domingo, 13 de outubro de 2013

Governantes e governados


Na Ilustríssima de 4 de agosto de 2013 é possível ler a resenha de um livro escrito pelo jornalista Mark Leibovich - correspondente da revista semanal do "New York Times"- lançado no USA para “causar”, principalmente entre aqueles (incluídos aí seus próprios colegas de profissão) que gravitam na “corte” (Washington D.C.), independente de quem habite a Casa Branca. Com o sugestivo título “Esta cidade – duas festas e um funeral” o livro é uma radiografia dos bastidores das relações promíscuas entre políticos, lobistas e jornalistas, sem deixar de mencionar a passagem de alguns de uma para outra destas funções, assim que se veem mordidos pela possibilidade de “venderem” informações ou representar anseios de grandes corporações que possam gerar investimentos, ganhos extras e/ou privilégios. Ficamos sabendo p.e., que  atualmente 50% dos ex-senadores e 42% dos ex-deputados americanos tornam-se lobistas. O lobby, como se sabe, tem sido uma prática comum em alguns estados democráticos de buscar acesso aos políticos para que estes saibam das demandas de determinados segmentos da sociedade, usando pessoas (lobistas) e seus canais de contato junto aos órgãos de governo. Mas de uma participação que poderia ser saudável no processo de negociação política transformou-se em uma extrapolação da persuasão, sempre em favor de interesses particulares. Da “influencia” para o assédio ostensivo e à corrupção, um pulo. Mas para além destas distorções que também para nós brasileiros não se constituem novidades, o livro escancara um mundo à parte, em que a Lei pode e deve ser esquecida e todos são convidados a se despirem de seus idealismos, crenças e valores éticos para desfrutar sem culpa de um mundo de privilégios. Cria-se assim uma espécie de Olimpo em que todos se corrompem sem constrangimentos, ao priorizar apenas seus interesses de poder, prestígio e dinheiro. No final da resenha seu autor descreve uma situação imaginária em que o jornalista/escritor levaria uma surra de algum de seus mencionados, por ousar “trair” este mundinho à parte, cujas festas e jantares ele mesmo teria participado. Duas imagens me vieram à mente. Na leva de textos escritos pós-passeatas de junho, em algum deles o eterno PMDB foi descrito com este tipo de funcionamento à parte. Dirigido por um grupo oligárquico de indivíduos que se consideram donos e permanecem na liderança por décadas, eles não só controlam as finanças, as alianças e os candidatos, como se colocam estrategicamente alinhados ao governo, seja este de que partido for, mantendo assim uma espécie de blindagem que lhes permite barganhar desde cargos privilegiados até votações importantes. Sem programas, tudo gira em torno dos interesses de seus dirigentes. Sem um comprometimento ético, favorecem a legislação em causa própria. Tal como uma “corte” o partido mantém seus “aristocratas” insaciáveis por honrarias e benefícios que se regozijam em perpetuar a separação entre os que têm poder e os comuns. É nesta lógica, ou melhor, nesta rede deturpada que se produz uma cena intrigante. Uma notícia recente na mídia divulgava que a Rússia finalmente teria concedido um asilo temporário ao técnico de informática Edward Snowden - responsável por revelar o esquema de espionagem de telefones e internet feita pelos Estados Unidos- após este ter permanecido mais de um mês no aeroporto de Sheremetyevo em Moscou. O fato dos Estados Unidos ter pedido sua extradição por roubo de dados sigilosos e espionagem bastou para que nenhum país se dispusesse a acolhê-lo. Semanas atrás ele teria feito a seguinte declaração à imprensa internacional: “Há um mês, eu tinha uma família, uma casa no paraíso. Também tinha a capacidade de, sem nenhuma permissão, vasculhar, ler e apreender suas comunicações. A comunicação de qualquer um, a qualquer hora. Esse é o poder de mudar o destino das pessoas”. Na era do máximo de liberdade, é bom que se lembre.

