domingo, 30 de setembro de 2012

O que será que será?


Para quem não conhece, os filmes do diretor canadense David Cronenberg, embora cultuados, dirigem-se àquela parcela que curte e está sempre ligada à sétima arte e seus artistas (autores) singulares, já que em geral são bizarros e violentos principalmente por privilegiar os aspectos mais “animalescos” da espécie humana. Mas não era esta temática que ele anunciava no ultimo festival de Cannes (maio/2012), quando apareceu para a mídia ao lado do super-queridinho, o “bom e sedutor” vampiro Robert Pattinson da saga Crepúsculo, para falar de seu novo filme “Cosmópolis” cuja estreia no Brasil aconteceu no inicio deste mês. Ainda que considerado difícil e pesado pela crítica em geral, a estória pretende ser uma sátira-filosófica da crise geral de nossos tempos. No papel de um jovem e bem sucedido investidor da era digital, assiste-se ao personagem de RP passar um dia dentro de sua arrojadíssima limusine equipada para ser seu escritório, tentando chegar ao destino desejado, um barbeiro de infância com o qual quer cortar seu cabelo. É neste trajeto que ele irá rever o sentido de sua vida ao ser confrontado com situações inesperadas. Durante este percurso, cada personagem dos muitos que entram e saem de seu “office-car” estará representando e questionando uma fração significativa do modo de viver contemporâneo. Embora o diretor tenha dito em várias entrevistas que seu filme é sobre a esperança e que para se falar de esperança é necessário criticar duramente os modelos falidos criados por nós, os personagens, o diálogo, a intensidade, o humor acabam por produzir um certo mal estar, um tom excessivo. Na semana passada, em sua coluna semanal da Folha de SP, Vladimir Safatle parecia surpreso diante da resposta de sua filha de 12 anos a uma pergunta sua sobre como ela supunha ser o mundo em 2030. Imaginando que uma criança pudesse ter uma visão de um mundo que poderia ser moldado segundo seu desejo, a filha, ao contrário, apontava um futuro em que as cidades precisariam controlar as pessoas, as pessoas seriam obesas e os celulares funcionariam com hologramas, um espectro nem tão positivo. De certa maneira Safatle conclui como Cronenberg, que em momentos como estes, em que parece que vivemos uma grande crise, um certo caos e a falta de futuros à vista a anunciar o fim de uma era da sociedade como a conhecemos, há mais a criticar do que a sonhar. Por isso é mais cauteloso com a esperança, ao concluir que em um primeiro momento ela é recusada (como sua filha mostrou) para então retornar quando certas portas e saídas se abrem. Nesta semana entrou em São Paulo Tropicália, um documentário que apresenta um recorte da arte e da cultura do Brasil entre os anos 1967 e 1972, quando Caetano e Gil retornam de seu exilio em Londres. A década de 60 é lembrada pela historia ocidental como aquela em que os jovens de vários países quebraram inúmeros tabus e reivindicaram a liberdade de pensar, de agir, de amar, de cantar e de mudar muitas das falidas convenções. Embora o Brasil neste período tenha sido assolado pela censura cada vez mais dura da ditadura militar, o movimento tropicalista foi um aglutinador da cultura da época ao criar um tempero que incluía da música dos Beatles aos Mutantes e à Jovem Guarda, da banda de Pífaros de Caruaru aos sons afrobaianos, da bossa nova ao samba, do teatro de Zé Celso Martinez  ao cinema novo de Glauber, além da arte inovadora de Oiticica. Era um Brasil que buscava alguma identidade, uma cara nova. No final do documentário, as imagens da festa que recepcionava os baianos recém-chegados do exilio também aparecem sendo assistida pelos dois setentões, Gil e Caetano, emocionados, olhos marejados, como a conferir no pós- tempo, os resultados das intuições vividas na época sem que eles o soubessem. Demasiadamente humanos, os artistas (e os jovens) de todas as épocas costumam antecipar caminhos que eles mesmos desconhecem, ainda. Talvez porque o espírito da época não nos pertença, nós é que pertencemos a ele.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Mundo em (R)evolução?


