sexta-feira, 28 de março de 2014

A violência do ódio

É provável que nos dois séculos passados a questão da sexualidade humana fosse o enigma mais urgente a ser decifrado para que as sociedades que começavam a se formar em torno de direitos humanos e leis pudessem criar normas e códigos de convivência que dessem conta de seus excessos. A literatura, o cinema, a TV e mais recentemente os blogs contribuíram para que o tema saísse do porão e chegasse às salas de visitas. A psicanálise também ajudou a abrir frestas inéditas para pensa-la. Pode-se dizer que entre conservadores e arrojados, na era atual, todos acabam por achar um lugar razoavelmente confortável para pensar e falar sobre os valores e modos de viver sua sexualidade. E se o “bem-estar” alcançou seu posto quase número um no ranking dos desejos humanos, a violência do ódio que escapa ali e aqui e que em geral se mantém silenciada entre nós, continua sendo vista como algo que não deveria existir, tal e qual as manifestações da sexualidade, perseguidas que eram no pensamento da Idade Média. Ficamos indignados quando nos defrontamos com algum excesso de ódio e suas consequências atrozes, mas por não poder identifica-lo como algo que também nos pertence, “odiamos” os que sentem tal ódio, imaginando que possamos ser todos equilibrados e bondosos. De cara é bom lembrar que ódio não é o oposto de amor. Ao contrário, tem um estatuto próprio na vida de cada um, uma historia e uma origem. E é, tal como a sexualidade, muito inquietante. Em geral ficamos perturbados quando assistimos a atos ou cenas em que o ódio e/ou o preconceito ultrapassam o que temos como um pacto civil: não matar ou violentar nosso semelhante. Um pacto antigo que pretendia nos elevar a uma condição humana e diferenciada, longe da barbárie característica do reino animal e sua lei da selva. Tal perturbação está diretamente relacionada ao fato de que lá na nossa intimidade “sabemos” que podemos ser tão ou mais violentos. Se para pertencer ao seleto mundo civilizado que nossa condição humana exige, está vetado que nos comportemos como animais, isso não quer dizer que não odiamos e sim que na tarefa civilizatória a que todos precisamos nos submeter, deveria ser imprescindível que pudéssemos construir um espaço psíquico mediador, em que fosse possível negociarmos com nosso próprio ódio. No final do ano passado, em diferentes mídias, foi noticiado o resultado de uma pesquisa encomendada pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) em que 1400 professores da  rede estadual de ensino foram questionados sobre a violência escolar. O fato de estes professores apontarem invariavelmente os alunos como os autores dos atos violentos na cena escolar os eximia, por exemplo, das inúmeras vezes em que eles próprios derramavam seu ódio/preconceito ou protagonizavam cenas de discriminações pela condição de homossexual, negro, nordestino ou pobre de seus alunos, ainda que fossem excelentes transmissores dos saberes aos quais se ocupam. Ou seja, mesmo que possamos reconhecer o árduo e persistente trabalho de todos os professores frente aos desafios de ordem emocional que seus alunos o colocam, esta pesquisa – que certamente acalma a classe ao reconhecer a “violência” destes distúrbios- não produz uma análise que contemple a complexidade do tema. Mas ilustra de forma interessante o fato – quase sempre difícil de percebermos-  de que invariavelmente construímos nossos álibis para viver e conviver com nossa natureza agressiva e violenta. A se pensar.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Estado Civil