O tempo de Alice


Mais rápido, mais rápido, mais rápido – o título de uma reportagem do dia 23 de agosto de 2013 no Valor  Econômico,  trouxe-me à lembrança o Sr. Coelho, famoso personagem do livro “Alice no país das maravilhas”, que aparece exibindo seu relógio e dizendo “Estou atrasado, estou atrasado, estou atrasado”. É ele que passa apressado e atrasado, instigando Alice a segui-lo, o que faz com que ela inicie a jornada que a levará a um outro tempo. Mas que tempo? No texto do Valor Econômico , o sociólogo alemão Hartmut Rosa afirma que vivemos na atualidade uma doença do tempo em que paradoxalmente o excesso de atividades anulou os ganhos que a tecnologia traria ao tempo de cada um, o que estaria produzindo estresse, ansiedade e insônia. Ficamos sabendo que por milênios, as civilizações não se importavam em medir o tempo o tempo todo, mas entre os séculos XVIII e XIX, as máquinas e fábricas, os trens e cabos telegráficos lançaram um ritmo de vida com relógios, horários e pressa. Ainda que na época tais mudanças embutissem a promessa de uma era de razão em que a felicidade, a prosperidade e a liberdade deveriam ser para todos, quanto mais a tecnologia economizava tempo, mais ocupados fomos ficando. Claro que a partir dos anos 70 a revolução dos computadores elevou isso a uma potencia máxima, afetando nossa percepção do tempo. Um estudo aponta que hoje, para um jovem de 22 anos, a percepção do tempo é 8% mais rápida do que para alguém da mesma idade um século atrás. A Alice de Lewis Carroll despertou ao longo de sua existência várias reflexões em que diferentes dimensões do tempo poderiam ser ressaltadas. Por exemplo, à época em que foi escrita, no final do século XVIII, quando os livros infantis pretendiam moralizar as vidas dos pequenos, Carroll ousou ridicularizar tais bons comportamentos ao descrever um imaginário infantil que construía “teorias próprias” para entender as esquisitices do pensamento e do comportamento dos adultos. Se naquele contexto a historia funcionava como uma crítica ao seu tempo (época) é verdade que a obra transcendeu o autor, permanecendo atual ao possibilitar outras leituras. Em 2010, por exemplo, foi a vez de o personalíssimo diretor Tim Burton lançar sua versão de Alice. O filme começa com a jovem no casamento de sua irmã, às voltas com o seu mal estar diante do que havia sonhado para si e o que era acenado como o futuro esperado (e cometido) pelos adultos que a rodeavam. Suas irmãs gêmeas nadavam escondidas da mãe no lago, aquela que se casava não lhe escondia sua vida sexual secreta, a tia solteira tinha certeza que a qualquer momento e lugar encontraria seu príncipe e para sua mãe não havia chances de Alice recusar ali o pedido de casamento feito por um eterno admirador, que ela não admirava nenhum pouco. Socorro! Ela precisava de um “tempo”. Assim se inicia a historia da busca de Alice – atrasada, apressada- para encontrar (entender quem é, o que quer, como quer, etc) um sentido para sua vida. Um outro tempo, subjetivo, em que ela deverá mergulhar em sua historia para resgatar ou construir seu desejo e seus ideais, encontrar alguma coragem para explicar suas escolhas e enfrentar o ônus desta responsabilidade. Um tempo para a realidade interna que pode vir a modificar a percepção do tempo da realidade externa.

