terça-feira, 13 de junho de 2017

Os ciúmes infantis

Os ciúmes infantis

Gisela Haddad


Dor-de-cotovelo
Caetano Veloso

O ciúme dói nos cotovelos
Na raiz dos cabelos
Gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
E o estômago vão e sem fome
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço
Acende uma luz branca em seu umbigo
Você ama o inimigo
E se torna inimigo do amor
O ciúme dói do leito à margem
Dói pra fora na paisagem
Arde ao sol do fim do dia
Corre pelas veias na ramagem
Atravessa a voz e a melodia
A chegada de mais um bebê na família costuma mobilizar os pais no sentido de evitar que o mais velho sinta ciúmes do mais novo. Alguns pais se empenham bastante nisso, preparando o irmão ou irmã mais velha de forma a tentar assegurá-lo de que ele é amado, seguindo passos e regras que acreditam poder eliminar este desconforto causado pela perda de um lugar de privilégio. Às vezes o empenho pode ser excessivo sugerindo uma tentativa de negar por parte de um dos pais ou dos dois, o fato de que  o ciúmes seja inevitável. Podemos dizer que a maneira como os pais vivem a eminência dos ciúmes entre os irmãos está ligada  a sua própria história  e o significado desta trama em sua infância. Dizer que os ciúmes são humanos é redundante. Assim como o luto, os ciúmes é um afeto que faz parte da vida subjetiva de todos, provoca sentimentos de dor e aciona o medo da perda do amor dos pais, no caso de um novo nascimento. Dependendo de como ele será gerenciado, suportado ou significado para a criança poderá ou não desembocar em sintomas e inibições ou definir a maneira como ele irá se relacionar com as pessoas.

Ciúmes, famílias atuais, pais.

Os ciúmes é um afeto difícil de suportar. Sentir-se excluído é extremamente doloroso, pois nos remete a nossa perda originária, ao elo inicial com a mãe vivido como capaz de nos completar plenamente. A perda da exclusividade acarreta a necessidade de renúncias e sacrifícios que necessitam ser negociados no seio familiar e nas novas possibilidades que a criança desvenda em seu futuro que lhe prometem o retorno deste “amor perdido”. Neste sentido o ciúme é a base das futuras relações da criança com os outros.
Quando nasce um irmão esta perda é acionada e a criança ora deseja retornar a este lugar imaginário de completude, ora se compraz de suas novas aquisições no confronto com este semelhante. O nascimento de um irmão é raramente vivido com indiferença e em geral quando isso acontece é porque os próprios pais não podem deixar um espaço para que as palavras e os atos da criança pudessem expressá-lo. Neste caso o ódio recalcado volta-se contra a própria criança, que fica sem os recursos necessários para enfrentar as situações de competição ou concorrência, evitando-as ou colocando-se como indiferente. É muito comum o novo irmão ser alvo de ódio e amor por parte do mais velho, que ora deseja destrui-lo, ora deseja ser ele. Se o nascimento do irmão aciona a demanda de amor absoluto e pleno na criança, isso precisa ser conhecido e não sufocado. Mas não é tarefa fácil.
De qualquer forma o ciúme é estruturante e precisa ser encenado no seio da família. Esta encenação da destruição do outro é necessária para que a agressividade possa ser expressa. Os pais são essenciais nesta encenação e suportar ou não esta encenação definirá o significado que esta terá para cada um deles em sua infância. Será na maneira como as manifestações de ciúmes serão tratadas, se com humor, com palavras que possam traduzir os sentimentos, com limites certeiros ou se com censura excessiva ou respostas agressivas.
A agressividade poderá ou não ser absorvida pelos jogos e dizeres, tornando-se ou não compreensível e digerível. Neste sentido fraternidade e parentalidade se articulam. Como os pais só conseguem responder aos ciúmes de seus filhos com sua própria história, podemos dizer que o caminho da socialização passa pela experiência dos[g1]  ciúmes.
O processo de instauração do semelhante passa pela relação com o irmão, que estabelece a horizontalidade das relações. Neste sentido, a rivalidade entre os irmãos teria uma função positiva na constituição do sujeito, na produção do semelhante. Além da rivalidade pelo amor dos pais, o irmão é rival em relação a sua própria imagem narcísica e pode funcionar como duplo tanto pela máxima semelhança quanto pela diferença inevitável.Neste sentido o irmão força o rompimento da prisão especular, do idêntico a si mesmo, assim como balança o sentimento de ser o objeto de desejo da mãe.
O que muda nas famílias atuais?As novas composições familiares com novos pais e/ou novos irmãos favorecem a fraternidade ou a convivência entre os irmãos?
Os ciúmes e o sentimento fraterno de cumplicidade e parceria não são excludentes. Convivem. Os ciúmes entre irmãos precisam ser vividos, enfrentado, negociado. É necessário que cada irmão lute por um lugar na família e isso necessariamente passa pelo desejo de destruir, agredir, etc. Só lutando eles poderão aprender a dividir espaços e carinhos, resolver conflitos às vezes na guerra, às vezes na paz. Em geral o irmão pode significar um acréscimo na experiência subjetiva da criança.
Quando os ciúmes não são explicitados é sinal que a criança não foi acompanhada na expressão de seus sentimentos, que precisaram ser calados. Isso pode acarretar um não saber sobre si, sobre sua intimidade.
O ciúme expressa o desejo de controlar e possuir unicamente para si a pessoa que se quer bem. Nasce de uma demanda de exclusividade, do desejo de ser tudo para alguém, da situação de não suportar dividir a atenção da pessoa amada com mais ninguém e  traz consigo uma grande angústia de ser excluído, sentir-se fora dos jogos amorosos de nosso bem-amado e correr o risco de perder sua atenção e seu amor. Uma das tarefas mais difíceis do crescimento é superar a forma infantil de amar, que permanece pulsando na penumbra. A criança atemporal que vive escondida em nós é exclusivista, possessiva, onipotente e não quer saber de autonomia e independência do outro.  O adulto precisa conter, de forma transfigurada, a intensidade infantil, povoada de indestrutíveis desejos de perfeição, posse, exclusividade e controle. Há em nós uma criança cheia de onipotência, raiva, desespero, desamparo, medo de abandono: ela luta com seus fantasmas bons e maus, com suas fantásticas figuras imaginárias - as imagos que criadas que não a deixam em paz.

Texto criado para Entrevista sobre ciumes entre irmãos
Programa Fantástico 2005


 [g1]

segunda-feira, 12 de junho de 2017

A cura da loucura

A cura da loucura

Gisela Haddad

O título acima é intencional ao pretender um debate desta conjunção entre cura e loucura que para nós parece tão lógica, mas que nem sempre existiu na história da humanidade. A loucura nem sempre foi vista como o que foge a normalidade e nem sempre esteve associada à necessidade de cura, embora a partir do final da Idade Média sua história se confunda com a história de uma exclusão social.
A loucura está associada ao mental, ao psíquico. O psíquico que vem da palavra grega Psychê  e que quer dizer alma,foi desde os gregos, objeto de estudos. 