Estávamos em um grupo que conversava sobre o evento, minutos antes que o palestrante entrasse para a sua conferencia. Físico bastante conhecido por divulgar suas ideias na mídia, perguntei-lhe porque alguns de seus colegas deixavam a profissão e tornavam-se uma espécie de pensadores a questionar o mundo e seus rumos. Com um sorriso irônico comentou que, ao longo de suas carreiras muitos físicos transformavam-se em filósofos medíocres. Não era o seu caso, pensei. E de certa maneira sua palestra respondia minha questão. Para encerrar o FDC Experience, um evento que pretendia mesclar arte, história e cultura e discutir as inter-relações entre gestão e brasilidade com o intuito de refletir sobre modelos futuros de gestão, ele havia escolhido falar sobre a importância da consciência de nossa insignificância. Apresentando-nos o universo espacial com suas milhares de galáxias e a nossa (Via Láctea) a qual pertence a Terra, o Sol e a Lua - tão reverenciados pelos inúmeros mitos de nossas origens- fomos sendo submetidos a esta nua e crua realidade. Graças ao acaso circunstancial da localização precisa entre o planeta Terra e sua “boa” estrela, o Sol, teria sido possível haver vida (e continuar havendo), ao podermos desfrutar de luz, de agua, de ar (oxigênio). O universo galáctico teria suas próprias leis de funcionamento, incontáveis estrelas que nascem vivem e morrem, muitas galáxias em formato de espiral cujo “ralo” seria um buraco negro “aspirador” e a ciência – leia-se todo o conhecimento produzido por nós, humanos  -  não desistiria de vasculhar sinais de vida inteligente (ainda não encontrados) ou indícios do tempo de vida restante de nosso planeta que depende de seu sol. No cálculo aproximado da formação deste imenso universo, a vida seria recente, mas decididamente não somos e nunca fomos o centro do universo. E se na foto de uma galáxia mal delineamos os pontinhos que comprovam a existência das estrelas e dos planetas, fica claro que não estamos nela. Não. O propósito estava longe de ser apocalíptico. Era sim um convite a reflexão, ao papel – a responsabilidade - que cada um teria sobre sua vida e a dos outros do planeta. Um convite a repensar os rumos de um mundo que nos pertence. Para uma plateia composta principalmente por gestores e empreendedores cujo futuro precisa estar planejado e os resultados necessitam acontecer em curto prazo, nada mais angustiante, ainda mais quando imersos em um sistema que premia a competividade, modelo pouco produtivo para um trabalho conjunto. E se a nossa foto de consumidores - comendo, bebendo, comprando, acumulando e trocando - já começa a apresentar sinais de um amarelo envelhecido, o futuro anuncia a importância do “ser humano”. Um ser humano que urge tomar para si as rédeas de sua vida sem se esquecer de que há outros ao seu redor. Que precisa inventar uma vida que não gire somente em volta de si ou da família, mas inclua a comunidade, o coletivo. Palavras fortes, comoventes até, mas distantes desta realidade e difíceis de serem administradas, pois portam o desafio da convivência com a diferença - racial, étnica, religiosa ou econômica – e impõem pensar um modo pelo qual pessoas diferentes umas das outras se relacionariam nas cidades e nas empresas, garantindo sua qualidade de vida em um modelo de cooperação. Otimista demais? Como lidar com o fato de se precisar de pessoas com as quais não se está conectado intimamente, as quais não se conhece bem ou não se goste? Quais as chances de nos tornarmos um “ser humano” mais preparado para esta vida adulta e complexa em que a confiança, algo intangível seria o combustível da vez? Questões que não só os físicos e os gestores se ocupam hoje, mas que parecem convocar todas as disciplinas a ultrapassarem suas fronteiras para pensarem o futuro deste “ser humano”.

