É provável que nos dois séculos passados a questão
da sexualidade humana fosse o enigma mais urgente a ser decifrado para que as
sociedades que começavam a se formar em torno de direitos humanos e leis pudessem
criar normas e códigos de convivência que dessem conta de seus excessos. A
literatura, o cinema, a TV e mais recentemente os blogs contribuíram para que o
tema saísse do porão e chegasse às salas de visitas. A psicanálise também
ajudou a abrir frestas inéditas para pensa-la. Pode-se dizer que entre
conservadores e arrojados, na era atual, todos acabam por achar um lugar
razoavelmente confortável para pensar e falar sobre os valores e modos de viver
sua sexualidade. E se o “bem-estar” alcançou seu posto quase número um no
ranking dos desejos humanos, a violência do ódio que escapa ali e aqui e que em
geral se mantém silenciada entre nós, continua sendo vista como algo que não
deveria existir, tal e qual as manifestações da sexualidade, perseguidas que
eram no pensamento da Idade Média. Ficamos indignados quando nos defrontamos
com algum excesso de ódio e suas consequências atrozes, mas por não poder
identifica-lo como algo que também nos pertence, “odiamos” os que sentem tal
ódio, imaginando que possamos ser todos equilibrados e bondosos. De cara é bom
lembrar que ódio não é o oposto de amor. Ao contrário, tem um estatuto próprio
na vida de cada um, uma historia e uma origem. E é, tal como a sexualidade,
muito inquietante. Em geral ficamos perturbados quando assistimos a atos ou
cenas em que o ódio e/ou o preconceito ultrapassam o que temos como um pacto
civil: não matar ou violentar nosso semelhante. Um pacto antigo que pretendia
nos elevar a uma condição humana e diferenciada, longe da barbárie
característica do reino animal e sua lei da selva. Tal perturbação está
diretamente relacionada ao fato de que lá na nossa intimidade “sabemos” que
podemos ser tão ou mais violentos. Se para pertencer ao seleto mundo civilizado
que nossa condição humana exige, está vetado que nos comportemos como animais,
isso não quer dizer que não odiamos e sim que na tarefa civilizatória a que
todos precisamos nos submeter, deveria ser imprescindível que pudéssemos
construir um espaço psíquico mediador, em que fosse possível negociarmos com
nosso próprio ódio. No final do ano passado, em diferentes mídias, foi
noticiado o resultado de uma pesquisa encomendada pela Apeoesp (Sindicato dos
Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) em que 1400 professores
da rede estadual de ensino foram
questionados sobre a violência escolar. O fato de estes professores apontarem
invariavelmente os alunos como os autores dos atos violentos na cena escolar os
eximia, por exemplo, das inúmeras vezes em que eles próprios derramavam seu
ódio/preconceito ou protagonizavam cenas de discriminações pela condição de
homossexual, negro, nordestino ou pobre de seus alunos, ainda que fossem excelentes
transmissores dos saberes aos quais se ocupam. Ou seja, mesmo que possamos
reconhecer o árduo e persistente trabalho de todos os professores frente aos
desafios de ordem emocional que seus alunos o colocam, esta pesquisa – que
certamente acalma a classe ao reconhecer a “violência” destes distúrbios- não produz
uma análise que contemple a complexidade do tema. Mas ilustra de forma
interessante o fato – quase sempre difícil de percebermos- de que invariavelmente construímos nossos
álibis para viver e conviver com nossa natureza agressiva e violenta. A se
pensar.
sexta-feira, 28 de março de 2014
segunda-feira, 24 de março de 2014
Estado Civil
Quem assistiu ao filme
“Ela”, que concorreu ao Oscar deste ano, pode devanear sobre a ideia de um
futuro mundo virtual irresistível, em que nós humanos nos encantaríamos –
leia-se ficaríamos totalmente submetidos - com o requinte e a sofisticação da
tecnologia digital. “Ela”, no caso, é
Samantha, um aplicativo que tem a voz e o jeito de falar da atual musa sexy
Scarlett
Johansson e que consegue deixar o triste e melancólico Theodore (Joaquin
Phoenix), recém-separado, totalmente apaixonado. É engraçado pensar como nossas
comédias românticas, gênero que sempre se deu bem sem exigir grandes verbas ou
efeitos especiais, têm como tarefa se reinventar indefinidamente em busca de
cenários que possam ser facilmente identificados por todos, homens e mulheres,
desde que saibam ajustar/atualizar as velhas dores de amores, de solidão e vazio.
