Um fictício observador “estrangeiro”, ao constatar o
espaço privilegiado e acintoso que as crianças têm em nosso mundo atual, cercadas
de mimos e preocupações dos pais, educadores, médicos e psicólogos, não
imaginaria que por muito tempo, nem a infância ou a denominação de criança
sequer existiam. Os pequenos eram tratados, vestidos e retratados como adultos
em miniatura. O historiador francês Phillipe Aries descreve a “descoberta da
infância”, que teria ocorrido a partir do século XIII, como um lento processo,
graças ao qual os pimpolhos, que na alta Idade Média só recebiam nome se
persistissem em viver, foram ocupando o centro das atenções e da família moderna.
Os pais, ao invés de proprietários, passaram a serem os protetores da família e
as mães, gerentes dos afazeres domésticos,
aquelas que cuidavam de seus filhos, que na era moderna vão garantir a
perpetuação da família. Hoje as crianças são crianças e não mais adultos
pequenos. Elas têm maneiras de pensar e sentir que lhes são próprias e como
parte da sociedade civil, tem leis especiais que as protegem de quaisquer
abusos. Houve uma progressiva valorização do lugar que elas ocupam tornando o
filho, no decorrer do século XIX e XX, o centro da família e objeto de
investimentos econômicos, educacionais e afetivos. Tudo o que se refere a
crianças é considerado da maior importância por todos os setores da sociedade,
sendo que os pequenos são responsáveis por uma enorme fatia dos investimentos
financeiros em criações ininterruptas de objetos destinados a compor um mundo
de conforto e felicidade. No Brasil, há alguns anos, instituiu-se uma prática
entre os casais grávidos de classes médias altas e altas, de programarem uma
viagem para Miami, que segundo cálculos de todos os que lá estiveram, somados
passagem, estadia e algumas malas de apetrechos e roupas de recém-nascidos,
seus bebês desfrutariam do que haveria de mais moderno no mundo sem que o custo
fosse excessivo. Com o tempo, esta prática difundiu-se de tal maneira que
“sites” de roupas e objetos utilizados por bebês passaram a ser compartilhados,
com listas já elaboradas por terceiros, o que permitia que as compras pudessem
ser feitas antes mesmo que a viagem acontecesse. Parte importante deste
enxoval, o enfeite da porta da maternidade, a mala contendo as roupas a serem
utilizadas ali pelo bebe, as lembrancinhas para as visitas e as câmeras prontas
para registrar o evento desde o começo. Ah sim, e alguma “bíblia” contendo TUDO
o que pode acontecer no primeiro ano do bebê. Tudo pronto, resta compartilhar
do clima festivo e agitado da maternidade, que em cidades cosmopolitas como São
Paulo é acrescido do número cada vez maior de grávidas e seus familiares. Há
filas para o estacionamento, para se cadastrar na recepção do hospital, para
utilizar os elevadores. Já dentro é curioso passear pelos corredores dos
quartos enfeitados, ler o nome de cada criança que acabou de nascer e imaginar
uma historia de vida futura para cada uma. Imperdível é gastar alguns minutos no
berçário, todo envidraçado, com fileiras imensas de recém-nascidos, alguns
dormindo tranquilos, outros agitados chorando. E agora nenéns? Cada um de vocês
representa uma aposta, um porvir. Em geral seus pais não sabem ainda muito bem
como eles devem se portar para que vocês se tornem pessoas felizes. É quase
certo que eles terão muitas dúvidas sobre o que e como agir diante dos impasses
que vocês criarão. Mas parece certo também que há uma distancia que precisa ser
ajustada, entre a insistente promessa do mundo feliz e sem sofrimentos que eles
imaginam para vocês, e a difícil e
importantíssima tarefa que eles terão que desempenhar para que vocês se tornem
alguém de valor.
quinta-feira, 15 de maio de 2014
quarta-feira, 7 de maio de 2014
Ajuste de contas
A morte de Gabriel Garcia
Marques, quinta feira, dia 17 de abril, me fez recordar uma parte de minha
história, ao relembrar o impacto que a leitura de “Cem anos de solidão” produziu
no meu pequeno percurso de leitora. Quando o li, já fazia alguns anos que ele
surgira no universo literário, fazendo barulho. Afinal, narrar a história
latino-americana com suas guerras e solidão a partir da árvore genealógica da
família Buendía e suas gerações,recorrendo
à fantasia para revelar a realidade, tudo isso sem perder o fio da meada, não é
tarefa para qualquer um. E se hoje esta saga é considerada uma das obras mais
importante da língua espanhola de todos os tempos (depois de Dom Quixote), a
lembrança de minha leitura não contempla tal grandeza. Jovem, ainda, fiquei
capturada pelo realismo mágico com que os personagens eram descritos, com a
liberdade um tanto crua com que suas histórias de amores e dores podiam ser
vividas e a maneira surpreendente com que suas experiências cotidianas eram
transformadas em algo fantástico, mágico, mas ainda assim verossímil. Ainda não tenho muito claro o papel que a
literatura teve na minha visão de mundo. Mas tenho a impressão, quase como se
fosse uma certeza, de que ela abriu horizontes e despertou-me para universos
desconhecidos e inimagináveis. Há quem reconhece seus desejos desde muito cedo
e nao só os nomeia, como os persegue. Nunca pertenci a este grupo, mas se há um
pensamento que permeou minha vida desde bem jovenzinha, é o de que o “mundo” (aquele
composto pelo acervo cultural humano) deveria ser muito maior do que aquele que
eu conhecia ou vislumbrava na cidade interiorana em que eu vivia. E eu
precisava conhecer o máximo que eu pudesse sobre ele, o que com gratidão posso
atribuir uma boa parte às minhas poucas leituras de grandes autores da
literatura. Gabriel Garcia Marques nasceu em uma cidadezinha da Colombia, tendo
vivido uma parte de sua infância sob os cuidados de seus avós, com quem ouviu
muitas das histórias fantásticas que depois utilizaria em seu universo
literário. Em um dos muitos textos que foram escritos após a notícia de sua
morte, um em especial, de seu conterrâneo, amigo e escritor Hugo Abad, narra
sua última visita feita em 2010 a Gabo- como era chamado pelos íntimos- segundo
ele já desmemoriado, mas ainda poético. Foi ali, na cidade de Cartagena, que
ele ouviu Mercedes, esposa de Gabo, contar que quando ali chegaram, a ideia era
comprar uma casa antiga no centro histórico para morarem. Mas Gabo nunca se
decidira sobre isso, com medo dos fantasmas. Fiquei a imaginar o escritor
Gabriel Garcia Marques, que já se despedira do mundo intelectual desde 2006
quando resolvera não mais escrever, a habitar a pátria que todos temos em
comum: nossa infância. Obrigada Gabo!
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