O
ano era 1972, o andar era o oitavo e na sala tocava insistentemente o álbum “Clube
da Esquina”. Pensando bem, é provável que as meninas que dividiam o espaço
comigo naquele apê não tivessem coragem suficiente para barrar meu entusiasmo e
colocar algum limite naquele ato insano de repetir à exaustão cada uma das
faixas. Há uma vaga lembrança de momentos em que baixava certo sentimento de
vergonha quando então eu carregava minha vitrola Phillips preta para a varanda,
fechava a porta de vidro e podia me entregar livremente ao fascínio e à emoção que
aquelas músicas me despertavam. Quem eram aqueles rapazes desconhecidos, aquele
negro com voz de “Deus”, aquelas melodias inesperadas, mistura de música
clássica e folclórica com uma pegada de rock e brasilidade? De alguma maneira
eu intuía estar vivendo um momento que marcaria um antes e um depois. Mais por
sorte do que azar (ali eu queimava toda a minha mesada) a melhor casa de discos
de Ribeirão Preto ficava enfrente a praça XV, passagem obrigatória e diária
para que eu pudesse conferir todos os lançamentos (que não foram poucos)
daquele ano: Caetano com o disco “Transa”, Gil e seu “Expresso 2222”, os Novos
Baianos e “Acabou Chorare” são apenas alguns
que disparam lembranças e me carregam ao
tempo em que minha vida acadêmica se confundia com um novo mundo que eu
acreditava estar aos meus pés. Tempos de repúblicas estudantis, de novas e
importantes amizades, de expansão do conhecimento, de amores nunca antes vividos.
Ainda conservo meu acervo de LPs que guardam esta parte importante de minha
história. Estávamos em plena ditadura militar e estes ousados “meninos”, cada
um ao seu modo, produziam uma revolução via música brasileira ao colocar em
verso e sons tudo o que nós jovens, precisávamos para entrar na dança da
contracultura. Milton Nascimento e os mineiros desciam com sua new
musicalidade, Caetano e Gil voltavam de seu exilio londrino dispostos a quebrar
paradigmas, os Novos Baianos, moleques talentosos, decidiam inaugurar uma vida
coletiva em um sitio em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Ao time é preciso acrescentar
Chico Buarque, cujo “barulho” se concentrava nas letras, que cantavam a
descabida censura, a malandragem carioca, as facetas de nossa brasilidade, os
amores do ponto de vista das mulheres ou dos homens. Foi com estes grandes e
queridos companheiros de vida que me deparei esta semana quando, em uma mesma
página de algum jornal digital anunciavam-se Milton em seus 40 anos de
carreira, Caetano fazendo 70 anos e Chico lançando mais um CD ao vivo intitulado
"Na Carreira". O tempo, inexorável, mostrava sua cara. Como a me
consolar, ao ligar o rádio de meu carro, quase tive que parar para poder curtir
melhor a beleza da letra da música “Essa pequena” de Chico Buarque, em que ele canta
a passagem do tempo comparando sua perspectiva com a da “pequena”. Verdade
dura, poesia pura. Voltei ao ano de 1972, quando entrei na faculdade em Ribeirão
Preto e tinha certeza que o mundo era pequeno demais para meus sonhos. O tempo
nem era uma questão. Confiram:
Meu
tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela
Meu
dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la
Feito
avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai
Às
vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena