segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Tempo, tempo, tempo, tempo.


O ano era 1972, o andar era o oitavo e na sala tocava insistentemente o álbum “Clube da Esquina”. Pensando bem, é provável que as meninas que dividiam o espaço comigo naquele apê não tivessem coragem suficiente para barrar meu entusiasmo e colocar algum limite naquele ato insano de repetir à exaustão cada uma das faixas. Há uma vaga lembrança de momentos em que baixava certo sentimento de vergonha quando então eu carregava minha vitrola Phillips preta para a varanda, fechava a porta de vidro e podia me entregar livremente ao fascínio e à emoção que aquelas músicas me despertavam. Quem eram aqueles rapazes desconhecidos, aquele negro com voz de “Deus”, aquelas melodias inesperadas, mistura de música clássica e folclórica com uma pegada de rock e brasilidade? De alguma maneira eu intuía estar vivendo um momento que marcaria um antes e um depois. Mais por sorte do que azar (ali eu queimava toda a minha mesada) a melhor casa de discos de Ribeirão Preto ficava enfrente a praça XV, passagem obrigatória e diária para que eu pudesse conferir todos os lançamentos (que não foram poucos) daquele ano: Caetano com o disco “Transa”, Gil e seu “Expresso 2222”, os Novos Baianos e  “Acabou Chorare” são apenas alguns que disparam lembranças  e me carregam ao tempo em que minha vida acadêmica se confundia com um novo mundo que eu acreditava estar aos meus pés. Tempos de repúblicas estudantis, de novas e importantes amizades, de expansão do conhecimento, de amores nunca antes vividos. Ainda conservo meu acervo de LPs que guardam esta parte importante de minha história. Estávamos em plena ditadura militar e estes ousados “meninos”, cada um ao seu modo, produziam uma revolução via música brasileira ao colocar em verso e sons tudo o que nós jovens, precisávamos para entrar na dança da contracultura. Milton Nascimento e os mineiros desciam com sua new musicalidade, Caetano e Gil voltavam de seu exilio londrino dispostos a quebrar paradigmas, os Novos Baianos, moleques talentosos, decidiam inaugurar uma vida coletiva em um sitio em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Ao time é preciso acrescentar Chico Buarque, cujo “barulho” se concentrava nas letras, que cantavam a descabida censura, a malandragem carioca, as facetas de nossa brasilidade, os amores do ponto de vista das mulheres ou dos homens. Foi com estes grandes e queridos companheiros de vida que me deparei esta semana quando, em uma mesma página de algum jornal digital anunciavam-se Milton em seus 40 anos de carreira, Caetano fazendo 70 anos e Chico lançando mais um CD ao vivo intitulado "Na Carreira". O tempo, inexorável, mostrava sua cara. Como a me consolar, ao ligar o rádio de meu carro, quase tive que parar para poder curtir melhor a beleza da letra da música “Essa pequena” de Chico Buarque, em que ele canta a passagem do tempo comparando sua perspectiva com a da “pequena”. Verdade dura, poesia pura. Voltei ao ano de 1972, quando entrei na faculdade em Ribeirão Preto e tinha certeza que o mundo era pequeno demais para meus sonhos. O tempo nem era uma questão. Confiram:

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela

Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la

Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai

Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena

A cabeleira do Zezé


Jovem e sensível, a professora de uma escola infantil me contava sobre um assunto ao mesmo tempo delicado e perturbador que teria surgido em uma reunião de pais. Em meio a um importante debate sobre o futuro das famílias, dos pais e da educação dos filhos, alguns teriam questionado como seria quando as crianças de pais homossexuais começassem a frequentar as escolas, tendo que enfrentar o fato de possuir dois pais ou duas mães. Que futuro estaria reservado para estas crianças? Como responder à surpresa das outras? Ao invés de preleções de caráter moral a favor ou contra ou de previsões ameaçadoras do bem estar familiar, ela preferiu deixar ao futuro a tarefa de acomodar (ou não) tais mudanças. Mas lembrou que, a despeito de tendermos a considerar nossas crenças eternas, não seria difícil conferir as transformações sofridas no seio da família nestas últimas décadas. O tema, polêmico, esquentou ainda mais o debate sem, contudo, chegar a um consenso. De fato tentamos esquecer que para além de nossas origens biológicas ou de famílias “bem constituídas” há uma infinita variedade de caminhos e escolhas que constituem a historia de cada um. Mais confortável imaginar que nossas historias possam ser asseguradas (melhores?) se cumprimos certos protocolos - mesmo com datas de validade expiradas - talvez na tentativa de dividir a responsabilidade (sempre dura) sobre nossos futuros. É o caso desta nova disposição familiar, baseada em uma relação homoafetiva, com filhos gerados por inseminação artificial ou adotados. Estariam estas crianças condenadas a ser “diferentes”, sem chances de felicidade, ou vale a regra de que no final das contas, para que uma família passe a existir, é preciso basicamente que se queira isso? Se há boas noticias nas mudanças que aconteceram e continuam a acontecer nas famílias atuais, é que elas finalmente se livraram de alguns séculos de hipocrisia e dissimulação. Antes era crucial que se mantivesse a fachada dos casamentos e se escondessem as tensões sexuais, as violências e os constrangimentos dos lares. Maridos podiam manter uma alegre vida erótica fora de casa. Homossexuais se casavam com o sexo oposto, tinham filhos e quiçá mantinham ligações homoeróticas na calada da noite. Às mulheres restava conformar-se em viver à margem da vida pública, sem direitos, sem voz. Violências veladas ou encarnadas eram encenadas, mas guardadas no silencio dos segredos sob a égide da vergonha e da humilhação. Foram as últimas gerações que exigiram de si e dos outros uma coerência entre o sentir e o fazer. A partir daí pudemos constatar  como as identidades sexuais são incertas, como cada um de nós porta tanto traços femininos quanto masculinos, como é difícil saber o que é ser mulher ou homem, pai ou mãe. E, embora os gays finalmente pudessem sair do armário e assumir seu amor pelo mesmo sexo, nem por isso ficaram livres de viver seus (nossos) dilemas de identidade. Mas mesmo sem as antigas certezas e com milhares de questões difíceis e em aberto, a família continua sendo o laboratório da experiência humana, o lugar onde os dramas são experimentados e o amor pode acontecer. O espaço em que cada um ganha uma data de nascimento, uma origem, um passado. Minha amiga professora tinha razão. É provável que no futuro a marchinha de carnaval que ecoa o refrão “será que ele é” não guarde o mesmo sentido.