 

 

 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Acreditar em que(m)?


Próximos a mais uma eleição para prefeitos e vereadores, propagandas eleitorais correndo soltas, parece que paira uma certa apatia generalizada na população. É possível que a falta de confiança nos candidatos (sejam eles de que partido forem), imprescindível para que haja possibilidade de esperança de mudanças, esteja ligada a constatação geral de que nossos políticos reduziram drasticamente seu compromisso com algum futuro das cidades, ou do país e passam seus dias atrás de acordos e conchavos que garantam as benesses de suas carreiras, as vantagens pessoais e as ligações importantes com o poder e o dinheiro. É desolador imaginar que a maioria dos discursos é vazio, meras propagandas enganosas, sem qualquer comprometimento real com o futuro. E quando a suspeita de se estar sendo enganado ou ludibriado se mantém por um longo tempo não só os candidatos perdem, mas o sistema como um todo. Um funcionamento corrupto mina a confiança nas instituições e no Estado, cria um clima de desconfiança e descrença, dissemina insegurança e sentimento de impotência. A pergunta intrigante fica por conta de um certo “deixa estar” característico de um modo “brasileiro” de ser e viver. No ultimo domingo, 9 de setembro, o caderno Aliás do Estadão trazia uma reportagem sobre a Comissão da Verdade recém nomeada para investigar os “porões” da ditadura militar, ocasião em que muitos desapareceram deixando suas famílias a deriva, sem noticias sobre suas mortes, seus corpos. O texto cobrava uma maior abertura de suas reuniões, com ampla divulgação dos depoimentos dos familiares de desaparecidos políticos, muitos feitos pela terceira geração, com sobrinhos ou netos. Como a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça ou punir, não haveria sentido não expor à sociedade as atrocidades cometidas no passado recente do país. Afinal porque não investir na verdade como ferramenta de conscientização, como elaboração da nossa história, como construção de nossa memória histórica? A pergunta aflita do autor escondia seu temor de que tudo não passasse de mais um protocolo, sem chances de produzir algum debate publico ou algum impacto social sobre tal passado vexatório. Seu comentário não passou batido porque, recém-chegada de Berlim, pude constatar como, ao contrário de tanto sigilo, a Alemanha se decidiu por uma espécie de aprendizado moral e cultural que surpreende a todos que a visitam, ao manter um museu a céu aberto, em que todos, turistas e moradores respiram história, uma história em grande parte vergonhosa, da qual ninguém se orgulharia. Só para lembrar, em 1945 ainda não havia na era moderna um país que caíra mais fundo do que a Alemanha: sua soberania foi extinta, sua infraestrutura esmagada, sua economia paralisada, suas cidades reduzidas a entulho, a maioria da população estava faminta e desabrigada, havia sobreviventes em campos de prisioneiros de guerra e todo o país estava ocupado por exércitos estrangeiros. Nos anos seguintes os alemães queriam esquecer, deixar para trás o racismo, o imperialismo, o ódio, a artificialidade da superioridade pregada pela ideologia nazista. Aquilo nunca mais deveria se repetir. Ao final da Segunda Guerra Mundial (1945) com o país dividido em quatro zonas comandadas por soviéticos, franceses, britânicos e norte-americanos, vencedores da guerra, o intuito era apagar as marcas do nazismo e empreender um processo de reconstrução. Mas a União Soviética na pessoa de seu líder Stalin se recusou a participar do programa de recuperação, temendo por em risco a hegemonia de Moscou no leste europeu. Assim, com acordos diplomáticos, em 1949 a Alemanha racha em duas: República Federal da Alemanha e  República Democrática Alemã. Em 1961, decididos a conter o fluxo de refugiados, os comunistas erguem o Muro de Berlim, separando amigos, famílias e uma nação até 1989. Hoje, a 22 anos da reunificação, Berlim é uma cidade que não teme seu passado e parece estar sempre aberta ao futuro, ao fluxo de pessoas e culturas. Sua população tem em que(m) acreditar. 

