Para quem não
conhece, os filmes do diretor canadense David Cronenberg, embora cultuados,
dirigem-se àquela parcela que curte e está sempre ligada à sétima arte e seus
artistas (autores) singulares, já que em geral são bizarros e violentos
principalmente por privilegiar os aspectos mais “animalescos” da espécie
humana. Mas não era esta temática que ele anunciava no ultimo festival de
Cannes (maio/2012), quando apareceu para a mídia ao lado do super-queridinho, o
“bom e sedutor” vampiro Robert Pattinson da saga Crepúsculo, para falar de seu
novo filme “Cosmópolis” cuja estreia no Brasil aconteceu no inicio deste mês. Ainda
que considerado difícil e pesado pela crítica em geral, a estória pretende ser
uma sátira-filosófica da crise geral de nossos tempos. No papel de um jovem e bem
sucedido investidor da era digital, assiste-se ao personagem de RP passar um
dia dentro de sua arrojadíssima limusine equipada para ser seu escritório,
tentando chegar ao destino desejado, um barbeiro de infância com o qual quer
cortar seu cabelo. É neste trajeto que ele irá rever o sentido de sua vida ao
ser confrontado com situações inesperadas. Durante este percurso, cada
personagem dos muitos que entram e saem de seu “office-car” estará
representando e questionando uma fração significativa do modo de viver
contemporâneo. Embora o diretor tenha dito em várias entrevistas que seu filme
é sobre a esperança e que para se falar de esperança é necessário criticar duramente
os modelos falidos criados por nós, os personagens, o diálogo, a intensidade, o
humor acabam por produzir um certo mal estar, um tom excessivo. Na semana
passada, em sua coluna semanal da Folha de SP, Vladimir Safatle parecia
surpreso diante da resposta de sua filha de 12 anos a uma pergunta sua sobre
como ela supunha ser o mundo em 2030. Imaginando que uma criança pudesse ter
uma visão de um mundo que poderia ser moldado segundo seu desejo, a filha, ao
contrário, apontava um futuro em que as cidades precisariam controlar as
pessoas, as pessoas seriam obesas e os celulares funcionariam com hologramas,
um espectro nem tão positivo. De certa maneira Safatle conclui como Cronenberg,
que em momentos como estes, em que parece que vivemos uma grande crise, um certo
caos e a falta de futuros à vista a anunciar o fim de uma era da sociedade como
a conhecemos, há mais a criticar do que a sonhar. Por isso é mais cauteloso com
a esperança, ao concluir que em um primeiro momento ela é recusada (como sua
filha mostrou) para então retornar quando certas portas e saídas se abrem. Nesta
semana entrou em São Paulo Tropicália, um documentário que apresenta um recorte
da arte e da cultura do Brasil entre os anos 1967 e 1972, quando Caetano e Gil retornam
de seu exilio em Londres. A década de 60 é lembrada pela historia ocidental
como aquela em que os jovens de vários países quebraram inúmeros tabus e
reivindicaram a liberdade de pensar, de agir, de amar, de cantar e de mudar
muitas das falidas convenções. Embora o Brasil neste período tenha sido
assolado pela censura cada vez mais dura da ditadura militar, o movimento
tropicalista foi um aglutinador da cultura da época ao criar um tempero que
incluía da música dos Beatles aos Mutantes e à Jovem Guarda, da banda de Pífaros
de Caruaru aos sons afrobaianos, da bossa nova ao samba, do teatro de Zé Celso
Martinez ao cinema novo de Glauber, além
da arte inovadora de Oiticica. Era um Brasil que buscava alguma identidade, uma
cara nova. No final do documentário, as imagens da festa que recepcionava os
baianos recém-chegados do exilio também aparecem sendo assistida pelos dois setentões,
Gil e Caetano, emocionados, olhos marejados, como a conferir no pós- tempo, os
resultados das intuições vividas na época sem que eles o soubessem. Demasiadamente
humanos, os artistas (e os jovens) de todas as épocas costumam antecipar
caminhos que eles mesmos desconhecem, ainda. Talvez porque o espírito da época
não nos pertença, nós é que pertencemos a ele.
domingo, 30 de setembro de 2012
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Mundo em (R)evolução?