Quem assistiu ao filme “Ela”, que concorreu ao Oscar deste ano, pode devanear sobre a ideia de um futuro mundo virtual irresistível, em que nós humanos nos encantaríamos – leia-se ficaríamos totalmente submetidos - com o requinte e a sofisticação da tecnologia digital.  “Ela”, no caso, é Samantha, um aplicativo que tem a voz e o jeito de falar da atual musa sexy Scarlett Johansson e que consegue deixar o triste e melancólico Theodore (Joaquin Phoenix), recém-separado, totalmente apaixonado. É engraçado pensar como nossas comédias românticas, gênero que sempre se deu bem sem exigir grandes verbas ou efeitos especiais, têm como tarefa se reinventar indefinidamente em busca de cenários que possam ser facilmente identificados por todos, homens e mulheres, desde que saibam ajustar/atualizar as velhas dores de amores, de solidão e vazio. No caderno da Folha Ilustrada de 18/03, diante do fracasso de bilheteria do filme “Refém de uma paixão” que tem como protagonista a atriz Kate Winslet- a mesma do super-romântico e bem sucedido “Titanic”- havia um questionamento sobre o “fim” da era de sucesso dos filmes românticos. Será? Não acredito muito nisso. É provável que o roteiro não tenha sido feliz, já que o romance, ao contrário, continua a ter um lugar de honra em nossas vidas até porque elas (nossas vidas) seriam bem chatinhas sem seu frisson. Pode ser que o fato inédito de vivermos em um tempo do imediato - tal a velocidade com que nossas vidas ganham novas e inesperadas maneiras de estar no mundo - faça com que as cada vez mais novas gerações reivindiquem respostas/soluções mais rápidas e eficientes para seus impasses. Outro dia uma jovem de trinta e poucos anos me dizia que estava vivendo na era do aturdimento. Sentia-se perdida com tantas questões que lhe assolavam as ideias. Estava sem namorado e cada vez que uma amiga “solteira” começava um relacionamento mais duradouro, percebia um friozinho em sua barriga. O que seria dela? Não havia no horizonte nada que pudesse lhe garantir que em pouco tempo alguém ocuparia este lugar, tão desejado, de companheiro de vida. Por outro lado, nem sempre estava disponível para saídas durante a semana com o pessoal do trabalho, que muitas vezes significava chegar tarde, cansada e um pouco alcoolizada, sem poder mexer na hora do despertar do dia seguinte. Além disso, apesar de estar finalmente trabalhando onde desejava, ficava apreensiva quanto à possibilidade de não corresponder às expectativas da empresa, o que a fazia trabalhar com muito mais empenho e aflição. Quando pensava na possibilidade de não se casar, ou ter filhos e família, de novo vinha o friozinho na barriga. E se assim fosse? O que seria dela? Fracasso total? Duro mesmo era aparecer nos eventos familiares, ter que responder sobre seu atual “estado civil” e suportar com alguma força possível, os olhares compadecidos dos mais velhos. Saía arrasada. Os únicos momentos de muito entusiasmo ficavam por conta das reuniões com as melhores amigas, que irmanadas em suas aflições, podiam lamber as feridas umas das outras. Não que sua vida fosse ruim. Suas férias sempre eram muito esperadas e planejadas com destinos incríveis, tinha um rol de amigos e amigas muito queridos, seus feriados já estavam comprometidos com pequenas incursões para lugares inusitados em companhia de amigos diversos, mas...tudo parecia ficar sem sentido quando ela se lembrava de que ainda não encontrara seu par. Fiquei sim aturdida com seu relato. Não me parecia que faltasse a ela uma vida com alguma alegria. Mas ela guardava, com muita convicção, um espaço especial ao seu “estado civil”. Com muito romance, a ideia de ter “alguém especial” estava totalmente atrelada à possibilidade de ser feliz. O que vocês acham?

