Mesmo sem assistir a todos os jogos da Copa, é quase
impossível não tomar ciência de seus resultados, dos times que merecem as
preferencias dos que curtem futebol, daqueles que são temidos, mas respeitados,
e assim por diante. O Uruguai, ao contrário da Argentina, desfruta a simpatia
do povo brasileiro, que em sua grande maioria, torceu para que no segundo jogo
desta equipe na Copa, e após sofrer uma derrota no primeiro, eles conseguissem
ganhar, o que significaria eliminar a equipe da Inglaterra para não ser
eliminado. Foi o que aconteceu, com dois gols marcados por seu artilheiro Luis
Suárez. As manchetes das mídias reproduziram muitas vezes as cenas de suas
celebrações dos gols. No primeiro, ele corria gritando, punhos cerrados, olhar raivoso
a cobrar de todos o reconhecimento por seu esforço e a glória da vingança. No
segundo, após repetir os mesmos gestos correndo em direção à torcida e
encarando as câmeras de TV, ele sucumbiu à emoção e chorou. Nas entrevistas que
concedeu no pós-jogo, parecia-lhe ser importante manifestar seu ressentimento
com a imprensa em geral. Alguns que o conheciam pela atuação nos times europeus
já sabiam de seu passado de “mordedor”, apelido cunhado graças às duas mordidas
que dera em jogadores adversários quando jogava para um time da Holanda e
alguns anos depois para um time da Inglaterra, ao qual ainda pertence. Nas duas
vezes havia sofrido punições das Federações de Futebol destes países, ficando
fora de alguns jogos. Se este passado assombrava sua convocação para a Copa,
Suárez ainda teve que passar por um teste final, uma recente cirurgia no joelho
que ameaçava deixa-lo de fora. Por isso seu “grito” de gol tinha um sabor de
superação, de volta por cima. Eis que no jogo contra a Itália, cujo resultado
valeu a classificação de seu time para as oitavas de final, Suárez “morde” o
jogador italiano Chiellini, é afastado dos jogos da Copa, punido com multa e
volta antecipadamente para o Uruguai, deixando sua equipe amargando não só o
infeliz episódio, mas a sua falta. Da consternação à indignação, com direito a
compaixão de alguns, a condenação sem piedade de outros e o assombramento pelo
ato agressivo e intempestivo, a imagem do Suárez “mordedor” se espalhou mundo a
fora, e foi ovacionada pelos chargistas, tanto os profissionais quanto aqueles
que se deliciaram em criar suas próprias charges nas redes sociais. Mas grande
parte da população procurava respostas ao ato que se repetia, fora de lógica,
já que o esperado seria que ele tivesse enterrado este passado para sempre,
diante dos prejuízos morais e profissionais que lhe causara. Como é possível?
Quem consegue explicar? Seria uma
espécie de loucura? O episódio ainda gerou debates e polêmicas que incluíam os
limites toleráveis de certas manifestações agressivas, comuns em partidas de
futebol. Algumas delas foram relembradas, como a cabeçada do jogador francês
Zidane em resposta a uma provocação maldosa de seu adversário italiano na Copa
de 2006, que redundou em sua expulsão e ajudou a Itália a conquistar o título
de campeã. Detalhe: Zidane não foi punido pela Fifa, o que parece colocar sua
infração a um nível mais suportável para todos. Sabemos que na sociedade
moderna a convivência entre as pessoas, matriz importante da manutenção da
“civilizaçao”, é mantida por pactos sociais que garantam minimamente os
direitos e a liberdade de cada um. A cada era em que a barbárie se impõe, como
nas guerras e outros conflitos, somos convocados a repensar a civilização, ou
seja, as normas que inventamos para sua manutenção. A grande maioria dos
Estados atuais é democrática, assim como suas instituições, mas precisam manter
sistemas de punições que sirvam como modelos e valores que representem as
expectativas que temos para a continuidade da vida social. Em geral o infrator
é aquele que quebra este contrato, sai do pacto social e volta ao estado de
natureza. Ao fazê-lo, ele provoca um sentimento de indignação em todos que às
duras penas mantêm este pacto, sentimento este que justifica o desejo de
punição pelo seu crime. Ele não merece proteção! Pelo leque de reações que
Suarez provocou, no entanto, podemos dizer que em nossa era, para além das
medidas e limites que as normas sociais impõem, admitimos que o mundo interno
de cada um seja tumultuado e possa ser muito desorganizador. A mordida é uma
reação bastante primitiva, muito utilizada pelos pequenos quando se sentem
ameaçados e com raiva, mas consensualmente rejeitada e reprimida por todos os
adultos desde cedo, na expectativa que eles se submetam ao processo civilizatório,
o que explica o estranhamento deste ato quando praticado por um adulto. No
entanto, se a punição da Fifa a Suárez foi considerada excessiva para muitos, é
bem provável que a pior parte de sua pena seja conviver com a vergonha e a
humilhação de não ter conseguido evitar tal comportamento e quem sabe participar
com a Celeste da conquista do campeonato mundial.