segunda-feira, 3 de junho de 2024

 


       

Amor e fidelidade: a vida amorosa da mulher na atualidade

 

Gisela Haddad

 

Pode-se identificar na cultura atual a persistência da linguagem do ideal de amor romântico presente nas relações amorosas, seja através de filmes, canções, novelas ou mesmo propagandas. Também é de consenso o quanto a relação amorosa desfruta de um lugar especial na vida subjetiva de todos, atestado inclusive pelo lugar de privilégio que ocupa nas demandas de análise.

Algumas pesquisas realizadas no rico contexto da Antropologia Urbana do Museu Nacional do Rio de Janeiro apontam que, apesar de homens e mulheres desfrutarem hoje de uma considerável liberdade e autonomia que lhe permitiriam manter vínculos separados entre amor e sexo, ou mesmo inventarem novos arranjos mais adequados às demandas da sociedade contemporânea, o ideal de amor romântico continua a fazer parte integrante dos mecanismos constitutivos das conjugalidades. Por outro lado, estas pesquisas também indicam o quanto é árdua a manutenção destes vínculos e as negociações necessárias para se administrar a intimidade sem invadir os limites da privacidade de cada um dos pares, fatores estes diretamente relacionados aos ideais de igualdade e  liberdade contemporâneos.Entre estas dificuldades merece destaque as divergências entre a aspiração romântica a uma relação duradoura e exclusiva que deixa implícita a fidelidade sexual esperada entre os pares e as  vicissitudes da implantação de um individualismo libertário que exige a simetria e o respeito às singularidades. Estes anseios aparentemente contraditórios, a constatação de uma certa assimetria entre os gêneros nos dramas da vida a dois, ou a evidencia de uma singularização dos conflitos,  convocam a psicanálise  a refletir sobre as mudanças na vida amorosa atual.

Na obra freudiana a vida amorosa de homens e mulheres foi tema recorrente de reflexões, sem deixar de fora o lugar ocupado pela cultura. Se a sexualidade como ciência do sexual surgiu na modernidade pretendendo focalizar a saúde dos indivíduos, criando dispositivos e normas para o prazer sexual, um biopoder e uma bioética e o sexo passou a ter lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos, a psicanálise se alimentou destes discursos e empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente. Ao apontar o recalcamento da sexualidade das histéricas no final do século XIX, ela também salientou o lugar de fantasia deste sexual, produzindo uma teoria singular sobre a sexualidade humana onde o sujeito seria, ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela.

Mas a psicanálise também destacou o lugar do amor articulando-o com a relação original com a mãe,  com a constituição do eu e com a formação dos ideais.A nova ação psíquica que Freud anuncia no narcisismo é o surgimento de uma representação na qual o sujeito é visto como uma unidade, um eu considerado modelo de perfeição, graças à fascinação do amor materno.Esta unidade ilusória é a responsável pelo sentimento de onipotência e de exclusividade que transforma o bebê em eu ideal.Será esta perda amorosa necessária que dará inicio a busca desta unidade, busca esta que constitui a dimensão mítica do amor e do desejo de ser amado.

A subjetividade amorosa ocupou desde sempre um lugar central na clínica e na teoria psicanalítica servindo ao mesmo tempo de sujeito e objeto de suas pesquisas. Nossa acepção de amor ocidental é uma invenção relativamente moderna e diz respeito a uma relação exclusiva entre um homem e uma mulher ou um par que aspira se unir na busca de uma completude feliz, idealmente organizado somente pela força proclamada dos sentimentos íntimos. Ao se fazer um percurso histórico desta conjunção de amor, sexo e conjugalidade, é possível articulá-la ao surgimento da psicanálise.

O amor romântico tornou-se norma das relações amorosas da Europa do século XVIII, ao final de um percurso de laicização do amor operado pela Modernidade. Se para os antigos e os cristãos, o amor buscava a posse eterna do objeto amado, imortal por natureza, aos poucos ele foi se transformando em desejo e átomo da constituição individual. Este deslocamento objeto-sujeito do amor acontece pari passu a uma crescente interioridade alimentada por uma poetização religiosa nascida na era cristã (estou me referindo aqui ao debate intimo que a noção de pecado introduz entre o que se quer e o que se teme).  A gradual humanização do objeto de amor provocou ao longo dos séculos, um desvio do gerenciamento da experiência amorosa e sexual para o próprio sujeito, típico do amor romântico moderno. É graças a esta interioridade que na obra freudiana a experiência amorosa irá ocupar um lugar de privilégio e será na tentativa de decifrar seu tumulto que Freud percorrerá seus caminhos, para saber o que eles revelam nas dores, sofrimentos, lapsos, sintomas, delírios e alucinações.

O amor romântico ou “amor verdadeiro” funcionava na era burguesa tanto como um regulador da vida familiar e societária quanto como uma promessa de felicidade e êxtase sexual, ao valorizar o vínculo exclusivo do par conjugal. É neste cenário que o amor passa a ser algo que pertence ao sujeito e que pode levá-lo à felicidade ou ao sofrimento, tornando-se personagem de paixões e desesperos e alimento das fantasias humanas, o que produzia uma experiência amorosa inédita.

A felicidade que seria conquistada pelo laço amoroso, sexual e exclusivo entre um homem e uma mulher previa a constituição de uma nova família, assentada pelo amor entre os cônjuges e destes em relação aos seus filhos. Roudinesco mostra como esta família burguesa se transforma em uma fortaleza afetiva restrita a interesses privados e aponta o fato destes casamentos por amor resultarem, a longo prazo, em um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. Do ponto de vista social é Áriès quem confirma este contexto especial ao marcar a invenção da infância na era moderna, referindo-se à idéia de um tempo feliz, protegido pelo amor dos pais e objeto de reflexões, planos, projetos e debates. É assim que o ideal de amor romântico com seu valor político e cultural de regulador das relações entre os homens e mulheres se articula a um estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança, inaugurando um prolongamento deste ideal de felicidade irrealizável na aspiração de um tempo feliz e perdido. Psicanálise e interioridade parecem se juntar para caucionar a ideia do amor romântico e seu particular contexto familiar.

Na modernidade, a subjetividade amorosa passa a ter um espaço central na vida dos dois sexos, mas abre novos caminhos principalmente para a posição social da mulher que passa a ser sujeito de uma escolha amorosa e decisiva, simultânea a uma desmistificação lenta e gradual dos tabus generalizados construídos pela civilização em relação a sua figura.

Embora mantivesse uma atitude ambígua em relação à mulher em geral e à sexualidade feminina em particular, Freud ajudou a promover o feminino ao estatuto de cultura, ao contribuir para desnaturalização da sexualidade humana e ao permitir à mulher tornar-se um sujeito desejante. Seu texto de 1922 sobre o tabu da virgindade, é também uma tentativa de  entender as motivações e os mistérios que estariam por trás destes tabus, fosse em relação à menstruação, à virgindade, à gravidez ou a maternidade.

Na verdade, os tabus têm seu fundamento no temor de algum perigo desconhecido e o tabu da virgindade como construção social seria uma tentativa de se dar conta da passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. Mesmo contaminado pelos padrões culturais de sua época, é Freud quem, atento ao sentido do “proibido” desvenda a necessidade de um velamento entre a figura da mulher-mãe assexuada, protótipo do primeiro objeto de amor para todos e a figura da mulher-objeto sexual, figuras estas cindidas na cultura de sua época.  A mulher passiva, assexuada por sua natureza sensível, destinada à maternidade, e a mulher excessiva, propensa à degenerescência física e moral e perigosa para a sociedade, se alternavam no imaginário de ambos os sexos na cultura burguesa, o que é facilmente constatado, seja pela produção de romances cujas mulheres tinham um destino trágico quando cediam aos seus impulsos amorosos  como pela profusão de manuais sobre casamentos que continham polemicas pedagógicas sobre o recato das mulheres, ora com inspirações religiosas ou com acentos moralistas mas que não escondiam a inquietação sobre o erotismo feminino, sua natureza e intensidade.

