quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Falar o que?


O filósofo francês Michel de Montaigne (1533-92) é geralmente evocado por todos aqueles que escrevem ou que elegem a escrita como forma de entender o mundo e as pessoas. Foi ele quem, em seu “Ensaios” inaugurou uma certa informalidade na escolha dos temas a serem tratados, dedicando-se a analisar o cotidiano das pessoas e incluindo-se ao descrever suas experiências e referir-se às próprias dúvidas, prazeres e inquietações. Manteve-se como uma referencia também por seu estilo charmoso, elegante, inteligente e bem humorado, além de ter caracterizado sua análise  por uma postura tolerante em relação às ações e sentimentos humanos comezinhos. Um verdadeiro precursor dos blogueiros do século XXI já que, ao contrário da época em que viveu, hoje ninguém se surpreende com relatos feitos na primeira pessoa em que se acentuam as cores do íntimo e do psicológico. Nestes 500 séculos que nos separam desta época, o lugar do privado e do publico sofreu transformações interessantes. No auge da consolidação da era moderna, em pleno século XVIII a divisão nítida entre estes dois espaços era condição sine qua non. Na esfera pública, os indivíduos eram cidadãos, submetidos a leis e normas impostas pelo Estado, enquanto na esfera privada eram pessoas prontas a defender seus interesses individuais. A família, o trabalho e os negócios eram espaços privados, e a política e o Estado, públicos. A tensão permanente entre o público e o privado foi se intensificando à medida que as sociedades se tornaram mais complexas. Dentre as múltiplas variáveis, certamente a mídia e a literatura contribuíram para que o espaço privado ampliasse seus tentáculos e invadisse o publico. Hoje quase todos os que escrevem o fazem traduzindo a realidade segundo seus pontos de vista, mesmo quando pretendem uma compilação de fatos passados, já que as narrativas de muitos historiadores levam seus leitores ao seu “imaginado” passado. Também nos parece natural ler um texto em que seu autor é um tradutor de si mesmo, capaz de transformar seu universo intimo e subjetivo em um mundo que faça sentido e gere interesse aos seus leitores. Um colunista, que como eu, tem como tarefa, a cada semana, escolher – entre as inúmeras opções que nossa vida contemporânea oferece- um tema que possa ser minimamente interessante, poderia se sentir “esgotado”, enfastiado, perdido e outros tantos adjetivos aflitivos. Mas se ele se mantém escrevendo ao longo dos anos, é provável que o exercício da escrita lhe seja não só prazeroso, mas importante. Em geral, aqueles que escrevem por prazer, são os que estão sempre conferindo/perscrutando a vida, o mundo, as pessoas, os lugares, as tramas, os desassossegos, as alegrias, em um interminável questionamento das razões de se viver. E é quase certo que os temas elegidos lhe sejam caros, o que faz com que o texto adquira um tônus vital e encarnado, que contenha algumas respostas para as suas infinitas perguntas.

Sem-noção


Adjetivo praticamente instituído nos tempos de hoje, o “sem-noção” ganhou um lugar comum nas conversas cotidianas quando queremos nos referir a alguém que adota comportamentos, vestimentas, diálogos ou modos de vida que causem muito estranhamento por nos parecer excessivo, descabido ou desrespeitoso. Isso pode se aplicar a questões morais, mas também ao exibicionismo ou a certa intransigência, autoritarismo e/ou violência nas relações pessoais. É assim que no convívio, estas pessoas ganham uma identidade, são sem- noção, e passam a ser consenso entre os que o conhecem a tal ponto que basta utilizar tal adjetivo para que o diálogo sobre o fulano passe a ganhar um novo entendimento. É como se todos que participassem daquela conversa- em que o sem-noção não está presente – soubessem que ele tem limitações importantes e definitivas sempre que está em jogo o convívio, as trocas, os salamaleques, as delicadezas, etc. A classificação acalma e apazigua as inflamações e indignações sobre ele. Mas porque este tipo parece proliferar? Quem é o “sem noção”? Um disfuncional? Arrogante? Maldoso? Autoritário? Foi a partir de um questionamento feito por alguns amigos próximos quanto à maior incidência de “sem-noções” que o tema ganhou discussão acalorada em uma roda de conversas. Foram lembrados alguns personagens que ao conquistarem uma posição social mais alta, passam a acumular objetos que lhe emprestam visibilidade e prestigio, e a praticar  nos espaços públicos, ou um exibicionismo ruidoso com publicações em redes sociais de fotos que comprovem sua vida de celebridade ou certo autoritarismo, exibindo sem qualquer constrangimento uma discriminação em relação aos comuns. Seu carro pode parar em locais não permitidos, por exemplo, em fila dupla ou com o pisca ligado enfrente a bancos, escolas, farmácias, etc., como se concedessem a si próprios privilégios vetados aos outros mortais. Mas também foi destacada certa falta geral de etiquetas e limites fundamentais para espaços compartilhados. A impaciência que muitas vezes desemboca em comportamentos ou falas violentas e que vem sendo cada vez mais comuns no trânsito chega a assustar. São buzinas e gritarias para qualquer cidadão que estiver obstruindo o caminho. E assim, outras situações foram elencadas, desde atender o celular em qualquer lugar ou hora e falar por tempo indeterminado sem diminuir o tom de voz até sentir-se à vontade para tecer comentários sobre qualquer assunto, com pessoas que não são íntimas, sem que estas tivessem feito algum convite. Ao final, permanece a impressão de que estamos diante de pessoas que não construíram internamente uma percepção de si e dos outros que lhes possibilitasse  gestar sua convivência pública. Alguns argumentos se impuseram. O “sem-noção” seria um personagem tupiniquim? Ele incide mais em certos países em desenvolvimento tal como o nosso, que não têm um histórico civilizatório importante? Diante da demanda do mundo contemporâneo para que cada um gerencie sua própria vida, quem se ocupa de oferecer subsídios para que sejam preservadas algumas regras mínimas de convivência desde que a família de origem perdeu seu espaço antes único de doador destas referências? Sabemos que na atualidade, ao ser convidado a se tornar visível para confirmar sua existência no mundo, cada individuo faz uma leitura pessoal deste percurso, segundo seus critérios ou possibilidades. Ainda que a maior parte da população mundial nunca tenha desfrutado de tamanha liberdade de escolha para suas vidas, o que parece se impor ao convívio humano é que deve caber a cada um o trabalho psíquico de construção de um lugar de “ ser gente”. De fato, em pequenas ou grandes proporções todos podemos ser “sem-noção”. Tornar-se alguém benquisto, amável e educado exige uma métrica de autocrítica que não faz parte da genética de ninguém, ao contrário, precisa ser exaustiva e ativamente construída ao longo da vida, o que transforma tal lugar em um posto a ser conquistado, que tem seus custos sempre atualizados.

Concessões


Por ocasião do cinquentenário do assassinato de John Kennedy inúmeros textos foram produzidos, cada um contendo análises próprias, fossem sobre sua vida, amores, ideias, sonhos, fracassos ou sobre o conturbado período em que governou o país que no último século manteve uma soberania econômica, tecnológica e militar sobre os demais. Canais de TV também exibiram reportagens e documentários com destaques ao casal Jackie e John e repetiram à exaustão a cena dramática do assassinato em Dallas no fatídico 22 de novembro de 1963. Não pude deixar de me lembrar desta data, de nossa TV (ainda em branco e preto) ligada e de meus pais consternados com a notícia. Era uma sexta-feira, um dia de semana comum de trabalho e escola, mas na pacata cidade interiorana em que eu vivia era visível o impacto que a notícia causava aos adultos que eu conhecia. Naquele dia, a televisão da maioria das casas ficou ligada o dia todo, a espera de novas notícias que pudessem contribuir com explicações sobre aquele episodio inesperado. De todo o modo, graças àquela morte e às imagens que se seguiram mostrando o belo casal, minhas lembranças adquiriram tonalidades românticas. Jackie Kennedy, até então desconhecida, passou a ser íntima. Suas aparições em fotos de revistas ou cenas na TV despertavam o interesse de todas as mulheres, prontas a conferir sua elegância e seu visual impecável, porta-voz que era dos estilistas mais badalados da época. As imagens de John divulgadas pela mídia privilegiavam seu convívio familiar ou seus discursos, sempre acompanhados de muito público. Sua morte ajudava a perpetuar um imaginário sentimental ao qual muitos desejavam preservar, principalmente os americanos, que se orgulhavam das cenas de sua “realeza”. Passados cinquenta anos, no entanto, a aura romântica que tanto protegeu o casal Kennedy alterou-se tal e qual as antigas fotos que perdem sua nitidez com o tempo. As gerações atuais, sem muitos compromissos com as nostálgicas lembranças deste reinado, não poupam JFK de seu lado B. Jornalistas e cientistas políticos analisam criticamente a era Kennedy separando o joio do trigo em uma demonstração cabal de que o texto de uma vida admite múltiplas versões. Ficamos sabendo que a conquista de seu cargo de presidente, por exemplo, acontece graças à morte de seu irmão mais velho (e mais inteligente) durante a segunda guerra mundial, aquele que o pai havia designado desde sempre para tal posto. Ao contrário de Joe Jr., John teria tido uma vida acadêmica medíocre o que refletia no seu despreparo para com a complexa gestão do poder e da política do USA, apesar de seu carisma. Além disso, reportagens, depoimentos e livros mapearam a impressionante coleção de namoradas e amantes do presidente, que em tempos de mídia instantânea e redes sociais não teria sobrevivido politicamente aos escândalos. E se a historia de sua vida admite reinterpretações, sua morte o imortalizou em diferentes papéis, desde o conquistador e presidente jovial, até o herói americano e símbolo de uma época. Mesmo a porcentagem de americanos ultraconservadores - aos quais muitos atribuem sua morte - que o viam como um político non grato, democrata, católico, socialista e antiamericano, fizeram as pazes com seu passado de ódio após o impacto de seu assassinato, contribuindo para a manutenção das muitas teorias conspiratórias envolvendo a máfia, a CIA, os cubanos, etc. E ainda que hoje seja possível analisar o abuso de poder e de privilégios que Kennedy exibia sem constrangimentos, ele foi responsável por medidas importantes como o Ato dos Direitos Civis, que acabaria com todas as formas de segregação racial ainda existentes no país. De toda a forma, John F. Kennedy, democrata e primeiro presidente católico em um país majoritariamente protestante desfrutou, enquanto viveu e depois que morreu, destas concessões que fazemos a alguns, quando os elegemos portadores de partes ideais de nós mesmos. Especiais.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Duas vezes mãe