terça-feira, 18 de março de 2014

Inquietos – ou a despeito do dia da mulher



Costumo repetir para meus filhos – tenho um casal – que eles vivem no melhor dos mundos. Esta frase tem o objetivo de fazê-los refletir sobre a emancipação humana, ainda que esta espiral não seja nada simples de se pensar. Acontece que como mulher, não posso me furtar ao fato de imaginar-me (ou aos meus filhos) vivendo em um passado de trevas, em que a humanidade, ainda sem possibilidades de garantir a liberdade de expressão, pensamento e compreensão a cada um, seguia regras e normas baseadas muito mais no medo e no horror da ira de deuses, única maneira de obter algum tipo de certeza em relação aos enigmas e os mistérios de sua existência. A sexualidade, a virgindade, tudo o que se refere às diferenças de gêneros, ao ato sexual, à reprodução, ao nascimento de crianças e a perpetuação da raça humana, incluído aí o enorme acervo moral/cultural que herdamos e temos que transmitir, ainda hoje são temas difíceis, e que já habitaram (e de certa maneira ainda o fazem) a dimensão do “sagrado” e/ ou do “profano”. Vale lembrar que como mulheres, sempre fomos portadoras tanto do sagrado quanto do profano por sermos encarregadas de gerar novos seres humanos e ao mesmo tempo objetos de prazer erótico e sexual, ou seja, vivemos ambas as condições em nossos ventres. Talvez por isso ainda hoje algumas de nós são cobertas por burcas ou preconceitos, vigiadas pela sociedade ou pelo medo de pecar, mutiladas para não sentir prazer ou perder a alma. O universo feminino sempre foi um terreno fascinante e perigoso, mas por sorte sua representação e de seus mistérios acompanharam a evolução histórica. Ainda que em alguns pontos do planeta muitas mulheres ainda vivam na escuridão, o mundo contemporâneo nos premiou com uma inimaginável rede de conexões que permite um mapeamento rico dos diferentes estágios de nosso imenso acervo humano e nos convida a repensar sobre os silêncios, a camuflagem de sentidos, a violência de certas práticas. Mas se hoje em dia é mais fácil perceber que não há vereditos para nossos destinos de homens e mulheres, é sempre muito difícil encarar as incertezas disso e abrir-se às novas formas de se viver a vida. Como mulheres e até como pais, nos deparamos com o fato de que na tarefa de ajudar nossas crianças a viver seu futuro temos que aceitar um “não saber”- e eles também. E se os grandes enigmas desapareceram, eles deram lugar aos muitos e prósperos discursos que cada um pode criar para justificar suas crenças e modos de pensar e viver no mundo. O mundo feminino se ampliou e se diversificou. Há um sem fim de estilos do feminino que homens e mulheres podem desfrutar ou criar para si e deveria caber a cada um administrar sua inquietude e buscar as melhores maneiras de se estar no mundo, com seu bônus e ônus. No entanto esta é uma experiência disparadora de angústias, que  em geral nos faz temer habitar um mundo caótico e desorientador. Ainda assim as futuras gerações terão que se haver com estas demandas, gerenciar a angústia do que não sabem, aguçar sua curiosidade pelas novas possibilidades e vigiar constantemente o desejo insistente de nomear novos/velhos tabus, repetindo a submissão a padrões, ideais e regras imaginadas como garantias. Cabe fazer uma diferença importante quanto ao sentido das transgressões. Há sim, as que podem ser classificadas como perigosas ou propiciadoras de violência e caos, mas há as que são parte integral do exercício da liberdade e compõem o campo da transformação e da expansão do saber.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Brasiiiiillll


A manchete dos jornais do último 4 de março anunciava os 100 dias que faltam para o início da Copa do Mundo. Mas de certa forma ficamos em dúvida se devemos nos ufanar do fato de que nosso país do futebol arte, que produziu os maiores craques de todos os tempos, mereça mesmo sediar este evento tão importante, ou se nos envergonhamos diante de certa previsão irradiada pela mídia local e internacional de que nosso país nunca teve e nem terá seriedade e responsabilidade necessárias para tal organização. Pode-se dizer que esta ambivalência assola a grande maioria dos brasileiros. Mesmo que em algum lugar da alma haja uma torcida silenciosa para que a Copa do Mundo seja um acontecimento inesquecível – incluído aí a grande vitória do país- só se consegue elencar de forma crítica, a mal ajambrada organização, que se desconfia estar repetindo os velhos modelos de distribuição dos bônus entre os gulosos que tiveram a sorte de fazer parte do “esquema”. Um casal de amigos que acaba de voltar de suas férias anuais, desta vez pela Alemanha, apontava certas diferenças interessantes entre os dois países. Cabe revelar que estes amigos levam muito a sério o planejamento de suas férias. Elas são pensadas nos mínimos detalhes e isto significa conseguir comprar a passagem, alugar carros, reservar hotéis e pesquisar os melhores e mais interessantes lugares/cultura para conhecer sempre levando em conta a métrica custo/benefício, incluído aí um quantum importante de satisfação estética. Louco por motores, ele ansiava alugar um certo carro alemão e “voar” pelas famosas Autobahn, sem controle de velocidade máxima. Um sonho antigo. Mas reconhecia que isso só podia existir em um país cujos habitantes pudessem reconhecer eles próprios os limites desta falta de limites. Por exemplo, ao contrário da faixa da esquerda em nossas autoestradas, majoritariamente utilizada independente se pretendemos ou não manter a velocidade máxima permitida, na Alemanha, a faixa da esquerda fica livre para os que desejam “voar”. Aqueles que querem ou precisam fazer uma ultrapassagem sabem que deverão retornar imediatamente a sua pista anterior. Como a maioria dos países desenvolvidos, os radares não existem para serem burlados e por isso não se informa onde estão. Eles ajudam os usuários a cumprirem as normas o que por sua vez contribui para o sentimento de que todos estão submetidos a elas. O mesmo se aplica para as placas de trânsito, levadas muito a sério. Sabemos como no Brasil as leis já nascem com seu manual informal das exceções. Somos muito rápidos e espertos para “instituir” o lado B de todas as obrigações civis ou penalidades a que estamos submetidos. Dias atrás a mídia revelou um fato que deixou a todos aturdidos. Uma boa fatia de nossos pilotos pagava para que suas habilitações recebessem da Anac o carimbo de autorização para voos comerciais, sem que eles precisassem passar pelos exames que conferem seu conhecimento e experiência de voo. Outro exemplo? Não é incomum que se leia em placas bastante chamativas, telefones que garantem a qualquer cidadão soluções para seus problemas de pontuação de multas em sua carta de habilitação. No fundo, cada um de nós sabe que em todos os níveis de funcionamento de nossa sociedade, está encarnado este jeito de escapar à ordem. Em menor ou maior escala todos tentam usufruir desta institucionalização da exceção. Quem sabe por esta razão fique mais difícil acreditar que o país mereça se dar bem. Mesmo que seja na Copa do Mundo, em que o esperado seria que o bom futebol fosse a atração principal.

