quinta-feira, 5 de junho de 2014

Pepe Legal

Difícil não notar a figura ímpar de Jose Mujica nas mídias em geral, seja pelo impacto de alguma medida polêmica adotada por seu governo ou simplesmente por reproduzir seus pensamentos e ideias que ele não se furta em propagar, ao contrário, parece achar importante confirmar sua visão de mundo, de governo e de futuro. Eleito presidente do Uruguai em 2009, Mujica ou Pepe como é chamado por seus conterrâneos, não tem passado despercebido aos olhos do mundo. Graças a esta estranha e, para alguns, bizarra visibilidade a revista britânica The Economist elegeu o Uruguai como o país do ano, mas insistiu em enfatizar as razões: por sua receita para a felicidade humana. Qual receita? Dois jornalistas espanhóis, um repórter e outro fotógrafo, foram escalados pelo jornal El País para conferi-la e em seguida publicarem suas impressões sobre o país, seu povo, sua historia, e claro, seu personagem atualmente mais famoso, Mujica. Não são poucos os brasileiros que conhecem o Uruguai ou pelo menos sua capital, Montevidéu. Incrustado entre o Brasil e a Argentina de um lado e entre o Atlântico e o Rio da Prata de outro, o país é menor que a grande maioria dos estados brasileiros. Com ares europeus, Montevidéu sempre foi “mal” comparada a Buenos Aires, a capital de sua “irmã” bem sucedida e os uruguaios a conviver com a impressão de que prefeririam atravessar o Rio da Prata e viverem em terras argentinas. Seu principal ponto turístico, Punta del Este, foi se tonando um resort de milionários argentinos (e alguns brasileiros). Mas eis que o cenário atual mostra uma reviravolta nesta lógica que parecia se perpetuar, e inverte a equação. Aos olhos da comunidade internacional, a Argentina parece tropeçar em suas tentativas de se reerguer como potencia econômica e cultural sul-americana, mas o Uruguai, que há dez anos vivia uma de suas maiores crises, com 40% da população abaixo do nível de pobreza, salário mínimo baixíssimo, emigração em alta e níveis de inflação insuportáveis, exibe um quadro de causar inveja a qualquer país da América Latina. Um conjunto de conquistas econômicas e sociais conduziu o país a um patamar surpreendente. Mas na visão da dupla de jornalistas espanhóis, se existe alguma receita para a felicidade humana a ser apreendida neste período de bonança uruguaia, ela se deve ao seu cacique e ao fato inusitado de que este estadista, e presidente da república, se recuse a desfrutar das benesses e privilégios de sua função. Embora Mujica não comungue de uma unanimidade em seu país, ao contrario, muitos torcem o nariz para a sua figura caipira, vestido de homem comum, declarando a quem queira ouvir sua intenção de viver como gostaria que todos vivessem, ninguém pode negar que sua fama extrapola o pequeno território do país, se alastra mundo afora e coloca o Uruguai no mapa mundial. Mujica insiste na importância da desmistificação da presidência como lugar especial, que mantém a distância entre o político- e os salamaleques de sua agenda protocolar- e o povo, e está convicto de que não há nada pior do que a descrença de um povo em seu governo, um cenário que sabe ser quase geral no panorama mundial. Não defende modelos alternativos, busca-os e vive-os.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Com o brasileiro, não há quem possa!