A humanidade do mal


No dia 04 de julho de 2013 o programa Milênio do canal Globo News exibiu uma entrevista com o autor do livro “O Leitor” - o jurista e escritor  Bernhard Schlink - em que este declarava que ser alemão tinha um peso à parte, referindo-se ao fato de seu país ter que conviver com um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade durante a segunda guerra mundial. Uma carga especial, uma culpa específica, da qual ninguém poderia escapar. Mas também revelava que, embora as novas gerações soubessem dessa dívida, o que era muito bom, a sensação de culpa tendia a diminuir, mas a responsabilidade não poderia jamais. O livro foi escrito nos anos 90 sobre os anos 50, 60 quando na Alemanha ainda aconteciam julgamentos de alemães que haviam servido o regime nazista. Em 2008 o livro ganhou versão para o cinema, com direito ao Oscar de melhor atriz para Kate Winslet. Muito bonito, o filme conta a história de Michael Berg, um garoto de 15 anos que conhece casualmente Hanna Schmitz, uns 20 anos mais velha, por quem se apaixona e com quem vive intensamente suas primeiras experiências sexuais. Sem revelar muito sobre si, Hanna, que não sabe ler e sente muita vergonha disso, vive momentos de felicidade com o ritual das leituras dos clássicos de literatura que o rapaz faz em seus encontros eróticos. Mas de forma misteriosa desaparece sem deixar vestígios. Anos mais tarde, já como estudante de direito, ao comparecer com seu professor e colegas para assistir a um julgamento de criminosos do regime nazista, Michael reconhece Hanna no banco dos réus. Para uma Alemanha pós-guerra, está ali contemplado muitos dos conflitos vividos pelas gerações mais novas que questionavam incessantemente os pais/familiares pela colaboração ou omissão diante das atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich. Lembrei-me desta Hanna ao assistir recentemente o filme sobre outra, a filósofa judia "Hannah Arendt", em que se relata sua decisão de presenciar o julgamento de Adolf Eichmann em Israel, em1960 (um dos últimos líderes nazistas vivos então), com o compromisso de escrever cinco artigos para a revista New Yorker, que viriam a dar origem ao livro "Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal". Aproveitando algumas imagens reais deste julgamento o filme privilegia as expressões /reflexões da surpresa de Hannah diante de um Eichman que para ela teria praticado uma "normalidade burocrática", por ser incapaz de pensar/avaliar o mal de suas ações. São estes os sentimentos - ambivalentes, duros, difíceis- que o estudante de direito Michael vive no julgamento de “sua” Hanna. Imaginando poder ganhar mais como funcionária nazista, ela teria aceitado a troca oferecida para sair da Siemens, onde trabalhava. Seu sonho? Aprender a ler e a escrever. Ao ser questionada pelo júri sobre seus atos durante este período, demonstra não perceber a implicação das ordens a que se submetera como guarda de prisioneiros judeus, todos mortos. Seu pecado? Escolhia algumas mulheres que pudessem ler livros para ela. Suas colegas, todas rés e sob as mesmas acusações se aproveitam de seu alheamento, deixando para ela o fardo da culpa de todas. Uma cumpridora de regras, diria Hannah Arendt. Perplexo e paralisado, Michael assiste ao julgamento em meio às lembranças de “daquela” Hanna, a sua. Tenso, não pode revelar este passado singelo e “vergonhoso” aos pares, mas “sabe” que precisa abater da culpa de Hanna, sua alienação. A banalidade do mal seria essa “desistência” ou impossibilidade de pensar sobre o que se é e, portanto preferir ou deixar-se colonizar pelo desejo de um outro. Esta seria a matriz do alheamento em relação a si e paradoxalmente da crueldade para com o próximo. Para muitos, uma forma de se proteger do “inferno”, ou melhor, dos custos de se viver.

