ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE: ACONTECIMENTO OU
MOVIMENTO?
Ao responder a
pergunta a respeito do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise, a
historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, em entrevista concedida à
revista Percurso Nº. 37, trouxe à tona questões que nos convocam a um
posicionamento sobre o tema.
Vale notar que
a pergunta foi pertinente e oportuna, já que a quase uma década da primeira
convocação dos Estados Gerais da Psicanálise em 1997, qualquer psicanalista
ligado ao movimento iniciado pelo apelo de René Major - ou, que acompanhou a
repercussão pública dos encontros realizados na Europa e na América Latina ao
longo desse período -, reconhece a necessidade de avaliar o caminho percorrido
e inquirir sobre sua atualidade e seu futuro. Ainda mais, alguém como Elizabeth
Roudinesco, que teve um papel importante, especialmente em seu começo.
De sua
resposta à revista Percurso, pudemos depreender três pontos sobre
os quais gostaríamos de nos deter, considerando que levantam questões
significativas em relação ao movimento, sua constituição e suas repercussões
dentro e fora da polis psicanalítica.
1. No que diz
respeito ao I Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise em 2000, Paris
- do qual foi participante e uma das idealizadoras - Roudinesco exalta seu
sucesso e credita a este o lugar de único e verdadeiro acontecimento que, uma
vez concluído, não deveria ter tido continuidade.
2. Em seguida,
refere-se ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em 2003 no Rio de
Janeiro - do qual não teve oportunidade de participar - como tendo sido um
fracasso. Conclui isto a partir da crítica que faz a uma das conferências
proferidas e sua acolhida pelo público presente, que ela reputa unânime.
3. Finalmente,
evidencia-se a ausência de qualquer referência aos Encontros Latino-americanos.
Qual seja, quatro Encontros Latino-americanos dos Estados Gerais, dos quais o
primeiro, segundo e quarto realizados em São Paulo, no Instituto Sedes
Sapientiae e o terceiro em Buenos Aires. Todos com uma repercussão importante,
tanto em relação ao número de participantes e de trabalhos apresentados, como
na qualidade destes e nos debates e intercâmbios que ali aconteceram.
Os comentários
a seguir tratarão dos três pontos destacados acima.
Quanto ao
primeiro, que considera Paris 2000 um êxito, estamos de pleno acordo, porém,
com algumas ressalvas. Roudinesco aponta na entrevista o fervor
latinoamericano como uma das causas desse sucesso único. Todavia, a
mobilização e o alto comparecimento dos psicanalistas latinoamericanos ao
encontro - às quais se refere como fervor, são frutos de um longo
processo que o precedeu e sobre o qual discorreremos a seguir. Vejamos.
O processo
deflagrado pela convocação dos Estados Gerais da Psicanálise durante o ano de
1997 pelo próprio René Major, - e ao qual aderiu, entre muitos outros,
Elisabeth Roudinesco -, mobilizou intensamente o mundo psicanalítico. Como se
esclarece na entrevista, em nota de rodapé, organizaram-se em todas as partes
grupos de trabalho e reflexão. Tratava-se de interrogar a psicanálise, tanto no
plano da prática teórica e clínica, como nas formas de ensino, transmissão e
organização institucional. Bem como de analisar sua relação com outros saberes
e campos da cultura, incluindo o plano do social e do político.
Nossa
acolhida tão favorável à proposta se deveu, sem dúvida, ao frutífero
desenvolvimento que vinha experimentando a psicanálise na América Latina,
associada à história de lutas teóricas e ideológicas pela democratização das
instituições, movimentos de ruptura e experiências inovadoras no campo
político-institucional. Além disso, os analistas foram convocados através de
uma ampla difusão transversal, a construir espaços novos com uma organização
horizontal e supra-institucional na qual almejava-se uma participação fluída e
livre de hierarquias e constrangimentos burocráticos e teóricos que dependessem
de interesses corporativos, de modo a facilitar uma enunciação em nome próprio.
Criaram-se grupos de trabalho com essas características em São Paulo, Rio de
Janeiro, Brasília, Recife, simultaneamente aos que aconteciam em Buenos Aires.
Foi
nesse clima que se realizou em São Paulo o I Encontro Latino-americano dos
Estados Gerais da Psicanálise em 1999 no Instituto Sedes Sapientiae - um ano
antes do Mundial de Paris -, que se revelou de fundamental importância tanto
para a difusão da convocatória, quanto para a elaboração e discussão dos
trabalhos latino-americanos que seriam levados a Paris. Na assembleia de
encerramento destinada a avaliação do encontro e ao ajuste final dos
preparativos aprovou-se por aclamação a proposta dirigida ao Comitê
Internacional - e posteriormente acatada pelo mesmo -, de instituir o português
como uma das línguas oficiais do encontro mundial em Paris.