Em uma recente entrevista para o programa da rádio Eldorado “Quem somos nós” o escritor brasileiro Lourenço Mutarelli – autor entre outros, do livro Cheiro do Ralo – declarou, lá pelas tantas, que a música era sua religião. Queria dizer que era ela, a música, que o fazia entrar em uma espécie de transe, um lugar importante para sua produção artística. Nos jornais da semana que passou foi anunciado o lançamento do livro do jornalista gaúcho Beto Xavier, que decidiu juntar duas de suas paixões ao pesquisar a história do casamento da música com o futebol. Entrevistou jogadores e músicos, e selecionou inúmeros trechos de canções que traçam paralelos entre as duas maiores paixões brasileiras. Sua intenção em "Futebol no País da Música" (Panda Books) era contar a história das músicas que falam sobre o esporte favorito dos brasileiros (e dele também). Em uma reunião de grupo da qual participei dia destes, um colega chegou atrasado, sentou-se e colocou encima da mesa um bolo de figurinhas de jogadores de futebol, devidamente amarradas por um elástico. Ao perceber os olhares curiosos sobre si, disse que pertenciam a sua (única) filha adolescente, a quem ele se ofereceu para ajudar com o álbum, comparecendo a alguns pontos de trocas em que outros colecionadores levavam suas figurinhas repetidas em um movimento de colaboração mútua. Depois de alguns minutos de silencio, em que nos rostos de todos estampava a surpresa, meu colega desatou a contar sobre seus álbuns de outras copas, contaminando os demais e despertando historias e lembranças diversas. Todos tinham alguma boa historia ligada aos períodos de Copa do Mundo. Às vésperas deste importante torneio, que ao gosto ou contragosto o Brasil está sediando, parece pairar um silencio geral, certo suspense, como se todos se contivessem em seu ímpeto de comentar sobre os jogos, os times estrangeiros, as expectativas, os temores. Se somos ou não o país das chuteiras, ninguém duvida que o futebol seja uma poderosa paixão nacional, um dos poucos eventos capaz de despertar um forte sentimento de irmandade e identidade. É raro que brasileiros não sintam orgulho de seu time, da bem sucedida historia de nosso futebol, suas vitórias, seus craques. Ao contrário, a maioria se ufana já que é inegável que desfrutamos de uma admiração geral pelo mundo afora. Assim também acontece com nossa música, não só difundida e reconhecida para além de nossas fronteiras, mas que se mantém como fator de coesão nacional, independente de origem e estudos. Ambos, futebol e música, podem ser considerados atividades humanas que não se reduzem ao resultado ou ao valor de mercado já que conseguem transformar o cotidiano em espetáculo de emoção e despertar um sentimento de alegria compartilhada. Os corpos transpiram prazer nos pulos, abraços, cantos ou gritos. Cada um pode, enfim, sentir orgulho de ser brasileiro. 

De que lugar falamos?

A Editora Companhia das Letras divulgou esta semana que está para ser lançado no Brasil o livro do escritor americano George Saunders, com o qual ele acaba de arrematar a primeira edição do prêmio Folio, que pretende abarcar toda a ficção de língua inglesa, independente do gênero literário ou do país de origem do autor. O Folio, que provavelmente ambiciona se equiparar (ou quiçá suplantar) o prestígio do Man Booker Prize, ao premiar um livro de contos de um americano, já marcou sua diferença. “Dez de dezembro” reúne dez contos que, segundo divulgação da editora brasileira, abordam os dramas e as delícias da classe média urbana, a relação entre pais e filhos, as pequenas imposturas que cometemos quando queremos agradar um desconhecido, ou seja, questões do nosso tempo, que nos obrigam a refletir sobre nós mesmos, nossas vidas, nossos sonhos, nossas picuinhas. Professor de Escrita Criativa na Universidade de Syracuse no Estado de Nova York, ao ser convidado a fazer o discurso para os formandos de 2013, Saunders não apenas confirmou seu maior tema- o ser humano e suas tentativas de viver uma vida digna mesmo sob pressão ordinária e extraordinária- como se utilizou de uma historia pessoal para tornar sua narrativa mais próxima de alguma verdade. Lembrou aos jovens que o escutavam, que havia se tornado comum que alguém com idade mais avançada (no caso, ele), que já tivesse percorrido um bom pedaço de sua vida, preparasse algum discurso sobre o “melhor” período da vida, o que consensualmente deveria ser aquele em que eles estavam prestes a viver. Por sua vez, ele havia escolhido recordar, – ou quem sabe tivesse sido impelido a isso- certas vivências passadas que lhe traziam desconforto. Não, não eram as que ele havia sentido medo ou as que lhe lembravam de algumas faltas e frustrações por desejos não realizados ou vergonha. Era principalmente aquelas em que ele havia deixado passar “despercebido” de si mesmo, um sentimento de compaixão por alguém que ele assistira em apuros emocionais. Por um pequeno espaço de tempo, quando ele era pequeno e estava na escola, uma menina nova se mudou para o bairro e começou a frequentar a mesma sala de aula. Ela era bastante tímida, mirrada e usava uns óculos de mulheres mais velhas, o que lhe dava uma aparência bizarra. Aflita, mastigava o tempo todo um pedaço de seu próprio cabelo, o que lhe rendia toda sorte de gozações de seus colegas. A menina e sua família acabaram se mudando deixando Saunders com uma sensação de “vazio”. Ela havia ido embora sem saber que ele não compactuava com aqueles meninos que a humilhavam. Ele não tinha tido coragem de ser gentil com ela, ao oferecer-lhe sua amizade como contraponto ao clima de violência que ela era obrigada a viver diariamente na escola. George Saunders tem 58 anos. Escolheu falar sobre a importância da gentileza para uma turma de formandos provavelmente porque como escritor contemporâneo, sente-se mais comprometido, e ao mesmo tempo mais livre para divulgar sua visão de mundo, sua paisagem íntima do social. Para alguns pode parecer piegas, para outros, coragem. 