Um certo (e modesto) olhar


Documenta de Kassel? Já tinha ouvido falar sobre esta exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos na Alemanha e me empolguei com a ideia ir até lá conferir sua fama. Depois de uma semana de mergulho na cultura berlinense nada parecia mais apropriado, inclusive pela oportunidade de viajar pelos moderníssimos trens alemães. Cidade de uns 200 mil habitantes, Kassel recebe a todos que chegam a sua estação para a Documenta com um tapete vermelho. Um jeito simpático e de certa maneira despojado de anunciar a importância deste período de cem dias em que a cidade é sede desta respeitada mostra. Também um jeito de avisar os desavisados (meu caso) que se está diante de um evento muito maior do que se imagina. Em sua 13ª edição, a primeira foi idealizada em 1955 por Arnold Bode, professor de arte e design que, diante de uma Alemanha pós-guerra devastada (também) culturalmente pela ditadura nazista, pretendia abrir um amplo debate sobre as artes, preservar as tendências e reposicionar a Alemanha no circuito internacional cultural. Quando se é um visitante do país na atualidade, não é difícil se deparar com este espírito de reconstrução não só geográfica, política ou cultural, mas moral. Há um grande empenho não mais em romper com a herança sombria do passado, mas em repara-la continuamente. O primeiro olhar de quem desce na estação central da cidade fica capturado pelo “colorido” formado pelas pessoas. São muitos os que fazem parte do mundo das artes e se organizam para estar em algum momento na cidade. E quando se tem apenas dois dias um planejamento dos espaços e artistas a serem visitados é mais do que necessário. De cara somos imersos em um mundo habitado por pessoas que pensam a arte atual como uma forma de surpreender, de trazer novos sentidos ao que já se conhece. De apresentar nosso mundo arte-cultural como um enorme espaço sem fronteiras, mesmo quando são apresentadas suas diferenças e marcas. Uma arte engajada, que quer pensar o futuro da vida humana por meio de todos os debates possíveis, em relação à natureza, as novas formas de política, a sustentabilidade ou ainda nas formas de sobrevivências econômicas, éticas e emocionais. Arte em movimento, sempre a absorver os novos conhecimentos, a se renovar. Para a curadora desta edição, a escritora ítalo-americana Carolyn Christov-Bakargiev, uma arte que não é feita apenas por artistas, mas que inclui historiadores, filósofos, físicos, ativistas ambientais, todos convidados a refletir sobre as incertezas e os riscos que nos rondam, sobre a situação do mundo atual. Por isso seu time foi composto por gestores provenientes das áreas de artes, filosofia, biologia, física, antropologia, política, arquitetura e economia, e as obras de 150 artistas de 55 países, escolhidas sem que o critério fosse necessariamente fazer parte das estrelas do cenário contemporâneo. Utilizando, além dos museus e o parque, um grande e eclético numero de espaços espalhados pela cidade para as obras - a nova e a velha estação de trem, hotéis, bunker, campo de concentração, um hospital desativado - o panorama geral estava mais para o sensível e significativo do que para o espetacular e majestoso. Talvez o exemplo mais interessante desta caracterização seja os dois trabalhos da dupla canadense Janet Cardiff  e George Miller. Em um deles, talvez o mais genial, cada visitante deveria seguir o monitor de um Ipod em uma visita guiada pela voz da artista na movimentada estação de trem, percorrendo o mesmo percurso que ela fez no dia da gravação do vídeo, surpreendendo-se com as intervenções de bandas, bailarinas, vozes, sons de pelotões nazistas, silêncios ou ainda interrupções artificiais. É inevitável que o passado e o presente, o real e o virtual se entrelacem. A mesma dupla assina outro emocionante “sound art”, com caixas instaladas entre as árvores do Karlsaue Park ( o majestoso parque da cidade) que recriam os bombardeios da segunda guerra mundial, o transporte de judeus aos campos de concentração e termina com vozes maravilhosas de um coral. Belíssimo!