Poucos anos atrás uma amiga querida telefonou-me para contar emocionada que sua filha mais velha estava grávida. Uma mistura de sentimentos a invadia e ela ansiava por uma conversa longa na expectativa de que alguma organização deste tumulto pudesse acalma-la. Aceitei prontamente o desafio, antecipando certo prazer nesta troca que, a meu ver, poderia se tornar fecunda para ambas. Estava longe de imaginar como a gestação de sua condição de avó seria construída passo por passo com idas e vindas em um misto de aflição e prazer, mas principalmente em um reviver nada tranquilo de sua própria gravidez. Muitas estórias depois, começou a despontar o espaço novo em que a futura neta iria habitar. Que avó ela queria ser para aquela menininha? Que valores ou afetos ela haveria de privilegiar na tarefa de transmissão a que ela estava se propondo? Mais uma rodada de lembranças foi acionada na tentativa de situar sua mãe, falecida já há algum tempo, naquela condição de avó. Alguém que felizmente havia estado muito presente e teria contribuído bastante para que os primeiros cuidados com sua bebê - que agora gestava sua netinha - pudessem parecer-lhe menos assustadores. Foram nove meses intensos em que pude compartilhar com minha amiga uma mudança de peso na sua vida, primeiro na interior, e depois na cuidadosa disposição do tempo para os afazeres de sua rotina, abrindo espaços que seriam preenchidos por seu convívio com Alice, a netinha. O zelo e a responsabilidade com que ela tratara seu novo status me tocaram. Sem nunca se questionar, ela havia “trabalhado” de forma incansável, tentando não se esquecer de nenhuma letra do alfabeto. Tanto empenho me levava a refletir sobre as características de “tonar-se avó” e como esta função estaria diferente nos tempos de hoje. Não é difícil detectar um lugar comum que habita o imaginário de ser avó e classifica esta condição como algo “finalmente” prazeroso, já que ao contrário da maternidade com suas responsabilidades extremas, as avós podem deitar e rolar com seus netinhos sem se preocupar com as obrigações educacionais e seus limites, em geral cansativos por demandarem exaustivas intervenções. É possível que a figura da avó complacente das famílias de gerações mais antigas cumprisse mais este papel de assegurar um pouquinho de liberdade ilimitada-  aqui você é rei/ rainha- para fazer um contraponto diante das inúmeras obrigações que os pais precisavam impor aos pimpolhos. Por outro lado o “tornar-se mãe ou pai” atualmente está longe daqueles tempos em que tal função era praticamente naturalizada, ou seja, de pai para filho, de mãe para filha e assim sucessivamente. Muitas e novas variáveis passaram a contar, desde as mudanças nos papéis da mulher, que pode fazer inúmeras opções em sua vida, inclusive a de não se casar ou ter filhos, até na configuração das novas famílias, que em muitos casos agregam filhos, pais e avós de outros relacionamentos. No caso das avós, uma grande parte trabalha, tem vidas com agendas cheias e nem sempre estão dispostas, como minha amiga, a abrirem uma picada nova na paisagem construída durante anos. Mas é verdade que a relação entre os avós e seus netos pode ser muito prazerosa. Sem muitos modelos prévios, no entanto, parece que cada um pode construir sua condição de avô ou avó, incrementando-os com seus desejos. A amiga citada acima planejou com cuidado sua nova função, tomando-a como uma passagem a qual ela deveria e queria se preparar. Outra, cujo humor fino a caracteriza, avó de três netos, em resposta a minha pergunta sobre como tinha sido para ela “tornar-se avó” respondeu prontamente: há um antes e um depois. Em seu rosto nenhum sinal de que a frase pudesse habitar somente um dos lados entre o prazer e o fardo.

Liberdade, igualdade, fraternidade?

Há pouco mais de 200 anos, a França era palco de uma das revoluções mais importantes, marco da era moderna. Ali, o povo se rebelava contra a tradição e a hierarquia de monarcas e aristocratas, além da então corrupta e poderosa Igreja Católica. Claro que a realeza, tomada de susto, se organizou e durante algumas décadas lutou para restaurar a monarquia, o que veio a acontecer com a era Bonaparte, mas estava cravado na história do ocidente e no coração das pessoas, a esperança de um mundo em que fosse possível a soberania do povo, o exercício da autoridade regido por leis promulgadas por assembleias eleitas, a supressão de privilégios antes instituídos, etc. As grandes guerras mundiais justificavam-se pela busca deste mundo mais justo. No ultimo século, as ideias em torno desta “esperança” movimentaram-se bastante. Se conquistamos direitos antes inimagináveis, graças a todos os que militaram incansavelmente por isso, se elegemos a democracia como um modo de convivência que mais se aproximava de um quantum igualitário de liberdade, aquela “esperança” parece que foi aos poucos se deslocando. Ao invés dela, hoje se busca mais a confiança. A maioria dos países que em tempos passados viveram sob a égide de algum regime totalitário tenta encontrar um eixo democrático e sustentar os direitos de seus cidadãos. O Brasil é um deles. No entanto, o que se percebe, é que na época atual a cultura de cada país, ou seja, como a rede de relações se estabelece se rompe ou se articula entre as várias camadas sociais e políticas assume um lugar de muita importância na estética democrática. Nossa famosa cordialidade, por exemplo, esconde uma rede de relações privadas que comanda a cena pública do país e reivindica eternamente ou um amparo ou uma brecha da lei para manter seus privilégios. Como nunca tivemos um Estado que bancasse o desmame, à medida que se amplia o acesso de classes menos favorecidas para repartir o bolo, aumenta-se o número de pessoas que perseguem um lugar especial, ao sol, conquistado graças aos conchavos decididos às escuras ou nos cochichos. Ao que parece este cenário de bastidores se mantém a revelia dos partidos a esquerda ou a direita que assumem o comando da proa. Assim, os “direitos” se tornam privados e cada um reivindica à sua maneira, seus interesses particulares. Se o mundo se divide entre malandros e otários, ninguém quer ser o segundo. Não temos uma bagagem de compartilhamento do que é público e, portanto do que pertence a todos da mesma maneira. Ao invés disso, reclamamos de tudo e todos sempre, vítimas que seríamos deste Estado injusto, que não responde à altura da fome de cada um. Nas últimas semanas, canais de televisões mexicanas veicularam um comercial que “bombou” nas redes e gerou polêmica. Com atores infantis vestidos de adultos e vivendo o cotidiano destes adultos, um estranhamento vai tomando conta de quem assiste, como se, a despeito de todas as reverencias que se faz à infância e ao seu lugar de privilegio na confecção do futuro do mundo, quando nos tornamos adultos, entramos na roda viva que circula em torno dos interesses mais básicos e primitivos: muito dinheiro, sombra ou sol (a depender do gosto) e agua fresca. A noção do que é político, que é o dever de cada um em gestar qualquer dimensão do que pertence a todos por igual, fica nos livros deixados nas gavetas ou nos ideais esquecidos da juventude. O vídeo termina com uma criança repetindo que se este é o futuro que a espera, não, não, ela não o quer. Como se antes mesmo de se tornar um jovem capaz de sonhar e apostar em algum mundo melhor, um trabalho de cada geração, estas crianças estivessem alertando-nos para que não descuidemos do cimento de qualquer porvir: a confiança. 

domingo, 13 de outubro de 2013

Governantes e governados


Na Ilustríssima de 4 de agosto de 2013 é possível ler a resenha de um livro escrito pelo jornalista Mark Leibovich - correspondente da revista semanal do "New York Times"- lançado no USA para “causar”, principalmente entre aqueles (incluídos aí seus próprios colegas de profissão) que gravitam na “corte” (Washington D.C.), independente de quem habite a Casa Branca. Com o sugestivo título “Esta cidade – duas festas e um funeral” o livro é uma radiografia dos bastidores das relações promíscuas entre políticos, lobistas e jornalistas, sem deixar de mencionar a passagem de alguns de uma para outra destas funções, assim que se veem mordidos pela possibilidade de “venderem” informações ou representar anseios de grandes corporações que possam gerar investimentos, ganhos extras e/ou privilégios. Ficamos sabendo p.e., que  atualmente 50% dos ex-senadores e 42% dos ex-deputados americanos tornam-se lobistas. O lobby, como se sabe, tem sido uma prática comum em alguns estados democráticos de buscar acesso aos políticos para que estes saibam das demandas de determinados segmentos da sociedade, usando pessoas (lobistas) e seus canais de contato junto aos órgãos de governo. Mas de uma participação que poderia ser saudável no processo de negociação política transformou-se em uma extrapolação da persuasão, sempre em favor de interesses particulares. Da “influencia” para o assédio ostensivo e à corrupção, um pulo. Mas para além destas distorções que também para nós brasileiros não se constituem novidades, o livro escancara um mundo à parte, em que a Lei pode e deve ser esquecida e todos são convidados a se despirem de seus idealismos, crenças e valores éticos para desfrutar sem culpa de um mundo de privilégios. Cria-se assim uma espécie de Olimpo em que todos se corrompem sem constrangimentos, ao priorizar apenas seus interesses de poder, prestígio e dinheiro. No final da resenha seu autor descreve uma situação imaginária em que o jornalista/escritor levaria uma surra de algum de seus mencionados, por ousar “trair” este mundinho à parte, cujas festas e jantares ele mesmo teria participado. Duas imagens me vieram à mente. Na leva de textos escritos pós-passeatas de junho, em algum deles o eterno PMDB foi descrito com este tipo de funcionamento à parte. Dirigido por um grupo oligárquico de indivíduos que se consideram donos e permanecem na liderança por décadas, eles não só controlam as finanças, as alianças e os candidatos, como se colocam estrategicamente alinhados ao governo, seja este de que partido for, mantendo assim uma espécie de blindagem que lhes permite barganhar desde cargos privilegiados até votações importantes. Sem programas, tudo gira em torno dos interesses de seus dirigentes. Sem um comprometimento ético, favorecem a legislação em causa própria. Tal como uma “corte” o partido mantém seus “aristocratas” insaciáveis por honrarias e benefícios que se regozijam em perpetuar a separação entre os que têm poder e os comuns. É nesta lógica, ou melhor, nesta rede deturpada que se produz uma cena intrigante. Uma notícia recente na mídia divulgava que a Rússia finalmente teria concedido um asilo temporário ao técnico de informática Edward Snowden - responsável por revelar o esquema de espionagem de telefones e internet feita pelos Estados Unidos- após este ter permanecido mais de um mês no aeroporto de Sheremetyevo em Moscou. O fato dos Estados Unidos ter pedido sua extradição por roubo de dados sigilosos e espionagem bastou para que nenhum país se dispusesse a acolhê-lo. Semanas atrás ele teria feito a seguinte declaração à imprensa internacional: “Há um mês, eu tinha uma família, uma casa no paraíso. Também tinha a capacidade de, sem nenhuma permissão, vasculhar, ler e apreender suas comunicações. A comunicação de qualquer um, a qualquer hora. Esse é o poder de mudar o destino das pessoas”. Na era do máximo de liberdade, é bom que se lembre.