sábado, 4 de agosto de 2012

Deitado eternamente


Quem se propõe a fazer um recenseamento via web de reportagens que tomem o “Brasil” como tema, seja para avaliar junto aos outros, seu papel político, econômico ou cultural, para analisar suas condições de sede da Copa do Mundo (2014) ou das Olimpíadas (2016), prever seu futuro como nação, ou somente para tentar compor uma imagem mais ou menos consensual sobre sua “marca”, fatalmente se depara com vozes dissonantes, algumas bem negativas outras nem tanto. Tomemos por exemplo, uma pequena pesquisa feita com os estrangeiros que participaram da Rio+20 que elegeram o povo brasileiro como o melhor produto do país e reclamaram do caos do trânsito ou dos preços nas alturas. Nenhuma novidade. É verdade que as reportagens sobre cultura são geralmente elogiosas e as sobre política e sociedade, bem menos. Estamos acostumados a ser mal avaliados (por estrangeiros ou não) e curiosamente não parecemos nos importar quando correspondentes estrangeiros evidenciam as diferenças sociais expostas em nossas metrópoles com suas favelas, crianças pobres pelas ruas ou o descaso em relação à devastação ambiental. Também não ligamos quando vemos propagados de forma positiva, mas estereotipada, nosso samba, carnaval, mulatas ou futebol. É certo que recentemente passamos a receber maior atenção da mídia exterior de olho em uma economia que não se abateu com a crise da Europa ao manter um índice baixo de desemprego, um PIB razoável e um cenário em que “nascem” 19 novos milionários por dia, sobe a procura de executivos brasileiros para controlar empresas mundiais e jorra petróleo em nossas costas. Na onda deste inédito interesse por nossa “brasilidade”, pesquisadores de marketing/comunicação saíram em busca dos indícios de nossa marca Brasil, associando-a a alegria, solidariedade, sensualidade, cor, calor, inovação, juventude, valores que estariam em alta pelo mundo, mas que não parecem fazer muito “vento” na percepção que temos de nós mesmos. Por quê? Parece haver consenso de que não temos uma tradição de agregar valor ao que nos é próprio o que nos levaria a permanecer fascinados com o “estrangeiro”. Alguns atribuem isto à singularidade de nossa historia colonial acrescido de um insistente baixo índice de confiança em nossos atributos. A verdade é que não conseguimos responder muito bem porque estaríamos sendo a bola da vez e mesmo reconhecendo o grande potencial de nossa cultura ainda não nos apropriamos de nosso jeito de cria-la, pensa-la, consumi-la. É como se nossa brasilidade escorregasse como um líquido, difícil de se deixar analisar. Nos anos 20, o polêmico  Oswald de Andrade ousou proclamar o movimento antropofágico com a finalidade de incentivar o que intuía já fazer parte de nossa cultura, ou seja, a assimilação da cultura europeia – dominante na época – com o intuito de degluti-la e remodelá-la segundo a realidade brasileira. A ideia de antropofagia  cai como luva para uma tentativa de análise da marca Brasil. Ou seja, o que muitas vezes é visto como reverencia ao de “fora”, ou ao mais civilizado/valorizado/reconhecido, seria na verdade um jeito brasileiro de emprestar, de “comer” os modelos/conceitos estrangeiros para em seguida transforma-los, reinventa-los. Assim ficamos sem muitas teorias que nos expliquem, mas mantemos nossa marca de improvisação. De certa forma, palatável com as inconsistências/ liquidez deste mundo contemporâneo.