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Feridas expostas


Por ocasião das ultimas Olimpíadas de Londres várias reportagens de diferentes jornais aproveitaram o tema para publicarem textos que ressaltavam fatos da longa história deste evento, muitos sobre as tensões advindas das dificuldades da convivência inevitável com a diversidade dos povos e suas culturas. Uma delas relembrava a realizada em1936 em Berlim, palco das Olimpíadas de Hitler, que aproveitou a ocasião para fazer uma pomposa propaganda de seu regime tornando-a um momento histórico de sua glória, a despeito do desejo do Comitê Olímpico Internacional de vetar tal acontecimento diante do mal estar da ascensão do 3º Reich. Em 1972 a Alemanha sediava novamente as Olimpíadas e quem sabe pretendendo sacodir um pouco tanta poeira construiu a Vila Olímpica de Munique com capacidade para 16 mil pessoas, e um estádio (75 mil m²) que exibia uma inovadora obra de arquitetura, com teto suspenso de lona transparente. Mas na manhã do dia 5 de setembro, um grupo de palestinos da organização Setembro Negro invadiu os dormitórios da delegação israelense, assassinou dois de seus atletas e fez outros nove de reféns em troca da libertação de 200 árabes prisioneiros em Israel. Por muito pouco a Olimpíada não se interrompeu. Qualquer um que decida visitar Berlim nos tempos atuais não conseguirá deixar de lado a historia desta cidade que carrega as cicatrizes mais violentas da historia (e da alma) alemã. Afinal não é pouca coisa ter sido a sede da ascensão e queda do nazismo (e seus horrores) e em seguida ser dividida em duas, “cedendo” ao longo de anos uma parte de seu corpo ao regime comunista soviético. No entanto o que mais surpreende é perceber que hoje a cidade expõe suas feridas sem nenhuma concessão, lado a lado com as melhores atrações das vanguardas culturais, artísticas e musicais. Exemplo disso é a visita que se pode fazer a partir do histórico Portão de Brandemburgo, marco do inicio da cidade no século XIII, saqueado por Napoleão em 1806, terra de ninguém no período pós- segunda guerra e principal ícone da queda da Cortina de Ferro em 1989. Pode-se conferir como Berlim lida com seu passado ao caminhar alguns quarteirões a partir dali em direção ao Memorial do Holocausto (2005), uma enorme e contundente sequência de pilares retangulares de concreto cinza escuro que lembram lápides de túmulos, com alturas variadas. Idealizado pelo arquiteto americano Peter Eisenman em memória aos judeus mortos sob o regime de Hitler- embora não haja nenhuma menção às estas vítimas - convida o visitante tanto ao sentimento de paz e liberdade quanto ao de claustrofobia ao recriar um clima de isolamento e desorientação nos altos corredores. Próximo dali, em outro capítulo da história a céu aberto, é possível ver partes do Muro de Berlim ou suas cicatrizes marcadas nas ruas, visitar a sala do Silêncio (ONU) que incita os visitantes a refletirem sobre a paz, se inteirar sobre a vida do lado socialista de Berlim no memorial e Centro de Documentação do Muro que esmiúçam sua construção e queda, assim como os curiosos métodos utilizados para atravessar a fronteira. Tudo isso ao redor da agora moderníssima praça Potsdamer ,vinte e três anos atrás  cortada pelo muro (que chegou a ter mais de 150 quilômetros de extensão),em que também é possível visitar o recém aberto centro de documentação Topografia do Terror, construído sob os antigos calabouços do aparelho policial nazista, quartel-general da SS e da Gestapo, onde mais de 15 mil adversários do regime foram aprisionados e torturados. Intrigante é também perceber que este passado histórico e seus fantasmas não impedem Berlim de ser louvada por sua cultura, salsicha e cerveja, uma cidade que recebe de braços abertos muitos estrangeiros, muitos jovens, artistas, abriga uma enorme comunidade de turcos e exibe uma das melhores economias da Europa. Se é fato  que suas cicatrizes compõem sua identidade, não há como não reverenciar certa coragem na exposição de sua alma.

