quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A violência do amor

Se o século passado pode ser avaliado como aquele que elevou o amor à categoria de valor humano máximo, cujas louvações traduziram-se em produções as mais variadas, na literatura, no cinema, teatro e novelas, além de, é claro, alimentar um imaginário idealizado sobre a vida amorosa, o século XXI tem surpreendido a todos pela incidência da violência, ainda que suas formas devam ser analisadas à luz do contexto histórico atual. Embora o mundo nunca tenha sido tão globalmente comprometido com o direito à livre expressão, paradoxalmente esta “liberdade” tem resvalado muitas vezes para comportamentos e manifestações bastante violentas. Uma nota recente na mídia revelava que, a despeito dos esforços do governo alemão para que o nazismo e sua ideologia truculenta permaneçam enterrados, há sempre grupos de fanáticos dispostos a reverenciar os fantasmas de alguns ícones hitleristas. Em continuidade a noticia sobre a tentativa de homenagear a data de morte de um destes ícones, ao invés de manifestações contrárias que insuflassem o ódio entre as pessoas, a população “indignada” havia planejado algo na linha do humor na tentativa de espelhar o absurdo e a infâmia  de tal comportamento. O filme “Relatos Selvagens” do diretor argentino Damián Szifron segue um pouco a linha do humor (negro, com certeza), mas, ao contrário, não poupa em nada a passagem da linha (sempre tênue, é verdade) que separa a civilização da barbárie. Sucesso de bilheteria em seu país, contrariando as expectativas do próprio diretor que se diz surpreso, o filme se divide em seis pequenas estórias, todas elas desenvolvendo um argumento em comum: como os personagens reagirão diante de situações frustrantes, humilhantes ou inesperadas. Acertou quem pensou em planos de vinganças normalmente “irrealizáveis”. Todas se realizam!!!! E se isto pode causar um grande mal estar, o que seria esperado para todos que ensaiamos nossas vinganças sem jamais leva-las adiante, aos poucos fica clara a intenção de encenar uma caricatura de situações corriqueiras que fazem parte da vida cotidiana, utilizando um humor macabro. Todos os protagonistas se desesperam, agem sem controle, e levam às ultimas consequências, sua ira ou seu desejo de vingança. Considerado pelo diretor como a realização de um projeto menor perto de outros mais acalentados, seu trunfo no entanto, está muito mais na proximidade de nossa realidade psíquica do que se pode imaginar. Nenhuma civilização de qualquer época deixou de perseguir caminhos que oferecessem regras e valores que garantissem a convivência humana. Sabemos hoje que nem mesmo as leis, cada vez mais homogêneas e internalizadas por todos, conseguem esta garantia. Somos seres em permanente conflito e precisamos continuamente negociar conosco tais concessões, avaliando os custos e danos.  O diretor Szifron é jovem, tem 39 anos e se declara, antes de qualquer rótulo, um cinéfilo de carteirinha. Alguns jornalistas o veem como um filhote do diretor Tarantino. Nada mais justo, já que este ousado diretor americano possibilitou ao mundo todo, através de dois de seus recentes e impactantes filmes – Bastardos Inglórios e Django Livre – uma vingança coletiva ao providenciar destinos funestos a Hitler e sua alta cúpula, e aos “donos insanos” de escravos do sul dos USA, respectivamente. Assim como Tarantino, o diretor argentino resolveu dar voz aos que se sentem indignados com as infâmias que sofrem no dia a dia. Coisas de cinema, que pode e deve brincar com a realidade.   
Para conferir:
Relatos Selvagens- Argentina 2014

Diretor - Damián Szifron

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Quem pai?

Desde que meu filho se tornou pai, adotamos a prática de trocar  textos/reportagens/blogs de pais que descrevem seu percurso nesta empreitada, buscando novas referencias desta função antes relegada a um segundo plano nos cuidados com o bebê. Graças a estes novos pais sensíveis, alguns textos são verdadeiros bálsamos ao revelarem os sentimentos de amor lado a lado com as tentativas de compreender os sinais vindos do convívio com o filho(a), os pactos com a cônjuge na divisão do tempo “full time” que um bebê exige ou na condução das escolhas diante dos impasses da tarefa de fazer de um bebê um menino ou uma menina que possa entender seu lugar na família e no mundo e ainda gostar de viver no mundo humano. Esta tendência, somada às imagens cada vez mais comuns de pais que sozinhos conduzem os carrinhos de seu bebê pelas ruas das grandes cidades do mundo, dão mostras de um deslocamento, ainda que tímido, na imagem que os homens têm de si mesmos e nas referencias que os representam enquanto gênero. No entanto não é tão simples ou fácil que mudanças de costumes, principalmente aquelas que vêm acopladas a comportamentos que dão corpo e alma a determinados papéis já consagrados dentro das sociedades, possam se processar em curto prazo. Aqui e ali, ao mesmo tempo em que somos contemplados com ícones importantes da sociedade contemporânea que tentam escapar do “formal” ou da cartilha do “bem-sucedido” preocupado em manipular sua imagem tal e qual um personagem, ainda nos deparamos, com certa perplexidade, com uma fatia considerável de pessoas que se alinham aos “tementes”, outra categoria que ensurdece e borra qualquer sinal de “bom” futuro. O papa Francisco é um exemplo destes ícones inovadores que surpreende o mundo ao convocar a todos a debater temas tabus dentro de uma instituição conservadora. Aos olhos perplexos de muitos, ele propôs ao quadro dos “servidores” da própria Igreja, um debate sobre questões que atravessam o sagrado conceito de “família” como a homossexualidade e os divorciados, antes excluídos das bênçãos divinas. Se isto pode se configurar como um serviço a favor da vida e principalmente do afeto como seu combustível, uma grande fatia dos “tementes” representam ao contrário, forças religiosas conservadoras que apoiam a volta ao militarismo e às guerras e instigam as atitudes machistas e homofóbicas. Na linha do equívoco da mistura entre governos e religião, talvez o exemplo mais contundente seja o Islã, que parece ter perdido seu rumo ao tentar restabelecer um tempo em que puderam ser importantes e referendar a cultura mundial. Ainda que não sejam aprovados pela maioria dos muçulmanos, o novíssimo Estado Islâmico, considerado por muitos como um sucessor ainda mais radical do movimento Al-Queda, representa a imagem de um Islã que busca a volta ao século VII, ou seja, de um tempo em que podiam ser vitoriosos e poderosos e que tal feito podia ser atribuído  aos desígnios de um Deus. Em um mundo em que cabe cada vez mais a cada um buscar um lugar “político”, em que questões éticas e políticas como justiça, hospitalidade, responsabilidade e democracia fiquem subentendidas, esta “missão” que não é nada simples, exige que se considere os legados, as heranças, mas sempre para argumenta-las e supera-las, adequando-as às novas formas de se viver. Esta tarefa está diretamente relacionada com os cuidados e a educação das crianças do futuro, que precisam de tempo, espaço e dicas para explorar o mundo, descobrir quem são e quiçá desafiar as metas parentais e de seu tempo.


A vida entre parêntesis

Em entrevista à Folha de São Paulo no mês de novembro, o artista londrino Damien Hirst  que veio ao Brasil para abrir uma exposição de seus trabalhos, e que há 20 anos é considerado uma celebridade no mundo das artes, confessava que desde 2008, quando percebeu que não era imortal, que podia envelhecer, adoecer ou morrer, conseguiu finalmente ter uma visão de si, de seu passado e de sua vida, mesmo que no início tivesse ficado tomado pelo pânico. Detalhe: a morte sempre foi seu tema principal. Mergulhado nos excessos de si, de grana, de drogas, não lhe era possível sequer balizar o valor que suas obras tinham para ele. A impressão que se tem ao final da entrevista é que uma parte de si não pode deixar de administrar este personagem, e o tom mais confessional o ajuda a manter-se mais “amado” do que “odiado” ou “invejado”. Líder dos YBAs, ou melhor, dos jovens artistas britânicos dos anos 90, Damien teve uma carreira meteórica ao se associar a um colecionador conhecido pelo estilo agressivo na aposta midiática e marqueteira, o que o fez acumular uma grande fortuna. Nos últimos dez anos, no entanto tornou-se, junto ao sucesso de suas obras, uma pessoa non grata em boa parte de Londres e em alguns lugares da Europa, a ponto de evitar comparecer às vernissages de suas exposições. Em São Paulo, entre alguns selfies com os admiradores, apelava para o caráter mais genuíno e cordial dos brasileiros. Vivendo em uma época em que o recurso midiático projeta os famosos num perímetro antes inimaginável, ao mesmo tempo em que glamuriza sua intimidade, Damien talvez não estivesse preparado (será que alguém está?) para se tornar, assim como sua obra, um objeto da curiosidade e apetite infinito do público. Já a Ilustríssima do dia 9 de novembro, na onda do projeto Alemanha+Brasil 2013-2014, uma parceria do governo alemão e do Instituto Goethe para celebrar as relações entre os dois países, desafiou 11 nomes representativos das duas culturas para escreverem a partir de um futuro fictício: "Estamos no ano de 2064 e hoje você está celebrando seu 50º aniversário. Como está o mundo neste dia?" Imaginar-se nascendo hoje e vivendo aos 50 anos em 2064 não é tarefa fácil. O que escolher para ficar ou mudar? Que tons usar, os cinzas ou os coloridos? Como pensar o mundo ou as pessoas? Um resumo dos relatos mostra que a maioria consagra a hegemonia da ciência e da tecnologia para os corpos e para os modos de viver, embora alguns acentuem as notas mais nostálgicas, de um passado com mais recursos naturais e menos vida artificial. Uma boa parte aposta que a ciência e a tecnologia levarão às ultimas consequências o projeto de parecermos felizes, vivos por muito mais tempo, com possibilidade de apagarmos a memória a fim de evitar as dores, as paixões ou os loucos desejos. Mas se para alguns só resta tentar “comprar” memórias justamente para não esquecer o passado de amores e dores, para outros sempre haverá brechas, furos e tréguas, e a humanidade não cessará de inventar novas formas de resistência ao status quo. Saber/poder improvisar pode vir as ser valioso. Apenas um (alemão) imaginou um mundo sustentável, que teria derrubado o modo de vida baseado no consumo infinito de objetos, e instalado o desapego, inventando um estilo de vida do alivio e do prazer. No balanço final o mundo pode ser vivido sem futuro, em guerra perpétua, muito gelado ou muito quente, e principalmente com muito medo. A entrevista feita a Damien discutida no inicio do texto, tenta capturar a “verdade” de sua vida, escarafunchando o passado e o presente, como a oferecer ao leitor um sentido que não está claro e precisa ser narrado. Ao discorrer sobre minhas impressões a respeito do artista baseada em suas respostas ao repórter, opto por privilegiar um ângulo de sua vida ao invés de outros. Os 11 relatos apresentados pela Ilustrissima também contém esta diversidade de olhares para o futuro do mundo, provavelmente construída a partir do sentido que cada autor atribui à sua vida. 