A preocupação em adestrar o corpo e a sexualidade feminina com vistas à procriação e ao casamento era constante. Qualquer desejo ou comportamento sexual que ultrapassasse estes limites era considerado excesso, degeneração ou patologia. Na cultura burguesa, a mulher-mãe pressupunha uma mulher que renunciava aos excessos sexuais.

A separação entre feminilidade e maternidade, ato carnal e procriação,  desejo e reprodução acontece através de um lento movimento, inclusive de crítica às teorias da sexualidade elaboradas por homens ao longo da história ocidental. Em seu livro A Educação dos Sentidos, Gay dedica um capítulo ao “medo dos homens” e à literatura do século XIX que se preocupou em descrever o sentimento generalizado de que a virilidade estava em perigo. A sociedade masculina burguesa sentia-se ameaçada diante da possibilidade da emancipação das mulheres. Será a psicanálise que irá elucidar o quanto as tentativas masculinas de proibição e controle sobre o gozo feminino em grande parte das civilizações denunciavam a “angústia” do homem frente a um suposto gozo excessivo da mulher. Este temor estaria ligado tanto ao medo quanto ao desejo da transgressão sexual e da perda dos limites, cujo fantasma assombrador seria a figura incestuosa da mãe.

Na cultura atual a tão temida sexualidade feminina ocupa um lugar menos ameaçador, e a valorizada virilidade masculina deixou de assombrar os próprios homens exigindo ajustes de antigas aspirações diante das imposições de um novo ethos. No entanto, o nivelamento da liberdade sexual para ambos os sexos escancarou as diferenças dos gêneros, singularidades construídas pelos fantasmas infantis que habitam o percurso de um e outro, nascidos no complexo edípico. O destino da vida amorosa humana está diretamente ligado a possibilidade de interdição da relação primária com a mãe. As figuras da mulher-mãe e da mulher-prostituta são menos construções culturais do que cisões importantes do feminino para a vida amorosa de homens e mulheres, até porque a mulher está destinada a ser tanto a mãe que cuida e ama quanto a prostituta que se deleita com os jogos de amor.

A igualdade de direitos entre os sexos permite desvendar os significados de muitos tabus e mitos considerados ícones de uma dominação masculina. Um deles seria o valor social da fidelidade feminina, hoje uma exigência subjetiva e muito ligada às idiossincrasias das relações entre amor e sexo. Por outro lado, a infidelidade masculina que desfrutou de um consentimento geral (homens e mulheres) de algumas sociedades modernas, contribuiu para a manutenção desta dominação masculina em constante afirmação de sua virilidade, traço importante e definidor da identidade masculina.

A difícil passagem da mulher para uma posição de sujeito suscitou mudanças tanto para ela quanto para os homens. Ao relativizar a diferença biológica dos sexos e focalizar as identidades sexuais ou gêneros, a modernidade valorizou o lugar que homens e mulheres ocupavam na cultura, multiplicando as diferenças sociais e identitárias. O complexo patriarcal do século XIX se desmantelou durante o século XX e a autoridade cujo poder era idealizado e respeitado se esfumaçou em contratos individuais e grupais. Os modelos identitários que em geral eram binários (pai ou mãe, isso ou aquilo) hoje apresentam uma multiplicidade de figuras de referência. Isto incide diretamente na maneira como os pares amorosos gerenciam suas relações, a saber, os consensos e acordos que substituem as antigas regras sociais que orientavam de maneira bem mais rígida os papéis sexuais, delimitando o poder, o prazer, o permitido e o proibido.

De uma certa maneira a igualdade entre os gêneros, que no âmbito social aparece como conquista referendada e, portanto, poderia acenar com sentimentos de segurança, confiança ou pertencimento, no convívio íntimo se atraca com a liberdade, também esperada, mas causadora de incertezas e riscos, deflagrando os conflitos que as singularidades impõem. Pode-se dizer que a fidelidade sexual esperada ou exigida pelos pares passeia entre estes três ângulos e resiste de forma insistente ao exercício da contabilidade conjugal.

Se a figura do adultério perdeu a consistência de ofensa moral, a exclusividade amorosa ou sexual passou a ser uma exigência que demanda negociações entre os pares. Para Freud (1914) esta exigência de exclusividade de ambos os sexos nasce diante da eminência de perda do amor pleno da fusão com a mãe, assim como a intervenção de um terceiro, ou do nascimento dos irmãos, são fatores responsáveis pelas vivencias dos sentimentos de ciúmes e rivalidade. Esta seria a articulação da fidelidade com o amor, com a necessidade de se sentir amado, reconhecido e valorizado de forma exclusiva.

Sabemos como nas receitas dos pares amorosos a fidelidade esperada ou exigida é um ingrediente de peso.Fantasma poderoso que ameaça a sempre instável imagem de um eu que precisa insistentemente ser refletida no olhar de reconhecimento do outro, ela também acusa a difícil convivência do par amor e sexo.Sempre ameaçada pelo prazer da fruição sexual, é chamada a se explicar na ética amorosa, na exigência de lealdade a um contrato em geral ilusório que pretende a exclusividade, o amor incondicional.

Ilusão da qual gostamos de compartilhar, nas historias de amor e sexo encenadas com os mais diversos obstáculos, percalços infinitos, desde que no final possamos reiterar nossa crença na possibilidade do amor romântico, verdadeiro, aquele que ainda nos promete conhecer em algum momento, este êxtase infinito da paixão que imaginamos ter tido ou perdido um dia. Se a condição de amor romântico é a manutenção da ilusão de completude, a infidelidade sexual é um dispositivo do real que revela a construção ilusória do par amoroso.

 

 

 

 

                  

 

 

 

 

 


  

A família entre a cultura e a subjetividade atual: o papel do amor

                                                                          Gisela Haddad

 

Este trabalho pretende refletir sobre os novos arranjos familiares, tema este bastante paradigmático na atualidade, já que relacionado ao futuro do que se considera ser a base da organização social e responsável pela transmissão e inserção do bebê na cultura.

Abordaremos as transformações ocorridas na construção das conjugalidades e das novas maneiras de ser pai ou mãe levando em conta uma visão histórica das mudanças socioculturais e os efeitos delas nas normas, valores e estilos de viver. Para isso partiremos de uma breve revisão da história da família moderna, ressaltando o valor do amor tanto na constituição deste modelo familiar quanto de uma particular subjetividade que passa a existir a partir da Modernidade. As relações entre esta subjetividade e a cultura da  época permite destacar como o tripé amor, sexo e casamento, base do ideal de amor romântico, inaugura uma nova família e uma nova  relação mãe-criança, que de certa maneira mantêm atualizado o ideal de amor romântico como um projeto individual importante no imaginário social e que se tornou a base de todas as formações conjugais na atualidade. A partir daí problematizaremos as novas configurações familiares.

O modelo familiar que conhecemos nasceu de um projeto iluminista que teve em Rousseau seu maior idealizador. Tal projeto pretendia transformar a família em um dos maiores ideais de felicidade humana que  seria conquistada pelo laço amoroso, sexual e exclusivo entre um homem e uma mulher e pela constituição de uma nova família, assentada pelo amor entre os cônjuges e destes em relação aos seus filhos. Esta composição de ideais do bem do amor, do sujeito amoroso e da felicidade amorosa se alinhava aos anseios de autonomia dos indivíduos e também funcionava como uma proposta política para a sociedade burguesa ao prever um arranjo conjugal em que a sexualidade ganhava legitimidade ao ser integrada ao amor e ao casamento.