O tempo de Alice


Mais rápido, mais rápido, mais rápido – o título de uma reportagem do dia 23 de agosto de 2013 no Valor  Econômico,  trouxe-me à lembrança o Sr. Coelho, famoso personagem do livro “Alice no país das maravilhas”, que aparece exibindo seu relógio e dizendo “Estou atrasado, estou atrasado, estou atrasado”. É ele que passa apressado e atrasado, instigando Alice a segui-lo, o que faz com que ela inicie a jornada que a levará a um outro tempo. Mas que tempo? No texto do Valor Econômico , o sociólogo alemão Hartmut Rosa afirma que vivemos na atualidade uma doença do tempo em que paradoxalmente o excesso de atividades anulou os ganhos que a tecnologia traria ao tempo de cada um, o que estaria produzindo estresse, ansiedade e insônia. Ficamos sabendo que por milênios, as civilizações não se importavam em medir o tempo o tempo todo, mas entre os séculos XVIII e XIX, as máquinas e fábricas, os trens e cabos telegráficos lançaram um ritmo de vida com relógios, horários e pressa. Ainda que na época tais mudanças embutissem a promessa de uma era de razão em que a felicidade, a prosperidade e a liberdade deveriam ser para todos, quanto mais a tecnologia economizava tempo, mais ocupados fomos ficando. Claro que a partir dos anos 70 a revolução dos computadores elevou isso a uma potencia máxima, afetando nossa percepção do tempo. Um estudo aponta que hoje, para um jovem de 22 anos, a percepção do tempo é 8% mais rápida do que para alguém da mesma idade um século atrás. A Alice de Lewis Carroll despertou ao longo de sua existência várias reflexões em que diferentes dimensões do tempo poderiam ser ressaltadas. Por exemplo, à época em que foi escrita, no final do século XVIII, quando os livros infantis pretendiam moralizar as vidas dos pequenos, Carroll ousou ridicularizar tais bons comportamentos ao descrever um imaginário infantil que construía “teorias próprias” para entender as esquisitices do pensamento e do comportamento dos adultos. Se naquele contexto a historia funcionava como uma crítica ao seu tempo (época) é verdade que a obra transcendeu o autor, permanecendo atual ao possibilitar outras leituras. Em 2010, por exemplo, foi a vez de o personalíssimo diretor Tim Burton lançar sua versão de Alice. O filme começa com a jovem no casamento de sua irmã, às voltas com o seu mal estar diante do que havia sonhado para si e o que era acenado como o futuro esperado (e cometido) pelos adultos que a rodeavam. Suas irmãs gêmeas nadavam escondidas da mãe no lago, aquela que se casava não lhe escondia sua vida sexual secreta, a tia solteira tinha certeza que a qualquer momento e lugar encontraria seu príncipe e para sua mãe não havia chances de Alice recusar ali o pedido de casamento feito por um eterno admirador, que ela não admirava nenhum pouco. Socorro! Ela precisava de um “tempo”. Assim se inicia a historia da busca de Alice – atrasada, apressada- para encontrar (entender quem é, o que quer, como quer, etc) um sentido para sua vida. Um outro tempo, subjetivo, em que ela deverá mergulhar em sua historia para resgatar ou construir seu desejo e seus ideais, encontrar alguma coragem para explicar suas escolhas e enfrentar o ônus desta responsabilidade. Um tempo para a realidade interna que pode vir a modificar a percepção do tempo da realidade externa.

A humanidade do mal


No dia 04 de julho de 2013 o programa Milênio do canal Globo News exibiu uma entrevista com o autor do livro “O Leitor” - o jurista e escritor  Bernhard Schlink - em que este declarava que ser alemão tinha um peso à parte, referindo-se ao fato de seu país ter que conviver com um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade durante a segunda guerra mundial. Uma carga especial, uma culpa específica, da qual ninguém poderia escapar. Mas também revelava que, embora as novas gerações soubessem dessa dívida, o que era muito bom, a sensação de culpa tendia a diminuir, mas a responsabilidade não poderia jamais. O livro foi escrito nos anos 90 sobre os anos 50, 60 quando na Alemanha ainda aconteciam julgamentos de alemães que haviam servido o regime nazista. Em 2008 o livro ganhou versão para o cinema, com direito ao Oscar de melhor atriz para Kate Winslet. Muito bonito, o filme conta a história de Michael Berg, um garoto de 15 anos que conhece casualmente Hanna Schmitz, uns 20 anos mais velha, por quem se apaixona e com quem vive intensamente suas primeiras experiências sexuais. Sem revelar muito sobre si, Hanna, que não sabe ler e sente muita vergonha disso, vive momentos de felicidade com o ritual das leituras dos clássicos de literatura que o rapaz faz em seus encontros eróticos. Mas de forma misteriosa desaparece sem deixar vestígios. Anos mais tarde, já como estudante de direito, ao comparecer com seu professor e colegas para assistir a um julgamento de criminosos do regime nazista, Michael reconhece Hanna no banco dos réus. Para uma Alemanha pós-guerra, está ali contemplado muitos dos conflitos vividos pelas gerações mais novas que questionavam incessantemente os pais/familiares pela colaboração ou omissão diante das atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich. Lembrei-me desta Hanna ao assistir recentemente o filme sobre outra, a filósofa judia "Hannah Arendt", em que se relata sua decisão de presenciar o julgamento de Adolf Eichmann em Israel, em1960 (um dos últimos líderes nazistas vivos então), com o compromisso de escrever cinco artigos para a revista New Yorker, que viriam a dar origem ao livro "Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal". Aproveitando algumas imagens reais deste julgamento o filme privilegia as expressões /reflexões da surpresa de Hannah diante de um Eichman que para ela teria praticado uma "normalidade burocrática", por ser incapaz de pensar/avaliar o mal de suas ações. São estes os sentimentos - ambivalentes, duros, difíceis- que o estudante de direito Michael vive no julgamento de “sua” Hanna. Imaginando poder ganhar mais como funcionária nazista, ela teria aceitado a troca oferecida para sair da Siemens, onde trabalhava. Seu sonho? Aprender a ler e a escrever. Ao ser questionada pelo júri sobre seus atos durante este período, demonstra não perceber a implicação das ordens a que se submetera como guarda de prisioneiros judeus, todos mortos. Seu pecado? Escolhia algumas mulheres que pudessem ler livros para ela. Suas colegas, todas rés e sob as mesmas acusações se aproveitam de seu alheamento, deixando para ela o fardo da culpa de todas. Uma cumpridora de regras, diria Hannah Arendt. Perplexo e paralisado, Michael assiste ao julgamento em meio às lembranças de “daquela” Hanna, a sua. Tenso, não pode revelar este passado singelo e “vergonhoso” aos pares, mas “sabe” que precisa abater da culpa de Hanna, sua alienação. A banalidade do mal seria essa “desistência” ou impossibilidade de pensar sobre o que se é e, portanto preferir ou deixar-se colonizar pelo desejo de um outro. Esta seria a matriz do alheamento em relação a si e paradoxalmente da crueldade para com o próximo. Para muitos, uma forma de se proteger do “inferno”, ou melhor, dos custos de se viver.

Para conferir:

O Leitor - direção Stephen Daldry , com Kate Winslet, Ralph Fiennes, EUA , Alemanha 2008

Hannah Arendt – direção Margarethe Von Trotta , com Barbara Sukowa, Axel Milberg


 

