Difícil não notar a figura ímpar de Jose Mujica nas mídias em geral, seja pelo impacto de
alguma medida polêmica adotada por seu governo ou simplesmente por reproduzir seus
pensamentos e ideias que ele não se furta em propagar, ao contrário, parece
achar importante confirmar sua visão de mundo, de governo e de futuro. Eleito
presidente do Uruguai em 2009, Mujica ou Pepe como é chamado por seus
conterrâneos, não tem passado despercebido aos olhos do mundo. Graças a esta
estranha e, para alguns, bizarra visibilidade a revista britânica The Economist
elegeu o Uruguai como o país do ano, mas insistiu em enfatizar as razões: por
sua receita para a felicidade humana. Qual receita? Dois jornalistas espanhóis,
um repórter e outro fotógrafo, foram escalados pelo jornal El País para
conferi-la e em seguida publicarem suas impressões sobre o país, seu povo, sua
historia, e claro, seu personagem atualmente mais famoso, Mujica. Não são
poucos os brasileiros que conhecem o Uruguai ou pelo menos sua capital, Montevidéu.
Incrustado entre o Brasil e a Argentina de um lado e entre o Atlântico e o Rio
da Prata de outro, o país é menor que a grande maioria dos estados brasileiros.
Com ares europeus, Montevidéu sempre foi “mal” comparada a Buenos Aires, a
capital de sua “irmã” bem sucedida e os uruguaios a conviver com a impressão de
que prefeririam atravessar o Rio da Prata e viverem em terras argentinas. Seu
principal ponto turístico, Punta del Este, foi se tonando um resort de
milionários argentinos (e alguns brasileiros). Mas eis que o cenário atual
mostra uma reviravolta nesta lógica que parecia se perpetuar, e inverte a
equação. Aos olhos da comunidade internacional, a Argentina parece tropeçar em
suas tentativas de se reerguer como potencia econômica e cultural sul-americana,
mas o Uruguai, que há dez anos vivia uma de suas maiores crises, com 40% da
população abaixo do nível de pobreza, salário mínimo baixíssimo, emigração em
alta e níveis de inflação insuportáveis, exibe um quadro de causar inveja a
qualquer país da América Latina. Um conjunto de conquistas econômicas e sociais
conduziu o país a um patamar surpreendente. Mas na visão da dupla de
jornalistas espanhóis, se existe alguma receita para a felicidade humana a ser
apreendida neste período de bonança uruguaia, ela se deve ao seu cacique e ao
fato inusitado de que este estadista, e presidente da república, se recuse a
desfrutar das benesses e privilégios de sua função. Embora Mujica não comungue
de uma unanimidade em seu país, ao contrario, muitos torcem o nariz para a sua
figura caipira, vestido de homem comum, declarando a quem queira ouvir sua
intenção de viver como gostaria que todos vivessem, ninguém pode negar que sua
fama extrapola o pequeno território do país, se alastra mundo afora e coloca o
Uruguai no mapa mundial. Mujica insiste na importância da desmistificação da
presidência como lugar especial, que mantém a distância entre o político- e os
salamaleques de sua agenda protocolar- e o povo, e está convicto de que não há
nada pior do que a descrença de um povo em seu governo, um cenário que sabe ser
quase geral no panorama mundial. Não defende modelos alternativos, busca-os e
vive-os.
quinta-feira, 5 de junho de 2014
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Com o brasileiro, não há quem possa!
Em uma recente entrevista para o programa da rádio
Eldorado “Quem somos nós” o escritor brasileiro Lourenço Mutarelli – autor
entre outros, do livro Cheiro do Ralo – declarou, lá pelas tantas, que a música
era sua religião. Queria dizer que era ela, a música, que o fazia entrar em uma
espécie de transe, um lugar importante para sua produção artística. Nos jornais
da semana que passou foi anunciado o lançamento do livro do jornalista gaúcho
Beto Xavier, que decidiu juntar duas de suas paixões ao pesquisar a história do
casamento da música com o futebol. Entrevistou jogadores e músicos, e selecionou inúmeros trechos de canções que traçam paralelos entre as duas maiores paixões
brasileiras. Sua intenção em "Futebol no País da Música" (Panda
Books) era contar a história das músicas que falam sobre o esporte favorito dos
brasileiros (e dele também). Em uma reunião de grupo da qual participei dia
destes, um colega chegou atrasado, sentou-se e colocou encima da mesa um bolo
de figurinhas de jogadores de futebol, devidamente amarradas por um elástico.