Um pouco de História: da Antiguidade ao Moderno

Espírito, alma, psychê---------------------------Razão

O problema da existência e do sentido da vida já estava no cerne do pensamento dos filósofos gregos, que questionavam a diferença entre coisas reais ou as coisas imaginadas e o saber e a verdade. Platão já vislumbrava o mundo visível (das aparências) e o mundo inteligível (das idéias). Embora a razão seja consensualmente  vista como o que diferencia o homem dos animais e permite-lhe  sobrepor-se aos seus instintos irracionais, o conceito de razão articulado por Platão  difere da noção de razão ocidental moderna, que não só deslocou a razão da alma humana como opôs  razão e alma.
Para os gregos, a  consciência do ser humano quanto à sua própria alma, deveria torná-los capaz de compreender as especificidades da condição humana.Entretanto pode se detectar divergências na maneira como era explicada tanto a origem quanto o sentido da alma e a da razão. 
Platão não só postulou a imortalidade da alma, idéia que foi depois utilizada pelo cristianismo, como a concebia separada do corpo.
Já Aristóteles via a alma como mortal e pertencente ao homem e ao seu corpo. Enquanto Platão via a razão como possibilidade de superar o mundo empírico e descobrir uma ordem transcendental, Aristóteles achava que a razão levava os homens a descobrir uma ordem imanente no próprio mundo empírico. Alguns teóricos apontam em Aristóteles uma primeira tentativa de sistematizar um saber sobre o mundo psíquico humano, que será retomado principalmente a partir da Renascença.
Tanto a revelação cristã como a razão aristotélica ajudaram na formação da visão do mundo do homem medieval. O Cristianismo originou novas concepções de vida, do homem e de Deus, que desafiaram o pensamento filosófico. Fazia-se necessária uma nova sistematização, elaborada a partir dos problemas já pensados pela filosofia grega e pagã, conjugados com os propostos pelo Cristianismo.  De cosmocêntrica ou geocêntrica, como na filosofia grega (principalmente a aristotélica), a filosofia cristã passa a homocêntrica, descobrindo que o seu verdadeiro problema é o homem; assim, dois grandes temas irão nortear a filosofia medieval: o homem e Deus. O ponto de viragem está na personalização do Logos, do divino. O Logos, que, na filosofia grega, se confundia com a estrutura impessoal, harmoniosa e divina do cosmos, vai, com o cristianismo, identificar-se com uma pessoa concreta - Cristo - com a promessa de que vamos ser salvos não só por uma pessoa, Cristo, mas também enquanto pessoas.
Durante os séculos cristãos podemos destacar dois pensadores cristãos que beberam  nas fontes  da filosofia grega :  Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. 
Santo Agostinho foi o primeiro filósofo cristão a tentar uma conciliação entre a razão e a fé, entre a filosofia pagã e a fé cristã, empenhado em dar uma explicação racional aos dogmas cristãos. Assim como Platão, concebia o homem dividido entre a alma e o corpo, e acreditava ser  a alma  a sede da razão. Para ele as verdades da fé não podiam ser demonstráveis,mas cabia à razão humana demonstrar  o acerto de se crer nelas. A razão relaciona-se duplamente com a fé: é necessário compreender para crer e crer para compreender.
Muitos séculos depois, São Tomás de Aquino já em um período mais conturbado social e politicamente assiste ao inicio dos questionamentos sobre a ideologia católica e os conhecimentos produzidos por ela nas relações entre o homem e Deus, movimento que culminará com a Reforma Protestante. Nas universidades da época havia uma grande difusão do pensamento aristotélico, que concebia a alma como forma do corpo e, como o corpo, sem nenhum fim sobrenatural, idéias que contrariavam totalmente a doutrina cristã, que apresentava uma alma imortal e um Deus criador e providente. São Tomás de Aquino se propõe a cristianizar  Aristóteles, construindo um sistema filosófico que, até hoje, é a base da filosofia católica. Partindo da razão e da fé, Tomás de Aquino, dizia não pode haver contradição entre ambas, porque as duas viriam de Deus. A verdade natural diz respeito à razão e a verdade sobrenatural, à fé. Com tal afirmação, ele não separava religião e filosofia, mas atribuía a cada uma delas um campo específico de estudo, mostrando que são distintas uma da outra, embora ambas devessem colaborar, já que há verdades que concernem à fé e à razão, como a existência de Deus e a imortalidade da alma. 
O reconhecimento do poder da razão para a aquisição do conhecimento natural  antecipou o humanismo renascentista. O homem renascentista poderia ser livre sem ser preciso ser religioso ou nobre, bastando que fosse rico. A liberdade do homem passa a refletir no seu conceito de universo. Apesar das reações da  igreja, que fortaleceu a ação inquisitória sobre os novos hereges, a busca do conhecimento sairá vitoriosa.
Embora protagonizando séculos de uma doutrina cristã dominante, a Idade Média é rica em acontecimentos, debates, lutas ideológicas e pensamentos religiosos importantes. Uma das heranças cristãs mais importantes seria seu acento no homem e não no cosmos. O cristianismo moveu a moral para o interior do homem e criou a necessidade de uma consciência crítica e individual: O que decide o que é moral e imoral não seriam mais os dons naturais, mas o uso que se fariam deles. Com isso, está implícito que o homem não deveria valorizar sua natureza e sim era livre para escolher sua fé e mudar sua vida. Muitas de suas práticas exigiam de seus seguidores um exercício de compromisso individual com sua fé, às vezes checada através de confissões ou reflexões sobre suas ações ou pensamentos. A Idade Média Cristã produziu uma grande quantidade de discursos referentes ao corpo e à sexualidade por meio do incentivo a confissão como forma de manter o controle sobre a vida religiosa e cotidiana do homem e da mulher medieval.  Sem dúvida, tais práticas inauguravam um contato com o si mesmo. Ao dar mais peso ao foro interior de cada individuo, estava plantada a base do que viria a ser o individualismo social moderno. Além disso, a tradição católica imprimiu um valor ao amor. Tradicionalmente, o eu dissolver-se-ia no grande Todo impessoal, mas o cristianismo promete a imortalidade na ressurreição dos mortos, garantida pelo Deus que é Amor e que pede o amor entre todos os homens.
A reforma protestante trará novas possibilidades ao mundo europeu, promovendo um desvencilhamento do poder da Igreja Católica com os governos, o que lhes permitirá uma liberdade não só para prescrever a fé local, como para proclamar suas leis protetoras da ordem social.

       # 1300 - Dante escreve “A Divina Comédia”.
       # entre 1475 e 1478 – Leonardo da Vinci pinta o quadro “Anunciação”.
      # 1484 – Boticelli pinta o “Nascimento de Vênus”.
       # 1501- Michelangelo esculpe o “Davi”.
       # 1513- Maquiavel escreve “O Príncipe”, obra clássica da política.

O Renascimento anuncia as transformações radicais que o mundo europeu irá viver. Com as grandes navegações e a descoberta de novos continentes, povos e culturas, a urbanização das cidades e uma demanda de novos serviços, o homem começa a se empenhar para sair do obscurantismo e da ignorância e constituir um conhecimento sobre si e o mundo, livre dos dogmas religiosos. A passagem da era das trevas para as luzes é marcada por um projeto racional, sendo Descartes seu maior expoente. Ícone da modernidade, o projeto cartesiano aposta em seu método racionalista e na constituição de um sujeito do conhecimento. Nasce a ciência e o homem racional que privilegia a razão, única fonte de conhecimento e certezas. Na base da preocupação moderna está a necessidade de delimitar, objetivar, classificar, ordenar, registrar e explicar o que puder ser observado  ou categorizado. Mas a crença de que a razão, a ciência e o conhecimento seriam capazes de dar conta de todos os aspectos da vida humana, admitia constestações, e dentre estas podemos citar as ideias de Marx e Freud. No campo político, Marx tornou relativa a idéia de uma razão livre e autônoma ao formular a noção de ideologia - o poder social e invisível que nos faz pensar como pensamos e agir como agimos. No campo da psique, Freud abalou o edifício das ciências psicológicas ao descobrir a noção de inconsciente - como poder que atua sem o controle da consciência.
As respostas às perguntas que o homem fará para se conhecer ou conviver com os ruídos de seu corpo,  alimentam a dimensão do sensível. O Romantismo será o maior representante das paixões humanas na modernidade, e avançando paralelo ao cientificismo,  irá valorizar os sentidos que nutrem a razão e promover o aparecimento de uma dimensão de interioridade. Tem início a cultura do psicológico e as ciências humanas em geral. Vale notar que o eixo ideológico da cultura ocidental moderna privilegia o interesse individual sobre os compromissos coletivos. Ao contrário da visão tradicional de mundo, marcado pelo sagrado, pela transcendência e pela identidade previamente estabelecida, a especificidade do moderno é um mundo de sujeitos autônomos individualizados.