Somos tão jovens

Dias atrás, uma notícia na mídia que divulgava a nova orientação para psicólogos americanos sobre a extensão da adolescência até os 25 anos, ao invés dos 18 anos, abria um debate sobre a infantilização dos jovens, levando em conta especialmente o alongamento do período de sua permanência na casa dos pais. Não é dificil confirmar estes dados estatisticamente e é provavel que a tal mudança de diretriz estivesse « atualizando », ou melhor, ajustando as políticas públicas para garantir por um período maior uma assistencia diferenciada aos jovens no campo educacional, social, médico e jurídico. Como sempre acontece, as leis precisam contemplar as mudanças da cultura, que nas últimas décadas alteraram e muito o vetor de nossas crenças e parâmetros. Mas imaginar que os jovens já não aspirem mais tornar-se independentes pode ser uma ideia reducionista quando analisamos quão « jovem » é a estética do mundo contemporâneo. Se os oráculos de Delfos significavam para os gregos antigos um recurso (sagrado) para a obtenção de respostas sobre problemas cotidianos, questões de guerra, vida sentimental, previsões de tempo, etc, hoje para decifrar o futuro a mídia fareja as novidades sem fim que surgem do mundo jovem. A máxima de que o que importa para os jovens é o presente estendeu-se para todos. O mundo atual nos convida a viver o mais que pudermos, a desfrutar de tudo o que conseguirmos, a buscar  prazer no que fazemos, a sermos feliz, etc. Seguindo esta lógica, desde o instante em que nascem desejamos que nossos filhos sejam lindos, inteligentes, carismáticos, felizes, competentes, amados, magros. E o que querem os jovens hoje? Entre outras coisas buscam aflitos uma maneira de cumprir tantos ideais. Se as gerações anteriores precisavam ralar para se safarem dos valores preestabelecidos e cultuados pelos pais e sociedade, rasgando os protocolos e rompendo com os constrangimentos sociais, a geração de jovens hoje precisa encarar o fato de que o futuro está em aberto e tudo pode ser possível. Paradoxalmente isso tem sido motivo de muito desamparo e aflição (pânicos, depressões, drogas), já que para se tornar “gente” é preciso construir um “eu” que dê conta do recado, ou melhor, dos inúmeros recados: seja do mundo interno, sempre tumultuado com suas paixões, dores, medos e desencantos, um mundo que jamais é silencioso ou isento e quando isso acontece convém desconfiar ser uma tentativa (muitas vezes sintomática) de controlar e/ou se proteger do tumulto ; seja do mundo sociocultural com suas inúmeras demandas de competencia, que exige ainda um saber se colocar diante dos outros e a construção de um lugar para si que possa ser reconhecido tanto no plano profissional quanto no amoroso. Difícil encarar a vida sem se anestesiar ou enlouquecer. Se admitirmos que a família já não tem o mesmo peso na definição dos destinos (o plural é importante ) dos jovens, ao mesmo tempo em que isso pode abrir portas inusitadas e importantes, também pode paralisar e engessar. Muitos jovens se sentem insuficientemente preparados para um futuro que depende tanto deles para ser construído. Se tal afirmação pode explicar em parte o aumento desta “gestação” do jovem antes de se “jogar” no mundo em busca de um futuro, é verdade que nós, pais, também vivemos nossas incertezas e ficamos muitas vezes entre a constatação (e a frustração)  de que nossos pimpolhos não estão preparados e a agonia diante do que fazer para ajuda-los/incentiva-los a decolar. A boa notícia é que a grande maioria dos jovens faz uso de uma nova prerrogativa ao construir redes de amizades que podem funcionar como suplência interessante para o debate de suas questões

As teclas pretas das teclas brancas


Em minha família, pianos abertos, prontos para serem tocados por quem quisesse era (e ainda é) uma cena comum. Tínhamos um em nossa casa, em cada uma das casas de nossos avós e de muitas de nossas tias. Quando éramos pequenos, minha mãe, que havia se formado no Conservatório Dramático e Musical de Araraquara, costumava tocar as músicas de um maravilhoso álbum de Chopin lançado por ocasião do filme sobre sua vida - À noite sonhamos (1945)- com a seleção da trilha sonora. Por conter muitas fotos de cenas do filme, adorávamos folheá-lo, e embora tivéssemos nossas preferencias – Noturno n 2, o Estudo Revolucionário ou o Estudo das teclas pretas, por exemplo - era impossível decifrar aquelas bolinhas pretas, cheias, vazias, com hastes, junto com muitas ou separadas que seguiam por espaços de linhas pelo álbum todo. Não me lembro de quem me ensinou a tocar o “bife”, uma espécie de introdução ao teclado de um piano, mas lembro-me bem de meu orgulho quando me punha a toca-lo sempre que tivesse alguma plateia. Sentia-me muito sabida por poder arrancar um som agradável e conhecido daquelas teclas brancas, mas principalmente das pretas. Parecia natural, portanto que aos cinco anos eu começasse a ter aulas de piano com Dona Eda, uma jovem mulher muito alta, que morava com sua irmã e sua mãe bem enfrente ao comércio de meu pai. Não conheci nenhuma professora tão doce e tão preparada para ensinar crianças pequenas a ler aqueles hieróglifos musicais e sei hoje que devo à sua imensa paciência o fato de eu ter me formado em piano. Como naquela época eram necessários 9 anos de estudos para se obter o diploma, depois de alguns anos tive que me despedir de minhas aulas particulares com Dona Eda para ingressar no Conservatório Musical da cidade. Um marco que sublinhava minha passagem à pré-adolescência com novos e mais difíceis destinos. Deixava para trás com muita dor na alma, não apenas minha querida professora, mas alguém especial, que sabia exercer com maestria a difícil tarefa/arte de ensinar, em uma combinação de delicadeza, reconhecimento pontual de minhas aquisições e muito jogo de cintura para com a pesada disciplina exigida para este aprendizado. Uma de suas estratégias era colocar balas deliciosas encima das mãos enquanto eu tocava e se eu conseguisse não derruba-las poderia levar para casa em dobro. Nem tudo eram flores. Muitas vezes “emburrei” nos degraus da varanda exigindo que ela, no devido tempo, fosse me convencer a voltar e tentar novamente. Assim como a máxima que diz que governo bom é governo invisível, que não nos impõe sua presença, Dona Eda trabalhava nos bastidores. Tudo o que me lembro dela passa por este canal amoroso de sua aptidão para transmitir seu conhecimento sem fazer alarde. Uma das questões que mais se debate nos dias de hoje é como e quais valores deveriam ser transmitidos de geração a geração, que possam servir de ferramentas para uma vida “bem vivida”, um convívio entre pessoas minimamente  respeitoso. É natural que muitos se lembrem de como a educação tradicional privilegiava a transmissão de comportamentos virtuosos geralmente baseados em alguns ideais já estabelecidos e coletivamente cultuados. Mas as rupturas com estes ideais foram de tal ordem que temos dificuldades para dimensionar a nova realidade que nos circunda e entender seus múltiplos aspectos. Desconfiamos que ficou muito mais complexa a tarefa da transmissão entre gerações e que não será o contato com os objetos ou ferramentas que farão crianças melhores, mais inteligentes ou felizes, mas como estes objetos/ferramentas  serão mediados por adultos capazes de fornecer significados e ajustes importantes ao que ainda não sabem. Em qualquer piano aberto pode-se dedilhar o bife. Alguns sabem toca-lo, ou a temas musicais de seu gosto. Muitos não se atrevem. Outros tantos sabem TUDO de música e podem tocar não só piano como qualquer instrumento. No inicio do aprendizado utilizamos muito mais as teclas brancas e à medida que a harmonia aumenta em complexidade é que as pretas passam a ser utilizadas. As teclas pretas são os meios tons entre uma tecla branca e outra, ou seja, podemos inclui-las para aumentar as opções de modulações do som ou tocar apenas as notas básicas que todos conhecem. Não sei se eu teria continuado a estudar piano se não tivesse tido meu pré-primário com Dona Eda. Foi ela quem me “revelou” não a música, mas a beleza da música e me transformou em alguém apaixonada por ritmos, sons especiais, inaugurando um espaço novo e importante no meu conjunto. Talvez a tarefa desafiadora de qualquer adulto contemporâneo seja a de se preparar para ser este decifrador para os pequenos, mas sabendo que é preciso começar pelas teclas brancas para quem sabe chegar às pretas.

 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Em busca das origens


Por uma feliz coincidência, em visita ao Rio de Janeiro no mês passado pude ver no Jardim Botânico a exposição Gênesis, com as majestosas fotos do fotógrafo Sebastião Salgado, que agora aportam na cidade de São Paulo. Nas palavras de Jô Soares que o recebeu em um programa todo dedicado a ele, Salgado é um patrimônio cultural brasileiro, um fotógrafo mundialmente conhecido e várias vezes premiado por seu trabalho sempre implicado com a condição humana global. Mas quando explica este último trabalho – Gênesis - Salgado lembra que apesar do nome remeter às origens, o projeto que durou 12 anos (quatro de planejamento e oito fotografando em diversos países), fecha um ciclo e só poderia ter acontecido após todos os anteriores, das guerras na África, aos refugiados e ao seu trabalho intitulado Êxodos . Como alguém que foi afetado, ele adverte ainda assombrado, quão importante seria cada um de nós, habitantes deste planeta, cumprirmos com a nossa quota de cuidados para a sua preservação. É interessante que ele faça uso de sua imagem para falar sobre este tema tão debatido, mas ainda tão reservado aos militantes ecologicamente corretos, chamando a atenção sobre o lugar de “natureza” que ocupamos no universo. Aos 69 anos, Salgado se proclama um privilegiado por ter podido visitar nestes últimos anos lugares remotos do globo, muitos deles ainda desabitados ou de difícil acesso e parece desejar tocar os espectadores ao revelar as maravilhas que permanecem imunes à aceleração da vida moderna. Nas conversas com amigos que também viram as fotos, alguns lembraram que Salgado havia passado por momentos difíceis após seu trabalho de 2000, Êxodos, confrontado que foi com pilhas imensas de pessoas mortas que o fizeram “morrer” em vida. Tal e qual os que sobreviveram ao holocausto na segunda guerra mundial, mas ao custo de “morrer" em vida, Salgado conta que não podia mais se imaginar investindo em algum novo projeto fotográfico. Quando se vive a violência entre humanos representada na sua mais pura brutalidade, fora de qualquer consideração ética, desaparece de nosso horizonte a ideia de que somos especiais, diferentes, superiores. Talvez por isso ele se refira ao novo projeto como aquele em que buscou fotografar “outros animais”  e outra natureza, ainda não tocada pelos humanos, e só agora, depois desta jornada em que foi apresentado a esta parte desconhecida do planeta, pode falar sobre ele. Se é verdade que como animais “humanos”, estamos em permanente interrogação na busca de algumas certezas que ora nos parecem tão próximas e óbvias, ora desaparecem e transformam-se em novas perguntas, ficamos com a impressão de que Sebastião Salgado  reencontra um sentido para sua vida.

Para conferir: Gênesis -  Sebastião Salgado (Curadoria: Lélia Wanick Salgado)

Onde: Sesc Belenzinho São Paulo,  até 1 de dezembro de 2013.