Para conferir:

O Leitor - direção Stephen Daldry , com Kate Winslet, Ralph Fiennes, EUA , Alemanha 2008

Hannah Arendt – direção Margarethe Von Trotta , com Barbara Sukowa, Axel Milberg


 

Somos tão jovens

Dias atrás, uma notícia na mídia que divulgava a nova orientação para psicólogos americanos sobre a extensão da adolescência até os 25 anos, ao invés dos 18 anos, abria um debate sobre a infantilização dos jovens, levando em conta especialmente o alongamento do período de sua permanência na casa dos pais. Não é dificil confirmar estes dados estatisticamente e é provavel que a tal mudança de diretriz estivesse « atualizando », ou melhor, ajustando as políticas públicas para garantir por um período maior uma assistencia diferenciada aos jovens no campo educacional, social, médico e jurídico. Como sempre acontece, as leis precisam contemplar as mudanças da cultura, que nas últimas décadas alteraram e muito o vetor de nossas crenças e parâmetros. Mas imaginar que os jovens já não aspirem mais tornar-se independentes pode ser uma ideia reducionista quando analisamos quão « jovem » é a estética do mundo contemporâneo. Se os oráculos de Delfos significavam para os gregos antigos um recurso (sagrado) para a obtenção de respostas sobre problemas cotidianos, questões de guerra, vida sentimental, previsões de tempo, etc, hoje para decifrar o futuro a mídia fareja as novidades sem fim que surgem do mundo jovem. A máxima de que o que importa para os jovens é o presente estendeu-se para todos. O mundo atual nos convida a viver o mais que pudermos, a desfrutar de tudo o que conseguirmos, a buscar  prazer no que fazemos, a sermos feliz, etc. Seguindo esta lógica, desde o instante em que nascem desejamos que nossos filhos sejam lindos, inteligentes, carismáticos, felizes, competentes, amados, magros. E o que querem os jovens hoje? Entre outras coisas buscam aflitos uma maneira de cumprir tantos ideais. Se as gerações anteriores precisavam ralar para se safarem dos valores preestabelecidos e cultuados pelos pais e sociedade, rasgando os protocolos e rompendo com os constrangimentos sociais, a geração de jovens hoje precisa encarar o fato de que o futuro está em aberto e tudo pode ser possível. Paradoxalmente isso tem sido motivo de muito desamparo e aflição (pânicos, depressões, drogas), já que para se tornar “gente” é preciso construir um “eu” que dê conta do recado, ou melhor, dos inúmeros recados: seja do mundo interno, sempre tumultuado com suas paixões, dores, medos e desencantos, um mundo que jamais é silencioso ou isento e quando isso acontece convém desconfiar ser uma tentativa (muitas vezes sintomática) de controlar e/ou se proteger do tumulto ; seja do mundo sociocultural com suas inúmeras demandas de competencia, que exige ainda um saber se colocar diante dos outros e a construção de um lugar para si que possa ser reconhecido tanto no plano profissional quanto no amoroso. Difícil encarar a vida sem se anestesiar ou enlouquecer. Se admitirmos que a família já não tem o mesmo peso na definição dos destinos (o plural é importante ) dos jovens, ao mesmo tempo em que isso pode abrir portas inusitadas e importantes, também pode paralisar e engessar. Muitos jovens se sentem insuficientemente preparados para um futuro que depende tanto deles para ser construído. Se tal afirmação pode explicar em parte o aumento desta “gestação” do jovem antes de se “jogar” no mundo em busca de um futuro, é verdade que nós, pais, também vivemos nossas incertezas e ficamos muitas vezes entre a constatação (e a frustração)  de que nossos pimpolhos não estão preparados e a agonia diante do que fazer para ajuda-los/incentiva-los a decolar. A boa notícia é que a grande maioria dos jovens faz uso de uma nova prerrogativa ao construir redes de amizades que podem funcionar como suplência interessante para o debate de suas questões

