quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Duas vezes mãe

Poucos anos atrás uma amiga querida telefonou-me para contar emocionada que sua filha mais velha estava grávida. Uma mistura de sentimentos a invadia e ela ansiava por uma conversa longa na expectativa de que alguma organização deste tumulto pudesse acalma-la. Aceitei prontamente o desafio, antecipando certo prazer nesta troca que, a meu ver, poderia se tornar fecunda para ambas. Estava longe de imaginar como a gestação de sua condição de avó seria construída passo por passo com idas e vindas em um misto de aflição e prazer, mas principalmente em um reviver nada tranquilo de sua própria gravidez. Muitas estórias depois, começou a despontar o espaço novo em que a futura neta iria habitar. Que avó ela queria ser para aquela menininha? Que valores ou afetos ela haveria de privilegiar na tarefa de transmissão a que ela estava se propondo? Mais uma rodada de lembranças foi acionada na tentativa de situar sua mãe, falecida já há algum tempo, naquela condição de avó. Alguém que felizmente havia estado muito presente e teria contribuído bastante para que os primeiros cuidados com sua bebê - que agora gestava sua netinha - pudessem parecer-lhe menos assustadores. Foram nove meses intensos em que pude compartilhar com minha amiga uma mudança de peso na sua vida, primeiro na interior, e depois na cuidadosa disposição do tempo para os afazeres de sua rotina, abrindo espaços que seriam preenchidos por seu convívio com Alice, a netinha. O zelo e a responsabilidade com que ela tratara seu novo status me tocaram. Sem nunca se questionar, ela havia “trabalhado” de forma incansável, tentando não se esquecer de nenhuma letra do alfabeto. Tanto empenho me levava a refletir sobre as características de “tonar-se avó” e como esta função estaria diferente nos tempos de hoje. Não é difícil detectar um lugar comum que habita o imaginário de ser avó e classifica esta condição como algo “finalmente” prazeroso, já que ao contrário da maternidade com suas responsabilidades extremas, as avós podem deitar e rolar com seus netinhos sem se preocupar com as obrigações educacionais e seus limites, em geral cansativos por demandarem exaustivas intervenções. É possível que a figura da avó complacente das famílias de gerações mais antigas cumprisse mais este papel de assegurar um pouquinho de liberdade ilimitada-  aqui você é rei/ rainha- para fazer um contraponto diante das inúmeras obrigações que os pais precisavam impor aos pimpolhos. Por outro lado o “tornar-se mãe ou pai” atualmente está longe daqueles tempos em que tal função era praticamente naturalizada, ou seja, de pai para filho, de mãe para filha e assim sucessivamente. Muitas e novas variáveis passaram a contar, desde as mudanças nos papéis da mulher, que pode fazer inúmeras opções em sua vida, inclusive a de não se casar ou ter filhos, até na configuração das novas famílias, que em muitos casos agregam filhos, pais e avós de outros relacionamentos. No caso das avós, uma grande parte trabalha, tem vidas com agendas cheias e nem sempre estão dispostas, como minha amiga, a abrirem uma picada nova na paisagem construída durante anos. Mas é verdade que a relação entre os avós e seus netos pode ser muito prazerosa. Sem muitos modelos prévios, no entanto, parece que cada um pode construir sua condição de avô ou avó, incrementando-os com seus desejos. A amiga citada acima planejou com cuidado sua nova função, tomando-a como uma passagem a qual ela deveria e queria se preparar. Outra, cujo humor fino a caracteriza, avó de três netos, em resposta a minha pergunta sobre como tinha sido para ela “tornar-se avó” respondeu prontamente: há um antes e um depois. Em seu rosto nenhum sinal de que a frase pudesse habitar somente um dos lados entre o prazer e o fardo.

Liberdade, igualdade, fraternidade?

Há pouco mais de 200 anos, a França era palco de uma das revoluções mais importantes, marco da era moderna. Ali, o povo se rebelava contra a tradição e a hierarquia de monarcas e aristocratas, além da então corrupta e poderosa Igreja Católica. Claro que a realeza, tomada de susto, se organizou e durante algumas décadas lutou para restaurar a monarquia, o que veio a acontecer com a era Bonaparte, mas estava cravado na história do ocidente e no coração das pessoas, a esperança de um mundo em que fosse possível a soberania do povo, o exercício da autoridade regido por leis promulgadas por assembleias eleitas, a supressão de privilégios antes instituídos, etc. As grandes guerras mundiais justificavam-se pela busca deste mundo mais justo. No ultimo século, as ideias em torno desta “esperança” movimentaram-se bastante. Se conquistamos direitos antes inimagináveis, graças a todos os que militaram incansavelmente por isso, se elegemos a democracia como um modo de convivência que mais se aproximava de um quantum igualitário de liberdade, aquela “esperança” parece que foi aos poucos se deslocando. Ao invés dela, hoje se busca mais a confiança. A maioria dos países que em tempos passados viveram sob a égide de algum regime totalitário tenta encontrar um eixo democrático e sustentar os direitos de seus cidadãos. O Brasil é um deles. No entanto, o que se percebe, é que na época atual a cultura de cada país, ou seja, como a rede de relações se estabelece se rompe ou se articula entre as várias camadas sociais e políticas assume um lugar de muita importância na estética democrática. Nossa famosa cordialidade, por exemplo, esconde uma rede de relações privadas que comanda a cena pública do país e reivindica eternamente ou um amparo ou uma brecha da lei para manter seus privilégios. Como nunca tivemos um Estado que bancasse o desmame, à medida que se amplia o acesso de classes menos favorecidas para repartir o bolo, aumenta-se o número de pessoas que perseguem um lugar especial, ao sol, conquistado graças aos conchavos decididos às escuras ou nos cochichos. Ao que parece este cenário de bastidores se mantém a revelia dos partidos a esquerda ou a direita que assumem o comando da proa. Assim, os “direitos” se tornam privados e cada um reivindica à sua maneira, seus interesses particulares. Se o mundo se divide entre malandros e otários, ninguém quer ser o segundo. Não temos uma bagagem de compartilhamento do que é público e, portanto do que pertence a todos da mesma maneira. Ao invés disso, reclamamos de tudo e todos sempre, vítimas que seríamos deste Estado injusto, que não responde à altura da fome de cada um. Nas últimas semanas, canais de televisões mexicanas veicularam um comercial que “bombou” nas redes e gerou polêmica. Com atores infantis vestidos de adultos e vivendo o cotidiano destes adultos, um estranhamento vai tomando conta de quem assiste, como se, a despeito de todas as reverencias que se faz à infância e ao seu lugar de privilegio na confecção do futuro do mundo, quando nos tornamos adultos, entramos na roda viva que circula em torno dos interesses mais básicos e primitivos: muito dinheiro, sombra ou sol (a depender do gosto) e agua fresca. A noção do que é político, que é o dever de cada um em gestar qualquer dimensão do que pertence a todos por igual, fica nos livros deixados nas gavetas ou nos ideais esquecidos da juventude. O vídeo termina com uma criança repetindo que se este é o futuro que a espera, não, não, ela não o quer. Como se antes mesmo de se tornar um jovem capaz de sonhar e apostar em algum mundo melhor, um trabalho de cada geração, estas crianças estivessem alertando-nos para que não descuidemos do cimento de qualquer porvir: a confiança.