Quanto: Entrada franca

Um pouco do que somos no que seremos


 
Desde o seu lançamento nos USA, o tão esperado filme sobre a vida de Steve Jobs, o criador da Apple e um dos maiores gênios da tecnologia contemporânea, tem frustrado a maioria das expectativas. Em cartaz desde o início de setembro/2013 no Brasil, “Jobs” parece desfrutar de uma espécie de consenso quanto às (más?) escolhas feitas por seu diretor diante das 632 páginas da biografia publicada em 2011 logo após a morte do protagonista. Em um rápido passeio pelas resenhas de alguns críticos as cobranças concentram-se tanto na falta dos fatos importantes de sua carreira como de detalhes de sua vida pessoal como os conflitos com seus colegas de juventude que tanto contribuíram para seu sucesso. Embora tenha assistido ao filme já contaminada por estas impressões e sem grandes expectativas, não posso dizer que não tenha me surpreendido. As primeiras cenas já anunciam (ou denunciam) o recorte pretendido pelo diretor. Em seu compasso diferente e solitário, Steve estaciona o carro e, como faz usualmente, dirige-se calado, sem olhar para os lados, a um pequeno e lotado auditório onde é ovacionado e anuncia ao microfone a mais recente e bombástica criação da Apple: o I-Pod. Ao final de um discurso rápido, mas orgulhoso, ele retira de seu bolso um aparelho que promete armazenar mil músicas em formato digital. Era o ano de 2001. Enquanto assistia, fiz rapidamente a conta desses 12 anos e pensei, emocionada, como esta invenção havia mudado para sempre a vida de pessoas comuns (como eu), amantes da música. Motivo de chacota de meus familiares, antes desta data e durante uns bons anos eu havia produzido ao menos oito fitas cassetes que pudessem compor um mix de minhas músicas preferidas, retiradas pacientemente de meu acervo de CDs. Em muitos momentos do filme, Jobs vai reiterar este propósito antecipatório, ao realizar desejos que nem sonhávamos que tínhamos. Sonhos de uma vida mais prática e confortável, que na atualidade passaram a ser mais possíveis para quem se dispõe a realiza-los. Corta. Desta cena retornamos ao Steve Jobs dos anos 70 na Califórnia, que acaba de desistir de sua faculdade, anda descalço, assiste apenas às aulas que lhe interessam como observador, viaja para a Índia e busca ansiosamente um sentido para a sua vida. Assim como muitos de sua época, ele engrossa o círculo dos “esquisitos” (nerds, hippies, místicos, militantes) desta pequena década dos anos 70, intensa em suas rupturas com a tradição e a partir da qual surgiriam inúmeros movimentos questionadores/transformadores na cultura ocidental. Quando Jobs tenta convencer seu amigo Woz (Steve Wozniak) sobre a ideia de transformar os computadores da época em pessoais ou domésticos, insiste que o acesso à internet e ao mundo virtual significava o mesmo que a invenção da roda, a partir da qual o mundo não teria sido o mesmo. Ainda que o filme dispense muitos detalhes da vida de Jobs, ele mantém um compromisso com a história recente ao problematizar o lugar do homem contemporâneo. Muito mais responsável pela sua própria existência, desejando romper com os destinos pré-estabelecidos pela família e pela cultura, Jobs é um homem que busca (e precisa) se auto inventar. O contraponto da jornada de invenção de si (presente e futura) é seu encimesmamento, um disfarce e uma proteção de suas fragilidades na árdua tarefa de tentar encontrar novas balizas. Passadas algumas décadas sabemos um pouco mais sobre os custos desta tão complexa tarefa que requer na almejada gestão de nós mesmos, um bom trânsito no contato conosco, nossa mente, nosso corpo, nossa história e com todas as pessoas, trabalho, ações, ideais, etc, intimados que somos a nos inventar, criar e recriar, construir-se, desconstruir-se, flexibilizar-se. Se Jobs perseguiu sua crença de realizar sonhos humanos inimagináveis dedicando-se “full time” a pensa-los, parece que foi ao custo de evitar sistematicamente tais contatos. Mas fica aqui minha reverencia a ele que pensou, idealizou e criou celulares e computadores cada vez mais sofisticadas e funcionais que facilitaram a vida de todas as pessoas e causaram uma verdadeira revolução antropológica.

Para conferir:  Jobs ( USA 2013)

Elenco: Ashton Kutcher, Josh Gad, Annika Bertea

Direção: Joshua Michael Stern

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Mães, filhos e aflições


Uma jovem mãe contava a outras jovens mães sobre sua agonia desde que havia se dado conta que suas duas filhas, com diferença de apenas um ano, haviam entrado na pré-adolescência. Sem parâmetros, sentindo-se perdida na difícil tarefa de discriminar o que consentir e o que proibir, o que não dar importância e o que se preocupar, ela teria encontrado certo alento na interlocução via Facebook com outros pais/mães de adolescentes. Havia descoberto a página do Facebook intitulada “Mães e pais de adolescentes” destinada a incentivar a troca de ideias e dicas sobre os filhos. Fui conferir. Simpática, a tal página anuncia quem é o seu público e convida os pais/mães a conversarem ali. Também descreve esta atordoante faixa etária ponderando sobre seu fascínio num mundo em que crianças e adolescentes usam teclas e botões “como se fossem  extensões de seus dedos, falam a mesma língua dos softwares e aprendem rápida e facilmente tudo o que lhes desperta o interesse.” Mas pondera que esta facilidade de tudo saber confunde-se as vezes com o tudo querer, o que tornaria difícil para os adultos/pais manterem seu foco na árdua tarefa de educa-los. Democrática e aberta, incentiva a todos a dar voz às suas aflições e/ou aos seus conselhos. A jovem mãe que está contando às suas interlocutoras sua descoberta, no entanto, não parece satisfeita. Há muitas perguntas sem respostas e ela continua aflita, sentindo-se incompetente e perdida. Em sua coluna na Folha de SP do dia 20 de agosto de 2013, sob o título “Depressão e autenticidade” Vladimir Safatle , baseado em uma recente pesquisa que diz que em cada cinco mulheres, uma passará por depressão ao tornar-se mãe, convida a todos a refletir sobre  o ônus que a experiência social de ser mãe carrega na atualidade. Referindo-se ao fato de que hoje as mulheres já não têm modelos únicos ou formais do “tornar-se mãe” como acontecia até algumas décadas atrás, ele aborda o despreparo de todas diante do inevitável confronto com bebês (filhos) que despertam sentimentos ambíguos e contraditórios. Longe de fazer a apologia da tradição “de mãe para filha” em que os mitos e os rituais não eram questionados e valiam para todos indiscriminadamente, e diante do atual arsenal de especialistas que prescrevem caminhos a seguir, ele questiona o lugar dos afetos que tendem a ser silenciados por todos – pais, parentes, especialistas. Lembrei-me da história contada por minha faxineira sobre uma conhecida sua, mocinha de 23 anos, que se casou com um rapaz um pouco mais velho, 33 anos, descasado, que já tinha um filho de seu primeiro casamento. Apaixonada, sonhava em ter um filho com ele como a consolidar a relação. Grávida de 8 meses viaja para o Nordeste a fim de visitar seus familiares. Na volta, em visita a uma cidade vizinha, o bebê rompe a bolsa e “decide” nascer. Sem conhecer ninguém ela passa horas à espera de um atendimento no hospital. Como seu nenê não acompanha o desenvolvimento esperado começa a leva-lo a médicos que indicam a ressonância magnética para um diagnóstico mais apurado. Nas datas marcadas para o exame, sem explicações plausíveis, falta sistematicamente. Morre de medo de saber que não tinha conseguido gerar um filho perfeito. Paralisada e envergonhada, não consegue ser a mãe que tinha imaginado, o que faz com que seu filho também não possa “existir”. Quando finalmente comprova ser ele “normal”, pode enfim olha-lo com amor e exibi-lo orgulhosa. É provável que a mãe das pré-adolescentes sinta-se inundada/assaltada por seus fantasmas adolescentes, incapaz de responder a si mesma sobre suas questões ainda tão confusas. Também ela tenta silenciar seus ruídos e os que são provocados pelo confronto com esta passagem das filhas.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

post scriptum


Uma notícia curiosa veiculada na mídia digital anunciava um novo programa de entrevistas – Retrovisor - comandado pelo jornalista Paulo Markun. Detalhe, os entrevistados seriam personagens históricos brasileiros já mortos e por isso, representados por atores. Gravados na Biblioteca Municipal Mario de Andrade de São Paulo a plateia estaria convidada a participar das perguntas. Uma ideia bastante original que de certa maneira realiza um sonho humano nada raro de voltar ao passado e confrontar ideias, crenças e atos de pessoas que marcaram a historia. A notícia me remeteu a uma recente entrevista concedida ao programa matinal de Alexandre Machado na Radio Cultura FM, pelo autor da biografia de Getúlio Vargas, o jornalista e escritor Lira Neto que há poucos dias lançou o segundo volume de sua trilogia sobre este importante e polemico personagem brasileiro. Na entrevista, ao ser questionado sobre o período em que Getúlio teria se tornado um ditador, o biógrafo ressaltava o fato de que não há História sem contexto, e sua fala não escondia sua admiração pela inteligência e sagacidade do homem e do político cuja vida  pesquisa/vasculha há três anos. Outro jornalista, o espanhol Juan Arias, que viveu grande parte de sua vida na Itália como correspondente do El Pais, por ocasião da vinda do papa Francisco ao Brasil, teria concedido algumas entrevistas sobre o longo período em que esteve respirando o clima do Vaticano, particularmente nos papados de Paulo VI e de João Paulo II. Emocionado, lembrou certas particularidades de um e outro, seus estilos, seu pensamento. Considerado um estudioso de religião por ter frequentado cursos na Universidade de Teologia e no Instituto Bíblico de Roma, defende a ala progressista da igreja católica, mas avalia com otimismo a escolha do novo papa. Convidado a fazer uma distinção entre informação, análise e opinião, Arias confessou ser esta uma questão complicada. Para ele, um mesmo fato, uma mesma notícia ou uma entrevista com algum personagem importante é perpassada pela ótica –e pela sensibilidade - de quem realiza. É bom lembrar que estamos falando aqui de uma mídia formal, de jornalistas de carreiras que se dedicaram a entender o mundo que os cercava e não se furtaram a opinar sobre isso. A recente exposição do coletivo Mídia Ninja, cujos representantes foram sabatinados no programa Roda Viva da TV Cultura no dia 6 de agosto último, lançou um debate sobre o futuro do jornalismo (e jornalistas) das grandes imprensas, ameaçados pela difusão de uma nova maneira de se publicar noticias, aberta a todos, nas redes sociais. No mesmo dia 6 de agosto uma notícia fazia tremer a capital federal americana ao dar como certa a compra do tradicional jornal Washington Post pela Amazon. Entre textos ácidos, nostálgicos e ponderados, todos tentavam espreitar o porvir, o futuro pós-revolução digital. Do coletivo de jornalistas que se propõe como alternativa ao "mainstream", um dos entrevistados e co-fundador da Mídia Ninja, Bruno Torturra, lembrou que a opinião pública divulgada via rede, tem narrativas múltiplas e é em geral uma salada ideológica. Mas chamou a atenção para  o que se assistiu durante as manifestações de junho, em que a opinião publicada, que tem o monopólio sobre o que é a opinião pública, sofreu o constrangimento de não divulgar o que acontecia e teve que correr atrás para acompanhar as notícias/fotos/vídeos que jorravam nas redes. A verdade é que isso que chamamos Informação quando remetida aos fatos importantes já ocorridos ou às histórias que valem a pena serem revistas sobre personagens já falecidos, nunca mais será a mesma, já que será revisitada e seu contexto será analisado de acordo com as referencias do momento atual. O mesmo vale para as informações /opiniões a respeito de novos e inusitados acontecimentos e o que se delineia é que o mundo digital apenas amplia as opções e com isso possibilita aos que querem saber, um leque mais diversificado de opiniões. No mínimo um ponto a mais em direção à idealizada/paparicada/ falada democracia Por outro lado, não há como negar que novas cores se delineiam no céu das mídias. Resta saber quais serão.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Quem quer ser evangélico?