Estávamos em um grupo que
conversava sobre o evento, minutos antes que o palestrante entrasse para a sua
conferencia. Físico bastante conhecido por divulgar suas ideias na mídia,
perguntei-lhe porque alguns de seus colegas deixavam a profissão e tornavam-se uma
espécie de pensadores a questionar o mundo e seus rumos. Com um sorriso irônico
comentou que, ao longo de suas carreiras muitos físicos transformavam-se em
filósofos medíocres. Não era o seu caso, pensei. E de certa maneira sua
palestra respondia minha questão. Para encerrar o FDC Experience, um evento que
pretendia mesclar arte, história e cultura e discutir as inter-relações entre
gestão e brasilidade com o intuito de refletir sobre modelos futuros de gestão,
ele havia escolhido falar sobre a importância da consciência de nossa
insignificância. Apresentando-nos o universo espacial com suas milhares de
galáxias e a nossa (Via Láctea) a qual pertence a Terra, o Sol e a Lua - tão
reverenciados pelos inúmeros mitos de nossas origens- fomos sendo submetidos a
esta nua e crua realidade. Graças ao acaso circunstancial da localização
precisa entre o planeta Terra e sua “boa” estrela, o Sol, teria sido possível
haver vida (e continuar havendo), ao podermos desfrutar de luz, de agua, de ar
(oxigênio). O universo galáctico teria suas próprias leis de funcionamento,
incontáveis estrelas que nascem vivem e morrem, muitas galáxias em formato de
espiral cujo “ralo” seria um buraco negro “aspirador” e a ciência – leia-se
todo o conhecimento produzido por nós, humanos
- não desistiria de vasculhar
sinais de vida inteligente (ainda não encontrados) ou indícios do tempo de vida
restante de nosso planeta que depende de seu sol. No cálculo aproximado da
formação deste imenso universo, a vida seria recente, mas decididamente não somos
e nunca fomos o centro do universo. E se na foto de uma galáxia mal delineamos
os pontinhos que comprovam a existência das estrelas e dos planetas, fica claro
que não estamos nela. Não. O propósito estava longe de ser apocalíptico. Era
sim um convite a reflexão, ao papel – a responsabilidade - que cada um teria
sobre sua vida e a dos outros do planeta. Um convite a repensar os rumos de um
mundo que nos pertence. Para uma plateia composta principalmente por gestores e
empreendedores cujo futuro precisa estar planejado e os resultados necessitam
acontecer em curto prazo, nada mais angustiante, ainda mais quando imersos em
um sistema que premia a competividade, modelo pouco produtivo para um trabalho
conjunto. E se a nossa foto de consumidores - comendo, bebendo, comprando,
acumulando e trocando - já começa a apresentar sinais de um amarelo envelhecido,
o futuro anuncia a importância do “ser humano”. Um ser humano que urge tomar
para si as rédeas de sua vida sem se esquecer de que há outros ao seu redor.
Que precisa inventar uma vida que não gire somente em volta de si ou da
família, mas inclua a comunidade, o coletivo. Palavras fortes, comoventes até,
mas distantes desta realidade e difíceis de serem administradas, pois portam o
desafio da convivência com a diferença - racial, étnica, religiosa ou econômica
– e impõem pensar um modo pelo qual pessoas diferentes umas das outras se
relacionariam nas cidades e nas empresas, garantindo sua qualidade de vida em
um modelo de cooperação. Otimista demais? Como lidar com o fato de se precisar
de pessoas com as quais não se está conectado intimamente, as quais não se
conhece bem ou não se goste? Quais as chances de nos tornarmos um “ser humano” mais
preparado para esta vida adulta e complexa em que a confiança, algo intangível
seria o combustível da vez? Questões que não só os físicos e os gestores se
ocupam hoje, mas que parecem convocar todas as disciplinas a ultrapassarem suas
fronteiras para pensarem o futuro deste “ser humano”.