A literatura romântica da época era pródiga em incentivar o amor como norte para os excessos do sexo. Quem não conhece os destinos trágicos de Anna Karenina ou de Madame Bovary, dois exemplos clássicos de paixões que se afastavam dos moldes previstos pela família? Grande parte dos romances narravam histórias de amor em que sentimentos de angústia e de sofrimento vividos por seus protagonistas giravam em torno de um único objetivo: a realização do ideal de amor. Este repertório literário se alimentava da idealização romântica do amor ao mesmo tempo em que propiciava cenários de encontros e experiências amorosas cujas paixões e desesperos passam a ser parte das fantasias humanas. Além disso, as narrativas românticas se encaixavam na ideologia individualista em curso e ajudavam a criar uma interioridade psicológica com  identidades  fundadas em sentimentos íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência amorosa inédita. Um novo conhecimento nascia, uma ciência do homem, de suas particularidades e singularidades.

O amor romântico, por ser um ideal reverenciado por toda a sociedade e base importante de um projeto político e social da família burguesa, passa a fazer parte de um horizonte futuro da vida de cada um, tornando-se uma aspiração poderosa ao acenar com a possibilidade de uma felicidade humana terrena em contraposição aos  antigos ideais religiosos. Aos poucos estas famílias vão se transformando em uma fortaleza afetiva restrita fundando a vida privada e íntima, característica da era burguesa.

Estes casamentos realizados por amor passam a apresentar, a longo prazo, um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. O bem-estar familiar passa a depender deste maravilhoso  ‘ninho’ e  a mulher, promovida ao papel de mãe, ganha as atenções e a reverência da sociedade.O amor materno passa a ocupar um espaço jamais conquistado anteriormente na história da humanidade. O corpo e o coração materno passam a ser o paraíso originário transformando a mulher-mãe em fonte de cuidados da qual depende toda a educação e o futuro dos homens. Sendo condição de sobrevivência e indispensável à educação da criança, o amor materno concede às mulheres um reconhecimento social importante. Mas se a influência materna passa a ser decisiva para a criança, os erros e falhas infantis passam a ser fracassos de sua função de mãe.

Estamos diante do momento histórico em que a infância é inventada em um compósito entre a idéia de um tempo feliz protegido pelo amor dos pais e pelos cuidados de uma mãe amorosa e a preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que preenchessem quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. No plano social inicia-se a interferência pública nos cuidados e proteção à criança, promovendo o desenvolvimento de leis e de uma infinidade de setores que de forma gradual, passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao desenvolvimento do futuro adulto. 

O ideal de amor romântico que continua a regular as relações entre os homens e as mulheres, começa a se articular a este estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança e inaugura um prolongamento deste ideal de felicidade irrealizável na aspiração de um tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a esperança da realização desta felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais sustenta-se nesta possibilidade de assistir a seus filhos transformarem-se na imagem de felicidade idealizada por eles. Surge assim um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna sustentado por esta família.

Nascida neste caldo cultural, a psicanálise se põe a desvendar este particular contexto familiar e a complexidade das subjetividades de seus membros, ao revelar os bastidores conflituosos  das relações entre mãe,pai, filhos e filhas e o lugar privilegiado das funções parentais na constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para a emergência psíquica do bebê, mas é esperado que ainda no seio familiar o bebê possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis, será entre a ameaça de perder e o desejo de obter novamente este lugar privilegiado e exclusivo, que a criança deverá abrir mão desta importante ilusão de ser amada incondicionalmente para dar lugar às infinitas condições a que ela terá que se submeter mas  que tentará evitar. É neste jogo amoroso singular entre ela e seus cuidadores que se construirá sua subjetividade. A lembrança deste amor incondicional permanecerá na aspiração de um reencontro amoroso futuro. O ideal de amor romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um ideal para o eu.

A família assume um papel primário na transmissão da cultura e das gerações, mas ao mesmo tempo em que é fonte de normalidade é palco das piores patologias. As funções parentais passam a ser cada vez mais alvo de cuidados públicos. De um espaço totalmente privado, a parentalidade passa a ser praticamente pública. Na tentativa de manter este modelo idealizado, a família se torna o centro irradiador de demandas de estudos e pesquisas que visam conhecer suas características e especificidades para criar todos os tipos de serviços, cuidados e proteção que garantam seu bem-estar ou técnicas e projetos que auxiliem o desenvolvimento de seus membros.

À medida que aumentam os saberes sobre o humano, as funções parentais tornam-se maiores e mais complexas. Além de se responsabilizar pelo fato físico do nascimento, os pais devem reconhecer sua criança, dar-lhes um nome e uma filiação, cuidar do seu sustento, educação e saúde, proporcionar-lhes um espaço de convivência em que sua subjetividade se constitua e cumprir a função simbólica de transmissão dos valores, normas e interditos da cultura.

 A invasão do olhar público revela o avesso e a fragilidade desta estrutura familiar burguesa. Em meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam corretivos, a psicanálise entra pela porta dos fundos ao revelar seus vários descompassos. Um deles era a falsa moral e as limitações que a cultura burguesa impunha à vida sexual de todos, mas principalmente das mulheres. Sendo uma sociedade centrada na autoridade patriarcal as leis de recato sexual pesavam principalmente para as mulheres, para quem qualquer exposição de sensualidade era motivo de desconforto. Aos homens era permitido extravasarem seus excessos sexuais com mulheres moralmente depreciadas. 

Mas a própria inauguração da junção do amor e do sexo como condição de escolha dos pares conjugais abria perspectivas jamais imaginadas para se questionar as maneiras de amar, as transformações do erotismo, as práticas sexuais condenadas, a prostituição e as restrições impostas aos sexos. A psicanálise bebe deste momento cultural e ajuda a retirar o tema da sexualidade humana dos bastidores das vidas privadas ao mostrar que a falsa moral burguesa escondia o temor e a preocupação da cultura com a incapacidade dos homens gerenciarem o controle sobre seus impulsos sexuais e agressivos. Ainda que lentamente começa a haver uma subversão das mitologias naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair por terra o instinto maternal e a raça feminina. Como todos os tabus, o tabu da virgindade feminina revelava o temor de ambos os sexos em relação à passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. Fica possível compreender a preocupação social da época em adestrar o corpo e a sexualidade feminina para a procriação e para o casamento na tentativa de evitar um excesso sexual perturbador. Acresce-se a isso o fato de ser complicado para os homens a   imagem da mãe-mulher o que induz a uma separação entre a figura da mãe e a figura da mulher sexuada.

No plano do conhecimento humano instala-se um embate entre o legado das tradições e as rupturas a estas que não cessam de se suceder. Reina o pensamento crítico, as idéias de progresso e renovação e o desejo de se libertar do obscurantismo e da ignorância pela difusão da ciência e da cultura em geral. A conseqüência é a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos, políticos e religiosos que pretendem ora analisar ora criticar a convivência de valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondam aos alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucedem às antigas.

O aumento gradual de um saber sobre si legitima a construção de uma interioridade e o personagem principal passa a ser a sexualidade. Não apenas a sexualidade genital, mas a que participa na construção do desejo humano, com destaque para seu papel na constituição psíquica da criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O amor dos pais, tão reverenciado, precisa ser na justa medida entre uma erotização do corpo infantil, fonte do desejo de viver e de amar e certas rupturas deste estado fusional e primitivo que o auxiliem a entrar na cultura. Na justa medida entre o permitido, o proibido e o prometido, cada um deve poder se desvencilhar das malhas do submetimento, da alienação e da fascinação e construir sua rede de relações para buscar um novo lugar no mundo.

No pensamento moderno cabe a cada indivíduo construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um futuro que não depende mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar uma aposta em novos sentidos para a existência humana que acenem com uma maior satisfação, prazer e conforto.  A conquista desta individualidade autônoma se reflete dentro do círculo doméstico fazendo com que o poder familiar vá se restringindo e os interesses pessoais de seus membros aumentando em consonância com uma exigência de simetria e liberdade entre os pares conjugais. Aos poucos, as mulheres ganham espaço público e com o advento dos métodos anticoncepcionais, conquistam o direito ao amor livre, ao aborto e ao divórcio.