A loucura

Sendo tão antiga quanto a humanidade, até a Idade Média a loucura era vista como diversidade, carregada de conteúdo místico e tratada através de exorcismo ou sacrifício. Em seguida  passou a exercer um certo fascínio pelo saber que dela decorria e assumir um estatuto de espaço oracular por guardar  uma verdade sobre o humano.  Loucura e razão passaram a ter uma relação muito próxima e até confundirem-se entre si.
A partir da Renascença no século XVI, a face da loucura passa a assombrar a imaginação humana. Com as mudanças sócio-politicas , os espaços sociais e de trabalho se modificam consolidando um processo de segregação de todos os que ameaçam a ordem social: mendigos, doentes, loucos, ociosos e prostitutas são excluídos e confinados. A miséria e a loucura deixam de ter a positividade  mística herdada pela Igreja  e passam a ser um obstáculo contra a boa marcha do Estado. Sem a referencia do sagrado para os miseráveis e loucos, estes passam a ser confinados por serem ociosos  ou incapacitados para o trabalho. Tal confinamento interna no mesmo lugar o enfermo, o libertino, a prostituta, o imbecil e o insano. Com o desenvolvimento da medicina, esta confusão entre loucos e criminosos  passa a ser revista e a loucura começa a ser entendida como uma limitação humana que provocava incapacitação para o trabalho.
Com a revolução francesa a reforma política econômica e administrativa nas relações sociais faz com que a loucura deixe de ser um objeto do poder judiciário e passe a ser encargo da medicina. O projeto moderno de separar o certo do errado e a norma do desvio coloca a loucura na mira dos que apostam no aprimoramento do espírito humano e no entendimento da loucura. É Pinel quem - há mais de 200 anos - encabeça um movimento de separação do louco em relação aos criminosos e a transformação  da loucura em doença mental, o que promove o nascimento da Psiquiatria como ciência e do asilo como espaço de tratamento da alienação mental. A loucura passa a ser objeto de uma terapêutica e de um saber médico, uma doença específica, distinta das doenças de órgão e curável por métodos apropriados. Os loucos passam a ser encarados não mais com poderes sobrenaturais e sim com limitações humanas o que lhes dava possibilidades de um retorno à razão. Os métodos utilizados baseavam-se na idéia de desvio, sendo então proposto um tratamento que visava eliminar as idéias loucas através de disciplina, ameaças e recompensas. A estratégia de tratamento utilizada visava silenciar as manifestações que passam a ser vistas como doenças.
Os médicos assumem o lugar de tutor  desta população insensata, estranha e irresponsável, com direitos para receitar restrições  e regular sua liberdade. Sai o desatino entra a desrazão, depois tornada patologia. Embora sutil,o que fica aqui cindido é a possibilidade de interrogar o desatino, ou melhor a verdade sobre a loucura. A Psiquiatria nasce cuidando não dos caminhos desta desrazão e sim com o objetivo de resgatar a razão. Neste sentido é negada ao louco a faculdade de responder pelo que diz e de exercer os atos da vida social e civil.
A Psicanálise de Freud nasce no vácuo aberto pela ciência e a razão, espaço das paixões da alma humana. A complexidade do psiquismo humano não aceitava os critérios de objetividade da ciência. Médico neurologista, Freud se interessa pelos estudos da histeria que Charcot desenvolve na França, o que o faz  seguir seus passos junto a Breuer, seu mestre e colega na Alemanha. Aos poucos, Freud passa a perceber que em seu discurso, as histéricas revelavam motivações e causas inconscientes para seus sintomas, ou seja, fora de seu conhecimento consciente. Ao apontar a força do inconsciente ou a dimensão da alma inacessível por recursos racionais, Freud promovia uma ferida na proposta racional moderna e indicava a importância das perturbações do espírito na vida de cada indivíduo.
Claro que nestes mais de 200 anos que nos separam da obra de Pinel, o médico francês que ligou seu nome à libertação dos loucos, muitas  mudanças ocorreram no tratamento da loucura, principalmente  a partir do questionamento da própria ordem psiquiátrica feito nas ultimas décadas.
As comunidades terapêuticas, o movimento da antipsiquiatria, a psicoterapia institucional, a psiquiatria democrática realizaram uma critica profunda da cultura asilar e manicomial. Mesmo que os asilos ainda permaneçam aqui e acolá, as transformações ocorridas na assistência psiquiátrica foram inúmeras. O que hoje leva o nome de  Reforma Psiquiátrica pretendeu tanto desconstruir a cultura manicomial  hegemônica, criada em torno do asilo, suas práticas de exclusão e  redução da loucura à doença mental, quanto criar um novo campo de atenção psicossocial. Reformular as práticas terapêuticas, criar leis , mudar a imagem da loucura no imaginário social, no entanto, é um processo complexo que  aponta não só para  uma mudança política quanto clínica.
O deslocamento do louco como objeto humano desprovido de razão para um sujeito que precisa ser tratado  tanto  na sua dimensão psíquica como social (relação com a família, grupos sociais, escola, trabalho, comunidade e lazer) coloca em foco o seu sofrimento psíquico e uma perspectiva de cuidados e não de cura. Aqui no Brasil, após a reforma ocorrida na década de 90, proliferam  hospitais-dia,  lares abrigados e  CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) que substituíram os antigos asilos e que oferecem uma alternativa de tratamento multidisciplinar para a população carente.
A defesa da cidadania do louco, de seus direitos, a exigência de respeito social à sua diferença, a criação de espaços de sociabilidade para ele, estão entre as reivindicações e conquistas mais buscadas pelos profissionais de saúde  que lutam pela inserção do louco na cultura.
O Acompanhante Terapêutico, atividade recente que vem ampliando sua difusão, tem se mostrado  um bom dispositivo  na tentativa de inserção do louco na sociedade, e faz parte de uma preocupação atual dos profissionais que visam sua reabilitação psicossocial inclusive como uma exigência ética, para a (re) construção do exercício da cidadania e de um lugar efetivo  na casa, no trabalho e na rede social.
Mas é importante apontar a complexidade desta tarefa que pretende intervir na existência e no sofrimento destas pessoas, e não confundi-la com mero entretenimento, ou com adestramento. Vale notar que, apesar da criação desta rede, os modos tradicionais de tratar a loucura ainda permanecem e isto também se deve à reincidência da resistência humana  em contestar sua relação com o louco e a recusa em ouvir sua linguagem perturbadora e aparentemente estranha.
Porque a loucura mantém esta dimensão de repudio, de estranheza, e muitas vezes de fascínio?
O estigma social que caracteriza a história da loucura  diz respeito a manifestação radical de uma diferença. A exclusão do louco é quase sempre resultado da negação que a sociedade faz de sua própria loucura, que ao ser depositada na figura do louco permite à comunidade, por oposição  imaginar-se sã.
Há pouco mais de 100 anos, ao apontar os caminhos complexos dos sintomas psíquicos, Freud  mostrou que não seria preciso opor a loucura à normalidade.Na verdade a loucura não deveria ser associada ao registro do erro e sim a um modo particular do sujeito dizer sobre si. Isto porque  a loucura mostra o que de certa maneira já estava no inconsciente de cada um. Os loucos seriam aqueles sujeitos  que  sucumbem a uma luta que seria a mesma para todos. Ao contrário da concepção psiquiátrica, Freud não só valorizou como escutou o discurso do psicótico e suas produções, e percebeu que este discurso falava dele, de seus desejos, ainda que ele mesmo não pudesse se reconhecer. O delírio, por exemplo, seria um veiculo de comunicação de seu sintoma, e paradoxalmente uma tentativa de cura. A escuta da loucura não marca apenas uma  possibilidade de humanização da relação do louco com quem o assiste ou com os demais, mas principalmente  um respeito a sua palavra e uma implicação efetiva na possibilidade dele poder fazer parte da sociedade. É isto que marca  a diferença com as assistências alienantes, que tratam o louco como  um objeto que não porta nenhum saber sobre si mesmo e que demanda cuidados de proteção definidos a priori tal e qual um bebê, o que o torna  refém de  uma prtica moral educativa. Perde-se assim  a escuta do novo, o reconhecimento e respeito pela diferença e cai-se em um cuidado formal, uma prática do exercício de caridade ou piedade. Se há comunicação entre razão e desrazão, isto permite desvendar a singularidade de cada sujeito no enfrentamento de um conflito que é de todos ainda que ganhe destinos diferentes. Como vimos os loucos ainda hoje exercem este duplo fascínio: ao mesmo tempo em que impõem aos cidadãos métodos efetivos para tratá-los e inseri-los na sociedade, recuperando sua autonomia e cidadania, mantêm sua condição de objeto de repúdio e de estranheza.

Estamira

Ao contrário de Bicho de 7 cabeças, que denuncia o sistema manicomial, Estamira é um filme cuja proposta de seu diretor é “escutar”, durante 4 anos, o que esta louca senhorinha tem a dizer sobre si, seu mundo, suas crenças, seus desejos, enquanto que vive entre sua casa e o lixão onde trabalha. 
Apesar de seu discurso expor uma percepção do mundo e de si confusa e delirante, (o psicótico precisa inventar sozinho um sentido para a sua presença no mundo)  muitas vezes é possível ouvi-la falar de questões que podemos identificar como nossas, tais como as que desvendam o desamparo humano social, econômico e político. A diferença entre as crenças e a visão de mundo de Estamira e as nossas é que as nossas são amparadas por uma credibilidade por serem compartilhadas pela maioria.
O filme não  pretende fazer denúncias sobre a exclusão e nem busca uma idealização do louco, mas coloca em evidência a humanidade da loucura, mostrando-a como uma possibilidade, por vezes a única, do sujeito  sobreviver.
O louco permanece sendo para a sociedade, alguém que recebe tanto nosso olhar compassivo como o de exclusão, zombaria ou ódio.
Em geral nosso ódio ou desprezo pelo diferente está ligado a nossa necessidade de expulsar em nós mesmos a semelhança que nos assombra.
No plano  cultural e menos pessoal, a loucura interroga diretamente a capacidade dos humanos de estarem juntos, se agruparem, fazer trocas, ou mesmo  viver em sociedade, ao nos confrontar com os enigmas do que acontece no espaço entre humanos, quando os códigos sociais convencionais falham.

A psiquiatria clínica contemporânea - neurociências e psicofármacos

Os tempos de loucura e manicômio fazem parte de um passado na psiquiatria atual. A psiquiatria hoje não transita pelo espaço fechado do asilo nem faz uma distinção rígida entre a loucura e a normalidade, mas na indeterminação dos limites entre o normal e o patológico. Depressão, pânico, hiperatividade, fobia social, impotência, são alguns dos mais freqüentes transtornos mentais. A impressão é a de que assim como a medicina que ao invés da saúde trata a doença, a psiquiatria segue o mercado dos psicofármacos e passa a servir as desordens ou as dificuldades da existência que surgem no desenho do corpo, da performance ou da personalidade. Tomemos como exemplo as Depressões e seu tratamento por antidepressivos. Segundo a psiquiatria, os antidepressivos contem uma substância que aumenta a quantidade de um neurotransmissor no cérebro, a serotonina, que seria responsável pelo bom humor e por isso capaz de aliviar a tristeza e a morosidade que se manifestam numa variedade de situações de vida e de quadros clínicos. Mas o uso dos antidepressivos é empírico. A definição padrão da depressão é comportamental, afetiva e discursiva, não química, pois é difícil verificar o nível de serotonina no cérebro das pessoas. É possível que muitas depressões se enquadrem ao padrão comportamental e afetivo estabelecido, mas  se expressem por alterações químicas diferentes da insuficiência de serotonina; Assim como haveria depressões que não se expressam pela insuficiência da serotonina, ou ainda que mesmo sem um quadro de depressão, tristezas se expressem por uma falta de serotonina. Ao receitar antidepressivos, portanto o médico não sabe em qual destas possibilidades seu paciente se enquadra. Não estamos com isso fazendo qualquer discurso contra os psicofármacos e sim quanto ao uso indiscriminado, além de questionarmos  a possibilidade do paciente se inteirar dos motivos de sua tristeza.