As teclas pretas das teclas brancas


Em minha família, pianos abertos, prontos para serem tocados por quem quisesse era (e ainda é) uma cena comum. Tínhamos um em nossa casa, em cada uma das casas de nossos avós e de muitas de nossas tias. Quando éramos pequenos, minha mãe, que havia se formado no Conservatório Dramático e Musical de Araraquara, costumava tocar as músicas de um maravilhoso álbum de Chopin lançado por ocasião do filme sobre sua vida - À noite sonhamos (1945)- com a seleção da trilha sonora. Por conter muitas fotos de cenas do filme, adorávamos folheá-lo, e embora tivéssemos nossas preferencias – Noturno n 2, o Estudo Revolucionário ou o Estudo das teclas pretas, por exemplo - era impossível decifrar aquelas bolinhas pretas, cheias, vazias, com hastes, junto com muitas ou separadas que seguiam por espaços de linhas pelo álbum todo. Não me lembro de quem me ensinou a tocar o “bife”, uma espécie de introdução ao teclado de um piano, mas lembro-me bem de meu orgulho quando me punha a toca-lo sempre que tivesse alguma plateia. Sentia-me muito sabida por poder arrancar um som agradável e conhecido daquelas teclas brancas, mas principalmente das pretas. Parecia natural, portanto que aos cinco anos eu começasse a ter aulas de piano com Dona Eda, uma jovem mulher muito alta, que morava com sua irmã e sua mãe bem enfrente ao comércio de meu pai. Não conheci nenhuma professora tão doce e tão preparada para ensinar crianças pequenas a ler aqueles hieróglifos musicais e sei hoje que devo à sua imensa paciência o fato de eu ter me formado em piano. Como naquela época eram necessários 9 anos de estudos para se obter o diploma, depois de alguns anos tive que me despedir de minhas aulas particulares com Dona Eda para ingressar no Conservatório Musical da cidade. Um marco que sublinhava minha passagem à pré-adolescência com novos e mais difíceis destinos. Deixava para trás com muita dor na alma, não apenas minha querida professora, mas alguém especial, que sabia exercer com maestria a difícil tarefa/arte de ensinar, em uma combinação de delicadeza, reconhecimento pontual de minhas aquisições e muito jogo de cintura para com a pesada disciplina exigida para este aprendizado. Uma de suas estratégias era colocar balas deliciosas encima das mãos enquanto eu tocava e se eu conseguisse não derruba-las poderia levar para casa em dobro. Nem tudo eram flores. Muitas vezes “emburrei” nos degraus da varanda exigindo que ela, no devido tempo, fosse me convencer a voltar e tentar novamente. Assim como a máxima que diz que governo bom é governo invisível, que não nos impõe sua presença, Dona Eda trabalhava nos bastidores. Tudo o que me lembro dela passa por este canal amoroso de sua aptidão para transmitir seu conhecimento sem fazer alarde. Uma das questões que mais se debate nos dias de hoje é como e quais valores deveriam ser transmitidos de geração a geração, que possam servir de ferramentas para uma vida “bem vivida”, um convívio entre pessoas minimamente  respeitoso. É natural que muitos se lembrem de como a educação tradicional privilegiava a transmissão de comportamentos virtuosos geralmente baseados em alguns ideais já estabelecidos e coletivamente cultuados. Mas as rupturas com estes ideais foram de tal ordem que temos dificuldades para dimensionar a nova realidade que nos circunda e entender seus múltiplos aspectos. Desconfiamos que ficou muito mais complexa a tarefa da transmissão entre gerações e que não será o contato com os objetos ou ferramentas que farão crianças melhores, mais inteligentes ou felizes, mas como estes objetos/ferramentas  serão mediados por adultos capazes de fornecer significados e ajustes importantes ao que ainda não sabem. Em qualquer piano aberto pode-se dedilhar o bife. Alguns sabem toca-lo, ou a temas musicais de seu gosto. Muitos não se atrevem. Outros tantos sabem TUDO de música e podem tocar não só piano como qualquer instrumento. No inicio do aprendizado utilizamos muito mais as teclas brancas e à medida que a harmonia aumenta em complexidade é que as pretas passam a ser utilizadas. As teclas pretas são os meios tons entre uma tecla branca e outra, ou seja, podemos inclui-las para aumentar as opções de modulações do som ou tocar apenas as notas básicas que todos conhecem. Não sei se eu teria continuado a estudar piano se não tivesse tido meu pré-primário com Dona Eda. Foi ela quem me “revelou” não a música, mas a beleza da música e me transformou em alguém apaixonada por ritmos, sons especiais, inaugurando um espaço novo e importante no meu conjunto. Talvez a tarefa desafiadora de qualquer adulto contemporâneo seja a de se preparar para ser este decifrador para os pequenos, mas sabendo que é preciso começar pelas teclas brancas para quem sabe chegar às pretas.