Cada um se torna o único ou o principal regulador de suas práticas afetivo-sexuais, assumindo a liberdade para experimentá-las e gerenciá-las. Sem as amarras das regras de aliança, com a flexibilização das interdições religiosas e morais e o aumento da mobilidade espaço-temporal e social,  homens, mulheres, homossexuais ou não, começam a formar seus pares fundados apenas em escolhas afetivas  e mantidos por acordos e negociações.Esta liberdade incide tanto nas escolhas dos parceiros quanto nas decisões de interrupção das relações quando estas  se mostram impossibilitadas de cumprirem os acordos estipulados. 

Muda a realidade social, despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de condutas. A formação dos pares conjugais fica independente do sexo ou da orientação sexual de cada um. O fim dos constrangimentos e das regras coercitivas sociais mantém apenas o amor como  eixo central da constituição das novas parcerias conjugais e o preço desta aventura incerta é a redefinição de uma ética e uma estética do convívio amoroso. Com relações amorosas mais efêmeras os indivíduos passam a formar mais de um vínculo conjugal durante sua vida, o que altera de forma significativa a constituição dos agrupamentos familiares e a convivência entre os pais que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou adotivos. A função da parentalidade passa a questionar as normas sociais que a regulamentam voltando a ser objeto de análises e busca de ajustes dos antigos saberes sobre o papel da família na vida da criança.

Os métodos anticoncepcionais e a biogenética rompem a antiga junção casamento-sexo-procriação. A concepção não decorre somente do contato sexual. Não é mais necessário estar casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As uniões homoafetivas não só têm o reconhecimento social como podem adotar filhos ou mesmo concebê-los e assumirem uma função parental. Novos modelos conjugais homoparentais ou monoparentais assumem uma função de parentalidade.

A partir dos novos casamentos que cada um dos pares pode fazer e dos novos filhos destes novos casamentos, os núcleos familiares precisam receber os filhos de um ou ambos os integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior, promovendo a fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e modos de vida diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade diversos. Uma criança pode pertencer simultaneamente a mais de um grupo familiar e sua circulação entre eles pode ser constante e organizada ou irregular e informal. Alguns núcleos formam verdadeiras redes que agregam ex-cônjuges, antigos e novos avós e tios, novos irmãos, enteados, padrastos e madrastas.

A filiação passa a não ser mais definida pelos laços sanguíneos, legais ou residenciais e sim por uma filiação social ou socioafetiva, fundando um grupo doméstico cada vez que em uma casa se juntam o novo casal e os filhos de um, de outro e de ambos. Um novo panorama familiar e seus múltiplos e inéditos arranjos é inaugurado.

A escolha do par conjugal não depende mais de sexo ou gênero. Embora o critério seja o amor e a aposta seja de futuro, diminui o acento na promessa de amor eterno ou na indissolubilidade da relação. O vínculo amoroso permanece enquanto é possível manter os acordos e estes, mais do que nunca demandam contínuas negociações e pactos de cumplicidade. Ao contrário da estabilidade formalizada à priori nos antigos casamentos, tais pactos dependem exclusivamente da lealdade e do comprometimento mútuo, o que permitirá ou não aos pares compartilhar uma busca de metas a longo prazo que implique um adiamento de satisfações em troca de um futuro.

Ser pai ou mãe, ou exercer uma função de parentalidade também passa a depender apenas de um comprometimento. O lugar do pai e da mãe não tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais legítimos nem por um homem e por uma mulher. A "função paterna" ou "função materna” não implica na presença de um homem e de uma mulher. São funções de cuidados e responsabilidade com o desenvolvimento físico e psíquico do bebê e com sua inserção na cultura. Embora a família tenha mudado sua feição e desconstruído  seu antigo modelo, o exercício destas funções continua sendo essencial e necessário para a sobrevivência da criança.

A horizontalização das relações familiares faz com que o antigo poder patriarcal passe a ser compartilhado entre os diferentes membros. As gerações se aproximam nos modos de existir. Pais e filhos vestem roupas semelhantes, freqüentam os mesmos lugares, consomem os mesmos objetos e fazem trocas antes pouco imaginadas, dando um novo colorido ao convívio familiar. O mundo contemporâneo ganha pais mais amorosos e mais preocupados em proporcionar um ambiente protegido aos seus filhos. O contraponto é que aumenta a tentativa de evitar quaisquer frustrações a estas crianças. A responsabilidade e a autoridade que o exercício das funções parentais exige muitas vezes é vista como um lugar pouco atrativo e constrangedor pelos pais e muito combatido pelas crianças, embora seja essencial para que possa ser confirmada a diferença geracional que permite legitimar e sustentar a existência de cada criança.

Homens e mulheres, pais ou mães, biológicos ou adotivos se vêem diante do desafio de assumir uma função parental. Como se responsabilizar por este lugar de acolher, criar e educar as crianças que lhe cabem? Nas famílias recompostas em que convivem filho(a)s de outros relacionamentos ou pais e mães adotivos o exercício da função de pais requer acertos, pactos e alianças que legitimem estas parentalidades a fim de que as crianças possam assumir suas filiações.

Mesmo mantendo o amor como base, o interior de qualquer grupo familiar não é só paz e harmonia. A dinâmica entre os membros familiares é complexa e depende de uma rede de sentimentos e fantasias que se cruzam. Os excessos são em geral patológicos, as justas medidas difíceis e a tarefa de construir um espaço que possa suportar os conflitos entre as expectativas e os fracassos, os sentimentos de amor e ódio, de acolhimento e autonomia, é infinita.

O modelo idealizado de família voltada para a produção de bem-estar, em que deveria bastar ter seu   fundamento no amor entre os membros, demonstra quase sempre ser um terreno fértil na produção de violência psíquica. Sendo a razão de seu viver e fruto de um alto investimento dos pais, a criança passa a carregar inúmeras e muitas vezes descabidas expectativas por parte destes. A dívida amorosa pode se converter em sentimentos de culpa tanto pela incapacidade de cumprir com as expectativas quanto pela sensação de não amá-los tanto quanto esperam.

Paradoxalmente, apesar da imensidão de saberes que a ciência produziu e continua a produzir dirigido aos cuidados e às necessidades do bebê e de seu futuro, e a profusão de cartilhas variadas, famílias, pais e crianças seguem meio órfãos a buscar amparo em novas redes de sustentação. É certo que o imaginário cultural coloca a criança e a infância no centro de suas preocupações presentes e futuras e cobra modelos idealizados das funções parentais. Também são inúmeras as tentativas de instrumentalizar estas funções ou oferecer suplência a elas.

Apesar de suas contribuições importantes, muitas já incorporadas ao imaginário social, um século de psicanálise e a revelação da existência de um inconsciente humano, de motivações escusas e de difícil acesso, não conseguem impedir que o psiquismo humano resista insistentemente à emergência deste inconsciente, nem que novos sintomas psíquicos sigam sendo produzidos diante do que escapa a interpretação humana.

Ao que parece, o projeto moderno da busca da felicidade e de um bem-estar geral não encontra soluções definitivas, mas segue construindo novas e desafiadoras experiências. A despeito deste destino conturbado, o ideal de amor romântico mantém-se como norte na formação dos pares conjugais e na relação dos pais e seus filhos, mesmo ocupando um lugar fetichizado ao não esconder suas promessas ilusórias. Também a família com suas novas facetas, permanece sendo o espaço que pode propiciar a cada rebento tornar-se gente grande, construir um futuro e um lugar no mundo para ser reconhecido por seus pares. Uma visão idealizada, mas necessária para que se possa imaginar um mundo futuro em que indivíduos possuam um lugar de construção de si e de transmissão dos valores geracionais e culturais.

Usufruindo de um mundo novo tecnológico, com confortos e benesses jamais vistas, o novo sujeito e seus novos valores inauguram uma nova família. Novos tempos, novas mulheres novas homens.