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
Acreditar em que(m)?
Próximos a mais uma eleição para prefeitos e vereadores, propagandas eleitorais correndo soltas, parece que paira uma certa apatia generalizada na população. É possível que a falta de confiança nos candidatos (sejam eles de que partido forem), imprescindível para que haja possibilidade de esperança de mudanças, esteja ligada a constatação geral de que nossos políticos reduziram drasticamente seu compromisso com algum futuro das cidades, ou do país e passam seus dias atrás de acordos e conchavos que garantam as benesses de suas carreiras, as vantagens pessoais e as ligações importantes com o poder e o dinheiro. É desolador imaginar que a maioria dos discursos é vazio, meras propagandas enganosas, sem qualquer comprometimento real com o futuro. E quando a suspeita de se estar sendo enganado ou ludibriado se mantém por um longo tempo não só os candidatos perdem, mas o sistema como um todo. Um funcionamento corrupto mina a confiança nas instituições e no Estado, cria um clima de desconfiança e descrença, dissemina insegurança e sentimento de impotência. A pergunta intrigante fica por conta de um certo “deixa estar” característico de um modo “brasileiro” de ser e viver. No ultimo domingo, 9 de setembro, o caderno Aliás do Estadão trazia uma reportagem sobre a Comissão da Verdade recém nomeada para investigar os “porões” da ditadura militar, ocasião em que muitos desapareceram deixando suas famílias a deriva, sem noticias sobre suas mortes, seus corpos. O texto cobrava uma maior abertura de suas reuniões, com ampla divulgação dos depoimentos dos familiares de desaparecidos políticos, muitos feitos pela terceira geração, com sobrinhos ou netos. Como a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça ou punir, não haveria sentido não expor à sociedade as atrocidades cometidas no passado recente do país. Afinal porque não investir na verdade como ferramenta de conscientização, como elaboração da nossa história, como construção de nossa memória histórica? A pergunta aflita do autor escondia seu temor de que tudo não passasse de mais um protocolo, sem chances de produzir algum debate publico ou algum impacto social sobre tal passado vexatório. Seu comentário não passou batido porque, recém-chegada de Berlim, pude constatar como, ao contrário de tanto sigilo, a Alemanha se decidiu por uma espécie de aprendizado moral e cultural que surpreende a todos que a visitam, ao manter um museu a céu aberto, em que todos, turistas e moradores respiram história, uma história em grande parte vergonhosa, da qual ninguém se orgulharia. Só para lembrar, em 1945 ainda não havia na era moderna um país que caíra mais fundo do que a Alemanha: sua soberania foi extinta, sua infraestrutura esmagada, sua economia paralisada, suas cidades reduzidas a entulho, a maioria da população estava faminta e desabrigada, havia sobreviventes em campos de prisioneiros de guerra e todo o país estava ocupado por exércitos estrangeiros. Nos anos seguintes os alemães queriam esquecer, deixar para trás o racismo, o imperialismo, o ódio, a artificialidade da superioridade pregada pela ideologia nazista. Aquilo nunca mais deveria se repetir. Ao final da Segunda Guerra Mundial (1945) com o país dividido em quatro zonas comandadas por soviéticos, franceses, britânicos e norte-americanos, vencedores da guerra, o intuito era apagar as marcas do nazismo e empreender um processo de reconstrução. Mas a União Soviética na pessoa de seu líder Stalin se recusou a participar do programa de recuperação, temendo por em risco a hegemonia de Moscou no leste europeu. Assim, com acordos diplomáticos, em 1949 a Alemanha racha em duas: República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã. Em 1961, decididos a conter o fluxo de refugiados, os comunistas erguem o Muro de Berlim, separando amigos, famílias e uma nação até 1989. Hoje, a 22 anos da reunificação, Berlim é uma cidade que não teme seu passado e parece estar sempre aberta ao futuro, ao fluxo de pessoas e culturas. Sua população tem em que(m) acreditar.