Nada mais “in” do que analisar a crescente visibilidade e porcentagem de evangélicos no Brasil à luz da mobilização de católicos em torno da visita do Papa Francisco I ao Rio de Janeiro. Foi mais ou menos este o teor do texto publicado na Ilustríssima do dia 21 de julho de 2013 em que o sociólogo da USP Reginaldo Prandi acompanha o deslocamento de uma população antes majoritariamente católica para o que ele chama de pentecostalismo. Longe de ser uma tarefa fácil já que são muitas as variáveis, algumas bastante complexas! Dentre os temas, a constatação de que assim como a religião católica empreendeu modificações em seus rituais muitas décadas passadas, a fim de se adequar aos tempos modernos, as religiões evangélicas teriam feito uma recauchutagem bem mais radical nas últimas duas décadas. De uma tônica que preconizava a vida austera e simples, adotou-se a teologia da prosperidade, bem ao gosto do mercado de consumo, deixando o “recato” para os temas sobre sexualidade. Ao acenar com a possibilidade de realização de qualquer sonho de consumo, este novo Deus incentiva uma população mais carente – e mais reticente com o avanço dos costumes e direitos - a confiar em um futuro promissor, cheio de “objetos de desejo”. Mais que isso, abriga a todos que se sentem excluídos/desamparados por razões morais, ao emprestar normas e restrições claras às suas condutas para a vida sexual e amorosa. Por bairros e cidades multiplicaram-se grandes salões em que pastores, seguindo um modelo carismático (à Silvio Santos) de pregação, aumentam seus rebanhos espalhando tais promessas. Do púlpito das igrejas ao dos congressos, apenas um passo. Foi assim que assistimos perplexos, um pastor/deputado assumir a presidência de uma comissão de Direitos Humanos da Câmera e sem qualquer constrangimento, tentar leiloar os direitos recém-adquiridos de homossexuais ou impor uma legislação que os “curasse” de seus desvios. Já da esperada, rápida e pontual estadia do Papa em terras cariocas ecoaram textos e reportagens sobre as mudanças que este novo papado pode produzir na Igreja Católica, sobre o “mundo católico” e sua geografia, sobre os custos desta vinda para a cidade do Rio (que chegou até a decretar dois dias de feriado), e sobre os jovens “religiosos” brasileiros. A partir de uma pesquisa realizada em maio pela Data Popular em 100 cidades do país, ficamos sabendo, por exemplo, que 44,2% dos jovens entre 16 e 24 anos são católicos, 37,6% são protestantes/evangélicos, 6,7% são seguidores de outras religiões e 11,5%  não são religiosos. Um dos desafios da vinda do Papa para a Jornada Mundial da Juventude seria a conquista de uma fatia dos católicos afastados através de um upgrade em seu modelo de evangelização. A pesquisa ainda problematiza o papel da religião para os jovens, assim como sua opinião sobre temas controversos como o aborto, a pena de morte e a legalização da maconha, talvez no intuito de “medir” o comprometimento de cada um com sua fé, ou ainda a fé com os códigos que cada religião preconiza. Quem sabe uma tentativa de mapear o complexo lugar que as religiões ocupam na vida das pessoas na atualidade, bem longe daquele em que ela encarnava o Poder. O mais provável é que as religiões acenem com a possibilidade de regulamentação das vidas através de regras fixas e claras, o que alivia o desamparo - às vezes insuportável - de muitos jovens (e de seus pais), uma forma de “proteção” para os sentimentos morais.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Que lugar para o amor


Nos versos de sua música “Futuros Amantes”, Chico Buarque canta um futuro em que “sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização”, como se previsse um tempo em que a linguagem do amor romântico, tão assimilada em nossa cultura, pudesse não só cair no esquecimento, mas produzir estranhamento. Foi essa curiosidade quanto ao futuro de uma “ordem” já tão naturalizada entre nós e que norteia a vida de quase todos, que guiou os caminhos de minha tese de mestrado, cuja dissertação defendi em 2006. Basicamente a tese buscava entender (pesquisar) as razões do alto valor do amor romântico como ideal de vida para quase todos, levando em conta que o imenso arcabouço estruturado ao seu redor, não dava mais sinais de poder se sustentar da mesma maneira. Mudavam os casamentos, choviam separações e muitas conquistas advindas da liberdade dos indivíduos questionavam o que havia de velho e mofado neste modelo. Em meio a estas pesquisas e muitas leituras, um filme muito peculiar era lançado em 2004 que de certa forma instigava um debate importante para este tema. “Antes do por do sol” não era apenas a continuação de uma historia de amor contada no filme anterior (“Antes do amanhecer”), feito pelo mesmo diretor. Era um projeto inovador, uma boa ideia de Richard Linklater que havia convidado um par de jovens atores em 1995, ele (Ethan Hawke) um americano e ela (Julie Delpy) uma francesa para serem coautores de uma saga romântica que pretendia ser filmada em três etapas. Quando lançado em 2004, nove anos depois do primeiro, o fato pouco usual de serem dois filmes feitos com os mesmos atores encarnando os mesmos personagens em diferentes tempos de suas vidas, sendo eles co-roteiristas, dava um toque de veracidade que capturava o público. No primeiro filme, dois jovens universitários em viagem de férias, um americano (Jesse) e uma francesa (Celine) se conhecem num trem que corta a Europa e decidem passar uma noite juntos em Viena, local onde seus destinos se separariam. “Antes do amanhecer” eles voltam à estação de trem onde ela deverá seguir viagem à Paris e, sem trocar telefones, endereços ou sobrenomes, fazem uma promessa “apaixonada” de se reencontrarem na mesma estação depois de seis meses. Nove anos mais tarde (2004), Jesse escreveu um romance em que narra com detalhes sua história com Celine, e está em Paris para lança-lo na charmosa livraria Shakespeare and Company, quando a vê entrar. No filme de 1995, ainda adolescentes, eles contam um para o outro, detalhes de suas vidas e de seus projetos. A paixão é inocente, insegura, desprevenida, e a aposta em um novo encontro às escuras, é próprio dos sonhos onipotentes dos jovens. Em 2004 eles estão mais velhos, seus rostos mostram as marcas dos anos e seus diálogos incorporam as responsabilidades do mundo adulto. É com sutileza, respeito e cuidado que vão contando um ao outro (tendo as ruas de Paris como cenário) seus sucessos e fracassos, os ajustes que tiveram que fazer em seus ideais de juventude, e finalmente a importância daquele encontro passado, em suas vidas. Esteticamente belo, a câmera filma a pouca distancia para captar os olhares, gestos e expressões, o que convoca o público a testemunhar o envolvimento de ambos e de como relatam o impacto do encontro vivido no filme anterior em suas vidas. Eis que em 2013, o diretor cumpre sua promessa ao lançar a terceira etapa desta aventura, “Antes da meia noite”. Casados, pais de gêmeas, Jesse se separara de sua primeira mulher (com quem teve um filho) nos USA e vive (agora como escritor renomado) em Paris com Celine. De férias, eles vão à Grécia de carro em casa de amigos. Com diálogos mais tensos, os anos vividos juntos demandam um jogo de cintura de ambos para driblar as diferenças, negociar as expectativas, curar as frustrações. Culpado por não conviver com o filho pré-adolescente que acaba de deixar no aeroporto, Jesse sonha em morar nos USA para aplacar seu mal estar. Saber disso exaspera Celine que discorda dele quanto ao efeito “idealizado” dessa proximidade física. Uma mudança para lá desorganizaria a vida atual deles. Custos de uma relação prolongada que, além disso, precisa contabilizar as obrigações de pais? Com questões próprias das gerações de adultos nascidos nos anos 70, 80, os três filmes cumprem seu papel ao colocar os ideais amorosos a uma distancia possível, o que funciona como um alento aos jovens adultos da atualidade que se sentem capazes de poder viver/sentir o mesmo. Super recomendado.