No caderno da Folha Ilustrada de 18/03, diante do fracasso de bilheteria do
filme “Refém de uma paixão” que tem como protagonista a atriz Kate Winslet- a
mesma do super-romântico e bem sucedido “Titanic”- havia um questionamento
sobre o “fim” da era de sucesso dos filmes românticos. Será? Não acredito muito
nisso. É provável que o roteiro não tenha sido feliz, já que o romance, ao
contrário, continua a ter um lugar de honra em nossas vidas até porque elas
(nossas vidas) seriam bem chatinhas sem seu frisson. Pode ser que o fato
inédito de vivermos em um tempo do imediato - tal a velocidade com que nossas
vidas ganham novas e inesperadas maneiras de estar no mundo - faça com que as cada
vez mais novas gerações reivindiquem respostas/soluções mais rápidas e
eficientes para seus impasses. Outro dia uma jovem de trinta e poucos anos me
dizia que estava vivendo na era do aturdimento. Sentia-se perdida com tantas questões
que lhe assolavam as ideias. Estava sem namorado e cada vez que uma amiga
“solteira” começava um relacionamento mais duradouro, percebia um friozinho em
sua barriga. O que seria dela? Não havia no horizonte nada que pudesse lhe
garantir que em pouco tempo alguém ocuparia este lugar, tão desejado, de
companheiro de vida. Por outro lado, nem sempre estava disponível para saídas durante
a semana com o pessoal do trabalho, que muitas vezes significava chegar tarde,
cansada e um pouco alcoolizada, sem poder mexer na hora do despertar do dia
seguinte. Além disso, apesar de estar finalmente trabalhando onde desejava,
ficava apreensiva quanto à possibilidade de não corresponder às expectativas da
empresa, o que a fazia trabalhar com muito mais empenho e aflição. Quando
pensava na possibilidade de não se casar, ou ter filhos e família, de novo
vinha o friozinho na barriga. E se assim fosse? O que seria dela? Fracasso total?
Duro mesmo era aparecer nos eventos familiares, ter que responder sobre seu
atual “estado civil” e suportar com alguma força possível, os olhares
compadecidos dos mais velhos. Saía arrasada. Os únicos momentos de muito
entusiasmo ficavam por conta das reuniões com as melhores amigas, que irmanadas
em suas aflições, podiam lamber as feridas umas das outras. Não que sua vida
fosse ruim. Suas férias sempre eram muito esperadas e planejadas com destinos
incríveis, tinha um rol de amigos e amigas muito queridos, seus feriados já
estavam comprometidos com pequenas incursões para lugares inusitados em
companhia de amigos diversos, mas...tudo parecia ficar sem sentido quando ela
se lembrava de que ainda não encontrara seu par. Fiquei sim aturdida com seu
relato. Não me parecia que faltasse a ela uma vida com alguma alegria. Mas ela
guardava, com muita convicção, um espaço especial ao seu “estado civil”. Com
muito romance, a ideia de ter “alguém especial” estava totalmente atrelada à
possibilidade de ser feliz. O que vocês acham?
terça-feira, 18 de março de 2014
Inquietos – ou a despeito do dia da mulher
Costumo repetir para meus filhos – tenho um casal –
que eles vivem no melhor dos mundos. Esta frase tem o objetivo de fazê-los
refletir sobre a emancipação humana, ainda que esta espiral não seja nada
simples de se pensar. Acontece que como mulher, não posso me furtar ao fato de
imaginar-me (ou aos meus filhos) vivendo em um passado de trevas, em que a
humanidade, ainda sem possibilidades de garantir a liberdade de expressão,
pensamento e compreensão a cada um, seguia regras e normas baseadas muito mais no
medo e no horror da ira de deuses, única maneira de obter algum tipo de certeza
em relação aos enigmas e os mistérios de sua existência. A sexualidade, a
virgindade, tudo o que se refere às diferenças de gêneros, ao ato sexual, à reprodução,
ao nascimento de crianças e a perpetuação da raça humana, incluído aí o enorme
acervo moral/cultural que herdamos e temos que transmitir, ainda hoje são temas
difíceis, e que já habitaram (e de certa maneira ainda o fazem) a dimensão do “sagrado”
e/ ou do “profano”. Vale lembrar que como mulheres, sempre fomos portadoras
tanto do sagrado quanto do profano por sermos encarregadas de gerar novos seres
humanos e ao mesmo tempo objetos de prazer erótico e sexual, ou seja, vivemos
ambas as condições em nossos ventres. Talvez por isso ainda hoje algumas de nós