Um certo (e modesto) olhar
Documenta de Kassel? Já tinha ouvido falar sobre
esta exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos na Alemanha
e me empolguei com a ideia ir até lá conferir sua fama. Depois de uma semana de
mergulho na cultura berlinense nada parecia mais apropriado, inclusive pela oportunidade
de viajar pelos moderníssimos trens alemães. Cidade de uns 200 mil habitantes,
Kassel recebe a todos que chegam a sua estação para a Documenta com um tapete
vermelho. Um jeito simpático e de certa maneira despojado de anunciar a
importância deste período de cem dias em que a cidade é sede desta respeitada mostra.
Também um jeito de avisar os desavisados (meu caso) que se está diante de um
evento muito maior do que se imagina. Em sua 13ª edição, a primeira foi idealizada
em 1955 por Arnold Bode, professor de arte e design que, diante de uma Alemanha
pós-guerra devastada (também) culturalmente pela ditadura nazista, pretendia
abrir um amplo debate sobre as artes, preservar as tendências e reposicionar a
Alemanha no circuito internacional cultural. Quando se é um visitante do país
na atualidade, não é difícil se deparar com este espírito de reconstrução não
só geográfica, política ou cultural, mas moral. Há um grande empenho não mais
em romper com a herança sombria do passado, mas em repara-la continuamente. O
primeiro olhar de quem desce na estação central da cidade fica capturado pelo
“colorido” formado pelas pessoas. São muitos os que fazem parte do mundo das
artes e se organizam para estar em algum momento na cidade. E quando se tem
apenas dois dias um planejamento dos espaços e artistas a serem visitados é
mais do que necessário. De cara somos imersos em um mundo habitado por pessoas
que pensam a arte atual como uma forma de surpreender, de trazer novos sentidos
ao que já se conhece. De apresentar nosso mundo arte-cultural como um enorme
espaço sem fronteiras, mesmo quando são apresentadas suas diferenças e marcas. Uma
arte engajada, que quer pensar o futuro da vida humana por meio de todos os
debates possíveis, em relação à natureza, as novas formas de política, a
sustentabilidade ou ainda nas formas de sobrevivências econômicas, éticas e emocionais.
Arte em movimento, sempre a absorver os novos conhecimentos, a se renovar. Para
a curadora desta edição, a escritora ítalo-americana Carolyn
Christov-Bakargiev, uma arte que não é feita apenas por artistas, mas que inclui
historiadores, filósofos, físicos, ativistas ambientais, todos convidados a
refletir sobre as incertezas e os riscos que nos rondam, sobre a situação do
mundo atual. Por isso seu time foi composto por gestores provenientes das áreas
de artes, filosofia, biologia, física, antropologia, política, arquitetura e economia,
e as obras de 150 artistas de 55 países, escolhidas sem que o critério fosse necessariamente
fazer parte das estrelas do cenário contemporâneo. Utilizando, além dos museus
e o parque, um grande e eclético numero de espaços espalhados pela cidade para
as obras - a nova e a velha estação de trem, hotéis, bunker, campo de
concentração, um hospital desativado - o panorama geral estava mais para o
sensível e significativo do que para o espetacular e majestoso. Talvez o
exemplo mais interessante desta caracterização seja os dois trabalhos da dupla
canadense Janet Cardiff e George Miller.
Em um deles, talvez o mais genial, cada visitante deveria seguir o monitor de um
Ipod em uma visita guiada pela voz da artista na movimentada estação de trem,
percorrendo o mesmo percurso que ela fez no dia da gravação do vídeo,
surpreendendo-se com as intervenções de bandas, bailarinas, vozes, sons de pelotões
nazistas, silêncios ou ainda interrupções artificiais. É inevitável que o passado
e o presente, o real e o virtual se entrelacem. A mesma dupla assina outro
emocionante “sound art”, com caixas instaladas entre as árvores do Karlsaue
Park ( o majestoso parque da cidade) que recriam os bombardeios da segunda
guerra mundial, o transporte de judeus aos campos de concentração e termina com
vozes maravilhosas de um coral. Belíssimo!