Nasce uma nova subjetividade mais ancorada na exterioridade da imagem corporal e na fruição das sensações físicas. São novos ideais, novos modelos de pensamento, novos repertórios de condutas, novos jogos de linguagem, novos sentidos ou verdades que dão consistência ao imaginário social .Com a ciência como geradora de verdades e sentidos para o mundo e para o individuo e a explosão das tecnologias cognitivas que tem transformado e redesenhado a nossa visão do mundo, o modo como os indivíduos se subjetivam se modificou, inaugurando um discurso em que a dimensão biológica começa a sobrepujar a psicológica. Ao lado de tristezas, apatias, temores, surgem depressão, pânicos, distmia. A fronteira entre privado e público fica tênue e o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental, expressando muito mais as incompetências, as insuficiências e as disfunções. O bem estar é um dever e o mal estar sinal de incompetência.Por outro lado este quadro torna mais visível  que nos constituímos pelos laços sociais e que nossa autonomia é relativa e implica dependências importantes.A ação humana vai se livrando dos limites de sua biologia retirando cada vez mais a “naturalidade” das concepções sobre o humano. Mas a psicanálise continua interrogando a experiência humana. Todos os setores que se cruzam na pretensão de estudar o humano necessitam refletir necessariamente sobre o individuo, a família, a fronteira entre privado e público. Mas a despeito de todo o progresso do conhecimento algo de humano nos escapa: a natureza estorva a cultura, o gozo insiste sobre as leis.

Nossa ética é uma ética baseada na individualidade e são nossos afetos que fundamentam hoje nossas ações morais. Uma cidadania emocional que convoca a cada um sentir o que o outro está sentindo. A ética viabiliza o convívio entre os indivíduos

Gisela Haddad é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica e membro do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae

Texto apresentado no VII Encontro Nacional sobre o Bebê – Nascimento –Antes e Depois- Cuidados em Rede – 1 a 4 de maio de 2008  PUC Rio de Janeiro

 

 


     

ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE: ACONTECIMENTO OU MOVIMENTO?

 

Ao responder a pergunta a respeito do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, em entrevista concedida à revista Percurso Nº. 37, trouxe à tona questões que nos convocam a um posicionamento sobre o tema.

Vale notar que a pergunta foi pertinente e oportuna, já que a quase uma década da primeira convocação dos Estados Gerais da Psicanálise em 1997, qualquer psicanalista ligado ao movimento iniciado pelo apelo de René Major - ou, que acompanhou a repercussão pública dos encontros realizados na Europa e na América Latina ao longo desse período -, reconhece a necessidade de avaliar o caminho percorrido e inquirir sobre sua atualidade e seu futuro. Ainda mais, alguém como Elizabeth Roudinesco, que teve um papel importante, especialmente em seu começo.

De sua resposta à revista Percurso, pudemos depreender três pontos sobre os quais gostaríamos de nos deter, considerando que levantam questões significativas em relação ao movimento, sua constituição e suas repercussões dentro e fora da polis psicanalítica.

 

1. No que diz respeito ao I Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise em 2000, Paris - do qual foi participante e uma das idealizadoras - Roudinesco exalta seu sucesso e credita a este o lugar de único e verdadeiro acontecimento que, uma vez concluído, não deveria ter tido continuidade.

 

2. Em seguida, refere-se ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em 2003 no Rio de Janeiro - do qual não teve oportunidade de participar - como tendo sido um fracasso. Conclui isto a partir da crítica que faz a uma das conferências proferidas e sua acolhida pelo público presente, que ela reputa unânime.

 

3. Finalmente, evidencia-se a ausência de qualquer referência aos Encontros Latino-americanos. Qual seja, quatro Encontros Latino-americanos dos Estados Gerais, dos quais o primeiro, segundo e quarto realizados em São Paulo, no Instituto Sedes Sapientiae e o terceiro em Buenos Aires. Todos com uma repercussão importante, tanto em relação ao número de participantes e de trabalhos apresentados, como na qualidade destes e nos debates e intercâmbios que ali aconteceram.

 

Os comentários a seguir tratarão dos três pontos destacados acima.

 

Quanto ao primeiro, que considera Paris 2000 um êxito, estamos de pleno acordo, porém, com algumas ressalvas. Roudinesco aponta na entrevista o fervor latinoamericano como uma das causas desse sucesso único. Todavia, a mobilização e o alto comparecimento dos psicanalistas latinoamericanos ao encontro - às quais se refere como fervor, são frutos de um longo processo que o precedeu e sobre o qual discorreremos a seguir. Vejamos.

O processo deflagrado pela convocação dos Estados Gerais da Psicanálise durante o ano de 1997 pelo próprio René Major, - e ao qual aderiu, entre muitos outros, Elisabeth Roudinesco -, mobilizou intensamente o mundo psicanalítico. Como se esclarece na entrevista, em nota de rodapé, organizaram-se em todas as partes grupos de trabalho e reflexão. Tratava-se de interrogar a psicanálise, tanto no plano da prática teórica e clínica, como nas formas de ensino, transmissão e organização institucional. Bem como de analisar sua relação com outros saberes e campos da cultura, incluindo o plano do social e do político.

 Nossa acolhida tão favorável à proposta se deveu, sem dúvida, ao frutífero desenvolvimento que vinha experimentando a psicanálise na América Latina, associada à história de lutas teóricas e ideológicas pela democratização das instituições, movimentos de ruptura e experiências inovadoras no campo político-institucional. Além disso, os analistas foram convocados através de uma ampla difusão transversal, a construir espaços novos com uma organização horizontal e supra-institucional na qual almejava-se uma participação fluída e livre de hierarquias e constrangimentos burocráticos e teóricos que dependessem de interesses corporativos, de modo a facilitar uma enunciação em nome próprio. Criaram-se grupos de trabalho com essas características em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, simultaneamente aos que aconteciam em Buenos Aires.

 Foi nesse clima que se realizou em São Paulo o I Encontro Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanálise em 1999 no Instituto Sedes Sapientiae - um ano antes do Mundial de Paris -, que se revelou de fundamental importância tanto para a difusão da convocatória, quanto para a elaboração e discussão dos trabalhos latino-americanos que seriam levados a Paris. Na assembleia de encerramento destinada a avaliação do encontro e ao ajuste final dos preparativos aprovou-se por aclamação a proposta dirigida ao Comitê Internacional - e posteriormente acatada pelo mesmo -, de instituir o português como uma das línguas oficiais do encontro mundial em Paris.

Coincidimos, portanto, com Roudinesco, na atribuição de importância e significação ao encontro de Paris. Ao final deste primeiro encontro mundial firmou-se a disposição para responder a novas convocatórias no futuro, caso tivessem grupos de analistas que se dispusessem a fazê-lo, deixando em aberto o lugar para a sua realização. A dissolução do comitê organizador, ao final do encontro, sinalizou a oposição a qualquer tendência à concentração, permanência e cristalização no poder.

Assim, a nosso entender, desde a convocatória dos Estados Gerais da Psicanálise e através de uma sequência de acontecimentos, a criação dentro da polis psicanalítica de um espaço de forte potência instituinte deflagrou um movimento capaz de conduzir a novos acontecimentos sem desembocar em nenhuma espécie de institucionalização. Essa foi sua utopia fundante.

 Ao longo dos sucessivos encontros, foram retomadas as temáticas iniciais, acolhidas outras novas e explorados modos de organização e dispositivos de funcionamento diversos. Questões levantadas nos debates exigiam tempo para trabalho de elaboração e, portanto, anunciavam um processo. Pensamos que através desta continuidade marcada por momentos de confluência e elaboração coletiva, nos produzimos como sujeitos políticos, protagonistas de experiências criativas e criadoras de sentido histórico, que enriquecem nossa prática e fazem avançar a psicanálise.