domingo, 9 de novembro de 2014

O pão nosso de cada dia


O diretor Richard Llnklater é cultuado por uma parcela importante de jovens que assistiram a sua trilogia Before "Antes do Pôr-do-Sol"/ "Antes do Amanhecer"/ "Antes da Meia-Noite", e desfrutaram do roteiro aparentemente despretensioso destes filmes que apresentavam uma inovação ao eleger como protagonistas do par amoroso, os mesmos atores, em três épocas diferentes de suas vidas, perfazendo um intervalo de nove anos. Assim, os sonhos e expectativas amorosas de juventude, podiam ser revistos e checados sob outras perspectivas pelo casal, à medida que ficavam mais velhos. Seu mais novo projeto, “Boyhood”, ganhador do Urso de Prata de Berlim pela direção, é tão ou mais ousado e primoroso. Durante 12 anos, também com os mesmos atores, Linklater filmou a historia de uma família de classe média, que vive no Estado do Texas – local pouco utilizado como cenário no cinema americano – permitindo a nós, espectadores, acompanharmos seus membros em seus pequenos dramas, conflitos e anseios, na tristeza e na alegria. É a vida cotidiana que nos toca viver que se apresenta, com seus altos e baixos, ainda que o projeto de Linklater não deixe de fora certos acontecimentos impactantes como a invasão do Iraque no governo Bush, a surpreendente eleição de Obama, o sucesso da saga Harry Porter entre jovens e crianças e claro, as transformações que o mundo digital trouxe aos modos de vida de todos. São dois filhos de pais separados – o caçula e sua irmã mais velha - que vivem com a mãe e precisam segui-la em suas mudanças de casa, cidade, maridos. O pai músico, que no inicio do filme usa a metáfora “trabalhando no Alaska” como desculpa por não pertencer ao mundo dos bem sucedidos,  logo retoma sua parte no convívio com os filhos. Assim como na sua trilogia sobre o amor, neste também os diálogos entre os adultos, entre estes e as crianças, entre as próprias crianças ou os adolescentes, são um diferencial do filme. Linklater parece fazer questão de utilizar o espaço cênico para debater ideias importantes sobre as relações humanas. Nada é deixado de lado, nem as brincadeiras bem humoradas, nem as mágoas, as dúvidas, as más escolhas (e suas consequências), as humilhações ou as questões sem respostas. Mas embora possa parecer um roteiro sem pretensões maiores do que a de apresentar a vida de uma família comum sem julgamentos morais ou normativos, não há como não aplaudir a preocupação do diretor em salientar o papel fundamental que os adultos contemporâneos precisam exercer não só quando escolhem serem pais, mas simplesmente por ocuparem um lugar assimétrico em relação aos mais jovens, e só por isso já estarem convocados a assumir a tarefa civilizatória e humanizadora. Neste sentido, de forma despretensiosa e deslocada dos discursos idealizados sobre família/pais e filhos, ele sublinha a importância desta responsabilidade e, portanto do comprometimento e cuidados com esta função, que para ser amorosa – fator imprescindível para acontecer um link com a vida e consigo mesmo – exige menos competências intelectuais e mais conhecimento sobre si, sobre o sentido/valor da vida de cada um, sobre a importância de se deixar afetar e de suportar /respeitar o estranho ou desconhecido. Moral da história: fica muito mais difícil ajudarmos os “garotos” a se emancipar e ganhar autonomia, se não percorremos antes este caminho e pudemos compreender a importância de discriminar o que deve ser incentivado, o que precisa de parâmetros e limites claros e o que necessita ser vetado. Não, não precisamos ser/bancar os adultos sabichões, ao contrário, pode ser salutar dividir algumas dúvidas e incertezas.
Para conferir: Boyhood  - 2014 - USA
Diretor: Richard Linklater

Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke 

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Reclame aqui

Eram amigos há muito tempo, “brothers” de alma, em uma relação em que reinava o respeito e a camaradagem. Na época da faculdade fizeram escolhas diferentes, um seguiu para as ciências da economia e administração e outro se enveredou pelos caminhos das humanidades. Deram-se bem, ambos. E seguiram juntos, alimentando o convívio, agregando os novos amigos e as namoradas. Coisas de jovens das gerações mais novas, sempre que um entrava em alguma nuvem cinza por qualquer motivo, o outro era o parceiro que socorria. A senha era aquele bar dos velhos tempos e as geladíssimas cervejas “Original”. Uma troca que significava muito para os dois. As diferenças de pontos de vistas já eram antigas e tratadas com certo humor, mas com o passar do tempo suas visões de mundo e de futuro se distanciaram. Na eleição para presidente do Brasil de 2010, no embate entre os candidatos do PT e do PSDB, ficaram em lados opostos, travaram vários debates, tentaram achar um território comum e sobreviveram à decepção de um e ao sucesso do outro. Nos anos que se seguiram retomavam vez em quando suas posições, mas acabavam desistindo de levar adiante qualquer ameaça a amizade. Quando o cenário eleitoral deste ano se transformou em guerra acirrada entre os dois partidos que disputavam novamente as eleições presidenciais, o caldo entornou. Na exposição a céu aberto das redes sociais, o botão “modo paranoico” de ambos foi acionado. Qualquer texto ou notícia compartilhada que denegrisse o partido de um, era sentido como traição pelo outro. Sentindo-se injustiçados, para ambos o “outro” passou para o campo do inimigo. Na lógica binária do modo paranoico de existir, a verdade estava do “meu” lado. Como era possível “ele” não perceber e colocar em risco uma amizade de tantos anos? Como e quando “ele” se tornara aquela pessoa tão odiosa que não se importava com os “meus” projetos de vida? A paixão do ódio impediu-os de pensar. A cada cutucada, dez tiros. Whatsapp  bloqueado e, no silencio das vozes, o Facebook se tornou o campo de batalha, acionado milhares de vezes para conferir o ranking das ofensas de cada lado. Na ânsia da vitória final para o dia 26 de outubro, ambos se “jogaram” na militância de seus partidos, aliciando cada amigo (a) ou conhecido (a) de sua lista. Era tudo ou nada, vida ou morte. Para os poucos que ousaram questionar, a resposta era automática: “ele” começara. O clima de empate que dominou os dias que antecederam o domingo da eleição só aumentou a tensão e o desejo pela vitória de “seu” partido. Não era esperança, mas certeza! No rebuliço da alma de cada um ardia a quietude prazerosa da vingança, só suplantada quando o resultado das urnas confirmasse o que cada um já sabia: seu candidato vencera!      

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A Bela e a Fera

Está em cartaz nos cinemas, em uma superprodução franco-alemã, mais uma versão da história da Bela e a Fera, talvez o conto de fadas que mais versões recebeu em sua longa existência (livros, animações, filmes, musicais). Vale a pena recuperar a historia de nossos tão conhecidos contos de fadas, contos estes que foram compilados por alguns escritores da sociedade europeia nos séculos XVII ao XIX, que recolheram cada qual  em sua cultura, as histórias orais contadas e recontadas, nem sempre destinadas aos infantes, mas quase sempre permeadas por um realismo fantástico. O francês Charles Perrault (1697) foi o primeiro a reunir essas histórias consagradas pela tradição oral e organiza-las em “Os contos da mamãe Gansa” dirigidos às crianças. Tempos depois foi a vez dos irmãos Grimm se utilizarem da literatura popular oral e escrita da Alemanha, alcançando um grande sucesso. Na Dinamarca, Hans Christian Andersen fez inicialmente o mesmo percurso para depois dedicar-se à criação de uma literatura infantil, centrada principalmente na vida cotidiana. Em comum, estes contos de fadas costumam apresentar um conflito entre o bem e o mal ao expor os impasses de uma determinada situação, e desenvolvem um processo de solução com um sucesso final, utilizando-se de um mundo fantástico, ideal para o pensamento mágico das crianças. Mas o fato de estes personagens imaginários representarem os tumultos de nosso mundo interior ao expressar nossos anseios, angústia e medos, ainda que num  mundo de fantasia, do faz de conta e da ficção, cria uma cumplicidade tanto para as crianças quanto para os adultos. Todos ficam tocados pelas histórias, que em geral abordam temas que fazem parte da tradição de muitos povos, apresentam saídas para problemas comuns, oferecem soluções para possíveis conflitos e acima de tudo transmitem uma mensagem que é ao mesmo tempo de conforto ao propagar que a luta contra as dificuldades e os medos é inevitável, e de esperança, já que a vitória é sempre possível. A Bela e a Fera (La Belle et la Bête), no entanto, teria sido originalmente escrito por uma francesa ( uma mulher, o que não era usual),  Gabrielle-Suzanne Barbot, a Dama de Villeneuve, em 1740  para entreter seus amigos. Alguns anos mais tarde, em 1756, outra mulher, Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, resumiu e modificou a obra de Villeneuve, que se tornou a versão mais conhecida. Adaptada, filmada e encenada inúmeras vezes, o conto apresenta pequenas modificações desta versão ao se adaptar a diferentes culturas e momentos sociais e alcança seu ápice na versão de animação, imortalizada nas telas em 1991 pela Walt Disney, quando alcançou índices jamais imaginados para um desenho, e recebeu indicação ao Oscar de melhor filme. O que este conto teria de diferente? Ele não só foi escrito por uma mulher e adaptado por outra, como em suas diferentes versões, mantém o protagonismo de Bela, que escolhe ser trocada pelo pai para ficar com a Fera, e conquista-a além de ser conquistada. Como pano de fundo, estamos aqui em plena passagem da menina para a adolescente, que precisa se despedir do amor paterno, encarar sua sexualidade e ter coragem para se voltar ao mundo dos homens. A Fera é a figura deste homem ainda desconhecido, animal em sua sexualidade estranha, mas que aos poucos poderá se transformar em um homem para ser desejado e amado. Quando Freud no final do século XIX e inicio do XX inventa sua leitura sobre nossa intimidade, empresta dos mitos gregos sua simbologia. Os contos de fadas permitem à criança uma mediação entre seu mundo interno e externo, e por meio do simbolismo facilitam que ela experimente diferentes papéis e situações de seu contexto familiar ao se identificar com os vários personagens do conto. Quem sabe  seja este fascínio que atinge a todos, o que faz com que os contos de fadas se perpetuem.