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
Feridas expostas
Por ocasião das ultimas Olimpíadas de Londres várias
reportagens de diferentes jornais aproveitaram o tema para publicarem textos
que ressaltavam fatos da longa história deste evento, muitos sobre as tensões advindas
das dificuldades da convivência inevitável com a diversidade dos povos e suas
culturas. Uma delas relembrava a realizada em1936 em Berlim, palco das
Olimpíadas de Hitler, que aproveitou a ocasião para fazer uma pomposa propaganda
de seu regime tornando-a um momento histórico de sua glória, a despeito do
desejo do Comitê Olímpico Internacional de vetar tal acontecimento diante do
mal estar da ascensão do 3º Reich. Em 1972 a Alemanha sediava novamente as
Olimpíadas e quem sabe pretendendo sacodir um pouco tanta poeira construiu a
Vila Olímpica de Munique com capacidade para 16 mil pessoas, e um estádio (75
mil m²) que exibia uma inovadora obra de arquitetura, com teto suspenso de lona
transparente. Mas na manhã do dia 5 de setembro, um grupo de palestinos da
organização Setembro Negro invadiu os dormitórios da delegação israelense,
assassinou dois de seus atletas e fez outros nove de reféns em troca da
libertação de 200 árabes prisioneiros em Israel. Por muito pouco a Olimpíada
não se interrompeu. Qualquer um que decida visitar Berlim nos tempos atuais não
conseguirá deixar de lado a historia desta cidade que carrega as cicatrizes
mais violentas da historia (e da alma) alemã. Afinal não é pouca coisa ter sido
a sede da ascensão e queda do nazismo (e seus horrores) e em seguida ser
dividida em duas, “cedendo” ao longo de anos uma parte de seu corpo ao regime comunista
soviético. No entanto o que mais surpreende é perceber que hoje a cidade expõe suas
feridas sem nenhuma concessão, lado a lado com as melhores atrações das vanguardas
culturais, artísticas e musicais. Exemplo disso é a visita que se pode fazer a
partir do histórico Portão de Brandemburgo, marco do inicio da
cidade no século XIII, saqueado por Napoleão em 1806, terra de ninguém no
período pós- segunda guerra e principal ícone da queda da Cortina de Ferro em
1989. Pode-se conferir como Berlim lida com seu passado ao caminhar alguns
quarteirões a partir dali em direção ao Memorial do Holocausto (2005), uma
enorme e contundente sequência de pilares retangulares de concreto cinza escuro
que lembram lápides de túmulos, com alturas variadas. Idealizado pelo arquiteto
americano Peter Eisenman em memória aos judeus mortos sob o regime de Hitler-
embora não haja nenhuma menção às estas vítimas - convida o visitante tanto ao
sentimento de paz e liberdade quanto ao de claustrofobia ao recriar um clima de
isolamento e desorientação nos altos corredores. Próximo dali, em outro capítulo
da história a céu aberto, é possível ver partes do Muro de Berlim ou suas
cicatrizes marcadas nas ruas, visitar a sala do Silêncio (ONU) que incita os
visitantes a refletirem sobre a paz, se inteirar sobre a vida do lado
socialista de Berlim no memorial e Centro de Documentação do Muro que esmiúçam sua
construção e queda, assim como os curiosos métodos utilizados para atravessar a
fronteira. Tudo isso ao redor da agora moderníssima praça Potsdamer ,vinte e
três anos atrás cortada pelo muro (que chegou
a ter mais de 150 quilômetros de extensão),em que também é possível visitar o
recém aberto centro de documentação Topografia do Terror, construído sob os
antigos calabouços do aparelho policial nazista, quartel-general da SS e da
Gestapo, onde mais de 15 mil adversários do regime foram aprisionados e
torturados. Intrigante é também perceber que este passado histórico e seus
fantasmas não impedem Berlim de ser louvada por sua cultura, salsicha e
cerveja, uma cidade que recebe de braços abertos muitos estrangeiros, muitos
jovens, artistas, abriga uma enorme comunidade de turcos e exibe uma das
melhores economias da Europa. Se é fato que
suas cicatrizes compõem sua identidade, não há como não reverenciar certa
coragem na exposição de sua alma.