Para conferir: Antes do amanhecer (1995) Antes do por do sol (2004) Antes da meia noite (2013)

Diretor: Richard Linklater             Atores: Ethan Hawke e Julie Delpy

Depois da festa


Não foi só aquela parcela da população que teme a tudo e a todos sempre que algo parece sair do conforto do “mesmo”, que se inquietou com a disparada das multidões que a cada dia marcava um local e um tema para protestar. Todos se perguntaram, ao menos uma vez, se este movimento tão inesperado da população haveria de ter um final e qual seria. Mas o mais interessante foi perceber que os próprios jovens, não só os que idealizaram seu começo, todos que se sentiram mobilizados pela possibilidade de realizarem algum futuro, semearem alguma mudança, visualizarem um mundo mais parecido com o que sonhavam, passaram a buscar avidamente textos em blogs, jornais, redes sociais que pudessem ajudá-los a refletir sobre o que estava acontecendo e o que ainda podia acontecer. Afinal muitas das manifestações ganharam um público surpreendente, fosse pelas idades, pelas classes sociais, mas principalmente pelas diferenças de reivindicações. Nas redes sociais era possível acompanhar as placas escritas de ultima hora e à mão, às vezes irônicas, mas muitas portando algum pedido legítimo, ainda que inesperado. E agora José? O que vem depois? Muitas coisas vieram. Veio a truculência da polícia, recebendo e obedecendo “ordens” para conter a “massa” de qualquer maneira. Veio a surpresa de todos diante de tanta violência. (Porque mesmo tamanha violência?) A velocidade com que as notícias puderam ser disponibilizadas nas redes, sem nenhuma censura prévia, despertava a todos de seu longo sono de cidadão. Multiplicaram-se as cidades e as pessoas. Todos tinham algo para falar. E falaram. E se fizeram ouvir. E que não viessem se aproveitar do burburinho para “plantar” seres “estranhos” ao sentimento cívico que perpassava aos que se dispuseram a sair pelas ruas, muitos destes fotografados e identificados. Hello! Vocês que aí estão o que vão fazer? E saíram fazendo: a polícia tinha que “policiar” e não “atacar”; os políticos tinham que votar o que precisava ser votado, sem que fosse necessário “negociar” tais votos. Os governantes se reunir para entender o clamor da voz do povo. Mas o que vem depois da “festa”? Como pensar sobre o destino do país ou ainda sobre alguma mudança efetiva no panorama político? Talvez nunca tivéssemos podido vivenciar tamanha manifestação democrática em nosso país. Que se acrescente uma dose de impacto porque também não tínhamos uma tradição de nos organizarmos para formalizar nossas reivindicações em passeatas de ruas, ao contrário, por exemplo, de nosso país vizinho, a Argentina. Pensadores de todas as áreas de conhecimento, a maioria brasileiros- mas alguns estrangeiros- escreveram sobre este acontecimento e tentaram entende-lo, destrincha-lo. Alguns temerosos, outros descrentes, mas a grande maioria, empolgados com a “novidade”, como a confirmar um período de latência e marasmo generalizado. Perguntei aos que participaram em algum momento destas passeatas o que sentiram. A maioria havia se encantado e se orgulhado com a possibilidade de exercer o que parecia ser este “novo” papel de cidadão brasileiro. Mas quase todos relataram ter sentido medo, ter vivido momentos de tensão. No entanto, o “tenso” que se viveu talvez fosse imprescindível, e isso se deve ao fato de que este movimento não foi um movimento de “massa” em torno de uma liderança ou de um único objetivo. Foi de multidões, ou seja, cada um com sua individualidade, seu parecer, sua placa, seu desejo, que por isso mesmo não se diluía e sim impunha uma convivência “tensa”. Ainda que ali pudesse existir um espaço de trocas horizontais de experiências, de ideias, de propostas que pretendiam construir alguma coisa nova e transformadora, a “tensão” permanecia, um indício de que neste mundo contemporâneo, cabe a todos nós (e a cada um) “suportar” as diferenças das individualidades sob pena de descambar para a violência. Uma fronteira tênue, por isso tensa, para o bem e para o mal. Um grande desafio, já que o respeito ao outro e o processo democrático demandam negociações sem fim que passam necessariamente pelo reconhecimento da singularidade de cada um e de suas diferenças. Negociações estas que precisam ser explicitadas por cada reivindicante e confrontadas com as de seus vizinhos para que se possa enfim definir princípios, diretrizes  e políticas. E que não nos esqueçamos de que as mudanças ameaçam a continuidade e provocam resistências (às vezes mascaradas), que podem levar muitos a sabotar o novo. Resistências que podem ser tentativas de luta pela sobrevivência diante da incerteza do desconhecido, e por isso detecta-las e elucida-las seria da hora!

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Quem viu o futuro?


A menos de uma semana, o artista chinês Ai Weiwei, famoso por seu trabalho permanentemente provocativo, denunciador  e político, que já lhe valeu uma detenção de quase três meses pelo governo de seu país, escreveu um texto indignado  para o jornal britânico The Guardian (traduzido aqui pela Folha de SP). Mais que indignação, havia um tom de decepção diante da informação sobre a operação americana de monitoramento dos serviços de inteligência dos Estados Unidos denunciado pelo técnico em informática Edward Snowden, que trabalhava há 4 anos na NSA (Agência Nacional de Segurança) e tinha acesso a dados privados de usuários de internet e telefonia. Tendo vivido 12 anos nos Estados Unidos, Weiwei exaltara a grande tradição de individualismo e privacidade deste país que sempre se contrapôs ao desnudamento sistemático dos cidadãos chineses, acostumados com o abuso do poder de Estado. Ao ler seu texto me lembrei de um filme de Spielberg (2002), Minority Report (relatório da minoria) – A nova lei, uma ficção sobre o funcionamento da sociedade americana no ano de 2054, em que a despeito do avanço ininterrupto da tecnociência , o mundo havia se tornado um lugar inseguro e violento. Em 2048 o índice de homicídios teria alcançado proporções alarmantes, o que contribuíra para que a cidade de Washington experimentasse um projeto piloto - o Programa Pré-Crime - que em seis anos havia conseguido banir os crimes utilizando-se de uma tecnologia biovirtual onde três “precogs” (pessoas altamente sensitivas) projetavam imagens de suas previsões de assassinatos com o dia e a hora dos crimes. Graças mais uma vez à tecnologia, fornecidos o nome da vítima e do assassino, uma elite de agentes policiais prendia o criminoso antes mesmo que o delito acontecesse. Dilema moral: se alguém é preso antes de cometer o crime, como pode esta pessoa ser acusada de assassinato? Seria lícito incriminar alguém apenas pela sua intenção? Apesar deste paradoxo um forte lobby pressionava a população a aceitar o programa e assim estende-lo por todo o país, já que eliminava os assassinatos nos Estados Unidos. Estaria assim consolidado um mundo futuro, em que haveria um sistema criado para coibir a violência e proteger os indivíduos deles mesmos, ou melhor, de seu mal. Mas curiosamente este futuro não seria uma possibilidade, uma escolha em aberto para os indivíduos, já que a “pre-visão” seria considerada como algo que realmente aconteceu. Quando John Anderton (Tom Cruise), o policial mais competente da equipe, vê através dos precogs, que matará um desconhecido em menos de trinta e seis horas, inicia por conta própria uma investigação cheia de ação que culminará no desmantelamento do sistema antes “perfeito”. Ai Weiwei denunciava esta contradição em seu texto, ao apontar que graças às suas capacidades técnicas, os Estados poderiam facilmente conseguir dados sobre seus cidadãos visando controlá-los, interferindo de forma abusiva em seus direitos individuais. Em audiência no senado americano, o diretor da ASN general Keith Alexander disse que a vigilância é necessária tanto para "defender a democracia e as liberdades civis dos americanos" quanto para manter o país em "segurança". Mas Weiwei insiste no fato de que instaurada uma outra dimensão de medo e insegurança – seja pela possibilidade de não haver mais liberdade ou pela abolição da confiança dos cidadãos para com seus governos, perde-se o equilíbrio que mantém a “civilização” e que está na base de uma democracia. Não passaram despercebido nem aos brasileiros nem ao mundo, as surpreendentes manifestações de protestos dos jovens iniciadas em São Paulo, que acabaram por replicar em várias capitais do Brasil (e outros países em um apoio solidário emocionante). Por trás dos singelos 0,20 centavos reivindicados, os gritos clamavam por um cuidado e respeito dos governantes e políticos para com sua população, para com suas cidades, seu país. Que acordassem para a necessidade de reconstruir um espaço político com instituições que não estivessem falidas ou sucateadas por um modelo de interesses de poder e grana. Que devolvessem as ruas, as cidades, os espaços públicos aos jovens, para que eles pudessem continuar acreditando em um futuro. Uma revolta contra o descaso. Uma reivindicação de Jovens, que em diferentes épocas históricas buscam ativamente uma versão de seu tempo para afirmar seus sonhos e ideais, e lembram a todos os mais velhos, que são eles que abrem caminhos para novas verdades, novos movimentos transformadores de nossa existência. Mais, que não há convivência possível sem um bocado de dignidade.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O cão nosso de cada dia


Formávamos um quarteto de amigas à espera de um garçom que nos atendesse. Enquanto isso, a única avó da mesa saca seu celular e passa a desfilar as fotos de seus três netinhos. Todas olham embevecidas as caras, bocas e poses de cada um. Faz-se um ohhhhh geral. Sem conseguir evitar, outra amiga tira seu celular da bolsa e mostra a foto de seus dois amores estampada na capa. Que lindos, exclamamos duas de nós. Que pelos maravilhosos!!! Eles parecem estar sorrindo! Indignada, a outra balança a cabeça sem poder entender o entusiasmo. A dona dos cachorros sorri e comenta em tom baixinho: “ela nunca teve cachorros, não sabe o que é isso”. O “isso” era sem dúvida o sentimento comum que havia tomado conta de nós três que, ao contrário, tínhamos muitas estórias para contar sobre nossos cães em nossas vidas. O estranhamento desta amiga para quem os cães eram apenas animais como outros quaisquer, no entanto despertou-nos a ânsia de explicar o que (para ela) era inexplicável: como nossas vidas tinham sido afetadas por estas criaturas. Passamos assim a contar estórias emocionadas, como se estivéssemos falando de nossos próprios filhos. A dona da foto do celular que morava em uma casa em Belo Horizonte descreveu seu dia a dia com aqueles que eram, por enquanto, seus “netos” de 10 e 8 anos. Os filhos já haviam se mudado para compor novas famílias, mas ainda não eram pais e os dois cães ocupavam o lugar das crianças da família, o que os tornava assunto de interesse de todos. Pelo menos uma vez ao dia seus filhos ligavam para saber notícias das “crianças”, fato que a deixava muito empolgada, pronta para descrever entusiasmada as últimas peripécias da dupla. Ouvindo-a narrar sua estória pensei (com meus botões) como a experiência de ter esses “bichinhos” morando em apartamentos acrescentava variáveis inimagináveis ao convívio entre os “donos” e seus cães. As lembranças de Bob ainda estavam misturadas ao luto pela sua morte acontecida há dois meses, depois de 18 anos de convivência diária e intensa. Bob era um Fox Paulistinha (o amor pela raça herdamos de nossa querida amiga ribeirão-pretana Márcia), conhecido por sua inteligência, que passou a dividir espaços conosco quando meus filhos ainda estavam na pré-adolescência (8 e 12 anos) e rapidamente fez de nossa casa sua casa. Tinha seus lugares, alimentos, objetos, odores e sons preferidos assim como sabia comunicar aqueles que não faziam seu gosto. Ao longo de nossa vida “familiar” desenvolveu comportamentos diferenciados que agradava a cada um em particular. Sua vitalidade era invejável: ao som do interfone corria à porta a espera da “visita” até que esta tocasse a campainha. Se se anunciasse a possibilidade de algum passeio não descansava enquanto o fato não se consumasse, ou seja, ia do local em que estava sua coleira até a porta, voltava-se para o “anunciante” e repetia este percurso à exaustão (de todos). Quando finalmente “vestia” a coleira, saía pelo corredor até o elevador saltitante e satisfeito. Se faltasse água ou ração sabia bater com insistência nos respectivos pratos para pedi-los. Morreu de velhice como quem não queria ir-se. Em seu ultimo ano de vida, mesmo tendo perdido a visão e a audição, ainda distinguia as pessoas e os locais pelo faro. Tinha se tornado membro “efetivo” da família e era raro não ser tema de conversas animadas ao redor de mesas de almoço ou jantar em que se discorria sobre suas surpreendentes estórias. Nossa amiga desconhecia este mundo “novo” em que cães comportam-se de forma ajustada a casa, à rotina e à convivência com seus “familiares”, se “humanizam” e  entendem vários códigos de nossa linguagem. Cães que adoecem e se alegram com seus donos, podem se deprimir ou serem “ansiosos”. Cães que vivem como gente.