Para conferir: A Bela e a Fera (2014)

Direção: Christophe Gans  ( França/Alemanha)

A magia do olhar

Não fossem as palavras, a realidade seria sem graça, sem formas, sem sentido. Graças às palavras podemos desfrutar e compartilhar a realidade, mas é nossa produção de ficções que não só potencializam as coisas e as maneiras de se olhar a realidade, como permitem abrir portas nas velhas paisagens, apontar o impossível como possível, ou somente retirar nossas vidinhas de seu mundo quadrado. Muitas ficções literárias atravessam a história mantendo-se como referencia deste gap realizado ali, naquele momento. Também o cinema e seus diretores geniais, mantêm nossas expectativas de sermos afetados por novas maneiras de entendimento da realidade ou de nós mesmos. Woody Allen é figurinha conhecida nos quatro cantos do mundo, e muito reverenciado pela frequência com que realiza filmes com alto teor de interrogações sobre nós e nossas vidinhas. Mas é bem provável que aos 79 anos, ele tenha se concedido uma liberdade não tão comum aos que alcançam um lugar de destaque e precisam cuidar da reputação conquistada ao longo de suas vidas. Nos últimos anos, com sua vida privada exposta em meio ao quiproquó de denúncias feitas por sua ex-esposa, a atriz Mia Farrow, ele não só tem rodado seus filmes fora dos USA, como aproveita para apresentar os ângulos ou lugares mais lindos daquele país ou região, escolhe atores inesperados para seus personagens, e elege temas que, a primeira vista, parecem banais, na maneira simplória e singela com que são apresentados. É o caso de seu mais recente filme, “Magia ao luar”, em que ele se utiliza das belíssimas paisagens da Riviera Francesa, ambienta - o nos anos 20- com direito a um impecável figurino de época – e traz à tona um debate sobre a possibilidade ou não de conciliação da fé com a ciência/razão. Os dois personagens principais representam de forma caricata, os extremos de cada uma destas possibilidades. De um lado um famoso e cético ilusionista (Colin Firth) cujo discurso sempre se enquadra no racional, que anuncia seu desprezo pelas paixões e pelas crenças no divino ou no oculto, e de outro uma “médium” americana (Emma Stone), que anuncia a possibilidade de utilizar seus recursos para fazer uma ponte com o mundo espiritual, e de quebra exibe de forma exuberante, sua juventude, alegria e paixões pela vida. Convidado por um amigo a desmascarar a vidente, o homem cético se impressiona e se apaixona por ela, capturado por seu espírito livre e pela singeleza com que leva a sério a ilusão e a fantasia. Woody Allen parece assim convidar-nos a abandonar a lógica racional e abrir espaço para uma terceira via, feita de nossas fantasias, sonhos, romances, e tudo aquilo que pode nos fazer suportar melhor a dureza e os infortúnios da vida. Na base da produção de sua ficção está um questionamento de quem somos, por que somos e como somos. A resposta é que não somos perfeitos, não temos respostas certas para viver, e temos muitos limites e insuficiências. Tudo depende, sempre, da maneira de olhar - e se possível  de desdobrar e multiplicar nosso olhar. É sem dúvida um Woody Allen mais romântico, que escolhe pinçar o que o homem tem de mais espontâneo e ímpar.
Para conferir:  Magia ao luar (2014)

Diretor : Woody Allen ( USA) 

Os bebes que nos assustam

A roda era formada por alguns jovens casais que estavam visitando o bebê de um deles e o assunto, o bebê, espalhava um tom apreensivo naqueles que estavam por decidir sobre seu futuro de pais. Tanto as “meninas” quanto os “meninos” trocavam ideias com aqueles que já haviam entrado neste mundo tão perturbador. E as histórias se multiplicavam para dar conta deste universo inquietante que reina quando um bebê adentra no que era uma dupla e força a barra para ali se constituir uma família. O que era mais assustador? O sono dos pais que se perdia na contabilidade negativa? O sono do bebê que não se encaixava na ansiada expectativa? Seu choro nem sempre decifrável? Sua falta de linguagem para comunicar sobre seus tormentos, mal estares e dores? Assim seguiam as narrativas de uns e outros até que em algum momento alguém ousou falar sobre o mais tabu dos temas: a decepção e frustração que se instala em quase todas as casas de casais que se tornam pela primeira vez, pais de um bebê. Graças a uma prática que tem se tornado mais frequente atualmente – e que em certa medida pode ser benvinda - tem sido possível colocar na roda dos amigos e/ou das famílias, temas que não só são pouco prestigiosos para os protagonistas da história, como desnudam suas falhas, seus temores, suas angústias, seu desamparo diante de situações inesperadas. A maternidade, a vinda de um bebê, a paternidade, estiveram por muitos anos guardados em um lugar de honra nos arquivos dos modelos ideais e de grande importância para o bom funcionamento das sociedades. Em poucas décadas, a ciência construiu uma infinidade de informações e cartilhas para pais de primeira viagem que pretendia aumentar as chances de que esta etapa da vida dos casais pudesse ser vivida da melhor maneira possível. Em parte, as gerações atuais de pais se beneficiam deste aparato, principalmente na quebra de muitos mitos e tradições seculares nem sempre benéficas. Também é verdade que a profusão de informações que hoje existem sobre a gestação, o parto, os primeiros cuidados, etc. colocam para estes a difícil tarefa de separar o joio do trigo, ou de escolher o que lhes parece se encaixar melhor em seu modo de vida. Mas ainda que os pais se esmerem na preparação para o que virá, a vinda de um bebê desconstrói o modelo ideal. Não há como evitar a surpresa, a estranheza e o enigmático que ronda esta passagem de um ser que demanda cuidados de todas as ordens e que precisará, graças a estes cuidados, ser adotado pela cultura e “domesticado” até se tornar familiar. Não é fácil para estes pais viverem este período em que eles são tão responsáveis por esta passagem, sem se sentirem frágeis, assustados, temerosos quanto a suas possibilidades. Há no horizonte do futuro dos bebês, um devir indeterminado e incerto, e isso é bastante amedrontador. Além disso, outro processo nada simples precisa acontecer: o casal deverá deixar seu lugar de filhos para tornarem-se pais. Mas talvez o maior dos mitos, o do amor imediato e incondicional que “deve” se instalar entre o pequenino ser e seus pais, seja o mais desolador, já que a ninguém parece admissível que se possa  ter momentos de muita raiva e ódio e outros de tanto amor ao próprio filho. Por isso, as rodas de conversa entre amigos e familiares, quando são acolhedoras destes temores e sustos, podem auxiliar os pais a narrarem seus sentimentos, pensamentos e atos, o que pode contribuir para uma “reorganização” deste tumultuado período.

domingo, 31 de agosto de 2014

Politicamente correto

Pode-se dizer que classificar algo de politicamente correto (ou incorreto) surge nos ventos da globalização e da propagação da internet, com a capilarização das trocas entre indivíduos de todos os lugares (geográficos e sociais), como estratégia para a manutenção na busca de uma cultura de igualdade. Ficaria assim decidido consensualmente que cada indivíduo seria responsável por sua manifestação de repúdio ou acolhimento às diferenças, tendo como pano de fundo tal norma “ideológica”. Mas seria ideológica ou humanista? E porque precisamos deste tipo de norma para conviver com os outros? Mais, porque para muitos o politicamente correto traz em seus conceitos e respectivas atitudes certa hipocrisia? Seria porque  ao invés de se refletir sobre a importância ou não de se manter a liberdade com seus devidos cuidados aos direitos dos outros, tendemos a esculhambar a suposta “norma” como se ela fosse uma imposição ao invés de uma baliza? Na verdade, a prerrogativa que se abre com o uso deste termo “politicamente correto” é válida somente para que possamos titubear quando de forma quase “automática” acionamos nossos ódios ou desprezo, uma forma de nos impor um espaço para nos perguntar não só que tipo de sociedade queremos, mas como elegemos nossas estratégias de ação se nos considerarmos agentes implicados. É bom que se lembre também que não podemos sequer classificar os comportamentos ou atos que ficam fora deste “correto” de forma muito rígida, pois estes dizem respeito aos valores que a cada época vamos validando como norteadores de nossa convivência. Dentre os dois maiores grupos discriminatórios de nossa época, os raciais e os sexistas, estes últimos são os que parecem mais difíceis de serem processados. E dentre estes talvez o que mais perturbe a todos seja os ligados ao “machismo”. Dizer que alguém pensa ou age como machista não está restrito aos homens. Estamos falando de um imaginário cultural de alguns séculos, marcado pela lógica da dominação masculina e confirmada por um modelo social que impunha de forma imperativa papéis e lugares a cada um. Embora este imaginário venha sendo desconstruído lenta, mas firmemente, os comportamentos machistas pululam. Um bom exemplo deste cenário, amplamente noticiado, surgiu a partir das denúncias de assédio e pedidos de mulheres para que o metrô de SP reservasse um  “vagão rosa” nos horários de pico com a finalidade de preservá-las. Já implantados em países como Japão, Egito, Índia, Irã, Indonésia, Filipinas, México, Malásia e Dubai, no Brasil funciona há sete anos no Rio de Janeiro, desde maio deste ano no metrô de Brasília e no último dia 4 de julho foi aprovado o projeto de lei que cria um vagão exclusivo para o uso feminino no metrô de São Paulo. Por trás destas medidas tomadas a partir da constatação de assédio de homens sobre as mulheres, está um tipo de leitura machista que enxerga os corpos femininos como objetos disponíveis. Embora muitas mulheres tenham feito campanhas contra a instalação do vagão exclusivo argumentando que tal medida não “ensina” a população sobre a obrigação de respeito e cuidado com o outro (seja lá quem este seja), nem altera a forma como muitos homens e mulheres ainda “culpam” as que são assediadas por estarem vestidas de forma X ou Y, ou por provocarem a atração sobre si, só o fato desta polêmica ter sido vastamente noticiada, já coloca o tema em destaque. É assim que se cria aos poucos um “politicamente correto”, ou seja, uma norma  construída pela sociedade que cria uma expectativa de que cada um utilize-a como referencia para pensar sobre o que ele ou os outros fazem e ao mesmo tempo instala um constrangimento social aos que não se importam.  