Coincidimos,
portanto, com Roudinesco, na atribuição de importância e significação ao
encontro de Paris. Ao final deste primeiro encontro mundial firmou-se a
disposição para responder a novas convocatórias no futuro, caso tivessem grupos
de analistas que se dispusessem a fazê-lo, deixando em aberto o lugar para a
sua realização. A dissolução do comitê organizador, ao final do encontro,
sinalizou a oposição a qualquer tendência à concentração, permanência e
cristalização no poder.
Assim, a nosso
entender, desde a convocatória dos Estados Gerais da Psicanálise e através de
uma sequência de acontecimentos, a criação dentro da polis psicanalítica
de um espaço de forte potência instituinte deflagrou um movimento capaz de
conduzir a novos acontecimentos sem desembocar em nenhuma espécie de
institucionalização. Essa foi sua utopia fundante.
Ao longo
dos sucessivos encontros, foram retomadas as temáticas iniciais, acolhidas
outras novas e explorados modos de organização e dispositivos de funcionamento
diversos. Questões levantadas nos debates exigiam tempo para trabalho de
elaboração e, portanto, anunciavam um processo. Pensamos que através desta
continuidade marcada por momentos de confluência e elaboração coletiva, nos
produzimos como sujeitos políticos, protagonistas de experiências criativas e
criadoras de sentido histórico, que enriquecem nossa prática e fazem avançar a
psicanálise.
Depois do I
Mundial em Paris 2000, acontecem em 2001 o II Latino-americano em São Paulo, em
2002 o III Latino-americano em Buenos Aires, em 2003 o II Mundial no Rio de
Janeiro e em 2005 o IV Latino-americano em São Paulo.
Na entrevista
à Percurso, ao referir-se à presença de divisões que afetam a
continuidade e o sucesso dos Estados Gerais, Roudinesco não considera a
possibilidade de que as divisões entre analistas passem por outras questões
tais como a desmobilização dos analistas europeus, ou o seu recolhimento para o
interior de suas instituições, nas quais, à época, predominava uma situação
inusitada. Estamos nos referindo à divisão de posições dos seus associados em
cada uma delas em relação à regulamentação da profissão do psicanalista.
Divisão esta que não corresponderia, dessa vez, a enfrentamentos doutrinários e
interinstitucionais. Preocupados e divididos na defesa da psicanálise no seu
exercício profissional desinvestiram, ao que parece, a dimensão supra
institucional de pensamento crítico, de análise da cultura e de teoria da
sociedade e da história, o que pode ter nefastas consequências exatamente nessa
questão.
O
segundo ponto que levantamos para nossa discussão refere-se às apreciações
feitas por Roudinesco ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em
2003 no Rio de Janeiro. Pensamos que esse encontro cumpriu com êxito os itens
de sua convocatória ao constituir um espaço onde psicanalistas de diversos
lugares e filiações pudessem debater a clínica, as produções teóricas e as
relações da psicanálise com as práticas sociais, políticas e éticas do mundo
contemporâneo. Reduzi-lo ao efeito conflitante de uma das conferências
significa desconsiderar o valor de todo o encontro que, a nosso ver, possibilitou
discussões e debates intensos no âmbito da política e da psicanálise,
fundamentais para a nossa atualidade. Vale salientar, o êxito do exercício
da função-leitor sustentado no dispositivo dos coletivos
de leitura criados para subsidiar essa função teve efeitos positivos
nos avanços obtidos através da dinâmica de suas plenárias.
O
terceiro ponto diz respeito à realização dos Encontros Latinoamericanos que
Roudinesco parece não levar em consideração, pois, não os menciona em sua
entrevista. Pensamos que o movimento deflagrado pelos Estados Gerais da
Psicanálise foi importante para os psicanalistas latino-americanos ao propiciar
interligações internas e transversais, habitualmente dificultadas pelos
confinamentos institucionais ou de filiação teórica, possibilitando uma ampla
circulação da produção individual ou grupal e produzindo efeitos de
conhecimento e reconhecimento. Muito do fervor latinoamericano em
Paris relacionava-se às oportunidades que se abriram para um reconhecimento e
uma interlocução longamente postergada, que se iniciou com a resposta à
denúncia de Helena Bessermann Viana, resposta esta que foi radicalmente
diferente e oposta à atitude de abafamento assumida pela IPA.