Ao perceber os olhares curiosos sobre si, disse que pertenciam a sua (única)
filha adolescente, a quem ele se ofereceu para ajudar com o álbum, comparecendo
a alguns pontos de trocas em que outros colecionadores levavam suas figurinhas
repetidas em um movimento de colaboração mútua. Depois de alguns minutos de
silencio, em que nos rostos de todos estampava a surpresa, meu colega desatou a
contar sobre seus álbuns de outras copas, contaminando os demais e despertando
historias e lembranças diversas. Todos tinham alguma boa historia ligada aos
períodos de Copa do Mundo. Às vésperas deste importante torneio, que ao gosto
ou contragosto o Brasil está sediando, parece pairar um silencio geral, certo
suspense, como se todos se contivessem em seu ímpeto de comentar sobre os
jogos, os times estrangeiros, as expectativas, os temores. Se somos ou não o
país das chuteiras, ninguém duvida que o futebol seja uma poderosa paixão
nacional, um dos poucos eventos capaz de despertar um forte sentimento de
irmandade e identidade. É raro que brasileiros não sintam orgulho de seu time,
da bem sucedida historia de nosso futebol, suas vitórias, seus craques. Ao
contrário, a maioria se ufana já que é inegável que desfrutamos de uma
admiração geral pelo mundo afora. Assim também acontece com nossa música, não
só difundida e reconhecida para além de nossas fronteiras, mas que se mantém
como fator de coesão nacional, independente de origem e estudos. Ambos, futebol
e música, podem ser considerados atividades humanas que não se reduzem ao
resultado ou ao valor de mercado já que conseguem transformar o cotidiano em
espetáculo de emoção e despertar um sentimento de alegria compartilhada. Os
corpos transpiram prazer nos pulos, abraços, cantos ou gritos. Cada um pode,
enfim, sentir orgulho de ser brasileiro.
De que lugar falamos?
A Editora Companhia das Letras divulgou esta semana
que está para ser lançado no Brasil o livro do escritor americano George Saunders, com o qual ele acaba de arrematar a primeira edição do
prêmio Folio, que pretende abarcar toda a ficção de língua inglesa,
independente do gênero literário ou do país de origem do autor. O Folio, que
provavelmente ambiciona se equiparar (ou quiçá suplantar) o prestígio do Man Booker Prize, ao premiar um livro de
contos de um americano, já marcou sua diferença. “Dez de dezembro” reúne dez
contos que, segundo divulgação da editora brasileira, abordam os dramas e as
delícias da classe média urbana, a relação entre pais e filhos, as pequenas imposturas
que cometemos quando queremos agradar um desconhecido, ou seja, questões do
nosso tempo, que nos obrigam a refletir sobre nós mesmos, nossas vidas, nossos
sonhos, nossas picuinhas. Professor de Escrita Criativa na Universidade de Syracuse
no Estado de Nova York, ao ser convidado a fazer o discurso para os formandos
de 2013, Saunders não apenas confirmou seu maior tema- o ser humano e suas
tentativas de viver uma vida digna mesmo sob pressão ordinária e
extraordinária- como se utilizou de uma historia pessoal para tornar sua
narrativa mais próxima de alguma verdade. Lembrou aos jovens que o escutavam,
que havia se tornado comum que alguém com idade mais avançada (no caso, ele),
que já tivesse percorrido um bom pedaço de sua vida, preparasse algum discurso
sobre o “melhor” período da vida, o que consensualmente deveria ser aquele em
que eles estavam prestes a viver. Por sua vez, ele havia escolhido recordar, –
ou quem sabe tivesse sido impelido a isso- certas vivências passadas que lhe traziam
desconforto. Não, não eram as que ele havia sentido medo ou as que lhe
lembravam de algumas faltas e frustrações por desejos não realizados ou
vergonha. Era principalmente aquelas em que ele havia deixado passar
“despercebido” de si mesmo, um sentimento de compaixão por alguém que ele
assistira em apuros emocionais. Por um pequeno espaço de tempo, quando ele era
pequeno e estava na escola, uma menina nova se mudou para o bairro e começou a
frequentar a mesma sala de aula. Ela era bastante tímida, mirrada e usava uns
óculos de mulheres mais velhas, o que lhe dava uma aparência bizarra. Aflita,
mastigava o tempo todo um pedaço de seu próprio cabelo, o que lhe rendia toda
sorte de gozações de seus colegas. A menina e sua família acabaram se mudando deixando
Saunders com uma sensação de “vazio”. Ela havia ido embora sem saber que ele
não compactuava com aqueles meninos que a humilhavam. Ele não tinha tido
coragem de ser gentil com ela, ao oferecer-lhe sua amizade como contraponto ao
clima de violência que ela era obrigada a viver diariamente na escola. George
Saunders tem 58 anos. Escolheu falar sobre a importância da gentileza para uma
turma de formandos provavelmente porque como escritor contemporâneo, sente-se
mais comprometido, e ao mesmo tempo mais livre para divulgar sua visão de mundo,
sua paisagem íntima do social. Para alguns pode parecer piegas, para outros,
coragem.