Sãos e insanos medos


Ano passado, ainda sob o impacto da fantástica ascensão da rede social Facebook, um programa de TV, atrás de respostas para tanto sucesso, entrevistava uma das jovens responsáveis pela equipe que alimentava a empresa com “boas ideias”. Na tentativa de responder ao repórter sobre o processo de criação ou mais propriamente de reflexão sobre os anseios e preocupações da nova geração, ela citava dois slogans considerados pontos de partida: não ficar siderado pela utopia da perfeição e forçar uma ultrapassagem pela barreira do medo. Em resumo, se o feito é melhor que o perfeito, o que você faria se não tivesse medo? Embora panfletária e charmosa, a frase bordeava alguns dos dilemas de novas gerações, sempre às voltas com a dupla liberdade X segurança. Um deles seria o medo. Não o que comanda o mantra que as gerações anteriores costumam rezar sempre que percebem não terem mais à mão as antigas referencias para as suas vidas, mas um medo de ordem mais endêmica, mais visceral. Generalizado, como diria uma jovem amiga. Convicta de que as ameaças para a existência humana eram mais óbvias, os perigos mais reais e havia menos mistérios sobre o que fazer para aliviá-los, acha que os riscos de hoje são mais incertos, o que causaria muita insegurança e uma busca sem fim por segurança e estabilidade. Assim se situa. Os estilos de vida, crenças e convicções estariam mudando rapidamente antes de terem tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades o que contribuiria para que os empregos e os relacionamentos em geral parecessem voláteis. Engenheira de produção, minha aflita amiga também discorria sobre o panorama das empresas nas quais trabalha que exigem competência, desempenho competitivo, iniciativa e autonomia e nem sempre oferecem as antigas garantias de leis trabalhistas. Ao invés disso, incentivam o mercado da subjetividade em que cada um pode ser medido como “looser” ou  “winner” conforme se adapte ou não profissional e financeiramente aos seus valores. E para os que se sentem meio perdidos, que busquem ajuda dos novos especialistas, os “coach”. É verdade que desde que a vida humana passou a ser regulada pela tecnologia e a busca da felicidade passou a fazer parte do avanço biotecnológico, todos precisam de força, memória, atividade. Sai o regime das certezas, abre-se o da multiplicidade, grande fonte de angustia. Tudo é temporário. O surpreendente é que minha amiga, longe de fechar suas questões e transforma-las em verdades, avaliava-as sob o prisma de sua geração, que não possuiria o mesmo preparo que a de seu irmão mais novo, por exemplo. Ele já pertenceria à geração Z (de zapear) um nativo digital que, segundo ela, teme menos esse futuro, gosta das provocações e encara com bom humor a falta de certezas e heróis. Age como se fosse natural sermos todos pessoas comuns, não se impressiona com o excesso de informações que precisa filtrar e parece usufruir mais os benefícios do que os riscos da evolução tecnológica. Nas redes sociais sabe cultivar os laços e obter benesses do espaço de trocas, acolhimento e solidariedade. Confiança necessária para o tipo de trabalho que faz em que as pessoas se organizam em clusters ou em outras formas de cooperação. Ela se aflige quando percebe que nestas poucas décadas, o futuro que levava séculos para chegar, depois 100 anos, 50 e agora mal cumpre os 5 anos, nem lhe deixa espaço para um respirar aliviada. Já seu irmão deve saber que vive no futuro, um futuro cada vez mais focado no intangível. Se ele tem medo? Com certeza, de outras coisas.

