segunda-feira, 3 de junho de 2024

 


     

ESTADOS GERAIS DA PSICANÁLISE: ACONTECIMENTO OU MOVIMENTO?

 

Ao responder a pergunta a respeito do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise, a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, em entrevista concedida à revista Percurso Nº. 37, trouxe à tona questões que nos convocam a um posicionamento sobre o tema.

Vale notar que a pergunta foi pertinente e oportuna, já que a quase uma década da primeira convocação dos Estados Gerais da Psicanálise em 1997, qualquer psicanalista ligado ao movimento iniciado pelo apelo de René Major - ou, que acompanhou a repercussão pública dos encontros realizados na Europa e na América Latina ao longo desse período -, reconhece a necessidade de avaliar o caminho percorrido e inquirir sobre sua atualidade e seu futuro. Ainda mais, alguém como Elizabeth Roudinesco, que teve um papel importante, especialmente em seu começo.

De sua resposta à revista Percurso, pudemos depreender três pontos sobre os quais gostaríamos de nos deter, considerando que levantam questões significativas em relação ao movimento, sua constituição e suas repercussões dentro e fora da polis psicanalítica.

 

1. No que diz respeito ao I Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise em 2000, Paris - do qual foi participante e uma das idealizadoras - Roudinesco exalta seu sucesso e credita a este o lugar de único e verdadeiro acontecimento que, uma vez concluído, não deveria ter tido continuidade.

 

2. Em seguida, refere-se ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em 2003 no Rio de Janeiro - do qual não teve oportunidade de participar - como tendo sido um fracasso. Conclui isto a partir da crítica que faz a uma das conferências proferidas e sua acolhida pelo público presente, que ela reputa unânime.

 

3. Finalmente, evidencia-se a ausência de qualquer referência aos Encontros Latino-americanos. Qual seja, quatro Encontros Latino-americanos dos Estados Gerais, dos quais o primeiro, segundo e quarto realizados em São Paulo, no Instituto Sedes Sapientiae e o terceiro em Buenos Aires. Todos com uma repercussão importante, tanto em relação ao número de participantes e de trabalhos apresentados, como na qualidade destes e nos debates e intercâmbios que ali aconteceram.

 

Os comentários a seguir tratarão dos três pontos destacados acima.

 

Quanto ao primeiro, que considera Paris 2000 um êxito, estamos de pleno acordo, porém, com algumas ressalvas. Roudinesco aponta na entrevista o fervor latinoamericano como uma das causas desse sucesso único. Todavia, a mobilização e o alto comparecimento dos psicanalistas latinoamericanos ao encontro - às quais se refere como fervor, são frutos de um longo processo que o precedeu e sobre o qual discorreremos a seguir. Vejamos.

O processo deflagrado pela convocação dos Estados Gerais da Psicanálise durante o ano de 1997 pelo próprio René Major, - e ao qual aderiu, entre muitos outros, Elisabeth Roudinesco -, mobilizou intensamente o mundo psicanalítico. Como se esclarece na entrevista, em nota de rodapé, organizaram-se em todas as partes grupos de trabalho e reflexão. Tratava-se de interrogar a psicanálise, tanto no plano da prática teórica e clínica, como nas formas de ensino, transmissão e organização institucional. Bem como de analisar sua relação com outros saberes e campos da cultura, incluindo o plano do social e do político.

 Nossa acolhida tão favorável à proposta se deveu, sem dúvida, ao frutífero desenvolvimento que vinha experimentando a psicanálise na América Latina, associada à história de lutas teóricas e ideológicas pela democratização das instituições, movimentos de ruptura e experiências inovadoras no campo político-institucional. Além disso, os analistas foram convocados através de uma ampla difusão transversal, a construir espaços novos com uma organização horizontal e supra-institucional na qual almejava-se uma participação fluída e livre de hierarquias e constrangimentos burocráticos e teóricos que dependessem de interesses corporativos, de modo a facilitar uma enunciação em nome próprio. Criaram-se grupos de trabalho com essas características em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, simultaneamente aos que aconteciam em Buenos Aires.

 Foi nesse clima que se realizou em São Paulo o I Encontro Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanálise em 1999 no Instituto Sedes Sapientiae - um ano antes do Mundial de Paris -, que se revelou de fundamental importância tanto para a difusão da convocatória, quanto para a elaboração e discussão dos trabalhos latino-americanos que seriam levados a Paris. Na assembleia de encerramento destinada a avaliação do encontro e ao ajuste final dos preparativos aprovou-se por aclamação a proposta dirigida ao Comitê Internacional - e posteriormente acatada pelo mesmo -, de instituir o português como uma das línguas oficiais do encontro mundial em Paris.