são cobertas por burcas ou preconceitos, vigiadas pela sociedade ou pelo medo
de pecar, mutiladas para não sentir prazer ou perder a alma. O universo
feminino sempre foi um terreno fascinante e perigoso, mas por sorte sua representação
e de seus mistérios acompanharam a evolução histórica. Ainda que em alguns
pontos do planeta muitas mulheres ainda vivam na escuridão, o mundo
contemporâneo nos premiou com uma inimaginável rede de conexões que permite um
mapeamento rico dos diferentes estágios de nosso imenso acervo humano e nos
convida a repensar sobre os silêncios, a camuflagem de sentidos, a violência de
certas práticas. Mas se hoje em dia é mais fácil perceber que não há vereditos
para nossos destinos de homens e mulheres, é sempre muito difícil encarar as
incertezas disso e abrir-se às novas formas de se viver a vida. Como mulheres e
até como pais, nos deparamos com o fato de que na tarefa de ajudar nossas
crianças a viver seu futuro temos que aceitar um “não saber”- e eles também. E
se os grandes enigmas desapareceram, eles deram lugar aos muitos e prósperos
discursos que cada um pode criar para justificar suas crenças e modos de pensar
e viver no mundo. O mundo feminino se ampliou e se diversificou. Há um sem fim
de estilos do feminino que homens e mulheres podem desfrutar ou criar para si e
deveria caber a cada um administrar sua inquietude e buscar as melhores maneiras
de se estar no mundo, com seu bônus e ônus. No entanto esta é uma experiência
disparadora de angústias, que em geral nos
faz temer habitar um mundo caótico e desorientador. Ainda assim as futuras
gerações terão que se haver com estas demandas, gerenciar a angústia do que não
sabem, aguçar sua curiosidade pelas novas possibilidades e vigiar constantemente
o desejo insistente de nomear novos/velhos tabus, repetindo a submissão a
padrões, ideais e regras imaginadas como garantias. Cabe fazer uma diferença
importante quanto ao sentido das transgressões. Há sim, as que podem ser
classificadas como perigosas ou propiciadoras de violência e caos, mas há as
que são parte integral do exercício da liberdade e compõem o campo da
transformação e da expansão do saber.
segunda-feira, 10 de março de 2014
Brasiiiiillll
A manchete dos jornais do último 4 de março anunciava
os 100 dias que faltam para o início da Copa do Mundo. Mas de certa forma ficamos
em dúvida se devemos nos ufanar do fato de que nosso país do futebol arte, que
produziu os maiores craques de todos os tempos, mereça mesmo sediar este
evento tão importante, ou se nos envergonhamos diante de certa previsão
irradiada pela mídia local e internacional de que nosso país nunca teve e nem
terá seriedade e responsabilidade necessárias para tal organização. Pode-se
dizer que esta ambivalência assola a grande maioria dos brasileiros. Mesmo que
em algum lugar da alma haja uma torcida silenciosa para que a Copa do Mundo
seja um acontecimento inesquecível – incluído aí a grande vitória do país- só
se consegue elencar de forma crítica, a mal ajambrada organização, que se
desconfia estar repetindo os velhos modelos de distribuição dos bônus entre os
gulosos que tiveram a sorte de fazer parte do “esquema”. Um casal de amigos que
acaba de voltar de suas férias anuais, desta vez pela Alemanha, apontava certas
diferenças interessantes entre os dois países. Cabe revelar que estes amigos
levam muito a sério o planejamento de suas férias. Elas são pensadas nos
mínimos detalhes e isto significa conseguir comprar a passagem, alugar carros,
reservar hotéis e pesquisar os melhores e mais interessantes lugares/cultura
para conhecer sempre levando em conta a métrica custo/benefício, incluído aí um
quantum importante de satisfação estética. Louco por motores, ele ansiava
alugar um certo carro alemão e “voar” pelas famosas Autobahn, sem controle de
velocidade máxima. Um sonho antigo. Mas reconhecia que isso só podia existir em
um país cujos habitantes pudessem reconhecer eles próprios os limites desta
falta de limites. Por exemplo, ao contrário da faixa da esquerda em nossas
autoestradas, majoritariamente utilizada independente se pretendemos ou não
manter a velocidade máxima permitida, na Alemanha, a faixa da esquerda fica
livre para os que desejam “voar”. Aqueles que querem ou precisam fazer uma
ultrapassagem sabem que deverão retornar imediatamente a sua pista anterior.