Próxima parada: Rio 2016


No último dia 5 de agosto no caderno Ilustríssima da Folha de SP o chinês Ai Weiwei, artista engajado de seu país, escrevia um texto ainda sob o impacto da cerimonia de abertura das Olimpíadas de Londres. Crítico, comparava-a com a pompa apresentada em Pequim 2008, que segundo ele, tinha de tudo, menos um sentimento de autenticidade do povo chinês. Na contramão das críticas de muitos sobre o que acharam ser britânica demais para o restante do mundo, Weiwei proclamou a inglesa de festa de verdade, que refletia sua sociedade civil, sua gente, seus valores, sua história, da rainha à enfermeira. Sem esconder uma admiração invejosa, destacou o fato de ser a Inglaterra uma nação de indivíduos e não de um (único) partido. Concordei (meio secretamente) com ele. Em meio a alguns que torciam o nariz para a cerimonia de encerramento que aconteceu no domingo, 12 de agosto - que de certa maneira completava a da abertura - fui tomada pela emoção quando vi surgir na tela, ícones importantes de minha geração. O que podia ser considerado brega e clichê me parecia uma ideia honesta e simples que agradava e muito ao público presente. Em um mundo em que a tecnologia pode fabricar efeitos especiais de tirar o fôlego de qualquer cidadão, a Inglaterra com sua tradição de peso inquestionável escolhia apresentar sua cultura de forma singela e alegre. Tal e qual uma grande festa musical, o que se via era um verdadeiro desfile do cancioneiro pop britânico com grande parte de seus  símbolos de ontem e hoje juntos. George Michael, Annie Lennox, Pink Floyd, Spice Girls, The Who, Queen, Oasis foram alguns que surgiram acompanhados dos quase quatro mil voluntários que se dispuseram a cantar e dançar. Lá pelas tantas, imagens de John Lennon, depois de Freddie Mercury, projetadas no telão levavam a plateia ao delírio. Nem mesmo o peculiar humor inglês ficou fora, representado por Eric Idle, do Monty Python. A boa música produzida pelos ingleses e dirigida principalmente aos jovens foi escolhida para brilhar naquele encerramento. Para nós brasileiros, o final daquela cerimonia significava o passe do bastão: - Agora é de vocês, sua hora de preparar a cidade e organizar a “infra” para poder acolher e receber com dignidade os mais de dez mil atletas e os milhares de turistas que prestigiam esta festa esportiva. Uma festa que graças aos novos recursos de comunicação parece estar sendo realizada logo ali, ao lado da casa de cada um. Que ao longo dos séculos em que se repete guarda um desejo humano de superação de limites físicos e mentais de corpos. Que pela primeira vez apresentou atletas de ambos os sexos de todos os países participantes. Que ousou mandar para casa os atletas que não compreenderam o sentido da “reunião” de povos e, portanto da convivência com a diversidade, com o estrangeiro. Que apostou, em sua organização, na “inspiração” que legaria às futuras gerações. Um modelito que poderia ser levado em consideração pelos brasileiros que se ocuparão da organização da próxima olimpíada. No entanto, numa visada geral, não são poucos os brasileiros que andam antecipando seu sentimento de vergonha para os possíveis furos de nossa hospedagem. Este mesmo ceticismo surpreendeu o governo federal que imaginava uma grande mobilização pública em torno do tão esperado julgamento do Mensalão. Em uma recente reportagem jornalística as câmeras mostravam o pátio da Esplanada vazio e nem todas as cadeiras reservadas aos interessados ocupadas. Esta é talvez a grande e nefasta consequência de episódios não transparentes em seus custos e processos, que além de não produzirem benefícios para a população, engordam os bolsos de políticos e empresários gulosos. Se a organização de um grande evento como as Olimpíadas é sempre uma preocupação para qualquer país que a realize, fica para cada um de nós, cidadãos brasileiros a tarefa de encontrar modos que nos ajudem a prevenir (ou alardear) a corrupção que em geral se associa a isso. Alguma ideia?