Nós na foto


Dia desses uma amiga, após ser convocada por si mesma a passar uma informação que evitaria uma surpresa desagradável a uma colega, comentou ironicamente que sua atitude tinha como objetivo maior contribuir com a garantia de seu passe para o “paraíso”. Assim, em pequenas “prestações”, ela apostava na conquista de certo sossego enquanto vivesse, já que poderia contar com o conforto de acreditar que “Alguém” estaria pontuando seu bom comportamento. Corta. Um conhecido que participou recentemente de uma reunião em seu  condomínio ficou espantado quando num certo momento, em um efeito dominó, alguns moradores passaram a se alterar e ficar mais violentos ao reclamarem seus direitos ou queixarem-se dos incômodos do convívio coletivo. Suspirou aliviado, a seguir, diante da intervenção sensível do síndico que, ao perceber que tais moradores precisavam de uma atenção especial, soube se colocar como mediador dos conflitos, oferecendo-se para ajudar a resolver algumas pendengas, sem se esquecer de evocar aos reclamantes a parte que lhes cabia na política (sempre difícil, sem dúvida) da boa vizinhança. Quem sabe algo que tenha faltado na história trágica divulgada dias atrás, em que sem conseguirem resolver as crescentes desavenças que só aumentavam o ódio de parte a parte, um empresário de 62 anos de posse de seu 38, invadiu enlouquecido o apartamento de cima e matou a queima roupa o casal de moradores, poupando de sua ira apenas o filho de um ano e meio. Provavelmente sem poder suportar o que imaginava serem as consequências de seu ato, apontou a seguir o revolver para si e pôs, assim, um “fim” a todas as perturbações. Como sempre acontece em fatos tão inimagináveis à maioria - justamente pela maneira obscena e banal com que a vida humana é tratada – espalham-se indignações, mas principalmente medos e inseguranças já que qualquer um, de qualquer lugar, pode ser portador de um excesso incompreensível de violência e ódio. Mas quem sabe o “matador” não estivesse em seu estado normal, quem sabe ele estivesse passando por problemas graves, ou portador de algum transtorno psíquico? Não é o que revela sua esposa (e amigos) que atribui seu ato a um “surto de loucura” circunscrito àquela situação. Claro que não podemos afirmar muito sobre suas razões e/ou desrazões. Podemos somente reafirmar que faz parte de nossos arquivos históricos, as inúmeras formas (a depender de épocas históricas) de se fazer mal ao outro, de se deixar fazer mal e até de se fazer mal a si próprio. Não há convívio sem conflitos e para vivermos todos precisamos de um jeito ou de outro, negociar com nossa economia destrutiva tanto quando ela se dirige a nós mesmos quanto aos outros. Mas assim como o que muda na história são as formas do “mal”, para cada um de nós estas negociações ficam atadas ao complexo processo de nos tornarmos gente. Na reunião de condomínio citada acima, o síndico emprestou suas palavras para dar um sentido aos distúrbios entre os moradores, delimitando ao mesmo tempo as responsabilidades que cabia a cada parte, inclusive ao condomínio enquanto regulador desta convivência. Também minha amiga negociava consigo mesma os “custos” de sua solidariedade para com a colega. São estratégias de reconhecimento que, se por um lado podem funcionar como moduladores da violência, estão cada vez mais sujeitas à possibilidade ou não de existir um “outro”, um terceiro, capaz de ajudar a constituir (no plano psíquico) ou fazer as vezes do espaço ético necessário à convivência humana (no plano social). Nem a bondade nem a maldade habitam lugares predeterminados em nossos cérebros. Elas são construções categoria 3D  Não nascemos bons ou maus. Comecemos, pois pela admissão de que todos podem “cometer” o mal.

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Dos filmes indicados ao Oscar 2013, apenas “Os Miseráveis” estava na prateleira aguardando certa reticencia minha a encarar esta versão musicada da obra de Victor Hugo. Talvez porque tendo assistido a versão anterior estrelada em 2000 nos cinemas com Gérard Depardieu encarnando Jean Valjean e John Malkovich o de seu algoz Javert, minha curiosidade se restringisse ao esmero desta nova produção e ao recorte dado aos cinco volumes da saga publicada pelo autor em 1862. Finda a sessão, no entanto, percebi que minha resistência também passeava pela aridez deste período da historia, por sua miséria real, social e moral. Sem recursos financeiros de qualquer ordem, sem opções de trabalho, sem direitos, restava “aos miseráveis” franceses acreditarem serem visíveis para um Deus solidário e benevolente. Se Deus se importasse, não só valeria a pena viver, mas desejar ser um ser humano, e quiçá melhor. A biografia de Victor Hugo impressiona não só pela sua extensa e diversificada produção literária, ativa até o final de sua vida, (é dele p.e. “O Corcunda de Notre Dame”), mas por seu ininterrupto engajamento nas lutas políticas e ideológicas do século XIX, arauto declarado da democracia liberal e humanitária. Exilou-se nas ilhas de Jersey e Guernesey durante todo o segundo Império de Napoleão III (quase vinte anos), retornando somente após a sua queda, muito aclamado pelo povo francês. Revisto assim, desde o século XXI, Victor Hugo foi um destes homens de espírito livre em um tempo sombrio, que ousou defender suas ideias, escreveu como e quanto quis e viveu apaixonado pela vida, apostando em dias melhores. No entanto, assistir ao seu épico “Les Miserables”, se pode produzir um grande desconforto pela dramaticidade pungente daquelas vidas com destinos tão estreitos, também causa um grande alívio, quando medimos quão distantes estamos deste mundo sem leis, sem liberdade, sem oportunidades e porque não, sem conforto. De lá para cá, neste mesmo mundo, promovemos grandes transformações físicas e sociais que nos permitiram aumentar  e muito nosso tempo para cuidar e saber mais sobre nós mesmos. O próprio verbo “consumir” só tem sentido quando pensamos que hoje, ao nascer uma criança, é muito provável que ela já venha acompanhada de desejos de adultos que a anteciparam e sonharam para ela uma vida cheia de bons momentos e muito sucesso. Seja lá o que isso possa significar para cada adulto que investe sua criança com seus sonhos. A capa da revista americana Times de 9 de maio de 2013 chamava a atenção para a Geração “Me Me Me” ou Millennials, ou seja, aquele 1/3 da população mundial  que nasceu entre 1980 e 2000 e que possuem características próprias por seu uso da tecnologia e pela maneira com que se relacionam com a felicidade. Esta geração que estaria desconstruindo de forma radical antigas maneiras de viver mereceu uma extensa matéria que cruzava resultados de diversas pesquisas e batizava-os de narcisistas (ou autocentrados) e preguiçosos e, embora menos preconceituosos por conviverem com uma diversidade maior de pessoas, mais alienados politicamente e com suas vidas definitivamente atadas ao modo “rede” de funcionamento. Auto fotografar-se, postar informações sobre onde se encontram, com quem, o que estão fazendo, o que estão vestindo, comendo, pensando ou sentindo através de seus smartphones, os define. Com um tom cético, a matéria não parecia vislumbrar um mundo melhor “dirigido” por esta geração. A jovem americana Zara Kessler, de 22 anos, editora de opinião da rede “Bloomberg” saiu em defesa de sua geração, marcando as diferenças de épocas e lembrando que todas as gerações de jovens podem ser analisadas sob o estranhamento dos adultos que foram jovens em tempos anteriores. Mais que isso, ela pontuou algumas dessas diferenças, a começar pelo plano dos ideais vigentes nas sociedades atuais, que estariam vetados à sua geração como certas profissões antes celebrizadas, salários altos, aquisição de casa própria e bens materiais, etc. Não haveria no horizonte do mundo futuro, esta mesma aposta que já foi de gerações anteriores. Podemos acrescentar aos itens citados o fato de que a tão badalada “autoestima” , caçada por sua geração como se fosse condição de sobrevivência, é antes de mais nada um produto dos desejos dos pais. A felicidade que todos sonhamos para nossos filhos os faz presa desta busca, o que na maioria das vezes não corresponde ao que realmente sentem ou pensam de si. Ao contrário, é com muito “suor” que os jovens desta geração buscam  reconhecer seus recursos, talentos e falhas para poderem, enfim, vislumbrar alternativas possíveis de vida, de amores, de trabalho. No mundo de Victor Hugo, muita coisa ainda precisava acontecer, mas a grande maioria hoje delas nos parece óbvias. Zara Kessler, com seus 22 anos, não sabe ainda como vai ser o mundo futuro. Nós também não. Mas vai ser muito diferente deste.