Coincidimos, portanto, com Roudinesco, na atribuição de importância e significação ao encontro de Paris. Ao final deste primeiro encontro mundial firmou-se a disposição para responder a novas convocatórias no futuro, caso tivessem grupos de analistas que se dispusessem a fazê-lo, deixando em aberto o lugar para a sua realização. A dissolução do comitê organizador, ao final do encontro, sinalizou a oposição a qualquer tendência à concentração, permanência e cristalização no poder.

Assim, a nosso entender, desde a convocatória dos Estados Gerais da Psicanálise e através de uma sequência de acontecimentos, a criação dentro da polis psicanalítica de um espaço de forte potência instituinte deflagrou um movimento capaz de conduzir a novos acontecimentos sem desembocar em nenhuma espécie de institucionalização. Essa foi sua utopia fundante.

 Ao longo dos sucessivos encontros, foram retomadas as temáticas iniciais, acolhidas outras novas e explorados modos de organização e dispositivos de funcionamento diversos. Questões levantadas nos debates exigiam tempo para trabalho de elaboração e, portanto, anunciavam um processo. Pensamos que através desta continuidade marcada por momentos de confluência e elaboração coletiva, nos produzimos como sujeitos políticos, protagonistas de experiências criativas e criadoras de sentido histórico, que enriquecem nossa prática e fazem avançar a psicanálise.

Depois do I Mundial em Paris 2000, acontecem em 2001 o II Latino-americano em São Paulo, em 2002 o III Latino-americano em Buenos Aires, em 2003 o II Mundial no Rio de Janeiro e em 2005 o IV Latino-americano em São Paulo.

Na entrevista à Percurso, ao referir-se à presença de divisões que afetam a continuidade e o sucesso dos Estados Gerais, Roudinesco não considera a possibilidade de que as divisões entre analistas passem por outras questões tais como a desmobilização dos analistas europeus, ou o seu recolhimento para o interior de suas instituições, nas quais, à época, predominava uma situação inusitada. Estamos nos referindo à divisão de posições dos seus associados em cada uma delas em relação à regulamentação da profissão do psicanalista. Divisão esta que não corresponderia, dessa vez, a enfrentamentos doutrinários e interinstitucionais. Preocupados e divididos na defesa da psicanálise no seu exercício profissional desinvestiram, ao que parece, a dimensão supra institucional de pensamento crítico, de análise da cultura e de teoria da sociedade e da história, o que pode ter nefastas consequências exatamente nessa questão.

 O segundo ponto que levantamos para nossa discussão refere-se às apreciações feitas por Roudinesco ao II Encontro Mundial dos Estados Gerais realizado em 2003 no Rio de Janeiro. Pensamos que esse encontro cumpriu com êxito os itens de sua convocatória ao constituir um espaço onde psicanalistas de diversos lugares e filiações pudessem debater a clínica, as produções teóricas e as relações da psicanálise com as práticas sociais, políticas e éticas do mundo contemporâneo. Reduzi-lo ao efeito conflitante de uma das conferências significa desconsiderar o valor de todo o encontro que, a nosso ver, possibilitou discussões e debates intensos no âmbito da política e da psicanálise, fundamentais para a nossa atualidade. Vale salientar, o êxito do exercício da função-leitor sustentado no dispositivo dos coletivos de leitura criados para subsidiar essa função teve efeitos positivos nos avanços obtidos através da dinâmica de suas plenárias.

 O terceiro ponto diz respeito à realização dos Encontros Latinoamericanos que Roudinesco parece não levar em consideração, pois, não os menciona em sua entrevista. Pensamos que o movimento deflagrado pelos Estados Gerais da Psicanálise foi importante para os psicanalistas latino-americanos ao propiciar interligações internas e transversais, habitualmente dificultadas pelos confinamentos institucionais ou de filiação teórica, possibilitando uma ampla circulação da produção individual ou grupal e produzindo efeitos de conhecimento e reconhecimento. Muito do fervor latinoamericano em Paris relacionava-se às oportunidades que se abriram para um reconhecimento e uma interlocução longamente postergada, que se iniciou com a resposta à denúncia de Helena Bessermann Viana, resposta esta que foi radicalmente diferente e oposta à atitude de abafamento assumida pela IPA.