terça-feira, 4 de março de 2014

Não deixem que eu me lembre


Uma das pedras basais da leitura psicanalítica de nossas vidas psíquicas é o papel da memória, e nossos esquecimentos nada casuais. Muito cedo Freud descobriu quão frequentemente precisávamos “apagar” ou “maquiar” certas vivências demasiadamente impactantes, porque na ocasião em que elas ocorriam, não dispúnhamos de recursos para “organiza-las” de forma a encaixa-las em nossa vida psíquica, sem um quantum excessivo de dor e sofrimento. Claro que isso não acontece sem custos. Em geral construímos defesas e proteções para que estas lembranças não nos importunem, mas pouco sabemos sobre todo este processo complicado. Freud chamou isso de neurose e convidou aos que quisessem e pudessem, a se submeter ao seu método de associação livre com o propósito de reescrever/encontrar novas narrativas sobre suas vidas, recuperando e colocando novos significados naqueles fatos difíceis de sua própria historia. Constatou, no entanto, que nem todos estavam dispostos a “remexer” em seus baús e suas incômodas lembranças. Em um texto da Ilustríssima deste domingo há um relato sobre um encontro em 2001 do então já conceituado artista plástico britânico Steve McQueen com uma turma de estudantes de artes plásticas da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) em que ele, negro, quer saber por que ali não há negros. Ao constatar o mal estar provocado por sua pergunta, e a falta de preparo de todos para um debate sobre a discriminação no país, deixou claro seu estranhamento. Em tom provocativo, afirmou que no Brasil certas questões pareciam ficar deliberadamente fora, como se não existissem. Não era o caso dele. Seu  mais recente filme, "12 Anos de Escravidão", baseado nas memórias do negro Solomon Northup publicadas em 1853, concorre a nove Oscars e está dando o que falar. Solomon nasceu livre e viveu em Nova York trabalhando como carpinteiro e violinista até ser sequestrado e vendido como escravo para uma fazenda no sul dos Estados Unidos, poucos anos antes da guerra civil. Sem conseguir provar ter nascido livre, é submetido a todos os tipos de violencia, crueldade e humilhaçoes. Vale notar que McQueen é o terceiro cineasta negro indicado ao Oscar em 86 anos de premiações. Nunca um diretor negro levou a estatueta. Mas se quisermos pinçar apenas uma das inúmeras diferenças quando o tema é racismo, ao menos nos USA o assunto (a história) é debatido e pode até ser premiado. Neste ano de 2014 o início da primeira guerra mundial faz cem anos. No Brasil, o golpe militar de 1964 faz 50 anos. Os 20 anos de ditadura militar são outro tema tabu para nós brasileiros. Não só não se comenta ou se reflete sobre estes acontecimentos como parece haver um repúdio aos que, tendo sido vítimas direta ou indiretamente deste período de exceção, insistem em trazer à tona fatos e versões enterrados. O “descaso” é generalizado. Ao contrário do que parece, no entanto, nossa indiferença moral diante de certas injustiças sociais, nossa franca preferencia pela negação da existência destas injustiças ou da responsabilidade social e politica que cabe/coube a cada um, nos joga em um processo de anestesia e de ignorância quanto a nossa história. Seríamos ainda uma sociedade tão frágil e tão infantil a ponto de não suportar debater nossos equívocos ou nosso passado?