A partir de
sua convocatória inicial e ao longo de todos esses anos os Encontros
Latino-americanos dos Estados Gerais da Psicanálise mantiveram acesa a proposta
e sustentaram a continuidade do movimento abrindo-se irrestritamente à
diversidade de expressões da prática psicanalítica. Agindo como caixa de
ressonância de questões emergentes nos campos clínico, institucional, social e
político, tornaram-se espaço de interligação de analistas de diferentes
correntes, grupos e línguas; de diferentes âmbitos de atuação pública e
privada; de diferentes lugares e, também, de diferentes gerações. Catalisaram
processos de transmissão e de filiação, reconstruíram histórias interrompidas
pela repressão política ou pelo exílio, funcionando como espaço de interlocução
e respaldo recíproco para as lutas dos psicanalistas contra a prevalência dos
modelos biologistas e cognitivistas, comprovando, mais uma vez, a validade da
clínica psicanalítica.
Foi em
continuidade e em conformidade com esse espírito que convocamos o IV Encontro
Latino-americano que aconteceu em São Paulo em novembro de 2005, com grande
afluência de psicanalistas de todo o Brasil e da Argentina. Manteve-se a
metodologia de discussão adotada em encontros anteriores com a apresentação dos
trabalhos pelos próprios autores em pequenos grupos de discussão.
Acrescentou-se às plenárias de abertura e de dissolução, outras nas quais foram
debatidos os temas políticos cruciais da atualidade latino-americana, tais como
"Politizar a desilusão". Como resultado das plenárias, destacamos a
elaboração de proposta de pronunciamento público sobre a crescente
medicalização da saúde, dos problemas da infância e adolescência.
Algumas
interrogações a respeito do fracasso do Mundial de Bruxelas, que não obteve um
número mínimo e necessário de inscrições - e que já consideramos anteriormente
- também poderiam ser respondidas, ao menos no que diz respeito à participação
dos psicanalistas latino-americanos, se dirigirmos a atenção à plenária do IV
Latino-americano destinada à apresentação da temática e da programação deste
Mundial por seu coordenador geral, Claude Van Reeth. Ali foram manifestadas
divergências quanto à acentuada centralização e verticalidade da organização e
do dispositivo de seu funcionamento, que nos pareciam retrocessos em relação às
modalidades elaboradas e adotadas em Paris e no Rio de Janeiro. Além disso, a
ausência de uma interlocução prévia com os grupos de analistas dos diversos
paises ligados ao movimento causou um impacto negativo.
Vale salientar
que a realização do IV Encontro Latino-americano possibilitou a continuidade do
site dos Estados Gerais da Psicanálise (www.estadosgerais.org), que permite
aceder não só a todos os textos apresentados como a todo o material de
convocatórias de todos os encontros mundiais e latino-americanos.
Os Encontros
Latino-americanos também contribuíram para a defesa da psicanálise frente às
tentativas de arbitrar ardis legais por meio dos quais grupos confessionais
tentam legitimar, sob o rótulo de psicanálise, concepções e propostas de ação
sobre o anímico que nada tem a ver com ela, promovendo métodos e objetivos
contraditórios aos dela.
Para concluir,
divergimos em relação à concepção de Roudinesco sobre os Estados Gerais da
Psicanálise. Seu argumento de que este seria um acontecimento que não deveria
repetir-se nos parece redundante, já que os acontecimentos são sempre únicos e
não há como reproduzi-los. Para nós, trata-se, como esperamos ter demonstrado
nesta resposta, de um movimento, e, portanto, que mantém uma continuidade.
Desde 1997 todos os que responderam e participaram dos encontros realizados
foram aqueles que lhes deram razão e conteúdo e para os quais o movimento faz
sentido.
O que
constitui uma marca do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise - através
das diversas conjunturas e que se atualiza a cada encontro - são os
dispositivos que possibilitam tanto uma apropriação coletiva da experiência
quanto a sustentação de uma dimensão singular de cada pronunciamento em nome
próprio, o que implica cada um dos psicanalistas presentes. Assim, tanto sua
proposta quanto sua realização tornaram-se responsabilidade de todos e os
encontros são tributários desta responsabilidade. É de se supor que enquanto
houver quem assuma, isto é, enquanto houver quem convoque, enquanto houver quem
responda, poderá haver Estados Gerais da Psicanálise.
Fátima
Milnitzky
Gisela Haddad
Mario Pablo
Fuks
Paulina Rocha
Sidnei
Goldberg
Comitê de
Coordenação do
IV Encontro
Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanálise
* Gisela Haddad é membro da equipe de
coordenação dos Estados Gerais da Psicanálise - São Paulo e da seção Debates da
Revista Percurso.
[1] A referida entrevista pode ser encontrada na
seção Entrevistas e Debates do site de Percurso: http://www2.uol.com.br/percurso/
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