Sãos e insanos medos
Ano passado, ainda sob o impacto da fantástica
ascensão da rede social Facebook, um programa de TV, atrás de respostas para
tanto sucesso, entrevistava uma das jovens responsáveis pela equipe que alimentava
a empresa com “boas ideias”. Na tentativa de responder ao repórter sobre o
processo de criação ou mais propriamente de reflexão sobre os anseios e
preocupações da nova geração, ela citava dois slogans considerados pontos de
partida: não ficar siderado pela utopia da perfeição e forçar uma ultrapassagem
pela barreira do medo. Em resumo, se o feito é melhor que o perfeito, o que
você faria se não tivesse medo? Embora panfletária e charmosa, a frase bordeava
alguns dos dilemas de novas gerações, sempre às voltas com a dupla liberdade X
segurança. Um deles seria o medo. Não o que comanda o mantra que as gerações
anteriores costumam rezar sempre que percebem não terem mais à mão as antigas
referencias para as suas vidas, mas um medo de ordem mais endêmica, mais
visceral. Generalizado, como diria uma jovem amiga. Convicta de que as ameaças para a existência humana eram mais
óbvias, os perigos mais reais e havia menos mistérios sobre o que fazer para aliviá-los,
acha que os riscos de hoje são mais incertos, o que causaria muita insegurança
e uma busca sem fim por segurança e estabilidade. Assim se situa. Os estilos
de vida, crenças e convicções estariam mudando rapidamente antes de terem tempo
de se solidificar em costumes, hábitos e verdades o que contribuiria para que os
empregos e os relacionamentos em geral parecessem voláteis. Engenheira de
produção, minha aflita amiga também discorria sobre o panorama das empresas nas
quais trabalha que exigem competência, desempenho competitivo, iniciativa e
autonomia e nem sempre oferecem as antigas garantias de leis trabalhistas. Ao
invés disso, incentivam o mercado da subjetividade em que cada um pode ser
medido como “looser” ou “winner”
conforme se adapte ou não profissional e financeiramente aos seus valores. E
para os que se sentem meio perdidos, que busquem ajuda dos novos especialistas,
os “coach”. É verdade que desde que a vida humana passou a ser regulada pela
tecnologia e a busca da felicidade passou a fazer parte do avanço
biotecnológico, todos precisam de força, memória, atividade. Sai o regime das
certezas, abre-se o da multiplicidade, grande fonte de angustia. Tudo é
temporário. O surpreendente é que minha amiga, longe de fechar suas questões e
transforma-las em verdades, avaliava-as sob o prisma de sua geração, que não
possuiria o mesmo preparo que a de seu irmão mais novo, por exemplo. Ele já
pertenceria à geração Z (de zapear) um nativo digital que, segundo ela, teme
menos esse futuro, gosta das provocações e encara com bom humor a falta de
certezas e heróis. Age como se fosse natural sermos todos pessoas comuns, não
se impressiona com o excesso de informações que precisa filtrar e parece usufruir
mais os benefícios do que os riscos da evolução tecnológica. Nas redes sociais sabe
cultivar os laços e obter benesses do espaço de trocas, acolhimento e
solidariedade. Confiança necessária para o tipo de trabalho que faz em que as
pessoas se organizam em clusters ou em outras formas de cooperação. Ela se
aflige quando percebe que nestas poucas décadas, o futuro que levava séculos para
chegar, depois 100 anos, 50 e agora mal cumpre os 5 anos, nem lhe deixa espaço
para um respirar aliviada. Já seu irmão deve saber que vive no futuro, um
futuro cada vez mais focado no intangível. Se ele tem medo? Com certeza, de
outras coisas.