Ventos modernos

Para o mundo da literatura, 2014 tem sido considerado o “ano Cortázar” por marcar os 100 anos de seu nascimento, 30 anos de sua morte e 50 anos da publicação de “O jogo da amarelinha” livro que o retirou do anonimato e o alçou a fama. Não por acaso. Argentino, mas vivendo por escolha na Paris dos anos 60, templo dos movimentos revolucionários da política e da cultura da época, seu livro estampava o momento de ruptura que seu autor vivia em relação ao seu passado e suas crenças. De forma lúdica e bem humorada, Júlio Cortázar utiliza-se da ideia dos saltos do jogo da amarelinha e propõe duas opções de leituras para seus 155 capítulos. Uma convencional, que vai do capítulo 1ao 56 e aqui termina o romance, ou alternando-se os capítulos, e incluindo os “prescindíveis”, em uma leitura que além de acrescer os restantes, segue uma ordem sugerida pelo autor que aparentemente é arbitrária e aleatória. Confesso que minha leitura deste livro, vista sob a lente atual, marca um antes e um depois em minha vida. Se até ali eu podia me considerar uma leitora como outra qualquer, a partir do contato com tamanha liberdade para romper com as convenções e criar algo genial, fosse na trama da historia ou na apresentação da forma inédita de ler, passei a desejar (íntima e secretamente) saber escrever. Mas não para realizar um romance ou algo do gênero e sim para me ajudar a pensar sobre os modos de vida das pessoas, seus valores, suas crenças, que a mim pareciam tão arbitrários. Ainda não sabia o quanto eu mergulharia em seus modos de sofrer e de amar e principalmente em seus medos. Estes 50 anos que nos separam do lançamento deste livro podem ser vistos como a passagem para um novo mundo, um mundo perturbador, quiçá um tempo de transição para outro conjunto de valores. Convivemos simultaneamente com sociedades dilaceradas por divisões étnicas, econômicas e religiosas e um mundo interligado pelo uso de mídias sociais que permite um compartilhamento jamais alcançado com a diversidade cultural e étnica do planeta. Há os que acreditam que estamos vivendo uma nova ordem, e graças a esta dimensão social ampliada, carecemos de regulamentações de práticas de política e de direito que escapem daquelas elaboradas para defender apenas os interesses de cada povo. É esperado que em universo global haja a legitimação de uma moralidade global, assim como a soberania de cada Estado possa sofrer constrangimentos caso se exima de seguir as leis e normas pactuadas entre todos. Se o espírito de uma época só pode ser analisado tempos depois, no momento em que se vive rupturas tão profundas, ao contrário, é fácil detectar a expansão do medo, assim como certo recrudescimento de valores, maior apego ao que se conhece e ao que se imagina ser um lugar de conforto naquilo que se acredita. Júlio Cortázar teve que dar várias entrevistas para responder à curiosidade sobre as razões, sentimentos e ideias que o levaram a “criar” um livro tão inusitado. É quase certo que diante desta necessidade de responder, ele teve que se esforçar por entender o que lhe passava. É provável que a cada época em que fosse inquerido sobre a realização de seu livro, algo se acrescentasse na historia deste percurso, fruto desta demanda humana eterna, que não cessa de buscar trilhas seguras a serem seguidas, principalmente quando a paisagem é tão desértica. E ninguém melhor do que o artista para representar a liberdade de realizar nossos desejos.


Se ficar, comem; se correr, pegam.

Logo após as redes sociais divulgarem a morte do candidato à presidência da República Eduardo Campos, causando um choque generalizado pela forma trágica com que ocorrera, alguns internautas postaram um quadrinho em que os dizeres eram um pedido (irônico) de “basta” pelas mortes de pessoas públicas e queridas acontecidas nos últimos dois ou três meses. Tinha sido suficiente e que ninguém mais morresse! Não se poderia suportar. A cada morte anunciada destas pessoas públicas - que por este motivo nos parecem tão próximas e com as quais acompanhamos a trajetória por motivos os mais diversos – choveram manifestações pelas redes sociais, fosse para homenagear, discorrer sobre o pesar, compartilhar o sentimento de perda e de vazio ou ainda recuperar pela memória afetiva, os momentos em que aquela pessoa havia participado sem o saber, de algum ato transformador de suas vidas. Neste sentido, quando a rede de amigos é composta por aqueles que traduzem pela via de suas experiências, sentimentos e ideias com as quais cada um se identifica, alguns textos pessoais podem ser verdadeiros bálsamos por oferecer palavras que acomodam ou exaltam nossas emoções. De qualquer forma, compartilhar em rede a experiência da perda de alguém e que normalmente suscita sentimentos tão ímpares a cada um é algo novo, e pode expandir as possibilidades de narrativas dos acontecimentos cotidianos e contribuir, muitas vezes, para fazer circular e acrescentar ideias que modificam a visão que temos do mundo e das pessoas. O contrário é também verdadeiro. Por ser um espaço democrático e livre, o uso das redes pode ficar a serviço de elucubrações bizarras, desconexas e superficiais ou para se despejar, sem críticas ou critérios que levem em conta o impacto do “receptor”, sentimentos de desprezo, denúncias difamatórias, palavras que indiquem  preconceitos de alguma ordem. Nada que já não exista no quadro de possibilidades de convívios humanos, mas com certeza, o fato da rede não exigir o olho-no-olho, nem a presença física, favorece aqueles que talvez titubeassem em expor sua hostilidade ao vivo e a cores. O que se pode chamar de constrangimento social, lubrificante importante da manutenção dos “bons costumes”. Também é verdade que o acesso democrático sempre pode estabelecer trocas, ainda que sejam para discordar de X ou Y argumentos, ou pedir uma reparação pelo uso indevido ou equivocado de palavras agressivas, o que nem sempre é algo que mereça ser evitado. É muitas vezes no confronto das ideias que se pode avançar em busca de novos conhecimentos e interpretações. Não, não estou apostando que possamos passar a ser melhores pessoas graças a esta engenhosa invenção da comunicação humana. Também não estou ingenuamente fazendo uma apologia de um futuro promissor alavancado pelo uso de redes sociais. Apenas indicando um outro olhar, ao analisar as “criações” humanas à luz de sua necessidade permanente de compreensão ou quem sabe defendendo de forma vigorosa, que todos temos (se quisermos) a possibilidade de pensar sobre a viabilidade da emancipação humana. Seja no conforto ou bem longe dele.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A história de nossos ódios

2014 marcam os cem anos da primeira guerra mundial, que também é considerado um marco na história humana, pela “transgressão” inaudita dos pactos civilizatórios que os dois séculos anteriores haviam se esmerado em construir. Passados cem anos, tornou-se comum assistirmos “pequenas guerras” em que dois ou mais agrupamentos humanos se declaram inimigos e concedem a si o direito de matar uns aos outros. As notícias estão longe de serem escassas e parciais. São muitas. Uma overdose de fotos, vídeos, declarações, relatos, discussões mais aprofundadas em colunas e blogs, em jornais, TV, redes sociais, a favor de uns ou de outros, deixando a cada um a escolha de viver sua perplexidade e indignação por mais uma matança absurda, ficar indiferente e satisfeito por não fazer parte ou estar bem longe desta loucura, ou se engajar na busca de sentido para as formas de violência consentidas que vivemos. Foi o que fez um grupo de intelectuais brasileiros e estrangeiros capitaneados pelo jornalista e filósofo Adauto Novaes reunirem-se de agosto a outubro deste ano no SESC Vila Mariana SP, para pensar as “Fontes Passionais da Violência” na oitava edição do ciclo “Mutações”. O nome Mutações não é por acaso, e agregando temas como Novas configurações do mundo, A condição humana, A experiência do pensamento, A invenção das crenças, O elogio à preguiça, etc. tem pretendido pensa-los à luz das mudanças radicais que vivemos em todas as nossas atividades, desde que a era da biotecnociencia provocou uma revolução antropológica e cultural inimaginável. O tema elegido para este ano, a violência, também não é tarefa fácil de pensar. Ainda que seja um tema que invada o cotidiano de todos na tarefa de convívio que inevitavelmente nos leva ao confronto inesperado com pequenas infrações, delitos e injustiças (nossas ou de outros) e provocam reações de indignação, intolerância, e ódio irascível, não costumamos falar da violência como algo inerente a todos os seres humanos, ou nós mesmos. Quase como uma forma de negarmos a possibilidade de sentirmos raiva, ódio, sede de vingança, vontade de bater/matar ou tripudiar alguém, preferimos nos juntar para acusar os “infratores”. Nos dois séculos anteriores, mesmo após a hecatombe provocada pela segunda e mais bárbara guerra mundial, ainda nos restava apostar que a sociedade e o Estado com suas normas organizadoras, protetoras e mediadoras (promovidas pela educação e pelo direito) zelariam pelos vários papéis assumidos nos grupos sociais e de trabalho, o que permitiria uma convivência solidária e garantiria a coesão social. Também os delitos e crimes (ou as exceções) estariam devidamente previstos e enquadrados. O que mudou? Embora haja uma grande parte que acuse ora a instalação endogâmica do capitalismo com sua captura perversa nas luzes do consumo desastrado/exacerbado, ora a ciência com suas verdades mais técnicas do que humanas, e sua veia prometeica na satisfação sem tantos custos ou riscos, é interessante pensar que somos hoje muito mais uma grande “irmandade” de indivíduos cada vez mais próximos de todos que habitam o mundo. E, embora esta “irmandade”, de formas as mais variadas tente marcar suas diferenças, o que a caracteriza é o sentimento de que as grandes instituições validadas mais ou menos consensualmente como protetoras ou mediadoras do nosso convívio estão com seu prazo vencido, sentimento típico de um modelo organizacional social de transição que provoca descrença diante do colapso do tradicional e em cujo horizonte não se avista mudanças sociais importantes. Em alguma dimensão, desconfiamos que estamos sozinhos, que nossos sistemas estão instáveis, e que teremos que nos inventar ou reinventar por conta própria, o que nos deixa quase sempre desamparados quando não aterrorizados. É possível que a maneira como cada um de nós puder fazer a gestão de nosso convívio com os outros, dirá muito sobre nós daqui para frente. A gestão de si, ou melhor, como administramos nossos ódios e amores, a favor ou contra o “processo civilizatório”, será um grande valor do futuro e marcará as possibilidades e impossibilidades de mantermos alguma coesão social. Uma aposta singela na potencialidade humana?

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Livrai-nos do mal, do diferente, do excêntrico.