Depois do I Mundial em Paris 2000, acontecem em 2001 o II Latino-americano em São Paulo, em 2002 o III Latino-americano em Buenos Aires, em 2003 o II Mundial no Rio de Janeiro e em 2005 o IV Latino-americano em São Paulo.

Na entrevista à Percurso, ao referir-se à presença de divisões que afetam a continuidade e o sucesso dos Estados Gerais, Roudinesco não considera a possibilidade de que as divisões entre analistas passem por outras questões tais como a desmobilização dos analistas europeus, ou o seu recolhimento para o interior de suas instituições, nas quais, à época, predominava uma situação inusitada. Estamos nos referindo à divisão de posições dos seus associados em cada uma delas em relação à regulamentação da profissão do psicanalista. Divisão esta que não corresponderia, dessa vez, a enfrentamentos doutrinários e interinstitucionais. Preocupados e divididos na defesa da psicanálise no seu exercício profissional desinvestiram, ao que parece, a dimensão supra institucional de pensamento crítico, de análise da cultura e de teoria da sociedade e da história, o que pode ter nefastas consequências exatamente nessa questão.

 O segundo ponto que levantamos para nossa discussão refere-se às apreciações feitas por Roudinesco ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em 2003 no Rio de Janeiro. Pensamos que esse encontro cumpriu com êxito os itens de sua convocatória ao constituir um espaço onde psicanalistas de diversos lugares e filiações pudessem debater a clínica, as produções teóricas e as relações da psicanálise com as práticas sociais, políticas e éticas do mundo contemporâneo. Reduzi-lo ao efeito conflitante de uma das conferências significa desconsiderar o valor de todo o encontro que, a nosso ver, possibilitou discussões e debates intensos no âmbito da política e da psicanálise, fundamentais para a nossa atualidade. Vale salientar, o êxito do exercício da função-leitor sustentado no dispositivo dos coletivos de leitura criados para subsidiar essa função teve efeitos positivos nos avanços obtidos através da dinâmica de suas plenárias.

 O terceiro ponto diz respeito à realização dos Encontros Latinoamericanos que Roudinesco parece não levar em consideração, pois, não os menciona em sua entrevista. Pensamos que o movimento deflagrado pelos Estados Gerais da Psicanálise foi importante para os psicanalistas latino-americanos ao propiciar interligações internas e transversais, habitualmente dificultadas pelos confinamentos institucionais ou de filiação teórica, possibilitando uma ampla circulação da produção individual ou grupal e produzindo efeitos de conhecimento e reconhecimento. Muito do fervor latinoamericano em Paris relacionava-se às oportunidades que se abriram para um reconhecimento e uma interlocução longamente postergada, que se iniciou com a resposta à denúncia de Helena Bessermann Viana, resposta esta que foi radicalmente diferente e oposta à atitude de abafamento assumida pela IPA.

 

A partir de sua convocatória inicial e ao longo de todos esses anos os Encontros Latino-americanos dos Estados Gerais da Psicanálise mantiveram acesa a proposta e sustentaram a continuidade do movimento abrindo-se irrestritamente à diversidade de expressões da prática psicanalítica. Agindo como caixa de ressonância de questões emergentes nos campos clínico, institucional, social e político, tornaram-se espaço de interligação de analistas de diferentes correntes, grupos e línguas; de diferentes âmbitos de atuação pública e privada; de diferentes lugares e, também, de diferentes gerações. Catalisaram processos de transmissão e de filiação, reconstruíram histórias interrompidas pela repressão política ou pelo exílio, funcionando como espaço de interlocução e respaldo recíproco para as lutas dos psicanalistas contra a prevalência dos modelos biologistas e cognitivistas, comprovando, mais uma vez, a validade da clínica psicanalítica.

Foi em continuidade e em conformidade com esse espírito que convocamos o IV Encontro Latino-americano que aconteceu em São Paulo em novembro de 2005, com grande afluência de psicanalistas de todo o Brasil e da Argentina. Manteve-se a metodologia de discussão adotada em encontros anteriores com a apresentação dos trabalhos pelos próprios autores em pequenos grupos de discussão. Acrescentou-se às plenárias de abertura e de dissolução, outras nas quais foram debatidos os temas políticos cruciais da atualidade latino-americana, tais como "Politizar a desilusão". Como resultado das plenárias, destacamos a elaboração de proposta de pronunciamento público sobre a crescente medicalização da saúde, dos problemas da infância e adolescência.

Algumas interrogações a respeito do fracasso do Mundial de Bruxelas, que não obteve um número mínimo e necessário de inscrições - e que já consideramos anteriormente - também poderiam ser respondidas, ao menos no que diz respeito à participação dos psicanalistas latino-americanos, se dirigirmos a atenção à plenária do IV Latino-americano destinada à apresentação da temática e da programação deste Mundial por seu coordenador geral, Claude Van Reeth. Ali foram manifestadas divergências quanto à acentuada centralização e verticalidade da organização e do dispositivo de seu funcionamento, que nos pareciam retrocessos em relação às modalidades elaboradas e adotadas em Paris e no Rio de Janeiro. Além disso, a ausência de uma interlocução prévia com os grupos de analistas dos diversos paises ligados ao movimento causou um impacto negativo.

Vale salientar que a realização do IV Encontro Latino-americano possibilitou a continuidade do site dos Estados Gerais da Psicanálise (www.estadosgerais.org), que permite aceder não só a todos os textos apresentados como a todo o material de convocatórias de todos os encontros mundiais e latino-americanos.

Os Encontros Latino-americanos também contribuíram para a defesa da psicanálise frente às tentativas de arbitrar ardis legais por meio dos quais grupos confessionais tentam legitimar, sob o rótulo de psicanálise, concepções e propostas de ação sobre o anímico que nada tem a ver com ela, promovendo métodos e objetivos contraditórios aos dela.

Para concluir, divergimos em relação à concepção de Roudinesco sobre os Estados Gerais da Psicanálise. Seu argumento de que este seria um acontecimento que não deveria repetir-se nos parece redundante, já que os acontecimentos são sempre únicos e não há como reproduzi-los. Para nós, trata-se, como esperamos ter demonstrado nesta resposta, de um movimento, e, portanto, que mantém uma continuidade. Desde 1997 todos os que responderam e participaram dos encontros realizados foram aqueles que lhes deram razão e conteúdo e para os quais o movimento faz sentido.

O que constitui uma marca do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise - através das diversas conjunturas e que se atualiza a cada encontro - são os dispositivos que possibilitam tanto uma apropriação coletiva da experiência quanto a sustentação de uma dimensão singular de cada pronunciamento em nome próprio, o que implica cada um dos psicanalistas presentes. Assim, tanto sua proposta quanto sua realização tornaram-se responsabilidade de todos e os encontros são tributários desta responsabilidade. É de se supor que enquanto houver quem assuma, isto é, enquanto houver quem convoque, enquanto houver quem responda, poderá haver Estados Gerais da Psicanálise.

 

Fátima Milnitzky

Gisela Haddad

Mario Pablo Fuks

Paulina Rocha

Sidnei Goldberg

Comitê de Coordenação do

IV Encontro Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanálise

 


* Gisela Haddad é membro da equipe de coordenação dos Estados Gerais da Psicanálise - São Paulo e da seção Debates da Revista Percurso.

[1] A referida entrevista pode ser encontrada na seção Entrevistas e Debates do site de Percurso: http://www2.uol.com.br/percurso/

 

 


  Divagando sobre amor, fidelidade, cultura e psicanálise

 

Gisela Haddad 2006

Mesmo testemunhando as inúmeras mudanças que rondam as relações amorosas na era atual, não é difícil detectar na cultura indícios de um “credo amoroso”: continuamos a considerar o amor universal, incontrolável e condição inquestionável de felicidade. Em seu livro Sem fraude nem favor (1998) Freire Costa tenta desmistificar o ideal do amor romântico apontando todas as incongruências da manutenção ainda atual de sua aura transcendente propondo que se pense em alternativas e lembrando que “a emoção amorosa não nasceu pronta e acabada em algum lugar da mente, podendo ser aperfeiçoada por outros sentimentos, razões e ações”. Segundo ele, deveríamos inventar um “neo-romantismo” mais comprometido com as demandas do mundo e do sujeito atual.

