segunda-feira, 7 de julho de 2014

Ferida mortal

Mesmo sem assistir a todos os jogos da Copa, é quase impossível não tomar ciência de seus resultados, dos times que merecem as preferencias dos que curtem futebol, daqueles que são temidos, mas respeitados, e assim por diante. O Uruguai, ao contrário da Argentina, desfruta a simpatia do povo brasileiro, que em sua grande maioria, torceu para que no segundo jogo desta equipe na Copa, e após sofrer uma derrota no primeiro, eles conseguissem ganhar, o que significaria eliminar a equipe da Inglaterra para não ser eliminado. Foi o que aconteceu, com dois gols marcados por seu artilheiro Luis Suárez. As manchetes das mídias reproduziram muitas vezes as cenas de suas celebrações dos gols. No primeiro, ele corria gritando, punhos cerrados, olhar raivoso a cobrar de todos o reconhecimento por seu esforço e a glória da vingança. No segundo, após repetir os mesmos gestos correndo em direção à torcida e encarando as câmeras de TV, ele sucumbiu à emoção e chorou. Nas entrevistas que concedeu no pós-jogo, parecia-lhe ser importante manifestar seu ressentimento com a imprensa em geral. Alguns que o conheciam pela atuação nos times europeus já sabiam de seu passado de “mordedor”, apelido cunhado graças às duas mordidas que dera em jogadores adversários quando jogava para um time da Holanda e alguns anos depois para um time da Inglaterra, ao qual ainda pertence. Nas duas vezes havia sofrido punições das Federações de Futebol destes países, ficando fora de alguns jogos. Se este passado assombrava sua convocação para a Copa, Suárez ainda teve que passar por um teste final, uma recente cirurgia no joelho que ameaçava deixa-lo de fora. Por isso seu “grito” de gol tinha um sabor de superação, de volta por cima. Eis que no jogo contra a Itália, cujo resultado valeu a classificação de seu time para as oitavas de final, Suárez “morde” o jogador italiano Chiellini, é afastado dos jogos da Copa, punido com multa e volta antecipadamente para o Uruguai, deixando sua equipe amargando não só o infeliz episódio, mas a sua falta. Da consternação à indignação, com direito a compaixão de alguns, a condenação sem piedade de outros e o assombramento pelo ato agressivo e intempestivo, a imagem do Suárez “mordedor” se espalhou mundo a fora, e foi ovacionada pelos chargistas, tanto os profissionais quanto aqueles que se deliciaram em criar suas próprias charges nas redes sociais. Mas grande parte da população procurava respostas ao ato que se repetia, fora de lógica, já que o esperado seria que ele tivesse enterrado este passado para sempre, diante dos prejuízos morais e profissionais que lhe causara. Como é possível? Quem  consegue explicar? Seria uma espécie de loucura? O episódio ainda gerou debates e polêmicas que incluíam os limites toleráveis de certas manifestações agressivas, comuns em partidas de futebol. Algumas delas foram relembradas, como a cabeçada do jogador francês Zidane em resposta a uma provocação maldosa de seu adversário italiano na Copa de 2006, que redundou em sua expulsão e ajudou a Itália a conquistar o título de campeã. Detalhe: Zidane não foi punido pela Fifa, o que parece colocar sua infração a um nível mais suportável para todos. Sabemos que na sociedade moderna a convivência entre as pessoas, matriz importante da manutenção da “civilizaçao”, é mantida por pactos sociais que garantam minimamente os direitos e a liberdade de cada um. A cada era em que a barbárie se impõe, como nas guerras e outros conflitos, somos convocados a repensar a civilização, ou seja, as normas que inventamos para sua manutenção. A grande maioria dos Estados atuais é democrática, assim como suas instituições, mas precisam manter sistemas de punições que sirvam como modelos e valores que representem as expectativas que temos para a continuidade da vida social. Em geral o infrator é aquele que quebra este contrato, sai do pacto social e volta ao estado de natureza. Ao fazê-lo, ele provoca um sentimento de indignação em todos que às duras penas mantêm este pacto, sentimento este que justifica o desejo de punição pelo seu crime. Ele não merece proteção! Pelo leque de reações que Suarez provocou, no entanto, podemos dizer que em nossa era, para além das medidas e limites que as normas sociais impõem, admitimos que o mundo interno de cada um seja tumultuado e possa ser muito desorganizador. A mordida é uma reação bastante primitiva, muito utilizada pelos pequenos quando se sentem ameaçados e com raiva, mas consensualmente rejeitada e reprimida por todos os adultos desde cedo, na expectativa que eles se submetam ao processo civilizatório, o que explica o estranhamento deste ato quando praticado por um adulto. No entanto, se a punição da Fifa a Suárez foi considerada excessiva para muitos, é bem provável que a pior parte de sua pena seja conviver com a vergonha e a humilhação de não ter conseguido evitar tal comportamento e quem sabe participar com a Celeste da conquista do campeonato mundial.