 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Em busca das origens


Por uma feliz coincidência, em visita ao Rio de Janeiro no mês passado pude ver no Jardim Botânico a exposição Gênesis, com as majestosas fotos do fotógrafo Sebastião Salgado, que agora aportam na cidade de São Paulo. Nas palavras de Jô Soares que o recebeu em um programa todo dedicado a ele, Salgado é um patrimônio cultural brasileiro, um fotógrafo mundialmente conhecido e várias vezes premiado por seu trabalho sempre implicado com a condição humana global. Mas quando explica este último trabalho – Gênesis - Salgado lembra que apesar do nome remeter às origens, o projeto que durou 12 anos (quatro de planejamento e oito fotografando em diversos países), fecha um ciclo e só poderia ter acontecido após todos os anteriores, das guerras na África, aos refugiados e ao seu trabalho intitulado Êxodos . Como alguém que foi afetado, ele adverte ainda assombrado, quão importante seria cada um de nós, habitantes deste planeta, cumprirmos com a nossa quota de cuidados para a sua preservação. É interessante que ele faça uso de sua imagem para falar sobre este tema tão debatido, mas ainda tão reservado aos militantes ecologicamente corretos, chamando a atenção sobre o lugar de “natureza” que ocupamos no universo. Aos 69 anos, Salgado se proclama um privilegiado por ter podido visitar nestes últimos anos lugares remotos do globo, muitos deles ainda desabitados ou de difícil acesso e parece desejar tocar os espectadores ao revelar as maravilhas que permanecem imunes à aceleração da vida moderna. Nas conversas com amigos que também viram as fotos, alguns lembraram que Salgado havia passado por momentos difíceis após seu trabalho de 2000, Êxodos, confrontado que foi com pilhas imensas de pessoas mortas que o fizeram “morrer” em vida. Tal e qual os que sobreviveram ao holocausto na segunda guerra mundial, mas ao custo de “morrer" em vida, Salgado conta que não podia mais se imaginar investindo em algum novo projeto fotográfico. Quando se vive a violência entre humanos representada na sua mais pura brutalidade, fora de qualquer consideração ética, desaparece de nosso horizonte a ideia de que somos especiais, diferentes, superiores. Talvez por isso ele se refira ao novo projeto como aquele em que buscou fotografar “outros animais”  e outra natureza, ainda não tocada pelos humanos, e só agora, depois desta jornada em que foi apresentado a esta parte desconhecida do planeta, pode falar sobre ele. Se é verdade que como animais “humanos”, estamos em permanente interrogação na busca de algumas certezas que ora nos parecem tão próximas e óbvias, ora desaparecem e transformam-se em novas perguntas, ficamos com a impressão de que Sebastião Salgado  reencontra um sentido para sua vida.

Para conferir: Gênesis -  Sebastião Salgado (Curadoria: Lélia Wanick Salgado)

Onde: Sesc Belenzinho São Paulo,  até 1 de dezembro de 2013.