O lobo do homem

Quase todos devem ter ouvido algum comentário sobre o polêmico filme O Lobo de Wall Street, baseado na biografia de Jordan Belfort e dirigido por Martin Scorsese. O filme começa com o próprio protagonista, na pele de Leonardo DiCaprio, anunciando sem muitas milongas, o tom de excessos que suas memórias irão tocar, ao revelar o estilo de vida pouco convencional de muita grana, sexo e drogas a partir de seu sucesso financeiro. Belfort é o lobo que consegue fazer fortuna operando ações negociadas fora do pregão, de preços baixíssimos, mas de altíssimo risco, nos anos noventa, anos dourados da bolsa nova-iorquina em que a regulação e os limites eram tênues e podiam ser subornados. Inicialmente operando em Long Island, logo o escritório da Stratton Oakmont ocupará o coração de Wall Street, e atrairá os olhares fascinados de milhares de corretores dispostos a fazer parte de seu circo e ganhar muito dinheiro. Um circo, que visto de perto mais parecia um misto de hospício e bordel, sustentado pelo carisma do showman Belfort, que em seu palco e de microfone em punho comandava sua trupe, mantendo a ganância e a ambição de todos, motor das compras e vendas de ações. Em troca, pílulas, prostitutas e diversão “full time”. Há um quê de orgulho, sem sombras de julgamentos morais, que Belfort exibe ao falar de si em suas memórias, uma aura que ele próprio se concede como se ao conseguir a proeza de quase ganhar um milhão de dólares ao ano com apenas 26 anos, ele teria cruzado as inalcançáveis portas do paraíso e realizado o “sonho americano” de habitar as terras divinas do excesso, do exagero e da inconsequência, sem medo de ser feliz. A única imagem que o filme mostra do ainda ingênuo Belfort, quando começa a trabalhar em Wall Street, um pouco antes da crise do final dos anos oitenta, é um almoço com o então chefe, que lhe diz para ficar muito atento a única regra daquele jogo: vender a qualquer “custo”, não importa a quem, porque ou quais serão os resultados para o comprador. A receita para suportar o ritmo e o clima de montanha russa é muita maconha e masturbação. De certa forma ele não só segue as regras à risca, como as inova, quando recomeça do zero em Long Island. Indicado ao Oscar, o filme foi bem de bilheteria, tendo Leonardo DiCaprio disputado o premio de melhor ator. Com tal destaque, algumas entrevistas que o ator concedeu reivindicavam sua posição diante do comportamento de seu personagem, ao que DiCaprio lembrava que não se tratava de legitimar seu modo de encarar a vida e sim de retratar os obscuros (e quase nunca revelados) lados da alma humana. De fato o ator está ótimo em sua interpretação e empresta ao personagem um tom certeiro entre o infantil e o cafona, ao destacar a maneira como ele aposta 100% em seus métodos de venda e na possibilidade das pílulas lhe garantirem a energia para aquela vida alucinada e viciante. E por falar em vício, para o espectador atento, não só as drogas, mas o sexo, o dinheiro e o ritmo das negociatas vão, aos poucos, tomando um lugar central na vida de todos os envolvidos, funcionando como objetos “perfeitos” de gozo, anestesiantes, que emprestam um sentimento de invulnerabilidade, mas que, ao contrário do que lhes parece, impede-os de pensar, perceber, refletir, enfim viver a vida. Um perigoso, embora audacioso, namoro com a morte.
Para conferir: O Lobo de Wall Street ( USA 2013)
Direção: Martin Scorsese