O sujeito contemporâneo

Entre o inicio da modernidade e os tempos atuais o mundo sofreu mudanças bastante significativas. Estivemos falando sobre a psique humana sob uma perspectiva histórica. Vimos como desde os filósofos gregos, havia uma preocupação em contrapor o homem ao animal e a natureza com a cultura. Sem dúvida, depois de muitos séculos de existência, a humanidade pode se fazer perguntas novas sobre o sentido de sua existência e sobre o seu destino. Por outro lado a cultura humana construída até aqui, guarda um acervo diferenciado nos modos de existir nas diferentes épocas da historia. Podemos dizer que o subjetivo é o espaço da experiência humana em relação ao simbólico de cada cultura, expressado através de seus impulsos, sua conduta, expectativas crenças e valores. As formas de subjetivação são historicamente determinadas e as mudanças no contexto político-econômico interferem na criação de certos ideais, na valorização de modelos de pensamento, na propagação de certos repertórios de conduta, na difusão de metáforas que se incorporam ao senso comum, enfim, na criação de novos jogos de linguagem, repertórios de sentido ou jogos de verdade que dão consistência ao imaginário de uma época, imaginário por meio do qual o mundo, a existência e a experiência pessoal ganham consistência e significação. Cada cultura produz uma estética, etiqueta e ética.
É assim que as formações sociais são uma importante estrutura na definição do saber sobre os sujeitos, seus conflitos e significantes, ou seja, sobre a condição humana.
A ideia de progresso humano como percurso racional sofreu um duro golpe com a ascensão dos regimes totalitários, como o nazismo, o fascismo e o stalinismo. O desencanto tomou o lugar da confiança que existia anteriormente na idéia de uma razão triunfante. Para fazer face a essa realidade, um grupo de intelectuais alemães elaborou uma teoria que ficou conhecida como teoria crítica. Esse pensamento distingue a razão instrumental da razão crítica. O que seria a razão instrumental? Aquela que transforma as ciências e as técnicas num meio de intimidação do homem, e não de libertação. E a razão crítica? É a que estuda os limites e os riscos da aplicação da razão instrumental.

Conferência realizada na Semana de Psicologia da UNIP Sorocaba  2009


1- Para os gregos, o homem é um ser natural, dotado de corpo e alma, esta possuindo uma parte superior e imortal que é o intelecto ou razão; para os cristãos, o homem é um ser misto, natural por seu corpo, mas sobrenatural por sua alma imortal;

2- Para os gregos, a liberdade humana é uma forma de ação, isto é, a capacidade da razão para orientar e governar a vontade, a fim de que esta escolha o que é bom, justo e virtuoso; para os cristãos, o homem é livre porque sua vontade é uma capacidade para escolher tanto o bem quanto o mal, sendo mais poderosa do que a razão e, pelo pecado, destinada à perversidade e ao vício, de modo que a ação moral só será boa, justa e virtuosa se for guiada pela fé e pela Revelação;

3- Para os gregos, o conhecimento é uma atividade do intelecto (o êxtase místico de que falavam os neoplatônicos não era algo misterioso ou irracional, mas a forma mais alta da intuição intelectual); para os cristãos, a razão humana é limitada e imperfeita, incapaz de, por si mesma e sozinha, alcançar a verdade, precisando ser socorrida e corrigida pela fé e pela Revelação

Razão-----------------alma        razão, alma, transcendência
corpo---------mente                                 corpo-  gregos 
 ,                                                                           cristãos
                                                 razão, alma, imanência
                                                 razão se opõe a alma

razão------------alma 

loucura------------ desatino -------------------exclusão

loucura-------------desrazão-------------------doença

                                            normal

doença mental--------------                        cura
                                            patológico

Cura-------------------------mediciana              mal psíquico
                                         psicologia              mal somático

psicanálise------------------o “louco” é portador de sua verdade

psiquiatria atual------------sai a cura
psicologia                         entram os cuidados multidisciplinares
psicanálise                        promoção de saúde e socialização

                                          sai internação
                                          entra atendimento no “território”
                                          CAPs
                                          hospital dia

Referências Bibliográficas

Nascimento Júnior, A F , Fragmentos da historia das concepções de mundo na construção das ciências dadas certezas medievais as duvidas pré-modernas, in Revista Ciência & Educação, v. 9, n. 2, p. 277-299, 2003

FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. 1997. São Paulo, Perspectiva.
FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996.
________.(1893-5) “Estudos sobre histeria”. Em Obras completas, vol. II, Rio de Janeiro: Imago, 1996.




Fazer da psicanálise um ofício: sobre o início da clínica de um psicanalista

Fazer da psicanálise um ofício: sobre o início da clínica de um psicanalista

Gisela Haddad

É sempre bom participar de um debate a respeito deste ofício ao mesmo tempo polêmico e fascinante,  ao qual a maioria de nós escolheu investir e que nos cobra em troca um fazer, um pensar e um refletir incessante sobre a nossa condição humana. Este tipo de debate costuma contemplar os dilemas e aflições daqueles que iniciam sua formação em busca de se tornarem psicanalistas e das questões implicadas na iniciação de sua prática clínica. Em geral os textos que tratam deste tema são gestados geralmente nas instituições que se propõem a constituir um espaço de formação e transmissão da psicanálise ou daqueles que os escrevem, que também o fazem para tentar  sistematizar e organizar as diferentes dimensões aí implicadas.  Curiosamente os textos que abordam este tema são muito parecidos. Em quase todos encontramos tentativas de enumerar as complexas questões deste processo e fornecer algumas dicas para  aqueles que pretendem se aventurar neste oficio. Ou seja, reiteram que  o processo pelo qual alguém se autoriza ao exercício da psicanálise acontece no próprio percurso de formação no qual, além da aquisição e apropriação das conceituações teóricas, a análise pessoal desempenha um papel central. Que a análise não é suficiente para se tornar um analista. Que é preciso analisar e submeter a sua clínica à escuta apurada de um supervisor.   Uma frase comum a maioria dos textos me chamou a atenção e é a ela que eu havia pensado em me deter para iniciar nossa reflexão sobre os ossos deste ofício.
Assim como todos os analistas estão de acordo que viver uma análise é a condição principal para que alguém exerça o ofício de analista, todos afirmam não haver um manual em que estejam recenseados procedimentos para a investigação do inconsciente como prática terapêutica: não há um saber a priori.
Aquilo que a psicanálise insiste em revelar ao sujeito a sua revelia é parte integrante do saber e da intervenção psicanalítica, seu paradoxo e sua razão de ser. Eu só posso me considerar uma psicanalista se eu puder me submeter a uma analise com alguém que também se submeteu, etc. Tal e qual um ritual de passagem, esta transmissão, sempre via inconsciente,  está articulada de forma complexa ao modo de apreensão daqueles que escolhemos para serem nossos analistas. E isto é apenas uma ponta do iceberg.
É na intimidade de nossa análise pessoal que cada um se aproxima e se apropria do modo de operar da psicanálise. E são muitas as dimensões aí implicadas. É assim que podemos conhecer o trabalho de um outro analista. Também é como analisando que podemos verificar a realidade psíquica, reconhecer sua existência, experimentá-la. Uma experiência a portas fechadas, sem testemunhas, que não se ensina, e que é transmitida na medida em que são oferecidos sentidos possíveis aos nossos sintomas, sonhos e lapsos, na medida em que somos defrontados com nossas dores e resistências, que somos tomados pela transferência, nesta viagem em direção ao reconhecimento de nossos conflitos e desejos. Trilhar este caminho, portanto é uma experiência que se vive na carne, visceral e pessoal. É na clinica que a teoria se re-cria.Ela é o lugar disruptor e o motor da conceitualização teórica. Deitados no divã daquele que elegemos como nosso analista , vamos nos familiarizando com o método psicanalítico, que busca reconstruir nossa história psíquica, e  nos joga a incumbência de refazê-la (ou ressignifica-la) continuamente.
Os primeiros passos deste percurso para nos tornarmos analistas é também um trecho espinhoso de nossa prática clinica. Paralelo ao mergulho em nosso inconsciente,o contato com nossos pacientes nos lançam as mesmas questões, convocando-nos a revisitá-las sob diversos ângulos. Mas não é fácil tolerar as dúvidas a que estamos expostos quando elaboramos teoricamente nossos atendimentos clínicos ou escolher saídas para os impasses do campo transferencial. Ao fascínio que a maioria de nós sente no exercício da profissão de psicanalista se contrapõe profundos sentimentos de inadequação e despreparo pessoal, conceitual e técnico. É comum que apresentemos uma certa rigidez técnica e alguma confusão teórica, ou ainda que sacralizemos os textos, em uma tentativa de antecipação teórica que nos auxilie a suportar nossa aflição diante do não saber.
Mas o desejo de ser analista também nos coloca diante de questões de identidade, reconhecimento e pertinência, via a eleição da instituição, dos analistas, dos supervisores. É comum que elejamos Mestres, a quem atribuímos todo o saber psicanalítico. Nossa formação  carrega esta potencialidade identificatoria, que muitas vezes transforma o discurso teórico em dogma.
Por outro lado este árduo percurso rumo ao oficio de psicanalista não nos isenta de idealizá-lo como a possibilidade de vir a alcançar no seu saber  uma espécie de completude, de respostas a todas as perguntas. Neste sentido a Psicanálise deixa de ser apenas uma possibilidade de investigação humana para ocupar um lugar de verdade absoluta.
A meu ver este é o desafio que este ofício de psicanalista impõe hoje mais do que nunca. Se nos orgulhamos de poder compartilhar da excentricidade da psicanálise, que sempre pretendeu a desconstrução da majestade do eu, que visa o deslocamento do sujeito com relação ao submetimento acrítico aos ideais absolutos de seu tempo, que busca abrir a economia narcísica para outras e novas significações, também é verdade que a resistência a este saber insiste na cultura. Enquanto a psicanálise propõe não negar o irracional e o inquietante e sim legitimá-lo como produções autênticas do sujeito no campo do sentido, seguimos recalcando o barbarismo do desejo em nome de uma leitura "científica" e "limpa" dos movimentos da alma.  A cultura não cessa de produzir novas formas de repudio à castração. Somos avessos a ela.
Estou falando de um ideal referido a uma forma de pensar a psicanálise, um destino que cada um outorga ao movimento psicanalítico. Cada um de nós constrói este ideal como resíduo de processos identificatórios ocorridos em sua própria análise, nas experiências de supervisão, nas leituras dos textos, nas trocas com os pares, e eu sublinho, nas fronteiras com outros saberes.
Como contribuir para trazer à tona aquilo que a lógica de funcionamento social necessariamente oculta no imaginário? Como oferecer uma crítica às normas deste funcionamento social tendo como base a premissa ética contida na descrição que a psicanálise faz do sujeito ou a sua concepção da condição humana?
Para ilustrar um pouco estas inquietas questões me reporto a uma dissertação de mestrado a qual tive a oportunidade de assistir pela manhã na Fundação Getulio Vargas, cujo título Representações do somático e do psíquico na cultura de uma organização universitária e hospitalar, é um trabalho de pesquisa realizado por Cristiane Curi Abbud que trabalha na Unifesp e que  tentou traçar um mapa destas representações ao questionar quais os elementos da cultura das organizações hospitalares oferecidos a seus membros para que eles construam coletivamente representações sociais acerca do psíquico e do somático, e que elementos oferece para que tais representações sejam integradas, articuladas ou cindidas coletivamente pelos seus membros. Como a organização se estrutura para lidar com a ansiedade hipocondríaca, o medo de adoecer e de morrer?A pesquisa mostra que as organizações analisadas não dispõem de uma cultura que favoreça o processamento psíquico das angústias despertadas pela tarefa médica em geral, e tampouco pelas angústias despertadas pelos pacientes somatizadores. Tarefa que constantemente acena a possibilidade da morte, determinando como angústia central despertada, a hipocondria.
Quem sabe este seja um desafio àqueles que depois de percorrerem este árduo caminho de se tornar psicanalista, vêem-se diante da tarefa de emprestar sua escuta aos desvios de leitura de nossa condição humana que a cultura não cessa de produzir, tal como a leitura que se faz às portas fechadas.