Quanto: Entrada franca

Um pouco do que somos no que seremos


 
Desde o seu lançamento nos USA, o tão esperado filme sobre a vida de Steve Jobs, o criador da Apple e um dos maiores gênios da tecnologia contemporânea, tem frustrado a maioria das expectativas. Em cartaz desde o início de setembro/2013 no Brasil, “Jobs” parece desfrutar de uma espécie de consenso quanto às (más?) escolhas feitas por seu diretor diante das 632 páginas da biografia publicada em 2011 logo após a morte do protagonista. Em um rápido passeio pelas resenhas de alguns críticos as cobranças concentram-se tanto na falta dos fatos importantes de sua carreira como de detalhes de sua vida pessoal como os conflitos com seus colegas de juventude que tanto contribuíram para seu sucesso. Embora tenha assistido ao filme já contaminada por estas impressões e sem grandes expectativas, não posso dizer que não tenha me surpreendido. As primeiras cenas já anunciam (ou denunciam) o recorte pretendido pelo diretor. Em seu compasso diferente e solitário, Steve estaciona o carro e, como faz usualmente, dirige-se calado, sem olhar para os lados, a um pequeno e lotado auditório onde é ovacionado e anuncia ao microfone a mais recente e bombástica criação da Apple: o I-Pod. Ao final de um discurso rápido, mas orgulhoso, ele retira de seu bolso um aparelho que promete armazenar mil músicas em formato digital. Era o ano de 2001. Enquanto assistia, fiz rapidamente a conta desses 12 anos e pensei, emocionada, como esta invenção havia mudado para sempre a vida de pessoas comuns (como eu), amantes da música. Motivo de chacota de meus familiares, antes desta data e durante uns bons anos eu havia produzido ao menos oito fitas cassetes que pudessem compor um mix de minhas músicas preferidas, retiradas pacientemente de meu acervo de CDs. Em muitos momentos do filme, Jobs vai reiterar este propósito antecipatório, ao realizar desejos que nem sonhávamos que tínhamos. Sonhos de uma vida mais prática e confortável, que na atualidade passaram a ser mais possíveis para quem se dispõe a realiza-los. Corta. Desta cena retornamos ao Steve Jobs dos anos 70 na Califórnia, que acaba de desistir de sua faculdade, anda descalço, assiste apenas às aulas que lhe interessam como observador, viaja para a Índia e busca ansiosamente um sentido para a sua vida. Assim como muitos de sua época, ele engrossa o círculo dos “esquisitos” (nerds, hippies, místicos, militantes) desta pequena década dos anos 70, intensa em suas rupturas com a tradição e a partir da qual surgiriam inúmeros movimentos questionadores/transformadores na cultura ocidental. Quando Jobs tenta convencer seu amigo Woz (Steve Wozniak) sobre a ideia de transformar os computadores da época em pessoais ou domésticos, insiste que o acesso à internet e ao mundo virtual significava o mesmo que a invenção da roda, a partir da qual o mundo não teria sido o mesmo. Ainda que o filme dispense muitos detalhes da vida de Jobs, ele mantém um compromisso com a história recente ao problematizar o lugar do homem contemporâneo. Muito mais responsável pela sua própria existência, desejando romper com os destinos pré-estabelecidos pela família e pela cultura, Jobs é um homem que busca (e precisa) se auto inventar. O contraponto da jornada de invenção de si (presente e futura) é seu encimesmamento, um disfarce e uma proteção de suas fragilidades na árdua tarefa de tentar encontrar novas balizas. Passadas algumas décadas sabemos um pouco mais sobre os custos desta tão complexa tarefa que requer na almejada gestão de nós mesmos, um bom trânsito no contato conosco, nossa mente, nosso corpo, nossa história e com todas as pessoas, trabalho, ações, ideais, etc, intimados que somos a nos inventar, criar e recriar, construir-se, desconstruir-se, flexibilizar-se. Se Jobs perseguiu sua crença de realizar sonhos humanos inimagináveis dedicando-se “full time” a pensa-los, parece que foi ao custo de evitar sistematicamente tais contatos. Mas fica aqui minha reverencia a ele que pensou, idealizou e criou celulares e computadores cada vez mais sofisticadas e funcionais que facilitaram a vida de todas as pessoas e causaram uma verdadeira revolução antropológica.

Para conferir:  Jobs ( USA 2013)

Elenco: Ashton Kutcher, Josh Gad, Annika Bertea

Direção: Joshua Michael Stern