O jornalista Reinaldo Jose Lobo que mantém uma coluna no caderno de ciência da Folha de SP escreveu na última sexta feira que na preservação da biodiversidade do planeta, um dos critérios para saber como escolher o que precisa de mais cuidados poderia ser o que nos parece mais esquisito. Para exemplificar contou como a Sociedade Zoológica de Londres tem se dedicado a buscar espécies que vivem a margem da existência, ou seja, que são “evolutivamente distintos e globalmente ameaçados”, pois estão a um milésimo do tempo para se extinguir (seguindo a lógica da teoria da evolução) levando consigo sua trajetória evolutiva. Sem necessidade de um comprometimento moral para avaliar o valor de se salvar uma espécie que está prestes a se extinguir, o jornalista avisa que pelo ponto de vista “evolutivo” estas espécies não puderam ou conseguiram se adaptar (por diferentes razões) e por isso acabam tendo um funcionamento marginal, fora dos padrões esperados na atualidade. Embora nas últimas décadas, salvar espécies vegetais e animais ameaçadas de extinção tenha se tornado comum, não custa utilizarmos esta proposta para pensarmos como nós humanos encaramos nossos “esquisitos”. O “diferente” e como reagimos a ele tem sido uma preocupação de muitos pensadores, que principalmente a partir das duas guerras mundiais, perceberam que nosso contrato social era marcado por uma fragilidade de coesão, podendo facilmente gerar conflitos e violência, ainda que cuidássemos para que nossas instituições organizadoras ou o próprio Estado regulassem a ordem. No século XX, embora proliferassem os debates e a criação de entidades internacionais para assegurar um mínimo denominador comum às relações dos Estados com seus cidadãos (os direitos humanos e internacionais), continuamos a verificar em todo o globo, diferentes utilizações dos aparatos estatais para reprimir ou eliminar setores “inconvenientes” do seio das sociedades. Deveriam desaparecer os diferentes (estranhos), fosse por sua impureza, fraqueza ou qualquer “força” ameaçadora e imaginária. Mas afinal, quais critérios utilizamos para eleger como inferior, inconveniente ou sem valor os que nos parecem diferentes? Fiz questão de usar acima, as aspas para as palavras diferente e esquisito, pois elas estão representando uma infinita escala de razões para esse sentimento de repúdio. É fácil pensarmos sobre isso quando nos lembramos das dificuldades de convivência de qualquer agrupamento humano a que pertencemos. Ficamos buscando “lugares” confortáveis que nos livrem dos embaraços e desafios de todos os tipos, pois no espaço de  um único dia é possível enfrentarmos vários atos de injustiças, discriminação, autoritarismo e agressividade. Os territórios da descortesia e dos desconfortos da convivência são infinitos e inesperados. No livro “Longe da Arvore” lançado em 2012 no Brasil pela Companhia das Letras, o autor americano Andrew Salomon mergulha na intimidade de famílias de crianças, adolescentes e adultos que nasceram ou vivem “longe da árvore”-  apresentam padrões biológicos ou sociais que os excluem das “normas” - para mapear os modos de aceitação de diferenças expressadas ora como deficiência, ora como genialidade ou como desajuste social. Mas assim como acontece com a instituição inglesa que chamou para si a responsabilidade de buscar espécies vivas esquisitas para cuidar e evitar sua extinção, o livro é também um convite a todos os humanos para pensar sobre este trabalho “político” de acolher, acompanhar e assegurar a inclusão social dos que de vários modos se apresentam em sua diferença radical. Mesmo que não consigamos deixar de passarmos nossas vidas a erguer muralhas, demarcar divisórias, lutar por territórios perdidos e “esquecermos” que nos finais de guerras e conflitos armados (ou não) nunca houve e nem haverá terra prometida.

Saldo final

Estava deveras curiosa para ler os cadernos de cultura dos principais jornais que circulam no domingo, por desconfiar que uma análise sobre a Copa do Mundo e principalmente sobre a derrota trágica da seleção brasileira deste sábado, jamais passariam em branco. Guardei a ansiedade dos comentários pós-vitória da Alemanha sobre a Argentina para serem lidos depois, nos jornais de segunda-feira. Selecionei os artigos (havia ao menos dez bastante interessantes), alguns sérios, outros irônicos ou emocionantes, que no conjunto conseguiam cobrir quase a totalidade das inúmeras (e por vezes surpreendentes) questões que rondaram este período ruidoso de “nossa” Copa. Entre textos de jornalistas esportivos, empresários, sociólogos, cientistas políticos, advogados, professores universitários, escritores e uma grande fatia de colunistas, talvez o único denominador comum fosse o fato de serem brasileiros (exceção para um escritor alemão e dois jornalistas estrangeiros). Mas o conjunto dos aspectos privilegiados por cada um acabava por traçar um mapa interessante do Brasil, dos brasileiros, do futebol brasileiro, de como os brasileiros veem a si e aos estrangeiros, das diferenças entre o futebol daqui e de outras equipes desta Copa, da FIFA, da CBF, do futuro do país e do nosso futebol, dentre outros. Alguns avisavam que não estava sendo fácil escrever no calor da emoção, diante da tristeza da derrota dos 7 x 1 sofrida pelo Brasil e até descreveram com minúcias os sete minutos que transcorreram  entre os 23 e 29 minutos do primeiro tempo quando a Alemanha marcou  quatro gols e acabou com qualquer esperança brasileira. Outros tentavam não crucificar a equipe dos jovens jogadores brasileiros, tampouco seu técnico, e sim analisar a derrota sob o ponto de vista de um sintoma maior, mais antigo e nefasto que de certa forma caracteriza a informalidade de nosso futebol. Parecia-lhes difícil imaginar que um técnico da seleção brasileira pudesse ficar 10 anos comandando-a e preparando talentos para enfrentar alguma Copa futura, caso da Alemanha e seu coach. Mais difícil ainda seria esperar grandes reformas na gestão da CBF e suas federações, que com a cumplicidade dos clubes, mantém esquemas corruptos de poder e favoritismos. Mas não custava sonhar que em algum futuro, os clubes brasileiros conciliassem treinamento técnico-tático-estratégico, disciplinar, exigência de formação escolar e pudessem preparar jovens de qualquer categoria social para os encantos e os desencantos desta carreira. Muitos evocaram a oscilação de zero a cem e vice versa dos torcedores brasileiros com seu time, da exaltação ao desprezo, de abençoados por Deus a fracassados e se decepcionaram com a parcela destes que abandonou o estádio mineiro antes do final do jogo contra a Alemanha ou com aqueles que ficaram e ovacionaram os passes de seus algozes. Denominada de expectativa infantil, os torcedores brasileiros não só não teriam analisado com dados de realidade as possibilidades de seu time, como apostaram em vitória por goleadas, independente do “tamanho” do adversário. Outros preferiram analisar a verve cômica, e celebraram a ironia dos milhares de piadas que invadiram as redes sociais, antes do final do fatídico jogo. Seria esta capacidade de rir de si mesmo um dos motivos que compõem a versão do “complexo de vira-latas” de nossa identidade (imortalizado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues) ou, ao contrário, a possibilidade de uso da ironia diante de situações trágicas aponta um molejo, uma maneira de não se levar muito a sério, talvez um de nossos mais cultuados “jeitos de ser” brasileiro?  Houve ainda os que destacaram os depoimentos de jornalistas estrangeiros que estiveram cobrindo a Copa que não pouparam elogios à exuberância da natureza do país ou à hospitalidade, simpatia e alegria do povo brasileiro. Onde estavam os manifestantes contra a Copa e o clima raivoso que a imprensa divulgou no período que a antecedeu? O Brasil deveria ser a sede oficial das Copas! De tudo, e pelo número sem fim de análises críticas, conclui-se que se o futebol é hoje uma manifestação sociocultural das mais importantes por criar e fazer circular maneiras de se entender as relações entre grupos, entre povos, entre pessoas e sua cultura, para nós brasileiros ele funciona como uma afirmação cultural. O balanço divulgado  pelo governo nesta segunda-feira mostrou que um milhão de turistas de 200 países diferentes estiveram circulando pelo Brasil durante a Copa, mas três milhões de brasileiros viajaram pelo país e prestigiaram os jogos (aclamados como eletrizantes e empolgantes) realizados nas cidades sedes. Como afirmou um jornalista americano, a derrota brasileira doeu na alma, emudeceu a torcida e entristeceu o povo brasileiro. Mas no dia seguinte, a vida continuou. Talvez porque o povo brasileiro e o Brasil sejam maiores que o futebol brasileiro.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Ferida mortal

Mesmo sem assistir a todos os jogos da Copa, é quase impossível não tomar ciência de seus resultados, dos times que merecem as preferencias dos que curtem futebol, daqueles que são temidos, mas respeitados, e assim por diante. O Uruguai, ao contrário da Argentina, desfruta a simpatia do povo brasileiro, que em sua grande maioria, torceu para que no segundo jogo desta equipe na Copa, e após sofrer uma derrota no primeiro, eles conseguissem ganhar, o que significaria eliminar a equipe da Inglaterra para não ser eliminado. Foi o que aconteceu, com dois gols marcados por seu artilheiro Luis Suárez. As manchetes das mídias reproduziram muitas vezes as cenas de suas celebrações dos gols. No primeiro, ele corria gritando, punhos cerrados, olhar raivoso a cobrar de todos o reconhecimento por seu esforço e a glória da vingança. No segundo, após repetir os mesmos gestos correndo em direção à torcida e encarando as câmeras de TV, ele sucumbiu à emoção e chorou. Nas entrevistas que concedeu no pós-jogo, parecia-lhe ser importante manifestar seu ressentimento com a imprensa em geral. Alguns que o conheciam pela atuação nos times europeus já sabiam de seu passado de “mordedor”, apelido cunhado graças às duas mordidas que dera em jogadores adversários quando jogava para um time da Holanda e alguns anos depois para um time da Inglaterra, ao qual ainda pertence. Nas duas vezes havia sofrido punições das Federações de Futebol destes países, ficando fora de alguns jogos. Se este passado assombrava sua convocação para a Copa, Suárez ainda teve que passar por um teste final, uma recente cirurgia no joelho que ameaçava deixa-lo de fora. Por isso seu “grito” de gol tinha um sabor de superação, de volta por cima. Eis que no jogo contra a Itália, cujo resultado valeu a classificação de seu time para as oitavas de final, Suárez “morde” o jogador italiano Chiellini, é afastado dos jogos da Copa, punido com multa e volta antecipadamente para o Uruguai, deixando sua equipe amargando não só o infeliz episódio, mas a sua falta. Da consternação à indignação, com direito a compaixão de alguns, a condenação sem piedade de outros e o assombramento pelo ato agressivo e intempestivo, a imagem do Suárez “mordedor” se espalhou mundo a fora, e foi ovacionada pelos chargistas, tanto os profissionais quanto aqueles que se deliciaram em criar suas próprias charges nas redes sociais. Mas grande parte da população procurava respostas ao ato que se repetia, fora de lógica, já que o esperado seria que ele tivesse enterrado este passado para sempre, diante dos prejuízos morais e profissionais que lhe causara. Como é possível? Quem  consegue explicar? Seria uma espécie de loucura? O episódio ainda gerou debates e polêmicas que incluíam os limites toleráveis de certas manifestações agressivas, comuns em partidas de futebol. Algumas delas foram relembradas, como a cabeçada do jogador francês Zidane em resposta a uma provocação maldosa de seu adversário italiano na Copa de 2006, que redundou em sua expulsão e ajudou a Itália a conquistar o título de campeã. Detalhe: Zidane não foi punido pela Fifa, o que parece colocar sua infração a um nível mais suportável para todos. Sabemos que na sociedade moderna a convivência entre as pessoas, matriz importante da manutenção da “civilizaçao”, é mantida por pactos sociais que garantam minimamente os direitos e a liberdade de cada um. A cada era em que a barbárie se impõe, como nas guerras e outros conflitos, somos convocados a repensar a civilização, ou seja, as normas que inventamos para sua manutenção. A grande maioria dos Estados atuais é democrática, assim como suas instituições, mas precisam manter sistemas de punições que sirvam como modelos e valores que representem as expectativas que temos para a continuidade da vida social. Em geral o infrator é aquele que quebra este contrato, sai do pacto social e volta ao estado de natureza. Ao fazê-lo, ele provoca um sentimento de indignação em todos que às duras penas mantêm este pacto, sentimento este que justifica o desejo de punição pelo seu crime. Ele não merece proteção! Pelo leque de reações que Suarez provocou, no entanto, podemos dizer que em nossa era, para além das medidas e limites que as normas sociais impõem, admitimos que o mundo interno de cada um seja tumultuado e possa ser muito desorganizador. A mordida é uma reação bastante primitiva, muito utilizada pelos pequenos quando se sentem ameaçados e com raiva, mas consensualmente rejeitada e reprimida por todos os adultos desde cedo, na expectativa que eles se submetam ao processo civilizatório, o que explica o estranhamento deste ato quando praticado por um adulto. No entanto, se a punição da Fifa a Suárez foi considerada excessiva para muitos, é bem provável que a pior parte de sua pena seja conviver com a vergonha e a humilhação de não ter conseguido evitar tal comportamento e quem sabe participar com a Celeste da conquista do campeonato mundial.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Pepe Legal