Elenco: Leonardo DiCaprio e Jonah Hill

Raízes

Um amigo querido, que deixou sua sulina cidadezinha de origem há tempos, precisou retornar ali para resolver questões familiares pendentes. Aproveitou a oportunidade e estendeu sua estadia por alguns dias, visitou parentes próximos e distantes e personagens importantes de sua infância. Ao retornar, sentiu-se estranhamente tocado por aquela visita. Após alguns dias, sonhou que encontrava seu primeiro carro, um fusca ano 65, em uma garagem qualquer. No sonho ele se espanta muito, pois até então tinha certeza que havia vendido seu fusca, tempos antes de sair de sua cidade natal. Ao acordar põe-se a perguntar sobre o significado daquele sonho, ligando-o aos impactos de sua recente viagem. Nascido em uma família de imigrantes, sua infância tinha sido particularmente dura, tendo seu pai o deixado (e aos seus dois irmãos) ainda criança, vítima de um infarto fulminante. Só agora, com mais de sessenta anos, podia rememorar alguns fatos mais alegres deste tempo, e articular uma historia em que o sofrimento não lhe parecesse tão excessivo. A imigração tem este duplo movimento. De um lado o imigrante tem um forte motivo para sair de seu país, e mesmo contra a sua vontade, é na busca de uma nova chance que ele escolhe seu novo destino, precisa enfrentar as decorrências de sua expatriação, e tentar acolher a nova cultura do lugar que o recebe. Sua língua materna poderá se manter no âmbito privado, mas ele terá que aprender a dominar a nova língua, e entender os costumes e os valores daquela comunidade. Não é difícil imaginar como este processo é árduo e requer um empenho das famílias em adaptarem-se à nova cultura, muitas vezes à custa de um “apagamento” de suas raízes. Há famílias de imigrantes que acolhem o “estrangeiro” do novo lugar com mais facilidade e se abrem rapidamente ao convívio, esforçando-se para serem aceitos ou para  se integrarem às novas normas. Outras, ao contrário, temem não serem aceitas ou rejeitam sua situação de estrangeiros, fecham-se e voltam-se para uma tentativa de manter as tradições e os costumes de sua antiga morada, como a negar a mudança, o novo. Para estes, cabe aos filhos, muitos deles nascidos na nova pátria, se apropriarem desta nova identidade e aos poucos, construir um outro roteiro, fora daquele que seus pais tentam manter. São os filhos que frequentarão as escolas, criarão novos laços, e planejarão um futuro alternativo. De certa maneira a imigração força uma posição de apátrida, que pode ser vivida como uma abertura para o novo e o diferente ou pode ser mantida com ressentimento e sentimento de perda. Meu amigo tinha programado seu retorno à cidade natal com muito entusiasmo. Na era digital e de fácil comunicação, trocou e-mails e mensagens com antigos conhecidos, alguns também filhos de imigrantes como ele, e empenhou-se em fazer valer sua visita. Só quando voltou, percebeu que havia feito uma viagem mais subjetiva do que imaginava. Aos 18 anos tinha deixado sua cidadezinha para estudar na Universidade da capital de seu estado; depois sua formação acadêmica lhe exigira passar alguns anos fora do país e quando voltara, havia fixado residência em São Paulo. Com uma carreira bem sucedida, estava longe dos tempos de pobreza e escassez de sua infância. Alguns dias antes de viajar, decidira trocar seu carro por um modelo que namorava há algum tempo. O reencontro com o fusca ano 65 que o sonho lhe proporcionou permitiu-lhe  mergulhar no passado, assim como a viagem aos lugares da infância. Mesmo sem perceber, havia podido fazer um resgate de suas raízes, acrescentando o prólogo no livro de sua vida. Sentiu-se satisfeito.