Debate relizado no CEP (Centro de Estudos de Psicanálise) a convite de Karin de Paula 2012 


Sobre La Luna, de Bertolucci

Sobre La Luna, de Bertolucci

Gisela Haddad

Se há algo que não se pode negar deste filme é que ele não seja ousado. E como toda ousadia tem seu preço, ao buscar pelos blogs os comentários de pessoas que o assistiram conta-se nos dedos os que conseguem algum distanciamento das cenas de incesto. Em geral elas provocam um enorme desconforto e suscitam críticas desfavoráveis. Ou então são apontadas como corajosas pela quebra de tabus ou pelas tentativas de desmistificar o tema da sexualidade humana. Na locadora, diante de minha pergunta sobre o filme, o rapaz  respondeu com outra pergunta: aquele que tem cenas de incesto entre uma mãe e seu filho? O fato é que após 32 anos de sua estréia, o filme continua controverso, atual e provoca as mesmas celeumas.  Bertolucci costuma ser generoso ao falar sobre seus filmes, sobre as razões da escolha de seus temas, e sobre o papel do cinema em sua vida, praticamente uma continuação de sua poesia, ele mesmo filho de um poeta. Em entrevista, ele conta que um disparador para a realização deste filme foi uma recordação pessoal reproduzida no filme, numa das imagens do prólogo, em que ele, aos dois ou três anos, está sentado numa cesta presa ao guidão da bicicleta e ao olhar o rosto de sua mãe vê a lua no céu por trás dela. Era a partir desta lembrança “viva” que ele pretendia ao desenrolar o roteiro, que este pudesse fazê-lo compreender essa associação entre o rosto da mãe e a lua. Na mitologia Luna é o nome da deusa romana da Lua, equivalente a deusa grega Selene, irmã de Helios, o Sol e de Eos, a Alvorada. Protetora dos feiticeiros e magos, ela dirigia no céu um carro puxado por dois cavalos e exercia uma poderosa influência sobre os que faziam encantamentos de amor. 
Na poesia de Bertolucci, a lua, a mãe e a voz vão ser os representantes do inconsciente, do feminino e do primitivo. Bertolucci escolhe uma cantora de ópera para interpretar uma mãe incestuosa e a lua, como “guia” para permear a tragédia do labirinto edípico através da voz. Ainda no prólogo, o bebê está à mercê dos cuidados da mãe e é bastante expressiva a sua reação de desconforto quando ela coloca mel em sua boca. Nas palavras do diretor, “o mel, como o amor materno, é doce demais, um doce que pode ser excessivo e fazer engasgar a criança”. Ainda no prólogo, a cena dos três, pai, mãe e bebê tem tudo para ser edílica, com a paisagem mediterrânea, o sol, a música, mas Bertolucci privilegia o rosto da criança e sua aflição e para nós espectadores, sobra violência ao invés prazer. Também na cena em que Caterina (a mãe) põe um disco e convida Giuseppe (o pai) para dançar twist, ela interrompe e ignora a sogra, que estava tocando piano. A força desta cena será recuperada pela própria Caterina quando ela consegue perdoar Giuseppe por imaginar que ele ama mais a mãe do que ela, e com isso promover o reencontro do pai e do filho, abrindo novas vias de vida para Joe.
Ainda pelas palavras de Bertolucci, é um filme sobre os laços que movem, puxam e torturam os personagens. Podemos acrescentar que ele privilegia a ambivalência destes laços, dando força maior aos seus enganos. Douglas (o padrasto) protege e afasta Joe. Por seu lado Joe tenta separar o casal ao atrair um ou outro para si e conseguir a exclusividade. Caterina movimenta-se entre os dois homens, mas está totalmente absorta em seus interesses profissionais. É o choque vivido pela descoberta do vício do filho que desencadeará a descida aos infernos de sua condição de mãe, a errância de suas escolhas desesperadas, e o lento caminho em direção a alguma responsabilidade pelo destino de seu filho, de suas alternativas  como promotora de algum futuro possível a ele, ao devolver parte de sua história.
As cenas incestuosas entre mãe e filho não ficam sem um lugar. Apesar do desconforto que causa a todos nós (voltaremos a falar sobre isso depois) elas são parte deste “inferno” que ambos estão vivendo. A maternidade, a paternidade e a filiação são determinadas por critérios múltiplos, entre os quais predomina a dimensão simbólica, portanto, essas determinações não podem ser reduzidas ao critério biogenético.Embora quase todos aqui sabem que o tabu do incesto está na base da constituição da cultura por sua economia de troca de bens e de mulheres que funda a vida simbólica e social, para a psicanálise a interdição do incesto existe para barrar o excesso da pulsão que de outra forma tornaria insustentável a manutenção da cultura. Para Freud a proibição se origina menos pelo horror inspirado pelo incesto, e mais pelo desejo que ele suscita, lembrando com isso o poder de coerção que a sexualidade humana tem sobre a vida psíquica. O incesto é de fato mobilizador de fantasias e atos. E podemos dizer que sua força tem uma origem para todos. Desde o final da gravidez a voz e a palavra materna são “ouvidas” pelo feto e o que se passa entre os corpos faz da mãe uma estrutura afetiva antes de ser uma estrutura de parentesco. Portanto é sobre esta tentação incestuosa que se necessita de uma lei que interdite sua atuação. Isto porque embora necessária ao bebê, cabe à mãe renunciar a esta fusão com seu bebê, ao permitir a introdução da lei seja pelo pai, seja pelas vicissitudes da vida. Por outro lado, essa “construção” do incesto, mesmo sendo sexual em si, não adquire qualquer significação sexual consciente para a mãe, tanto que a cultura barra mais o desejo do pai, impelindo-o a ser o portador da lei e não o seu violador. Neste sentido a problemática do incesto sob o ponto de vista psicanalítico, é esta relação entre o corpo pulsional e a linguagem, o simbólico e o ato de nomear que está além do orgânico. A nomeação do ato incestuoso é que vai concretizá-lo como transgressivo e sua incidência depende de inúmeros fatores. Por exemplo, o significado que o filho toma em cada caso, a possibilidade de uma inserção na família no que diz respeito à filiação, às condições psíquicas dos genitores de poderem acolher esse desejo sem que esteja vinculado a um “que nada mude”- o que colocaria a criança num lugar de múltiplas impossibilidades, desde a falta de autonomia no registro dos pensamentos, impedindo-a de conhecer sua origem e de poder projetar no futuro suas referências identificatórias.
Freud diz que os primeiros desejos sexuais humanos são sempre de natureza incestuosa e que seu renascimento ou insuficiente recalcamento forma o núcleo de toda neurose.
É no processo de humanização que a proibição do incesto atua, estabelecendo lugares hierárquicos nos agrupamentos e nas gerações, permitindo o pertencimento familiar e o consequente processo de narcisização da criança pelos pais, para depois ter a possibilidade de ultrapassar as fantasias sexuais em relação aos genitores e se constituir como sujeito.
No filme há cenas de ternura entre os pais, a mãe e o filho. Mas quando sobra mãe e filho há uma mistura de amor-paixão-ódio. As paixões parricidas e incestuosas próprias da infância e da pré-adolescência são em geral esquecidas na idade adulta. Várias cenas trazem este sentimento de nojo de Joe em relação aos modos da mãe, comendo, bebendo ou se divertindo. A vontade de ser autônomo livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado. No filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada. Talvez Caterina não fosse o modelo ideal de mãe ou quem sabe nem quisesse muito sê-lo. Mas ela tenta se virar com isso.