Difícil não notar a figura ímpar de Jose Mujica nas mídias em geral, seja pelo impacto de alguma medida polêmica adotada por seu governo ou simplesmente por reproduzir seus pensamentos e ideias que ele não se furta em propagar, ao contrário, parece achar importante confirmar sua visão de mundo, de governo e de futuro. Eleito presidente do Uruguai em 2009, Mujica ou Pepe como é chamado por seus conterrâneos, não tem passado despercebido aos olhos do mundo. Graças a esta estranha e, para alguns, bizarra visibilidade a revista britânica The Economist elegeu o Uruguai como o país do ano, mas insistiu em enfatizar as razões: por sua receita para a felicidade humana. Qual receita? Dois jornalistas espanhóis, um repórter e outro fotógrafo, foram escalados pelo jornal El País para conferi-la e em seguida publicarem suas impressões sobre o país, seu povo, sua historia, e claro, seu personagem atualmente mais famoso, Mujica. Não são poucos os brasileiros que conhecem o Uruguai ou pelo menos sua capital, Montevidéu. Incrustado entre o Brasil e a Argentina de um lado e entre o Atlântico e o Rio da Prata de outro, o país é menor que a grande maioria dos estados brasileiros. Com ares europeus, Montevidéu sempre foi “mal” comparada a Buenos Aires, a capital de sua “irmã” bem sucedida e os uruguaios a conviver com a impressão de que prefeririam atravessar o Rio da Prata e viverem em terras argentinas. Seu principal ponto turístico, Punta del Este, foi se tonando um resort de milionários argentinos (e alguns brasileiros). Mas eis que o cenário atual mostra uma reviravolta nesta lógica que parecia se perpetuar, e inverte a equação. Aos olhos da comunidade internacional, a Argentina parece tropeçar em suas tentativas de se reerguer como potencia econômica e cultural sul-americana, mas o Uruguai, que há dez anos vivia uma de suas maiores crises, com 40% da população abaixo do nível de pobreza, salário mínimo baixíssimo, emigração em alta e níveis de inflação insuportáveis, exibe um quadro de causar inveja a qualquer país da América Latina. Um conjunto de conquistas econômicas e sociais conduziu o país a um patamar surpreendente. Mas na visão da dupla de jornalistas espanhóis, se existe alguma receita para a felicidade humana a ser apreendida neste período de bonança uruguaia, ela se deve ao seu cacique e ao fato inusitado de que este estadista, e presidente da república, se recuse a desfrutar das benesses e privilégios de sua função. Embora Mujica não comungue de uma unanimidade em seu país, ao contrario, muitos torcem o nariz para a sua figura caipira, vestido de homem comum, declarando a quem queira ouvir sua intenção de viver como gostaria que todos vivessem, ninguém pode negar que sua fama extrapola o pequeno território do país, se alastra mundo afora e coloca o Uruguai no mapa mundial. Mujica insiste na importância da desmistificação da presidência como lugar especial, que mantém a distância entre o político- e os salamaleques de sua agenda protocolar- e o povo, e está convicto de que não há nada pior do que a descrença de um povo em seu governo, um cenário que sabe ser quase geral no panorama mundial. Não defende modelos alternativos, busca-os e vive-os.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Com o brasileiro, não há quem possa!

Em uma recente entrevista para o programa da rádio Eldorado “Quem somos nós” o escritor brasileiro Lourenço Mutarelli – autor entre outros, do livro Cheiro do Ralo – declarou, lá pelas tantas, que a música era sua religião. Queria dizer que era ela, a música, que o fazia entrar em uma espécie de transe, um lugar importante para sua produção artística. Nos jornais da semana que passou foi anunciado o lançamento do livro do jornalista gaúcho Beto Xavier, que decidiu juntar duas de suas paixões ao pesquisar a história do casamento da música com o futebol. Entrevistou jogadores e músicos, e selecionou inúmeros trechos de canções que traçam paralelos entre as duas maiores paixões brasileiras. Sua intenção em "Futebol no País da Música" (Panda Books) era contar a história das músicas que falam sobre o esporte favorito dos brasileiros (e dele também). Em uma reunião de grupo da qual participei dia destes, um colega chegou atrasado, sentou-se e colocou encima da mesa um bolo de figurinhas de jogadores de futebol, devidamente amarradas por um elástico. Ao perceber os olhares curiosos sobre si, disse que pertenciam a sua (única) filha adolescente, a quem ele se ofereceu para ajudar com o álbum, comparecendo a alguns pontos de trocas em que outros colecionadores levavam suas figurinhas repetidas em um movimento de colaboração mútua. Depois de alguns minutos de silencio, em que nos rostos de todos estampava a surpresa, meu colega desatou a contar sobre seus álbuns de outras copas, contaminando os demais e despertando historias e lembranças diversas. Todos tinham alguma boa historia ligada aos períodos de Copa do Mundo. Às vésperas deste importante torneio, que ao gosto ou contragosto o Brasil está sediando, parece pairar um silencio geral, certo suspense, como se todos se contivessem em seu ímpeto de comentar sobre os jogos, os times estrangeiros, as expectativas, os temores. Se somos ou não o país das chuteiras, ninguém duvida que o futebol seja uma poderosa paixão nacional, um dos poucos eventos capaz de despertar um forte sentimento de irmandade e identidade. É raro que brasileiros não sintam orgulho de seu time, da bem sucedida historia de nosso futebol, suas vitórias, seus craques. Ao contrário, a maioria se ufana já que é inegável que desfrutamos de uma admiração geral pelo mundo afora. Assim também acontece com nossa música, não só difundida e reconhecida para além de nossas fronteiras, mas que se mantém como fator de coesão nacional, independente de origem e estudos. Ambos, futebol e música, podem ser considerados atividades humanas que não se reduzem ao resultado ou ao valor de mercado já que conseguem transformar o cotidiano em espetáculo de emoção e despertar um sentimento de alegria compartilhada. Os corpos transpiram prazer nos pulos, abraços, cantos ou gritos. Cada um pode, enfim, sentir orgulho de ser brasileiro. 

De que lugar falamos?

A Editora Companhia das Letras divulgou esta semana que está para ser lançado no Brasil o livro do escritor americano George Saunders, com o qual ele acaba de arrematar a primeira edição do prêmio Folio, que pretende abarcar toda a ficção de língua inglesa, independente do gênero literário ou do país de origem do autor. O Folio, que provavelmente ambiciona se equiparar (ou quiçá suplantar) o prestígio do Man Booker Prize, ao premiar um livro de contos de um americano, já marcou sua diferença. “Dez de dezembro” reúne dez contos que, segundo divulgação da editora brasileira, abordam os dramas e as delícias da classe média urbana, a relação entre pais e filhos, as pequenas imposturas que cometemos quando queremos agradar um desconhecido, ou seja, questões do nosso tempo, que nos obrigam a refletir sobre nós mesmos, nossas vidas, nossos sonhos, nossas picuinhas. Professor de Escrita Criativa na Universidade de Syracuse no Estado de Nova York, ao ser convidado a fazer o discurso para os formandos de 2013, Saunders não apenas confirmou seu maior tema- o ser humano e suas tentativas de viver uma vida digna mesmo sob pressão ordinária e extraordinária- como se utilizou de uma historia pessoal para tornar sua narrativa mais próxima de alguma verdade. Lembrou aos jovens que o escutavam, que havia se tornado comum que alguém com idade mais avançada (no caso, ele), que já tivesse percorrido um bom pedaço de sua vida, preparasse algum discurso sobre o “melhor” período da vida, o que consensualmente deveria ser aquele em que eles estavam prestes a viver. Por sua vez, ele havia escolhido recordar, – ou quem sabe tivesse sido impelido a isso- certas vivências passadas que lhe traziam desconforto. Não, não eram as que ele havia sentido medo ou as que lhe lembravam de algumas faltas e frustrações por desejos não realizados ou vergonha. Era principalmente aquelas em que ele havia deixado passar “despercebido” de si mesmo, um sentimento de compaixão por alguém que ele assistira em apuros emocionais. Por um pequeno espaço de tempo, quando ele era pequeno e estava na escola, uma menina nova se mudou para o bairro e começou a frequentar a mesma sala de aula. Ela era bastante tímida, mirrada e usava uns óculos de mulheres mais velhas, o que lhe dava uma aparência bizarra. Aflita, mastigava o tempo todo um pedaço de seu próprio cabelo, o que lhe rendia toda sorte de gozações de seus colegas. A menina e sua família acabaram se mudando deixando Saunders com uma sensação de “vazio”. Ela havia ido embora sem saber que ele não compactuava com aqueles meninos que a humilhavam. Ele não tinha tido coragem de ser gentil com ela, ao oferecer-lhe sua amizade como contraponto ao clima de violência que ela era obrigada a viver diariamente na escola. George Saunders tem 58 anos. Escolheu falar sobre a importância da gentileza para uma turma de formandos provavelmente porque como escritor contemporâneo, sente-se mais comprometido, e ao mesmo tempo mais livre para divulgar sua visão de mundo, sua paisagem íntima do social. Para alguns pode parecer piegas, para outros, coragem. 