 

A partir de sua convocatória inicial e ao longo de todos esses anos os Encontros Latino-americanos dos Estados Gerais da Psicanálise mantiveram acesa a proposta e sustentaram a continuidade do movimento abrindo-se irrestritamente à diversidade de expressões da prática psicanalítica. Agindo como caixa de ressonância de questões emergentes nos campos clínico, institucional, social e político, tornaram-se espaço de interligação de analistas de diferentes correntes, grupos e línguas; de diferentes âmbitos de atuação pública e privada; de diferentes lugares e, também, de diferentes gerações. Catalisaram processos de transmissão e de filiação, reconstruíram histórias interrompidas pela repressão política ou pelo exílio, funcionando como espaço de interlocução e respaldo recíproco para as lutas dos psicanalistas contra a prevalência dos modelos biologistas e cognitivistas, comprovando, mais uma vez, a validade da clínica psicanalítica.

Foi em continuidade e em conformidade com esse espírito que convocamos o IV Encontro Latino-americano que aconteceu em São Paulo em novembro de 2005, com grande afluência de psicanalistas de todo o Brasil e da Argentina. Manteve-se a metodologia de discussão adotada em encontros anteriores com a apresentação dos trabalhos pelos próprios autores em pequenos grupos de discussão. Acrescentou-se às plenárias de abertura e de dissolução, outras nas quais foram debatidos os temas políticos cruciais da atualidade latino-americana, tais como "Politizar a desilusão". Como resultado das plenárias, destacamos a elaboração de proposta de pronunciamento público sobre a crescente medicalização da saúde, dos problemas da infância e adolescência.

Algumas interrogações a respeito do fracasso do Mundial de Bruxelas, que não obteve um número mínimo e necessário de inscrições - e que já consideramos anteriormente - também poderiam ser respondidas, ao menos no que diz respeito à participação dos psicanalistas latino-americanos, se dirigirmos a atenção à plenária do IV Latino-americano destinada à apresentação da temática e da programação deste Mundial por seu coordenador geral, Claude Van Reeth. Ali foram manifestadas divergências quanto à acentuada centralização e verticalidade da organização e do dispositivo de seu funcionamento, que nos pareciam retrocessos em relação às modalidades elaboradas e adotadas em Paris e no Rio de Janeiro. Além disso, a ausência de uma interlocução prévia com os grupos de analistas dos diversos paises ligados ao movimento causou um impacto negativo.

Vale salientar que a realização do IV Encontro Latino-americano possibilitou a continuidade do site dos Estados Gerais da Psicanálise (www.estadosgerais.org), que permite aceder não só a todos os textos apresentados como a todo o material de convocatórias de todos os encontros mundiais e latino-americanos.

Os Encontros Latino-americanos também contribuíram para a defesa da psicanálise frente às tentativas de arbitrar ardis legais por meio dos quais grupos confessionais tentam legitimar, sob o rótulo de psicanálise, concepções e propostas de ação sobre o anímico que nada tem a ver com ela, promovendo métodos e objetivos contraditórios aos dela.

Para concluir, divergimos em relação à concepção de Roudinesco sobre os Estados Gerais da Psicanálise. Seu argumento de que este seria um acontecimento que não deveria repetir-se nos parece redundante, já que os acontecimentos são sempre únicos e não há como reproduzi-los. Para nós, trata-se, como esperamos ter demonstrado nesta resposta, de um movimento, e, portanto, que mantém uma continuidade. Desde 1997 todos os que responderam e participaram dos encontros realizados foram aqueles que lhes deram razão e conteúdo e para os quais o movimento faz sentido.

O que constitui uma marca do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise - através das diversas conjunturas e que se atualiza a cada encontro - são os dispositivos que possibilitam tanto uma apropriação coletiva da experiência quanto a sustentação de uma dimensão singular de cada pronunciamento em nome próprio, o que implica cada um dos psicanalistas presentes. Assim, tanto sua proposta quanto sua realização tornaram-se responsabilidade de todos e os encontros são tributários desta responsabilidade. É de se supor que enquanto houver quem assuma, isto é, enquanto houver quem convoque, enquanto houver quem responda, poderá haver Estados Gerais da Psicanálise.

 

Fátima Milnitzky

Gisela Haddad

Mario Pablo Fuks

Paulina Rocha

Sidnei Goldberg

Comitê de Coordenação do

IV Encontro Latino-americano dos Estados Gerais da Psicanálise

 


* Gisela Haddad é membro da equipe de coordenação dos Estados Gerais da Psicanálise - São Paulo e da seção Debates da Revista Percurso.

[1] A referida entrevista pode ser encontrada na seção Entrevistas e Debates do site de Percurso: http://www2.uol.com.br/percurso/

 

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