A argumentação empregada por Freire Costa (1998), pode ser comparada a utilizada por Freud (1927) em seu texto O futuro de uma ilusão, em que este propõe uma desmistificação da religião por ser esta um recurso ilusório a serviço da dificuldade humana em viver na orfandade, sem garantias transcendentes e idealizadas de onisciência e onipresença. Nesta crítica à visão totalitária e empobrecedora de mundo característica das religiões, Freud buscava questionar a necessidade da manutenção de um Deus todo-poderoso em um mundo  “desencantado”, assim como Freire Costa se surpreende com a continuidade do mito de fusão e  perfeição ansiado no amor romântico que coloca os sujeitos entre a culpa ou a impotência  pelo fracasso e a condenação da paixão como um desvario. Ambos defendem novos roteiros sociais para a felicidade, que não precisem conter a promessa de preencher faltas, soldar frestas ou realizar a sonhada e inalcançável completude.

É certo que no final de sua obra podemos ver um Freud mais preocupado com as criações humanas destinadas a encobrir de alguma maneira, a verdade sobre a fragilidade e a efemeridade de sua condição, embora o combate às ilusões fosse uma constante em sua obra, junto às idealizações do passado e do futuro.

O conceito central da obra freudiana, a castração, está diretamente relacionado a possibilidade de aceitar o ônus de sofrimento que é imposto à condição humana, ou melhor à necessidade de se renunciar aos ideais de perfeição, totalidade e infinitude e de se admitir a imperfeição e a incompletude humanas.

Mas, a despeito da insistência de Freud na necessidade de se assumir a castração, em direção a aceitação das vicissitudes da vida, com os prazeres e as dores que os outros podem oferecer aos nossos sentidos, não se consegue eliminar as insistências e as permanências das ilusões humanas.

Entre estas ilusões, certamente incluem-se as religiões, mas também o amor, seja associado à felicidade, a eternidade ou a liberdade, o que explicaria em parte a permanência do mito do amor romântico.

Ao ocupar um lugar sagrado na cultura, com direito a ser desejado sem questionamentos, o amor é visto como uma contingência das biografias individuais, sem uma história própria, sem narrativas datadas. Esquece-se que seus repertórios são construídos e contados em versos, prosas, filmes e novelas.

A psicanálise freudiana é, em sua essência, um discurso sobre o conflito entre tendências e uma tentativa de desconstruir a crença em qualquer referente absoluto. Em sua obra Freud tentou construir uma metapsicologia amorosa, em busca de um fundamento objetivo para seus fenômenos. Para ele a dinâmica amorosa se dá em torno de processos de idealização, na tentativa de restaurar um estado fictício de completude. Apaixonar-se seria ter acesso ao ideal e à completude narcísica e nesse sentido teria um caráter ilusório (1914)

No contexto cultural de sua época, a imagem do amor romântico era indissociável da fusão paixão, idealização sentimental, ternura e desejo erótico. Mas Freud quase chega a afirmar a impossibilidade de um amor “normal” ao postular que a escolha amorosa é devedora de um tempo anterior e a busca incessante que se faz, jamais será realizada satisfatoriamente.

O modelo da paixão amorosa em Freud segue o modelo do narcisismo primário infantil (1914) tramado numa rede intersubjetiva, na qual a supervalorização dos pais gera uma visão supervalorizada de si mesmo. A paixão amorosa seria uma maneira de se manter a crença na possibilidade de perpetuação deste tempo feliz, resgatando a completude narcísica, ao preço de uma experiência efêmera e repetitiva de regressão a um estado infantil de indiferenciação. Por conter essa ilusão de plenitude, seu caráter alienante afastaria o sujeito da realidade e da verdade.

Entretanto as experiências de êxtase proporcionadas pelo apaixonamento romântico, embora ilusórias e construídas sobre fantasias e desejos, parecem ter um sentido de “verdade psíquica”, ainda que temporário.  “Verdade fugaz” que alimenta a crença na universalidade do amor romântico como ideal de felicidade, que mesmo sendo datado, resiste bravamente à mudanças, reivindicando o direito à eternidade e ignorando sua própria contingência no mundo.

A história do amor romântico no Ocidente vem de mãos dadas com a história do individualismo e é no ápice desta história que, em finais do século XIX, surge a psicanálise, todos tributários do pensamento moderno.

É a partir da criação da idéia de individuo como entidade independente, com uma dimensão interior e capacidade reflexiva, que foi possível a construção do conceito de sujeito, tão cara a psicanálise. Segundo Garcia e Coutinho (2004) hoje seria impossível pensar-se a concepção de sujeito sem a idéia do indivíduo e,  desde a modernidade, as novas configurações do individualismo costumam provocar efeitos subjetivos.

A instauração da cultura individualista no Ocidente como uma manifestação da ideologia moderna, em seus aspectos econômicos, políticos e religiosos teve como marco inaugural a Revolução Francesa (Dumont,1985). Esta seria a vertente iluminista do individualismo que privilegia a idéia do homem como centro do universo, uno, livre e responsável por seus próprios atos. Mas o individualismo tem também uma herança romântica, na qual as idéias de privacidade, singularidade e de uma biografia pessoal única para cada individuo foram intensamente cultivadas.

A evolução do individualismo nas sociedades ocidentais culminou com a figura do individuo moderno, como uma entidade econômica e psicológica, e uma interiorização que privilegia a esfera privada.

Pode-se detectar duas revoluções individualistas, uma mais antiga que enfatiza o discurso dos valores centrais de igualdade e liberdade, e outra (século XIX e XX) que privilegia a singularidade; ambas coexistiriam na cultura contemporânea sob a forma de duas tendências em constante tensão.A indicação de que o amor romântico conhece um desenvolvimento sem precedentes no século XIX está em estreita harmonia com esta segunda tonalidade de que se reveste o individualismo a partir de então.

Dos primórdios da psicanálise, quando Freud se deparava com uma cultura que cerceava o individuo, impedindo a satisfação das pulsões sexuais e agressivas (1908), passamos a uma sociedade que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e que estimula a busca do prazer constante.

Vale a pena examinarmos outras dimensões do individualismo que foram se configurando na época atual, privilegiando o ideário de liberação presente nas diversas formas da relação do individuo com o social. Este ideário, segundo Garcia e Coutinho (2004) questiona todo e qualquer constrangimento social, particularmente sobre as questões da sexualidade, e promove o corpo a um status antes inimaginável de construção de identidades pessoais.

Para Lipovetzky (1998) a vertente do individualismo moderno que dispensou as ideologias de solidariedade e consciência de classe elegeu o singular com especial acento aos valores privados de liberdade e autonomia individuais, fugindo de dispositivos religiosos de submissão humana à princípios superiores fora de alcance. Neste sentido, o ethos moral atual seria mais sensível às liberdades democráticas do que o burguês tradicional.

Não parece arriscado dizer que estas mudanças socioculturais vêm provocando impactos nas subjetividades. O século XX assistiu a uma transformação acelerada dos ideais sociais, dos valores morais e dos laços sociais. As novas formas de subjetivação produzidas pelo mundo contemporâneo mostram novos olhares sobre o universo das mulheres e dos homens, com novas configurações amorosas, novos desdobramentos éticos e estéticos.

“Há quase três décadas somos testemunhas de transformações importantes na ordem da divisão social dos papéis sexuais, dos lugares e dos atributos do feminino em particular” diz Lipovetzky (2005).