O lobo do homem

Quase todos devem ter ouvido algum comentário sobre o polêmico filme O Lobo de Wall Street, baseado na biografia de Jordan Belfort e dirigido por Martin Scorsese. O filme começa com o próprio protagonista, na pele de Leonardo DiCaprio, anunciando sem muitas milongas, o tom de excessos que suas memórias irão tocar, ao revelar o estilo de vida pouco convencional de muita grana, sexo e drogas a partir de seu sucesso financeiro. Belfort é o lobo que consegue fazer fortuna operando ações negociadas fora do pregão, de preços baixíssimos, mas de altíssimo risco, nos anos noventa, anos dourados da bolsa nova-iorquina em que a regulação e os limites eram tênues e podiam ser subornados. Inicialmente operando em Long Island, logo o escritório da Stratton Oakmont ocupará o coração de Wall Street, e atrairá os olhares fascinados de milhares de corretores dispostos a fazer parte de seu circo e ganhar muito dinheiro. Um circo, que visto de perto mais parecia um misto de hospício e bordel, sustentado pelo carisma do showman Belfort, que em seu palco e de microfone em punho comandava sua trupe, mantendo a ganância e a ambição de todos, motor das compras e vendas de ações. Em troca, pílulas, prostitutas e diversão “full time”. Há um quê de orgulho, sem sombras de julgamentos morais, que Belfort exibe ao falar de si em suas memórias, uma aura que ele próprio se concede como se ao conseguir a proeza de quase ganhar um milhão de dólares ao ano com apenas 26 anos, ele teria cruzado as inalcançáveis portas do paraíso e realizado o “sonho americano” de habitar as terras divinas do excesso, do exagero e da inconsequência, sem medo de ser feliz. A única imagem que o filme mostra do ainda ingênuo Belfort, quando começa a trabalhar em Wall Street, um pouco antes da crise do final dos anos oitenta, é um almoço com o então chefe, que lhe diz para ficar muito atento a única regra daquele jogo: vender a qualquer “custo”, não importa a quem, porque ou quais serão os resultados para o comprador. A receita para suportar o ritmo e o clima de montanha russa é muita maconha e masturbação. De certa forma ele não só segue as regras à risca, como as inova, quando recomeça do zero em Long Island. Indicado ao Oscar, o filme foi bem de bilheteria, tendo Leonardo DiCaprio disputado o premio de melhor ator. Com tal destaque, algumas entrevistas que o ator concedeu reivindicavam sua posição diante do comportamento de seu personagem, ao que DiCaprio lembrava que não se tratava de legitimar seu modo de encarar a vida e sim de retratar os obscuros (e quase nunca revelados) lados da alma humana. De fato o ator está ótimo em sua interpretação e empresta ao personagem um tom certeiro entre o infantil e o cafona, ao destacar a maneira como ele aposta 100% em seus métodos de venda e na possibilidade das pílulas lhe garantirem a energia para aquela vida alucinada e viciante. E por falar em vício, para o espectador atento, não só as drogas, mas o sexo, o dinheiro e o ritmo das negociatas vão, aos poucos, tomando um lugar central na vida de todos os envolvidos, funcionando como objetos “perfeitos” de gozo, anestesiantes, que emprestam um sentimento de invulnerabilidade, mas que, ao contrário do que lhes parece, impede-os de pensar, perceber, refletir, enfim viver a vida. Um perigoso, embora audacioso, namoro com a morte.
Para conferir: O Lobo de Wall Street ( USA 2013)
Direção: Martin Scorsese

Elenco: Leonardo DiCaprio e Jonah Hill

Raízes

Um amigo querido, que deixou sua sulina cidadezinha de origem há tempos, precisou retornar ali para resolver questões familiares pendentes. Aproveitou a oportunidade e estendeu sua estadia por alguns dias, visitou parentes próximos e distantes e personagens importantes de sua infância. Ao retornar, sentiu-se estranhamente tocado por aquela visita. Após alguns dias, sonhou que encontrava seu primeiro carro, um fusca ano 65, em uma garagem qualquer. No sonho ele se espanta muito, pois até então tinha certeza que havia vendido seu fusca, tempos antes de sair de sua cidade natal. Ao acordar põe-se a perguntar sobre o significado daquele sonho, ligando-o aos impactos de sua recente viagem. Nascido em uma família de imigrantes, sua infância tinha sido particularmente dura, tendo seu pai o deixado (e aos seus dois irmãos) ainda criança, vítima de um infarto fulminante. Só agora, com mais de sessenta anos, podia rememorar alguns fatos mais alegres deste tempo, e articular uma historia em que o sofrimento não lhe parecesse tão excessivo. A imigração tem este duplo movimento. De um lado o imigrante tem um forte motivo para sair de seu país, e mesmo contra a sua vontade, é na busca de uma nova chance que ele escolhe seu novo destino, precisa enfrentar as decorrências de sua expatriação, e tentar acolher a nova cultura do lugar que o recebe. Sua língua materna poderá se manter no âmbito privado, mas ele terá que aprender a dominar a nova língua, e entender os costumes e os valores daquela comunidade. Não é difícil imaginar como este processo é árduo e requer um empenho das famílias em adaptarem-se à nova cultura, muitas vezes à custa de um “apagamento” de suas raízes. Há famílias de imigrantes que acolhem o “estrangeiro” do novo lugar com mais facilidade e se abrem rapidamente ao convívio, esforçando-se para serem aceitos ou para  se integrarem às novas normas. Outras, ao contrário, temem não serem aceitas ou rejeitam sua situação de estrangeiros, fecham-se e voltam-se para uma tentativa de manter as tradições e os costumes de sua antiga morada, como a negar a mudança, o novo. Para estes, cabe aos filhos, muitos deles nascidos na nova pátria, se apropriarem desta nova identidade e aos poucos, construir um outro roteiro, fora daquele que seus pais tentam manter. São os filhos que frequentarão as escolas, criarão novos laços, e planejarão um futuro alternativo. De certa maneira a imigração força uma posição de apátrida, que pode ser vivida como uma abertura para o novo e o diferente ou pode ser mantida com ressentimento e sentimento de perda. Meu amigo tinha programado seu retorno à cidade natal com muito entusiasmo. Na era digital e de fácil comunicação, trocou e-mails e mensagens com antigos conhecidos, alguns também filhos de imigrantes como ele, e empenhou-se em fazer valer sua visita. Só quando voltou, percebeu que havia feito uma viagem mais subjetiva do que imaginava. Aos 18 anos tinha deixado sua cidadezinha para estudar na Universidade da capital de seu estado; depois sua formação acadêmica lhe exigira passar alguns anos fora do país e quando voltara, havia fixado residência em São Paulo. Com uma carreira bem sucedida, estava longe dos tempos de pobreza e escassez de sua infância. Alguns dias antes de viajar, decidira trocar seu carro por um modelo que namorava há algum tempo. O reencontro com o fusca ano 65 que o sonho lhe proporcionou permitiu-lhe  mergulhar no passado, assim como a viagem aos lugares da infância. Mesmo sem perceber, havia podido fazer um resgate de suas raízes, acrescentando o prólogo no livro de sua vida. Sentiu-se satisfeito.  

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A invenção do mundo da criança feliz

Um fictício observador “estrangeiro”, ao constatar o espaço privilegiado e acintoso que as crianças têm em nosso mundo atual, cercadas de mimos e preocupações dos pais, educadores, médicos e psicólogos, não imaginaria que por muito tempo, nem a infância ou a denominação de criança sequer existiam. Os pequenos eram tratados, vestidos e retratados como adultos em miniatura. O historiador francês Phillipe Aries descreve a “descoberta da infância”, que teria ocorrido a partir do século XIII, como um lento processo, graças ao qual os pimpolhos, que na alta Idade Média só recebiam nome se persistissem em viver, foram ocupando o centro das atenções e da família moderna. Os pais, ao invés de proprietários, passaram a serem os protetores da família e as mães, gerentes dos afazeres domésticos, aquelas que cuidavam de seus filhos, que na era moderna vão garantir a perpetuação da família. Hoje as crianças são crianças e não mais adultos pequenos. Elas têm maneiras de pensar e sentir que lhes são próprias e como parte da sociedade civil, tem leis especiais que as protegem de quaisquer abusos. Houve uma progressiva valorização do lugar que elas ocupam tornando o filho, no decorrer do século XIX e XX, o centro da família e objeto de investimentos econômicos, educacionais e afetivos. Tudo o que se refere a crianças é considerado da maior importância por todos os setores da sociedade, sendo que os pequenos são responsáveis por uma enorme fatia dos investimentos financeiros em criações ininterruptas de objetos destinados a compor um mundo de conforto e felicidade. No Brasil, há alguns anos, instituiu-se uma prática entre os casais grávidos de classes médias altas e altas, de programarem uma viagem para Miami, que segundo cálculos de todos os que lá estiveram, somados passagem, estadia e algumas malas de apetrechos e roupas de recém-nascidos, seus bebês desfrutariam do que haveria de mais moderno no mundo sem que o custo fosse excessivo. Com o tempo, esta prática difundiu-se de tal maneira que “sites” de roupas e objetos utilizados por bebês passaram a ser compartilhados, com listas já elaboradas por terceiros, o que permitia que as compras pudessem ser feitas antes mesmo que a viagem acontecesse. Parte importante deste enxoval, o enfeite da porta da maternidade, a mala contendo as roupas a serem utilizadas ali pelo bebe, as lembrancinhas para as visitas e as câmeras prontas para registrar o evento desde o começo. Ah sim, e alguma “bíblia” contendo TUDO o que pode acontecer no primeiro ano do bebê. Tudo pronto, resta compartilhar do clima festivo e agitado da maternidade, que em cidades cosmopolitas como São Paulo é acrescido do número cada vez maior de grávidas e seus familiares. Há filas para o estacionamento, para se cadastrar na recepção do hospital, para utilizar os elevadores. Já dentro é curioso passear pelos corredores dos quartos enfeitados, ler o nome de cada criança que acabou de nascer e imaginar uma historia de vida futura para cada uma. Imperdível é gastar alguns minutos no berçário, todo envidraçado, com fileiras imensas de recém-nascidos, alguns dormindo tranquilos, outros agitados chorando. E agora nenéns? Cada um de vocês representa uma aposta, um porvir. Em geral seus pais não sabem ainda muito bem como eles devem se portar para que vocês se tornem pessoas felizes. É quase certo que eles terão muitas dúvidas sobre o que e como agir diante dos impasses que vocês criarão. Mas parece certo também que há uma distancia que precisa ser ajustada, entre a insistente promessa do mundo feliz e sem sofrimentos que eles  imaginam para vocês, e a difícil e importantíssima tarefa que eles terão que desempenhar para que vocês se tornem alguém de valor. 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ajuste de contas

