, nos meses de dezembro a fevereiro que antecedem a festa, há um boom de filmes indicados e um zumzumzum para se definir os favoritos do público, mesmo quando aqueles que foram arrematando outros prêmios importantes, não coincidam com estas preferências. O Oscar é também a vitrine top do mundo das celebridades - que dele se beneficia- e que gira em torno deste território tão americano e ao mesmo tempo tão conhecido mundo afora, graças ao fato de sua indústria cinematográfica se manter imbatível há quase um século. A história do Oscar, suas premiações a diretores, atores, atrizes e filmes ao longo dos anos, se confunde com a própria historia do país, além de movimentar uma importante fatia de sua economia. Isto porque seus roteiros compõem retratos importantes das inúmeras dimensões de sua cultura. Nas ultimas décadas, por força de um barateamento na produção e distribuição de bons filmes (graças às benesses da tecnologia digital) diretores de países europeus, asiáticos, israelitas e árabes, ou mesmo da América do Sul, puderam surpreender - aqui e ali - com filmes que impactaram por sua força politica, sua arte, seu poder estético ou cultural. No entanto o Oscar segue com sua festa singular e exuberante a expor seus mais celebrados artistas, esperados a cada ano por uma multidão de pessoas e repórteres no tradicional “tapete vermelho” estendido no percurso que leva ao Highland Center (ex- Kodak Theatre) em Los Angeles. Artistas que se esmeram em sua apresentação visual, desfilando produções dos mais disputados estilistas. Outra atração da noite (tipicamente americana) é o apresentador da premiação, em geral alguém que deverá ser ágil com as palavras e certeiro nas piadas, que devem surpreender pela inteligência, sem serem demasiado pesadas. Assim é que muitos espectadores espalhados pelo mundo se preparam para esta transmissão (ao vivo) e colam seu olhar nas escolhas mais importantes da noite, na expectativa de no dia seguinte dividir com os amigos suas satisfações ou frustrações. Um pouco mais à vontade, com um governo democrata cujo chefe também estampa o ineditismo de sua raça negra, os filmes indicados se abstiveram de retratar a situação politica e econômica algo indefinida dos USA ou as incertezas que rondam a economia de países antes estáveis. “O Artista”, filme francês que arrematou os mais disputados prêmios é mudo e foi rodado em preto e branco, bem ao estilo das produções do passado, em uma homenagem a vários ícones da história do cinema. Encantou o público com uma singela e tocante história de amor, destas que convocam a plateia a torcer para que cada um dos protagonistas possa finalmente descobrir o quanto o outro também o ama. Mereceu o prêmio principalmente pela ousadia de sua produção em tempos de filmes em 3D e de facilidades inusitadas para efeitos especiais. Apostou  com isso em um cinema intimista, que captura o espectador ao lhe exigir compartilhar os sentimentos ali presentes através da linguagem expressiva dos olhares e gestos. No mesmo clima saudosista e de reverência aos grandes artistas da década de 20, Woody Allen (que não compareceu ao Oscar) levou a estatueta de melhor roteiro original por seu filme “Meia Noite em Paris”. Já “Historias Cruzadas”, que aborda os percalços do racismo nos USA no Mississipi da década de 60- reduto americano da segregação racial mais violenta- teve sua premiação para a melhor atriz coadjuvante, ela também negra, em um dos momentos mais emocionantes da noite. Sem grandes surpresas, a premiação manteve-se light, coincidiu com os palpites dos críticos, e privilegiou produções de orçamentos mais modestos realizadas por diretores menos conhecidos. Contemplou o cinema arte e entretenimento.