Debate sobre o filme La Luna de Bertolucci realizado no CEP (Centro de Estudos de Psicanálise) a convite de Karin de Paula /2012




Porta de banheiro: a internet do maloqueiro

Porta de banheiro: a internet do maloqueiro 

Comentários de Gisela Haddad para a Banca do TCC de Gustavo Tristão realizada na ECA  2010



As portas dos banheiros públicos são um limite interessante entre o que consideramos público e o extremamente privado. Provavelmente por ser  um local em que entramos em contato com nossas entranhas e apenas uma porta separa nossos corpos nus do resto do mundo, deixando-nos muito próximos de seus ruídos e vozes, utilizar os banheiros públicos pode despertar diferentes sentimentos e sensações aos indivíduos. É bem provável que a soma entre uma agradável sensação de anonimato e a nudez das partes do corpo que em público precisam ficar cobertas, despertem em algumas pessoas o desejo de se expressar livremente sobre temas que em geral não seriam abordados - por não serem benvindos-  em esferas sociais. É a partir desta intrigante questão que este trabalho irá tentar destrinchar as razões ou as motivações humanas que levam uma porcentagem de indivíduos a sentir prazer em abordar temas sexuais ou de asseio intimo de forma anônima (isso não só aconteceria via porta de banheiros, mas também pela internet), temas que, via de regra estariam vedados ou seriam rejeitados no social pelas convenções que regem nossa convivência. Aqui é feito uma articulação com o fato de ambas as vias facilitarem o anonimato, o que poderia ser condição para que muitos indivíduos se sintam  livres para se expressar. Ou seja, no anonimato, na minha intimidade posso dar vazão a impulsos que em outras ocasiões eu reprimiria por se constituir uma ameaça a minha boa imagem. Neste ponto inicia-se um link com a psicanálise, ao passar a refletir sobre as razões que levam um individuo a partilhar deste mundo anônimo, contribuindo com sua parcela de intimidade. E a frase paradigmática que desperta a atenção, “Porta de banheiro: a internet do maloqueiro” leva a pensar tanto no mundo interno de cada um, que de certa forma escapa pela ponta do lápis ou caneta, quanto em sua relação com a cultura, uma tentativa quem sabe de sistematizar suas complexas relações.
Pelo lado do individuo há a pergunta de quem é afinal este anônimo. Um transgressor? Alguém que se sente excluído? Um cínico? O que ele busca? Capturar a atenção do outro? Gozar de seu próprio prazer solitário de transgredir? Produzir uma catarse mental tal e qual sua catarse intestinal? Até que ponto todo anônimo quer ficar mesmo anônimo ou almeja tornar-se indiretamente visível? Será que ao escrever ali, ele se deleita ao imaginar o impacto desta leitura sobre quem irá ler? Ou busca qualquer leitor que possa em sua imaginação reconhecer ou criar uma empatia com o que ele escreve? Estas conjecturas nos levam ao singular, ao sentido que cada um pode dar a estas leituras tal e qual Gustavo, que ficou intrigado com a frase ouvida (há 12 anos) de um amigo de seu irmão - lida em uma porta de banheiro da faculdade - e que transformou este impacto nesta pesquisa sobre o significado das grafias de portas dos banheiros, a partir de seu caráter ao mesmo tempo público e íntimo. Leitura que é quase inevitável para quem utiliza tais banheiros, e tanto pode despertar curiosidade e riso como o nojo e indignação ou até o desejo do leitor de fazer alguma contribuição para aquela literatura coletiva. Um ambiente íntimo/público que tanto pode impulsionar um escritor que se sente mais excluído por sua condição social, o que não teme as leis e por isso um transgressor, alguém que esteja reivindicando sua visibilidade ou ao contrário, gozando de sua condição de expatriado, ou seja, de quem quer intencionalmente causar espanto e horror ao revelar o que normalmente a cultura mantém velado. Enfim, alguém que pode se constituir como um ser social, que apreende o sentido do que lê ali, se interessa ou imagina quem escreveu, decide interagir, responder, ou comentar. Ou não, alguém que está apenas “descarregando” sem se questionar ou se importar com o que leu ou escreveu, ou com o fato de que alguém possa ler o que ele escreve. Se há tantas possibilidades de mundos internos será que o conteúdo que cada um escolhe poderia revelar algo de si? Ou do contexto social a que pertence ou que se vive? Como entender estes processos tão complexos que permeiam nossas relações? A grafia dos banheiros e o que ela revela passa pelo uso da linguagem e sua origem como possibilidade humana de comunicação, mas principalmente de transmissão de um acervo simbólico construído e compartilhado por nós, e que estaria na própria passagem do caráter animal para o humano. É graças a sofisticação desta linguagem que partilhamos de normas e leis que possibilitam nossa convivência. São os interditos fundamentais do incesto e do assassinato, que mostram e explicam sua  utilização para entender a necessária repetição deste recalcamento originário, algo que para cada um de nós será a medida de sua ascensão ao convívio com os outros, marcando seu estilo. Pode-se resgatar por aí a história mesma da comunicação do homem com seus pares, mas também o caráter simbólico que esta comunicação carrega com os sentidos de sua mensagem, ao conter (sempre?) um conteúdo pessoal, particular. Neste sentido o caminho percorrido pela pesquisa na busca dos significados destas grafias é o de entender o comportamento humano e suas razões assim como suas diferentes categorias. Como cada um de nós constrói sua  maneira de ser? Como esta maneira de ser pode ou não partilhar de um meio social previamente estabelecido por regras e normas de convivência? Qual o papel da sexualidade humana neste percurso? Como a linguagem pode revelar algo sobre o sujeito que a utiliza e que muitas vezes nem ele sabe, ou ainda sobre aquela cultura/ época particular a qual ele pertence? Todas estas perguntas lembram a razão de ser da psicanálise, que desde sua invenção pretendeu fazer uma leitura do homem levando em conta aquilo que lhe escapa, o que fica recalcado ou negado, seja por ser moralmente indesejado, excessivamente ameaçador, impossível de ser digerido por seus recursos psíquicos, por se constituir em uma demanda que lhe excede, por ser demasiado penoso. Mas também uma leitura da cultura, da constituição do social, da força do mito fundador que ao interditar o incesto e o assassinato revelam a força de sua insistência na cultura, do acervo contido em nossas produções simbólicas cuja linguagem é “mãe”. Se a escrita é uma das mais antigas ferramentas do homem para se comunicar, nossa história humana contém toda a evolução dos meios de comunicação que construímos e refinamos ao longo dela. Podemos dizer que entre os primitivos garranchos que até hoje são temas de filmes e exploração para  entender nossas origens (vide o filme Prometheus, por exemplo) e a invenção da internet que abriu de forma incomensurável o espectro da comunicação, há uma complexa evolução nas  maneiras de interagir via o que falamos ou escrevemos. Os banheiros com seus grafitos desenham o avesso, o que se mantém reprimido, o que pode explodir, ser cruel, causar espanto, nojo, revolta e que apesar de ter um apelo de compartilhamento, tende a ser “outsider”, transgressivo.  