A morte de Gabriel Garcia Marques, quinta feira, dia 17 de abril, me fez recordar uma parte de minha história, ao relembrar o impacto que a leitura de “Cem anos de solidão” produziu no meu pequeno percurso de leitora. Quando o li, já fazia alguns anos que ele surgira no universo literário, fazendo barulho. Afinal, narrar a história latino-americana com suas guerras e solidão a partir da árvore genealógica da família Buendía e suas  gerações,recorrendo à fantasia para revelar a realidade, tudo isso sem perder o fio da meada, não é tarefa para qualquer um. E se hoje esta saga é considerada uma das obras mais importante da língua espanhola de todos os tempos (depois de Dom Quixote), a lembrança de minha leitura não contempla tal grandeza. Jovem, ainda, fiquei capturada pelo realismo mágico com que os personagens eram descritos, com a liberdade um tanto crua com que suas histórias de amores e dores podiam ser vividas e a maneira surpreendente com que suas experiências cotidianas eram transformadas em algo fantástico, mágico, mas ainda assim verossímil.  Ainda não tenho muito claro o papel que a literatura teve na minha visão de mundo. Mas tenho a impressão, quase como se fosse uma certeza, de que ela abriu horizontes e despertou-me para universos desconhecidos e inimagináveis. Há quem reconhece seus desejos desde muito cedo e nao só os nomeia, como os persegue. Nunca pertenci a este grupo, mas se há um pensamento que permeou minha vida desde bem jovenzinha, é o de que o “mundo” (aquele composto pelo acervo cultural humano) deveria ser muito maior do que aquele que eu conhecia ou vislumbrava na cidade interiorana em que eu vivia. E eu precisava conhecer o máximo que eu pudesse sobre ele, o que com gratidão posso atribuir uma boa parte às minhas poucas leituras de grandes autores da literatura. Gabriel Garcia Marques nasceu em uma cidadezinha da Colombia, tendo vivido uma parte de sua infância sob os cuidados de seus avós, com quem ouviu muitas das histórias fantásticas que depois utilizaria em seu universo literário. Em um dos muitos textos que foram escritos após a notícia de sua morte, um em especial, de seu conterrâneo, amigo e escritor Hugo Abad, narra sua última visita feita em 2010 a Gabo- como era chamado pelos íntimos- segundo ele já desmemoriado, mas ainda poético. Foi ali, na cidade de Cartagena, que ele ouviu Mercedes, esposa de Gabo, contar que quando ali chegaram, a ideia era comprar uma casa antiga no centro histórico para morarem. Mas Gabo nunca se decidira sobre isso, com medo dos fantasmas. Fiquei a imaginar o escritor Gabriel Garcia Marques, que já se despedira do mundo intelectual desde 2006 quando resolvera não mais escrever, a habitar a pátria que todos temos em comum: nossa infância. Obrigada Gabo!


domingo, 13 de abril de 2014

Seja o que Deus quiser

Deus está em São Paulo, por pouco tempo, e pasmem, resolveu procurar uma terapeuta para tratar sua angústia. Com uma boa mistura entre o humor e a reflexão sobre temas complexos que envolvem a relação do homem com Deus e as dores da existência, este é o mote da peça “Meu Deus!” que estreou há duas semanas no Teatro FAAP. Longe do Todo-Poderoso dos velhos tempos da criação, Deus está desesperado e pelo telefone, implora urgência para sua consulta. Certa de estar recebendo um psicótico em franco delírio – por este se apresentar como Deus- a psicóloga Ana (Irene Ravache) vai abrindo espaço para ouvir o improvável: a história de Deus, sua depressão frente à situação da humanidade, seu sentimento de fracasso, sua solidão. Em um “tour de force”, ambos – Deus e a terapeuta - acostumados a ouvir os lamentos, as dores, as tristezas, e acolher o sofrimento de forma a dar-lhe alguma direção, passam uma revista pela história humana à luz da história de Deus e aproveitam para olhar a si próprios. Não muito longe dali, em algumas salas de cinema, Deus está contracenando com Noé (que também estreou na semana passada). E o cenário é de caos e barbárie. Guardando alguma semelhança com algumas cenas do mundo atual em que impera a violência, o ódio, o descaso, a miséria, Noé se transforma em instrumento da vontade de Deus ao construir uma arca que deverá abrigar apenas os que se salvarão de sua Ira. Sua missão, no entanto, poderia abrir um debate sobre o temido e previsto Juízo Final, quando Deus deverá julgar a todos, discriminando os que merecem ser salvos dos que serão condenados. Tarefa possível? No filme, Noé incorpora a ira e a indignação de Deus, tornando-se ele próprio um perseguidor atroz, mas nem sempre justo, de todos que julga não estarem aptos a fazer parte desta missão higienista. Tais simbologias sagradas ganham significados importantes quando revistas por historiadores do naipe do francês Jacques Le Goff, falecido no ultimo dia 1 de abril. Conhecido por ter apresentado ao mundo uma "outra Idade Média", ele buscou apreender os sonhos e terrores de seus homens, bruxas e monjas, suas sombras e luzes e revelou ter sido ali gestado a matriz de nossa modernidade e o elemento fundamental de nosso cristianismo. Em a “A Invenção do Purgatório” que acontece no século 12, Le Goff mostra como o surgimento desta ideia estaria ligada ao fato dos homens de então passarem a rejeitar a divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso e buscarem uma alternativa a este maniqueísmo pérfido através dos estágios intermediários do purgatório que assim poderia abrigar a infinita variedade do Mal e do Bem. Nesta escala, entre a ira e o poder Divino ou sua misericórdia e compaixão, poderia se assentar o humano em sua eterna e incerta busca por uma vida digna. Graças a Deus!

Para conferir:

"Meu Deus!" - texto de Anat Gov, direção de Elias Andreato, em cartaz no Teatro FAAP-SP com  Irene Ravache e Dan Stulbach.

Noé – direção Darren Aronofsky , com Russel Crowe em cartaz nos cinemas


O estado do Estado

Grosso modo, quando se comenta sobre as diferenças de cultura de países que foram colonizados por católicos ou protestantes, um dos pontos de maior relevância é a autonomia que a necessidade de alfabetização dos protestantes, e, portanto de proliferação de escolas, mais do que igrejas, deixou como marca. O trabalho, a conquista, o empenho eram valores reconhecidos pelos pastores. Não por acaso o país que mais se aproxima da instalação de um regime verdadeiramente democrático seja o Estados Unidos. Visto de longe, sob nosso olhar tupiniquim, é possível estranhar a diversidade que o “estado” americano precisa administrar, seja de valores, de crenças (religiosas ou não), de contras ou a favor, de ultraconservadores a superliberais. A democracia nem é o regime perfeito, mas é aquele que consolida a liberdade dos seus cidadãos (através de regras, claro) e por isso mesmo admite as diferenças, as controversas. Nos USA há conchavos, corrupção, demagogia, manipulações, mas ninguém espera que o “estado” americano o proteja de suas irresponsabilidades ou ilegalidades. Embora a pesquisa da Datafolha divulgada pela Folha de São Paulo em 30 de abril último demonstre que 62% dos brasileiros consideram que a democracia seja melhor que qualquer outra forma de governo, uma análise mais profunda da cultura brasileira revelaria que aqui pouco se sabe sobre a vida em um regime democrático, que exige, no mínimo, uma consciência cívica do que é comum a todos. Nosso Estado, com E maiúsculo é interventor, diretor, quer ser provedor e raramente está comprometido com o bem estar da comunidade. Por nosso lado, acostumamos a ter este “Estado”,em quem jogamos lama e louros a depender se nos favorece ou nos prejudica. Há certa leviandade nesta relação. Talvez por isso seja desconcertante perceber que passados 50 anos do golpe militar e dos 20 obscuros anos de ditadura ainda estejamos longe de “entender” as regras do jogo democrático. No Caderno Aliás de 30 de abril há uma entrevista com um dos maiores defensores da liberdade irrestrita dos povos sobre o uso da internet, o francês Jeremie Zimmermann, a despeito da votação do Congresso Nacional sobre o Marco Civil da Internet. Considerando-se um cidadão do mundo, ele acredita que estejamos vivendo um momento fundamental para se pensar o mundo nos próximos 50 anos, dependentes que seremos da tecnologia. Seu sonho é um mundo on line, conectado, que garanta a todos, direitos e liberdades. Uma rede neutra que siga os princípios de nossa Declaração Universal dos Direitos Humanos . Zimmermann é jovem, e seu discurso ideológico convoca muito mais a geração de jovens que deveriam querer pensar o futuro à luz da invenção da internet e das novas formas de organização, interação, trabalho e principalmente solidariedade que ela propõe. Se nos parece difícil pensar a Democracia, imagine um mundo em Rede, sem um Estado para nos “garantir” ou “proteger”. Resta apostar em nossos jovens e em sua ousadia.

sexta-feira, 28 de março de 2014

A violência do ódio

É provável que nos dois séculos passados a questão da sexualidade humana fosse o enigma mais urgente a ser decifrado para que as sociedades que começavam a se formar em torno de direitos humanos e leis pudessem criar normas e códigos de convivência que dessem conta de seus excessos. A literatura, o cinema, a TV e mais recentemente os blogs contribuíram para que o tema saísse do porão e chegasse às salas de visitas. A psicanálise também ajudou a abrir frestas inéditas para pensa-la. Pode-se dizer que entre conservadores e arrojados, na era atual, todos acabam por achar um lugar razoavelmente confortável para pensar e falar sobre os valores e modos de viver sua sexualidade. E se o “bem-estar” alcançou seu posto quase número um no ranking dos desejos humanos, a violência do ódio que escapa ali e aqui e que em geral se mantém silenciada entre nós, continua sendo vista como algo que não deveria existir, tal e qual as manifestações da sexualidade, perseguidas que eram no pensamento da Idade Média. Ficamos indignados quando nos defrontamos com algum excesso de ódio e suas consequências atrozes, mas por não poder identifica-lo como algo que também nos pertence, “odiamos” os que sentem tal ódio, imaginando que possamos ser todos equilibrados e bondosos. De cara é bom lembrar que ódio não é o oposto de amor. Ao contrário, tem um estatuto próprio na vida de cada um, uma historia e uma origem. E é, tal como a sexualidade, muito inquietante. Em geral ficamos perturbados quando assistimos a atos ou cenas em que o ódio e/ou o preconceito ultrapassam o que temos como um pacto civil: não matar ou violentar nosso semelhante. Um pacto antigo que pretendia nos elevar a uma condição humana e diferenciada, longe da barbárie característica do reino animal e sua lei da selva. Tal perturbação está diretamente relacionada ao fato de que lá na nossa intimidade “sabemos” que podemos ser tão ou mais violentos. Se para pertencer ao seleto mundo civilizado que nossa condição humana exige, está vetado que nos comportemos como animais, isso não quer dizer que não odiamos e sim que na tarefa civilizatória a que todos precisamos nos submeter, deveria ser imprescindível que pudéssemos construir um espaço psíquico mediador, em que fosse possível negociarmos com nosso próprio ódio. No final do ano passado, em diferentes mídias, foi noticiado o resultado de uma pesquisa encomendada pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) em que 1400 professores da  rede estadual de ensino foram questionados sobre a violência escolar. O fato de estes professores apontarem invariavelmente os alunos como os autores dos atos violentos na cena escolar os eximia, por exemplo, das inúmeras vezes em que eles próprios derramavam seu ódio/preconceito ou protagonizavam cenas de discriminações pela condição de homossexual, negro, nordestino ou pobre de seus alunos, ainda que fossem excelentes transmissores dos saberes aos quais se ocupam. Ou seja, mesmo que possamos reconhecer o árduo e persistente trabalho de todos os professores frente aos desafios de ordem emocional que seus alunos o colocam, esta pesquisa – que certamente acalma a classe ao reconhecer a “violência” destes distúrbios- não produz uma análise que contemple a complexidade do tema. Mas ilustra de forma interessante o fato – quase sempre difícil de percebermos-  de que invariavelmente construímos nossos álibis para viver e conviver com nossa natureza agressiva e violenta. A se pensar.