Soler (2005) também destaca a grande contribuição da ciência para a  mudança da realidade social das mulheres que conquistaram o direito a escolhas  antes impensadas, produzindo desdobramentos importantes no campo profissional, social,  pessoal e amoroso.Com a dissociação entre casamento, sexo e maternidade é grande o número de possibilidades de arranjos  que estão disponíveis para os indivíduos.A liberdade sexual tão desejada e conquistada também aponta mudanças em valores importantes como, por exemplo, a fidelidade,  antes   um valor cultural compartilhado e hoje  uma exigência subjetiva,uma reivindicação ou uma predisposição pessoal pactuada entre os indivíduos.

Soler ainda aponta para o fato dos antigos modelos de identidade de gênero, que ordenavam as relações entre os sexos, terem  sofrido importantes modificações.Não só o ideal da mulher no lar sofreu uma erosão rápida e profunda, como os homens já não consideram indigno participar das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos. A satisfação sexual é hoje uma exigência justificada para todos, um fim em si mesma, independente das finalidades da procriação e dos pactos de amor, além de merecer a atenção e cuidados de terapeutas e sexólogos.

Segundo Costa (1998), é a cultura quem assinala as novas imagens do amor apontando seu lugar entre os ideais aprovados e fazendo com que estes sejam desejáveis. Neste sentido as formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a felicidade fazem parte, num conluio nem sempre explícito, dos valores morais de cada época.

Sabemos que o amor romântico já foi responsável pela conversão dos homens e mulheres em pais e mães, favoreceu a formação da família nuclear e os cuidados amorosos com os filhos, dividiu os indivíduos em heterossexuais e homossexuais e, principalmente, ofereceu uma opção de “êxtase” físico e sentimental que se tornou hegemônico na modernidade, em contraposição aos êxtases religiosos ou revolucionários.

Por outro lado, se o amor romântico burguês habitou a cultura da contenção de uma época em que reinavam valores tais como família, pudor, vergonha, repressão sexual, casamentos que visavam a procriação e a dessimetria de liberdade sexual entre homens e mulheres, hoje estes valores perderam em importância, cedendo seu espaço a novos. Mas quais?

Como é amar hoje? O que é certo ou errado no amor? Como se apaixonar sem sofrer? Pode-se viver sem o amor? Sem sexo? O que fazer quando se ama e não se é amado? O que fazer quando se trai ou se é traído? A infidelidade deve ser aceita, repudiada, discutida? Ainda cabe sonhar com a tríade casamento-filhos-família? Estas são algumas das questões que povoam os consultórios de psicanálise, mas também a literatura, o cinema, as novelas e músicas cujos temas privilegiam as vicissitudes do amor, em suas fronteiras com o desejo erótico, fazendo parte do imaginário popular.

Apesar da união permanente entre os casais ter sofrido grandes transformações, o ideal romântico permanece existindo para os dois de forma majoritária. Tanto homens quanto mulheres vivem problemas diretamente associados às dificuldades para a realização do amor romântico, revelando uma contradição, em relação ao desejo de casar ou viver um relacionamento afetivo estável, duradouro e monogâmico. Dentre estes problemas os mais citados teriam sido os ciúmes e a infidelidade, sendo que esta última estaria muitas vezes referida ao rompimento de um pacto de confiança mútua entre os parceiros.Por outro lado, revelaria a permanência de uma aspiração de exclusividade sexual para ambos.

 Hoje convivem de maneira conflituosa os valores “tradicionais” e “modernos” dos modelos de conjugalidade e os homens e mulheres procuram conciliar desejos, comportamentos e valores hierárquicos e igualitários e individuais, num processo de ressignificação dos arranjos conjugais que rompe com a dualidade tradicional versus moderno.

Se os  valores morais são tributários de sua época histórica e se, o amor romântico, esteve presente na história da Modernidade, assumindo as feições tanto políticas e econômicas quanto sócio-culturais de cada época, pergunta-se  o que, na cartografia emocional contemporânea, cabe o nome de transformação, redescrição ou aquisição de novos valores para o amor romântico.O tema da fidelidade representa sem duvida os paradoxos da manutenção do mito do amor romântico na atualidade, por encerrar ao mesmo tempo um anseio a um ideal de exclusividade, mas  produzir grandes sofrimentos diante dos impasses da realização deste desejo.

Como os pares conjugais da atualidade, cuja união tem como base o amor romântico, se relacionam com a promessa de fidelidade sexual no mundo contemporânea?

A fidelidade tem um papel histórico importante, seja no cumprimento de uma qualidade valorizada coletivamente como um domínio de si, seja na pontuação divina que transforma a desonra em pecado ou ainda nos dramas íntimos do sujeito moderno.

A história da fidelidade sexual revista em seus aspectos sociais  políticos e jurídicos de preservação da família,  descendência e  patrimônio,  permeados pela moral sexual de cada época da história ocidental põe em foco a hegemonia do pensamento masculino no Ocidente.Neste sentido, o tabu da virgindade e outros mitos teriam ajudado a encarcerar o feminino como enigmático e perigoso, mantendo uma longa dessimetria entre os gêneros quanto à aceitação social da infidelidade sexual.Por outro lado, Gay (1998) nos mostra em seu trabalho sobre o século burguês, como a enigmática sexualidade feminina despertava reações as mais diversas no sexo masculino.Por este motivo, tentaremos mapear estas diferenças entre os gêneros à luz da fidelidade sexual.

Se hoje os amores e prazeres são contratuais e dependem exclusivamente dos parceiros, os casamentos do início da era moderna seguiam uma série de regras sociais, políticas e jurídicas, o que aponta também para diferentes contornos da questão da fidelidade sexual.

Por outro lado a “sexualidade”, como uma ciência do sexual, surgiu na modernidade pretendendo focalizar a saúde dos indivíduos, criando dispositivos e normas para o prazer sexual, um biopoder e uma bioética. Como lembra Foucault, sendo o sexo acesso à vida do corpo e à vida da espécie, ele passa a ter lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos.

A psicanálise certamente se alimentou destes discursos e empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente. Ao apontar o recalcamento da sexualidade das histéricas no final do século XIX, ela também salientou o lugar de fantasia deste sexual, produzindo uma teoria singular sobre a sexualidade humana onde o sujeito é, ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela.

Freud, em suas descobertas sobre o amor erótico e terno, suas análises sobre o casamento monogâmico e a constituição da família  nuclear como um ideal de desenvolvimento emocional, seu engajamento contra as imposições de uma moral  sexual civilizada que constrangia a vida sexual de homens e mulheres e sua perspicácia quanto à impossibilidade de se manter um vínculo amoroso e sexual eterno sem as tentações contínuas da infidelidade, produto de fantasias infantis que remetem aos primórdios das relações narcísicas e edipianas. Veremos como Freud, já no final de sua obra (1930), mesmo diante dos limites do real da pulsão de morte e da insistência do imaginário narcísico, mantêm a constituição da família como uma saída possível para a realização sexual e psíquica dos sujeitos. Família esta, restrita hoje ao par conjugal identificado como uma   “unidade social” que, mesmo diante da ambição igualitária entre os gêneros propagada  pelo individualismo moderno, mantêm-se às custas do ideal de completude prometido pelo mito do amor romântico, enfrentando assim as agruras de uma convivência que requer permanentemente uma “contabilidade conjugal”.

É neste panorama que a fidelidade fica reduzida a um elemento de “impasse”, sempre a rondar as uniões conjugais e a lembrá-las de sua finitude eminente ou de sua existência efêmera.

Quem sabe por se constituir como impossibilidade real na manutenção do mito da completude amorosa prometida pelo amor romântico, a fidelidade sexual atravessou os séculos modernos sendo tema recorrente de filmes, novelas, músicas e romances. Alimentando de forma inigualável o repertório do imaginário cultural amoroso, não se cansa de contar em verso e prosa as dores e o sofrimento provocados pelas experiências de perdas que rondam as expectativas de fidelidade sexual.