No recorte deste trabalho sobre  a escrita, o que se escreve e porquê em uma porta de banheiro é levantada a questão civilizatória. Se pensarmos neste processo e sua evolução a partir da modernidade, é aí que alguns pensadores colocam a invenção do sujeito, ou melhor, a produção de uma subjetividade, de alguém que começa a perguntar sobre si mesmo e passa a escrever sobre isso, ou seja, de uma  reflexidade . A psicanalise só pode surgir a partir desta invenção, desta particular construção de um lugar psíquico, inicialmente para tentar entender as suas formas de sofrimento e depois para também entender sua constituição e seu funcionamento. Um sujeito que é dividido, que só pode ascender a sua condição de homem da cultura se puder recalcar uma parte de sua natureza animal, que é produzido na linguagem que o antecede, antes mesmo dele adquirir a faculdade de falar. E desde o inicio entre ele e os pais ou cuidadores responsáveis pela transmissão da linguagem estabelece-se uma lacuna, um desentendido, algo que nem os próprios transmissores conseguem perceber. O paradoxo é que apesar de sempre haver uma confusão de línguas é o encontro entre o que nasce e os que o recebem que funda cada humano. Existe, pois uma dimensão da cultura que nos antecede e que nos é transmitida via inconsciente, que não é dito em palavras, mas que passa pelo simbólico da linguagem de quem nos recebe e nos cuida. Cabe aos que cuidam poder oferecer aos que nascem a justa medida entre o amor/ódio e seus limites, entre o erótico e seus limites, entre o asseio e seus limites, etc. Uma construção complicada que diz respeito a certas renúncias que todos precisamos fazer com a ajuda do ambiente (pais, cuidadores, professores), que fazemos geralmente em nome do amor, e que poderá ou não nos introduzir de maneira equilibrada na cultura para sermos parte do projeto civilizatório que nos mantem sob certo controle, normas e leis para nosso convívio. Uma parte desta renúncia diz respeito aos interditos, outras são as que incidem diretamente na construção de sentimentos como a culpa, a vergonha e o nojo. O que Freud descobriu foi que a cada vez que somos levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter que renunciar se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros. É contra esta obediência “forçada” às regras da comunidade que nos consolamos escrevendo anonimamente de forma livre e sem repressões. A vergonha, como podemos lembrar pelo mito da criação na Bíblia, é considerada a primeira emoção humana, efeito da curiosidade do homem sobre si e o mundo, mas principalmente sobre a sua sexualidade ou a partir da tomada de consciência dela. A vergonha é um indicador de que teria sido alterado o valor e o sentido da sexualidade ao ser “civilizada”, assim como o comprometimento de cada um com essa sexualidade. Por isso ela é um sentimento social que faz parte da experiência formativa de nossa interioridade ao indicar a construção de uma barreira que viabiliza nossas relações com o outro, e também delimita um espaço de intimidade para cada um de nós, em que podemos dispor de nossos segredos, que podem ou não ser compartilhados com outros, segundo nossos critérios de escolha. Aqui cabem as considerações feitas sobre o conteúdo destas grafias, o caráter grotesco de muitas delas ou sua temática que escancara o que deveria ficar dissimulado. O espaço social é um espaço de dissimulação dos afetos em que o encobrimento, a mentira e a polidez  tem papéis importantes para a convivência humana. Estamos falando de pontos importantes para a evolução e manutenção do processo civilizatório dos quais fazem parte as práticas de higiene, os hábitos de etiqueta e de conversações, o segredo sobre as práticas sexuais de cada um, ou seja, tudo o que separa o público do privado.
Como contribuição a este trabalho, estas questões se enriqueceriam muito com o trabalho do sociólogo Norbert Elias sobre a história do processo civilizatório, que fez uma pesquisa minuciosa da construção do mundo privado e suas consequências a partir da modernidade. Uma destas mudanças teria sido a divisão entre o espaço público como o lugar das trocas sociais regidas por certos princípios e o privado para os afetos, e da importância do sentimento de vergonha quando nosso espaço íntimo fosse invadido, assim como quando percebemos que invadimos o espaço alheio.  Também Richard Sennet, em seu trabalho “O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade” mostra como no mundo contemporâneo, em que o sentido não é mais transcendente e os fatos possuem um significado em si e para si, as sensações, emoções, sentimentos ganharam importância e criaram uma sociedade intimista em que a cada instante e a cada momento estamos mostrando o que “realmente” somos para as outras pessoas. Antony Giddens também fala sobre a transformação da intimidade pela sexualidade, amor e erotismo e mostra as mudanças de comportamento no que chama de esfera da intimidade, enfatizando, sobretudo, a transformação no papel da mulher e a liberalização da moral sexual.
Se não esperamos que as crianças estejam aptas a compartilhar esta espécie de saber é por que sabemos que faz parte da tarefa civilizatória, cada um se apropriar das implicações e das consequências deste saber. Por isso aceitamos que as crianças  nos façam perguntas constrangedoras sobre a forma e o funcionamento do corpo humano, sobre as diferenças entre os sexos, ou sobre a incoerência ou incongruência das nossas falas e atos, porque sabemos que só quando elas puderem vivenciar o retorno do saber sobre estes constrangimentos, é que poderão sentir a vergonha. Quantas vezes a gente se lembra com vergonha de fatos de nossas vidas em que ainda não podíamos discernir sobre certos saberes. Ou seja, cada um de nós, ao nascer, precisa repetir o processo civilizatório e, portanto carregamos este legado simbólico que contém ao mesmo tempo nosso passado animal e nossas conquistas sublimes. Cada um que porta um desejo não civilizatório, não reconhece o terceiro, a lei e não respeita a transmissão deste legado. A cultura responsável por apontar o permitido e o proibido se vale das rupturas morais de cada época e redimensiona estas balizas. Hoje não só vivemos em um espaço social mais complexo como liberamos nossos corpos de muitos de seus tabus. São corpos mais erotizados e investidos libidinalmente, mas sempre atravessados pela linguagem (e o que ela contém deste passado) e pela cultura. Vale sublinhar Foucault e sua antecipação sobre a produção de controles disfarçados, exercidos de forma menos vertical e centralizado, que produz exclusões mais veladas. Sem dúvida por aí o papel das portas de banheiros assume uma condição libertária do discurso oficial politico ou moral.
Voltando à psicanalise, se ela tenta fazer uma leitura da construção de nossa complexa subjetividade e supondo que ela  consiga sistematizar um saber sobre suas imensas possibilidades, ela convive com um limite que a interroga constantemente (ainda bem) que é o fato de que a construção de um sujeito ou a historia de como ele é introduzido e se apropria de seu lugar no projeto civilizatório (com suas devidas repressões) sempre se constitui de uma historia singular, ainda que atravessada pela cultura. A individuação de uma filha/filho acontece em decorrência sempre parcial do infinito trabalho de elaboração (depressão) do que Freud cunhou de complexo edipiano, território totalmente humano, importantíssimo para a capacidade psíquica do reconhecimento da diferença entre os sexos e das gerações.
Entender e aceitar tal premissa nem sempre é fácil, pois está no âmago de nossa possibilidade de tolerar as diferenças e louvar nossa diversidade. O trabalho aponta a importância da sublimação, mas é bom que se lembre que este processo é complexo, e sempre uma estratégia de luta contra a morte, o vazio, o nada, o desconhecido, o enigmático, o excessivo, uma tentativa de criação que move a humanidade e a faz construir cultura e criar sempre novos espaços e lugares sublimatórios. Acho que a internet é sem duvida uma destas criações. Mas tudo tem seu avesso. Embora este trabalho tente responder sobre uma certa “essência” humana, ela se revela complexa e ambivalente. Pelas portas dos banheiros tentamos responder como tolerar nossos desejos se eles nos parecem aberrações e se (ou quando) os discursos a nossa volta não indicam um direito a este desejo?
“Gosto muito de ver a reação do leitor, porque, às vezes, ele ilumina o autor. O leitor percebe aquilo que o autor não tinha cogitado, de modo que eu admito.”