Como a maioria dos países desenvolvidos, os radares não existem para serem
burlados e por isso não se informa onde estão. Eles ajudam os usuários a
cumprirem as normas o que por sua vez contribui para o sentimento de que todos
estão submetidos a elas. O mesmo se aplica para as placas de trânsito, levadas
muito a sério. Sabemos como no Brasil as leis já nascem com seu manual informal
das exceções. Somos muito rápidos e espertos para “instituir” o lado B de todas
as obrigações civis ou penalidades a que estamos submetidos. Dias atrás a mídia
revelou um fato que deixou a todos aturdidos. Uma boa fatia de nossos pilotos
pagava para que suas habilitações recebessem da Anac o carimbo de autorização
para voos comerciais, sem que eles precisassem passar pelos exames que conferem
seu conhecimento e experiência de voo. Outro exemplo? Não é incomum que se leia
em placas bastante chamativas, telefones que garantem a qualquer cidadão
soluções para seus problemas de pontuação de multas em sua carta de
habilitação. No fundo, cada um de nós sabe que em todos os níveis de
funcionamento de nossa sociedade, está encarnado este jeito de escapar à ordem.
Em menor ou maior escala todos tentam usufruir desta institucionalização da
exceção. Quem sabe por esta razão fique mais difícil acreditar que o país
mereça se dar bem. Mesmo que seja na Copa do Mundo, em que o esperado seria que
o bom futebol fosse a atração principal.
terça-feira, 4 de março de 2014
Não deixem que eu me lembre
Uma das pedras
basais da leitura psicanalítica de nossas vidas psíquicas é o papel da memória,
e nossos esquecimentos nada casuais. Muito cedo Freud descobriu quão
frequentemente precisávamos “apagar” ou “maquiar” certas vivências
demasiadamente impactantes, porque na ocasião em que elas ocorriam, não
dispúnhamos de recursos para “organiza-las” de forma a encaixa-las em nossa
vida psíquica, sem um quantum excessivo de dor e sofrimento. Claro que isso não
acontece sem custos. Em geral construímos defesas e proteções para que estas
lembranças não nos importunem, mas pouco sabemos sobre todo este processo
complicado. Freud chamou isso de neurose e convidou aos que quisessem e
pudessem, a se submeter ao seu método de associação livre com o propósito de
reescrever/encontrar novas narrativas sobre suas vidas, recuperando e colocando
novos significados naqueles fatos difíceis de sua própria historia. Constatou,
no entanto, que nem todos estavam dispostos a “remexer” em seus baús e suas
incômodas lembranças. Em um texto da Ilustríssima deste domingo há um relato
sobre um encontro em 2001 do então já conceituado artista plástico britânico Steve
McQueen com uma turma de estudantes de artes plásticas da FAAP (Fundação
Armando Alvares Penteado) em que ele, negro, quer saber por que ali não há
negros. Ao constatar o mal estar provocado por sua pergunta, e a falta de
preparo de todos para um debate sobre a discriminação no país, deixou claro seu
estranhamento. Em tom provocativo, afirmou que no Brasil certas questões pareciam
ficar deliberadamente fora, como se não existissem. Não era o caso dele.
Seu mais recente filme, "12 Anos de
Escravidão", baseado nas memórias do negro Solomon Northup publicadas em
1853, concorre a nove Oscars e está dando o que falar. Solomon nasceu livre e viveu
em Nova York trabalhando como carpinteiro e violinista até ser sequestrado e
vendido como escravo para uma fazenda no sul dos Estados Unidos, poucos anos
antes da guerra civil. Sem conseguir provar ter nascido livre, é submetido a
todos os tipos de violencia, crueldade e humilhaçoes. Vale notar que McQueen é o terceiro cineasta negro
indicado ao Oscar em 86 anos de
premiações. Nunca um
diretor negro levou a estatueta. Mas se
quisermos pinçar apenas uma das inúmeras diferenças quando o tema é racismo, ao
menos nos USA o assunto (a história) é debatido e pode até ser premiado. Neste
ano de 2014 o início da primeira guerra mundial faz cem anos. No Brasil, o
golpe militar de 1964 faz 50 anos. Os 20 anos de ditadura militar são outro
tema tabu para nós brasileiros. Não só não se comenta ou se reflete sobre estes
acontecimentos como parece haver um repúdio aos que, tendo sido vítimas direta
ou indiretamente deste período de exceção, insistem em trazer à tona fatos e
versões enterrados. O “descaso” é generalizado. Ao contrário do que parece, no
entanto, nossa indiferença moral diante de certas injustiças sociais, nossa
franca preferencia pela negação da existência destas injustiças ou da
responsabilidade social e politica que cabe/coube a cada um, nos joga em um
processo de anestesia e de ignorância quanto a nossa história. Seríamos ainda
uma sociedade tão frágil e tão infantil a ponto de não suportar debater nossos
equívocos ou nosso passado?
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