O lobo do homem
Quase todos devem ter ouvido algum
comentário sobre o polêmico filme O Lobo de Wall Street, baseado na biografia
de Jordan Belfort e dirigido por Martin Scorsese. O filme começa com o
próprio protagonista, na pele de Leonardo DiCaprio, anunciando sem muitas
milongas, o tom de excessos que suas memórias irão tocar, ao revelar o estilo
de vida pouco convencional de muita grana, sexo e drogas a partir de seu
sucesso financeiro. Belfort é o lobo que consegue fazer fortuna operando ações
negociadas fora do pregão, de preços baixíssimos, mas de altíssimo risco, nos
anos noventa, anos dourados da bolsa
nova-iorquina em que a regulação e os limites eram tênues e podiam ser
subornados. Inicialmente operando em Long Island, logo o escritório da Stratton
Oakmont ocupará o coração de Wall Street, e atrairá os olhares fascinados de
milhares de corretores dispostos a fazer parte de seu circo e ganhar muito
dinheiro. Um circo, que visto de perto mais parecia um misto de hospício e
bordel, sustentado pelo carisma do showman Belfort, que em seu palco e de
microfone em punho comandava sua trupe, mantendo a ganância e a ambição de
todos, motor das compras e vendas de ações. Em troca, pílulas, prostitutas e diversão
“full time”. Há um quê de orgulho, sem sombras de julgamentos morais, que
Belfort exibe ao falar de si em suas memórias, uma aura que ele próprio se
concede como se ao conseguir a proeza de quase ganhar um milhão de dólares ao
ano com apenas 26 anos, ele teria cruzado as inalcançáveis portas do paraíso e
realizado o “sonho americano” de habitar as terras divinas do excesso, do exagero
e da inconsequência, sem medo de ser feliz. A única imagem que o filme mostra
do ainda ingênuo Belfort, quando começa a trabalhar em Wall Street, um pouco
antes da crise do final dos anos oitenta, é um almoço com o então chefe, que
lhe diz para ficar muito atento a única regra daquele jogo: vender a qualquer
“custo”, não importa a quem, porque ou quais serão os resultados para o
comprador. A receita para suportar o ritmo e o clima de montanha russa é muita
maconha e masturbação. De certa forma ele não só segue as regras à risca, como as
inova, quando recomeça do zero em Long Island. Indicado ao Oscar, o filme foi
bem de bilheteria, tendo Leonardo DiCaprio disputado o premio de melhor ator.
Com tal destaque, algumas entrevistas que o ator concedeu reivindicavam sua
posição diante do comportamento de seu personagem, ao que DiCaprio lembrava que
não se tratava de legitimar seu modo de encarar a vida e sim de retratar os
obscuros (e quase nunca revelados) lados da alma humana. De fato o ator está
ótimo em sua interpretação e empresta ao personagem um tom certeiro entre o
infantil e o cafona, ao destacar a maneira como ele aposta 100% em seus métodos
de venda e na possibilidade das pílulas lhe garantirem a energia para aquela
vida alucinada e viciante. E por falar em vício, para o espectador atento, não
só as drogas, mas o sexo, o dinheiro e o ritmo das negociatas vão, aos poucos,
tomando um lugar central na vida de todos os envolvidos, funcionando como
objetos “perfeitos” de gozo, anestesiantes, que emprestam um sentimento de
invulnerabilidade, mas que, ao contrário do que lhes parece, impede-os de
pensar, perceber, refletir, enfim viver a vida. Um perigoso, embora audacioso, namoro
com a morte.
