segunda-feira, 3 de junho de 2024

 

Sobre La Luna, de Bertolucci

Gisela Haddad

 

Poucos negariam a ousadia deste filme, e como toda ousadia tem seu preço, ao buscar pelos blogs os comentários de pessoas que o assistiram conta-se nos dedos os que conseguem algum distanciamento das cenas de incesto. Se de um lado elas provocam um enorme desconforto e suscitam críticas desfavoráveis, por outro são apontadas como corajosas pela quebra de tabus ou pelas tentativas de desmistificar o tema da sexualidade humana. Reconhecido nas locadoras como o filme que tem cenas de incesto entre uma mãe e seu filho, fato é que, após muitos anos de sua estreia, o filme La Luna continua controverso e atual ao provocar as mesmas celeumas.  Bertolucci costuma ser generoso ao falar sobre seus filmes, sobre as razões da escolha de seus temas, e sobre o papel do cinema em sua vida, praticamente uma continuação de sua poesia, ele mesmo filho de um poeta. Em entrevista, ele conta que um disparador para a realização deste filme foi uma recordação pessoal reproduzida no filme, numa das imagens do prólogo, em que ele, aos dois ou três anos, está sentado numa cesta presa ao guidão da bicicleta a olhar o rosto de sua mãe, cujo fundo é o céu e uma linda lua. Foi a partir desta lembrança “viva” que ele pretendeu ao desenrolar o roteiro, que este pudesse trazer associações entre o rosto da mãe e a lua. Na mitologia, Luna é o nome da deusa romana, equivalente a deusa grega Selene, irmã de Helios, o Sol e de Eros, a Alvorada. Protetora dos feiticeiros e magos, ela dirigia no céu um carro puxado por dois cavalos e exercia uma poderosa influência sobre os encantamentos de amor. 

Na poesia de Bertolucci, a lua, a mãe e a voz serão os representantes do inconsciente, do feminino e do primitivo. A escolha da cantora de ópera para interpretar a mãe incestuosa e a lua, serão “guia” para permear a tragédia do labirinto edípico através da voz. Ainda no prólogo, o bebê está à mercê dos cuidados da mãe, e é bastante expressiva a sua reação de desconforto quando ela coloca mel em sua boca. Nas palavras do diretor, “o mel, como o amor materno, é doce demais, um doce que pode ser excessivo e fazer engasgar a criança”. Ainda no prólogo, a cena dos três, Giusepe (o pai), Caterina (a mãe) e Joe (o bebê) têm tudo para ser edílica, com a paisagem mediterrânea, o sol, a música, mas Bertolucci privilegia o rosto da criança e sua aflição e para nós espectadores, sobra violência ao invés prazer. Pode-se dizer o mesmo quando Caterina ignora a sogra, que estava tocando piano, põe um disco na vitrola e convida Giuseppe para dançar twist. A força desta cena será recuperada por Caterina quando ela puder reconhecer seus ciúmes ao imaginar que Giuseppe amava mais a mãe do que a ela. É esse reconhecimento que abrirá espaço para o reencontro do pai e do filho, e de novas vias de vida para Joe.

Se para Bertolucci seu filme versa sobre os laços que movem, puxam e torturam os personagens, há que se acrescentar que ele privilegia a ambivalência destes laços, dando força maior aos seus enganos. Douglas (o padrasto) protege e afasta Joe. Por seu lado Joe tenta separar o casal ao atrair um ou outro para si e conseguir a exclusividade. Já Caterina, totalmente absorta em seus interesses profissionais, movimenta-se entre os dois homens. Será a partir de sua descoberta do vício do filho, que ela poderá revisar os infernos de sua maternidade, a errância de suas escolhas, e percorrer assim o lento caminho do reconhecimento de sua responsabilidade na relação com seu filho, mas principalmente de suas possibilidades em auxiliá-lo a construir algum futuro possível, ao devolver a ele, parte de sua história.

As cenas incestuosas entre mãe e filho não ficam sem um lugar. Apesar do desconforto de quem as assiste, são parte do “inferno” que ambos viveram. Sabemos que a maternidade, a paternidade e a filiação são determinadas por critérios múltiplos, entre os quais predomina a dimensão simbólica sobre os critério biogenéticos. Se o tabu do incesto está na base da constituição da cultura por sua economia de troca de bens e de mulheres que funda a vida simbólica e social, para a psicanálise a interdição do incesto barra o excesso da pulsão que, de outra forma, tornaria insustentável a manutenção da cultura. Em Freud tal proibição se origina menos pelo horror inspirado pelo incesto, e mais pelo desejo que ele suscita, destacando-se aqui o poder de coerção que a sexualidade humana tem sobre a vida psíquica. O incesto é de fato mobilizador de fantasias e atos e sua força tem uma origem para todos.

Tomemos o fato inequívoco de que em uma gravidez, a voz e a palavra materna são “ouvidas” pelo feto e o que se passa entre os corpos faz da mãe uma estrutura afetiva antes de ser uma estrutura de parentesco. Será sobre esta tentação incestuosa que nasce a lei que a interdita, ou seja, embora a fusão mãe-bebê seja necessária, é tarefa da mãe renunciar a ela, ao admitir a introdução de um outro significativo. A problemática do incesto sob o ponto de vista psicanalítico, é esta relação entre o corpo pulsional e a linguagem, o simbólico e o ato de nomear o que está além do orgânico. A nomeação do ato incestuoso é que vai concretizá-lo como transgressivo e sua incidência depende de inúmeros fatores, tais como o significado que o filho toma em cada caso, a possibilidade de ele ocupar o lugar de filiação na família e as condições psíquicas dos genitores em acolherem um destino ainda a ser criado. Quando isso não pode ocorrer a criança pode sofrer múltiplas impossibilidades.

É, portanto, no processo de humanização que a proibição do incesto atua, estabelecendo lugares hierárquicos nos agrupamentos e nas gerações, permitindo o pertencimento familiar e o consequente processo de narcisização da criança pelos pais, na criação de possibilidades de ultrapassar as fantasias sexuais em relação aos genitores e de se constituir como sujeito.

No filme há cenas de ternura entre os pais, a mãe e o filho. Mas quando sobra mãe e filho há uma mistura de amor-paixão-ódio. As paixões parricidas e incestuosas próprias da infância e da pré-adolescência são em geral esquecidas na idade adulta. Várias cenas trazem este sentimento de nojo de Joe em relação aos modos da mãe, comendo, bebendo ou se divertindo. A vontade de ser autônomo livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado. No filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada. Se Caterina não performa o modelo ideal de mãe, ou mesmo se nem quisesse muito sê-lo, ela tenta se virar com isso.

Debate sobre o filme La Luna de Bertolucci realizado em junho de 2017 no CEP a convite de Karin de Paula

 

 

 


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