Próxima parada: Rio 2016
No último
dia 5 de agosto no caderno Ilustríssima da Folha de SP o chinês Ai Weiwei, artista
engajado de seu país, escrevia um texto ainda sob o impacto da cerimonia de
abertura das Olimpíadas de Londres. Crítico, comparava-a com a pompa apresentada
em Pequim 2008, que segundo ele, tinha de tudo, menos um sentimento de
autenticidade do povo chinês. Na contramão das críticas de muitos sobre o que acharam
ser britânica demais para o restante do mundo, Weiwei proclamou a inglesa de
festa de verdade, que refletia sua sociedade civil, sua gente, seus valores,
sua história, da rainha à enfermeira. Sem esconder uma admiração invejosa,
destacou o fato de ser a Inglaterra uma nação de indivíduos e não de um (único)
partido. Concordei (meio secretamente) com ele. Em meio a alguns que torciam o
nariz para a cerimonia de encerramento que aconteceu no domingo, 12 de agosto -
que de certa maneira completava a da abertura - fui tomada pela emoção quando
vi surgir na tela, ícones importantes de minha geração. O que podia ser
considerado brega e clichê me parecia uma ideia honesta e simples que agradava
e muito ao público presente. Em um mundo em que a tecnologia pode fabricar
efeitos especiais de tirar o fôlego de qualquer cidadão, a Inglaterra com sua
tradição de peso inquestionável escolhia apresentar sua cultura de forma
singela e alegre. Tal e qual uma grande festa musical, o que se via era um
verdadeiro desfile do cancioneiro pop britânico com grande parte de seus símbolos de ontem e hoje juntos. George
Michael, Annie Lennox, Pink Floyd, Spice Girls, The Who, Queen, Oasis foram
alguns que surgiram acompanhados dos quase quatro mil voluntários que se
dispuseram a cantar e dançar. Lá pelas tantas, imagens de John Lennon, depois de
Freddie Mercury, projetadas no telão levavam a plateia ao delírio. Nem mesmo o
peculiar humor inglês ficou fora, representado por Eric Idle, do Monty Python. A
boa música produzida pelos ingleses e dirigida principalmente aos jovens foi
escolhida para brilhar naquele encerramento. Para nós brasileiros, o final
daquela cerimonia significava o passe do bastão: - Agora é de vocês, sua hora
de preparar a cidade e organizar a “infra” para poder acolher e receber com
dignidade os mais de dez mil atletas e os milhares de turistas que prestigiam
esta festa esportiva. Uma festa que graças aos novos recursos de comunicação
parece estar sendo realizada logo ali, ao lado da casa de cada um. Que ao longo
dos séculos em que se repete guarda um desejo humano de superação de limites
físicos e mentais de corpos. Que pela primeira vez apresentou atletas de ambos
os sexos de todos os países participantes. Que ousou mandar para casa os
atletas que não compreenderam o sentido da “reunião” de povos e, portanto da
convivência com a diversidade, com o estrangeiro. Que apostou, em sua
organização, na “inspiração” que legaria às futuras gerações. Um modelito que
poderia ser levado em consideração pelos brasileiros que se ocuparão da
organização da próxima olimpíada. No entanto, numa visada geral, não são poucos
os brasileiros que andam antecipando seu sentimento de vergonha para os
possíveis furos de nossa hospedagem. Este mesmo ceticismo surpreendeu o governo
federal que imaginava uma grande mobilização pública em torno do tão esperado julgamento
do Mensalão. Em uma recente reportagem jornalística as câmeras mostravam o
pátio da Esplanada vazio e nem todas as cadeiras reservadas aos interessados ocupadas.
Esta é talvez a grande e nefasta consequência de episódios não transparentes em
seus custos e processos, que além de não produzirem benefícios para a
população, engordam os bolsos de políticos e empresários gulosos. Se a
organização de um grande evento como as Olimpíadas é sempre uma preocupação
para qualquer país que a realize, fica para cada um de nós, cidadãos
brasileiros a tarefa de encontrar modos que nos ajudem a prevenir (ou alardear)
a corrupção que em geral se associa a isso. Alguma ideia?
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