Pensando a psicanálise

Pensando a Psicanálise

Gisela Haddad

Gostaríamos de trazer dois temas que poderiam nos ajudar a discutir a psicanálise em sua relação com a cultura atual: o consumo e o ressentimento.
Antes, porém situaremos a Psicanálise em um contexto histórico, o que nos leva a fazer um pequeno resumo do que seria a modernidade e seu berço. Para diferenciar a modernidade dos dias atuais, tentaremos descrever o que se convencionou chamar de pós-modernidade, particularmente nas subjetividades atuais. Destacaremos as contradições a que está exposto o sujeito contemporâneo no cenário da subjetivação do consumo e como há uma promessa e uma decepção ressentida presentes aí.
Poderíamos apontar muitas diferenças entre as sociedades tradicionais e a moderna, mas iremos privilegiar algumas diferenças  que consideramos importantes às mudanças que queremos marcar.
Idade Média
O sujeito da idade média vivia em um mundo onde o seu sentido já estava previamente definido, assim como sua classe social e o que era esperado dele.
Veremos como este sujeito sofrerá uma crise de identidade  com as mudanças sociais que ocorrerão. No final da Idade Média, acontecem as grandes navegações, as descobertas de novos continentes, o contato com outros povos e outra cultura, a queda do regime feudal com a urbanização das cidades e o surgimento de novos serviços. Este homem maravilhado com as mudanças, liberado de suas tradições sociais e culturais e da servidão feudal irá se desgarrar de um mundo onde ocupava um lugar e um estatuto e perder sua segurança e sua confiança na possibilidade de constituir um conhecimento.
Muitos autores costumam adjetivar a Idade Média como a idade das trevas em oposição a das luzes ou o iluminismo da idade moderna. Mas muitos historiadores versam sobre seu valor.
Idade Moderna
Podemos destacar duas grandes tradições do projeto moderno: a racionalista, onde Descartes é o expoente principal, inaugurando o sujeito do conhecimento e o romantismo que, de certa maneira faz uma crítica à racionalidade ao dar ênfase às paixões. Descartes foi um filósofo francês do século XVII que viveu este momento de crise e participou da organização do discurso moderno, onde o sujeito começará a questionar, a querer conhecer a natureza. O projeto cartesiano inaugura a modernidade ao construir um método racionalista que deseja constituir o sujeito do conhecimento. Haveria de existir algum tipo de “verdade” que fundamentasse o conhecimento. Descartes quer instaurar o sujeito purificado. Mas o que seria isso?
Ele acreditava que se privilegiássemos a sua parte confiável, ou seja, a razão, esta seria a responsável pela produção de conhecimentos e certezas. O famoso Método de Descartes, portanto irá descrever o pensamento com regras explícitas e seu objetos com representações claras e distintas para que pudessem se constituir em objetos da ciência. O que Descartes pretendia e de certa maneira conseguiu era constituir uma ciência, algo com que o homem pudesse contar e que lhe desse algumas certezas a respeito de si e do mundo.
No entanto, para objetivar o mundo foi necessário fazer uma cisão e deixar de fora uma parte do sujeito que não estaria apta a produzir conhecimento. Haveria que se deixar de lado as paixões e os afetos para conhecer a natureza.
Poderíamos dizer que é encima do que fica excluído do racionalismo que nasce o romantismo, ou seja, o corpo, os afetos e as paixões se impõem como objetos de conhecimento a serem incorporadas pelo sujeito. É diante de perguntas do que se faz para conhecer e conviver com esses ruídos do corpo que não silenciam que nascem as ciências humanas, como a Sociologia e a Antropologia.
O movimento romântico pode ser abordado de diversos ângulos e em vários países da Europa do século XVIII e XIX , mas é  na Alemanha que ele irá se configurar como um movimento cultural do qual Goete é  um dos seus expoentes. E será pela maneira aprisionante com que o racionalismo explica a natureza que o romantismo fará a reconciliação da sensibilidade com a razão.
Serão os sentidos nutrindo a razão e trazendo à cena a dimensão da interioridade.
Podemos dizer que a Psicanalise irá beber destas duas fontes: o racionalismo e o romantismo, já que ambas as tradições são versões do projeto moderno e pretendem instituir o sujeito como fundamento. Assim Freud tem um pé em cada uma destas tradições modernas. É médico com uma formação acadêmico-científica na área de neurologia, fisiologia e anatomia, mas mantêm uma interlocução constante com a produção literária do movimento romântico. Isto será de fundamental importância no nascimento da Psicanálise. Como pesquisador nos laboratórios do Instituto de Fisiologia da Universidade de Viena, atividade esta que estava totalmente de acordo com as bases das ciências naturais da época, Freud era um leitor assíduo dos filósofos e da literatura romântica, o que muito influirá em sua criação de uma teoria original do psiquismo.
Embora professasse sua inclinação para a manutenção de um discurso cientifico, não é difícil vê-lo, em seus textos, flertar o tempo todo com a liberdade especulativa dos filósofos  ou mergulhar nas profundezas da alma humana tal e qual os poetas faziam para extrair conhecimento.
Uma pequena ilustração destas duas vertentes na sua obra são os textos “Projeto de uma Psicologia científica” escrito em 1895 e “a Interpretação dos Sonhos” escrito em 1900.Emboraa fossem produzidos praticamente na mesma época, no primeiro Freud desejava construir uma teoria do aparelho psíquico em bases científicas e assim privilegia os neurônios, as quantidades, os investimentos ,os deslocamentos de energia, etc. Já em “Interpretação dos Sonhos” ele trabalha com temas do cotidiano. Os sonhos seriam os restos daquilo que interessava ao pensamento científico do final do século XIX.
Por outro lado, a modernidade inaugura um amplo processo de individualismo, que permitirá o nascimento de uma forma subjetiva particular, caracterizada tanto pela interioridade psicológica como pela construção de identidades fundadas em atributos e sentimentos privados, muito diferentes do que se via antes, onde as identidades e papéis sociais eram atribuídos por herança, conforme laços de pertencimento definidos ao nascer. Ser alguém significava fazer parte de um todo.
Na era moderna, ser alguém será tornar-se alguém e conceber sua existência como uma realização pessoal ao longo da vida.
Isto é o que chamamos a construção do sujeito moderno da Psicanálise. Um sujeito que terá que dar conta das exigências da vida burguesa, se haver com o choque entre suas aspirações e seus desejos reprimidos, e com as regras rígidas impostas pelas convenções sociais. Nasce assim a cultura do psicológico e da intimidade onde o sofrimento é experimentado como conflito interior.
Este quadro, no entanto sofreu imensas transformações e hoje é bem diferente daquele que vimos no nascimento da Psicanálise.
Estas mudanças tem sido objeto de muitas discussões de vários autores, tanto psicanalistas (Birman, Calligaris, Figueiredo, Freire Costa, Bezerra Junior) como historiadores ou cientistas sociais (Roudinesco, Bauman, Lash, Debord)
Claro que as mudanças no campo político com o advento do projeto neoliberal que institui o capital e seus derivados diretos como o mercado e o consumo, a velocidade do avanço da tecnobiociencia e as modernas tecnologias de comunicação criam novos ideais, valorizam novas formas de pensar e modificam as condutas. Isto causa mudanças nas formas de subjetivação produzindo como consequência sujeitos diferentes, que em geral são diferenciados pelo que consomem.
Adquirir bens e produtos consumíveis passa a definir a nossa imagem, classe social e status. Seguimos uma lógica que interfere na nossa autoestima, pois apesar da promessa embutida nos sonhos de consumo, estes objetos sempre nos frustram, pois nunca  coincidem com as imagens desejadas. São apenas imagens, sem a extensão simbólica necessária.
Tomemos certas musas de carnavais como a Feiticeira, a Tiazinha, ou a Adriane Galisteu. A cada ano é uma figura que ocupa a imagem de musa, com direito às capas de revistas e aos olhares de reverência das pessoas. Mas como toda imagem isso não persiste e nem confere valor às pessoas que se tornam meros personagens de si mesmas. Poder-se-ia usar como exemplo aquelas fotos que tiramos em parque de diversões em que  escolhemos o personagem que queremos ser e colocamos nossa cabeça no vão deixado ali para ser preenchido. Após a foto vamos embora e deixamos aquele invólucro para ser preenchido por outras pessoas que farão o mesmo.
Essa necessidade de se tornar visível na sociedade de espetáculo contribui para o esvaziamento da importância da esfera da intimidade e do mundo privado e muda os critérios de definição do sofrimento psíquico.
Na cultura do psicológico e da intimidade esses sofrimentos eram da esfera do conflito entre nossos desejos e as proibições que nos seriam impostas. Na cultura das sensações e do espetáculo o mal estar se situa no campo da performance,  já que podemos construir uma imagem, mas muitas vezes ficamos longe de uma apropriação subjetiva.
Pode-se malhar o corpo e deixa-lo sarado para coincidir com a imagem do gatão desejado pelas mulheres, mas isso não muda o fato de ser impotente ou ainda passar horas esculpindo ou bronzeando o abdome para exibi-lo em roupas sensuais e atrair os olhares de todos os meninos, embora o ideal de homem desejado seja aquele que respeita e deseja se comprometer.
O sujeito da pós-modernidade parece ficar esvaziado de questões sobre si o que o faz sentir-se incompetente, insuficiente ou ressentido.
Não se pode dizer que o sonho da cultura centrada no indivíduo não tenha se realizado.
Somos todos membros de uma humanidade comum. Já fomos filhos do mesmo Deus e todos dotados de razão. Atualmente somos refém do mercado e do consumo e isso precisa ser analisado como um movimento cultural que deixa sua marca em  nossa subjetividade.
Como ilustração de modos de subjetivação, inspirados em Luís Claudio Figueiredo, podemos lembrar-nos de “O cavaleiro inexistente”, novela de Ítalo Calvino que configura três possibilidades de sujeitos encarnados em três personagens distintos. Agilufo é o estranho cavaleiro de armadura branca, dentro da qual nada existe, a não ser sua voz metálica e os movimentos que indicam a existência-inexistência desse comedido e sistemático cavaleiro, que tem consciência de existir, mas de fato não existe. Gordulu é pura imanência com a natureza, sensibilidade corpórea e, embora exista, não tem consciência disso. Finalmente  Rambaldo, que é uma espécie de consciência encarnada em busca de um frágil ponto de equilíbrio entre os dois primeiros.  


 Aula ministrada para alunos de psicologia da PUC SP 2003