Para
conferir: O Lobo de Wall Street ( USA 2013)
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Leonardo DiCaprio e Jonah
Hill
Raízes
Um amigo querido, que deixou sua sulina cidadezinha
de origem há tempos, precisou retornar ali para resolver questões familiares
pendentes. Aproveitou a oportunidade e estendeu sua estadia por alguns dias,
visitou parentes próximos e distantes e personagens importantes de sua
infância. Ao retornar, sentiu-se estranhamente tocado por aquela visita. Após
alguns dias, sonhou que encontrava seu primeiro carro, um fusca ano 65, em uma
garagem qualquer. No sonho ele se espanta muito, pois até então tinha certeza
que havia vendido seu fusca, tempos antes de sair de sua cidade natal. Ao
acordar põe-se a perguntar sobre o significado daquele sonho, ligando-o aos
impactos de sua recente viagem. Nascido em uma família de imigrantes, sua
infância tinha sido particularmente dura, tendo seu pai o deixado (e aos seus
dois irmãos) ainda criança, vítima de um infarto fulminante. Só agora, com mais
de sessenta anos, podia rememorar alguns fatos mais alegres deste tempo, e
articular uma historia em que o sofrimento não lhe parecesse tão excessivo. A
imigração tem este duplo movimento. De um lado o imigrante tem um forte motivo
para sair de seu país, e mesmo contra a sua vontade, é na busca de uma nova
chance que ele escolhe seu novo destino, precisa enfrentar as decorrências de
sua expatriação, e tentar acolher a nova cultura do lugar que o recebe. Sua
língua materna poderá se manter no âmbito privado, mas ele terá que aprender a
dominar a nova língua, e entender os costumes e os valores daquela comunidade.
Não é difícil imaginar como este processo é árduo e requer um empenho das
famílias em adaptarem-se à nova cultura, muitas vezes à custa de um
“apagamento” de suas raízes. Há famílias de imigrantes que acolhem o
“estrangeiro” do novo lugar com mais facilidade e se abrem rapidamente ao
convívio, esforçando-se para serem aceitos ou para se integrarem às novas normas. Outras, ao
contrário, temem não serem aceitas ou rejeitam sua situação de estrangeiros,
fecham-se e voltam-se para uma tentativa de manter as tradições e os costumes
de sua antiga morada, como a negar a mudança, o novo. Para estes, cabe aos
filhos, muitos deles nascidos na nova pátria, se apropriarem desta nova
identidade e aos poucos, construir um outro roteiro, fora daquele que seus pais
tentam manter. São os filhos que frequentarão as escolas, criarão novos laços,
e planejarão um futuro alternativo. De certa maneira a imigração força uma
posição de apátrida, que pode ser vivida como uma abertura para o novo e o
diferente ou pode ser mantida com ressentimento e sentimento de perda. Meu
amigo tinha programado seu retorno à cidade natal com muito entusiasmo. Na era
digital e de fácil comunicação, trocou e-mails e mensagens com antigos
conhecidos, alguns também filhos de imigrantes como ele, e empenhou-se em fazer
valer sua visita. Só quando voltou, percebeu que havia feito uma viagem mais
subjetiva do que imaginava. Aos 18 anos tinha deixado sua cidadezinha para estudar
na Universidade da capital de seu estado; depois sua formação acadêmica lhe
exigira passar alguns anos fora do país e quando voltara, havia fixado
residência em São Paulo. Com uma carreira bem sucedida, estava longe dos tempos
de pobreza e escassez de sua infância. Alguns dias antes de viajar, decidira
trocar seu carro por um modelo que namorava há algum tempo. O reencontro com o
fusca ano 65 que o sonho lhe proporcionou permitiu-lhe mergulhar no passado, assim como a viagem aos
lugares da infância. Mesmo sem perceber, havia podido fazer um resgate de suas
raízes, acrescentando o prólogo no livro de sua vida. Sentiu-se satisfeito.
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