Sobre
La Luna, de Bertolucci
Gisela
Haddad
Poucos
negariam a ousadia deste filme, e como toda ousadia tem seu preço, ao buscar
pelos blogs os comentários de pessoas que o assistiram conta-se nos dedos os
que conseguem algum distanciamento das cenas de incesto. Se de um lado elas
provocam um enorme desconforto e suscitam críticas desfavoráveis, por outro são
apontadas como corajosas pela quebra de tabus ou pelas tentativas de
desmistificar o tema da sexualidade humana. Reconhecido nas locadoras como o
filme que tem cenas de incesto entre uma mãe e seu filho, fato é que, após muitos
anos de sua estreia, o filme La Luna continua controverso e atual ao provocar
as mesmas celeumas. Bertolucci costuma
ser generoso ao falar sobre seus filmes, sobre as razões da escolha de seus
temas, e sobre o papel do cinema em sua vida, praticamente uma continuação de
sua poesia, ele mesmo filho de um poeta. Em entrevista, ele conta que um disparador
para a realização deste filme foi uma recordação pessoal reproduzida no filme,
numa das imagens do prólogo, em que ele, aos dois ou três anos, está sentado
numa cesta presa ao guidão da bicicleta a olhar o rosto de sua mãe, cujo fundo
é o céu e uma linda lua. Foi a partir desta lembrança “viva” que ele pretendeu ao
desenrolar o roteiro, que este pudesse trazer associações entre o rosto da mãe
e a lua. Na mitologia, Luna é o nome da deusa romana, equivalente a deusa grega
Selene, irmã de Helios, o Sol e de Eros, a Alvorada. Protetora dos feiticeiros
e magos, ela dirigia no céu um carro puxado por dois cavalos e exercia uma
poderosa influência sobre os encantamentos de amor.
Na
poesia de Bertolucci, a lua, a mãe e a voz serão os representantes do
inconsciente, do feminino e do primitivo. A escolha da cantora de ópera para
interpretar a mãe incestuosa e a lua, serão “guia” para permear a tragédia do
labirinto edípico através da voz. Ainda no prólogo, o bebê está à mercê dos
cuidados da mãe, e é bastante expressiva a sua reação de desconforto quando ela
coloca mel em sua boca. Nas palavras do diretor, “o mel, como o amor materno, é
doce demais, um doce que pode ser excessivo e fazer engasgar a criança”. Ainda
no prólogo, a cena dos três, Giusepe (o pai), Caterina (a mãe) e Joe (o bebê)
têm tudo para ser edílica, com a paisagem
mediterrânea, o sol, a música, mas Bertolucci privilegia o rosto da criança e
sua aflição e para nós espectadores, sobra violência ao invés prazer. Pode-se
dizer o mesmo quando Caterina ignora a sogra, que
estava tocando piano, põe um disco na vitrola e convida Giuseppe para dançar
twist. A força desta cena será recuperada por Caterina quando ela puder reconhecer
seus ciúmes ao imaginar que Giuseppe amava mais a mãe do que a ela. É esse
reconhecimento que abrirá espaço para o reencontro do pai e do filho, e de novas
vias de vida para Joe.
Se para Bertolucci seu
filme versa sobre os laços que movem, puxam e torturam os personagens, há que
se acrescentar que ele privilegia a ambivalência destes laços, dando força
maior aos seus enganos. Douglas (o padrasto)
protege e afasta Joe. Por seu lado Joe tenta separar o casal ao atrair um ou
outro para si e conseguir a exclusividade. Já Caterina, totalmente absorta em
seus interesses profissionais, movimenta-se entre os dois homens. Será a partir
de sua descoberta do vício do filho, que ela poderá revisar os infernos de sua maternidade,
a errância de suas escolhas, e percorrer assim o lento caminho do
reconhecimento de sua responsabilidade na relação com seu filho, mas
principalmente de suas possibilidades em auxiliá-lo a construir algum futuro
possível, ao devolver a ele, parte de sua história.
As
cenas incestuosas entre mãe e filho não ficam sem um lugar. Apesar do
desconforto de quem as assiste, são parte do “inferno” que ambos viveram. Sabemos
que a maternidade, a paternidade e a filiação são
determinadas por critérios múltiplos, entre os quais predomina a dimensão
simbólica sobre os critério biogenéticos. Se o
tabu do incesto está na base da constituição da cultura por sua economia de
troca de bens e de mulheres que funda a vida simbólica e social, para a
psicanálise a interdição do incesto barra o excesso da pulsão que, de outra
forma, tornaria insustentável a manutenção da cultura. Em Freud tal proibição
se origina menos pelo horror inspirado pelo incesto, e mais pelo desejo que ele
suscita, destacando-se aqui o poder de coerção que a sexualidade humana tem
sobre a vida psíquica. O incesto é de fato mobilizador de fantasias e
atos e sua força tem uma origem para todos.
Tomemos o fato inequívoco
de que em uma gravidez, a voz e a palavra materna são “ouvidas” pelo feto e o
que se passa entre os corpos faz da mãe uma estrutura afetiva antes de ser uma
estrutura de parentesco. Será sobre esta tentação incestuosa que nasce a lei
que a interdita, ou seja, embora a fusão mãe-bebê seja necessária, é tarefa da
mãe renunciar a ela, ao admitir a introdução de um outro significativo. A
problemática do incesto sob o ponto de vista psicanalítico, é esta relação
entre o corpo pulsional e a linguagem, o simbólico e o ato de nomear o que está
além do orgânico. A nomeação do ato incestuoso é que vai concretizá-lo como
transgressivo e sua incidência depende de inúmeros fatores, tais como o
significado que o filho toma em cada caso, a possibilidade de ele ocupar o
lugar de filiação na família e as condições psíquicas dos genitores em acolherem
um destino ainda a ser criado. Quando isso não pode ocorrer a criança pode sofrer
múltiplas impossibilidades.
É, portanto, no processo
de humanização que a proibição do incesto atua, estabelecendo lugares
hierárquicos nos agrupamentos e nas gerações, permitindo o pertencimento
familiar e o consequente processo de narcisização da criança pelos pais, na
criação de possibilidades de ultrapassar as fantasias sexuais em relação aos
genitores e de se constituir como sujeito.
No filme há cenas de
ternura entre os pais, a mãe e o filho. Mas quando sobra mãe e filho há uma
mistura de amor-paixão-ódio. As paixões parricidas
e incestuosas próprias da infância e da pré-adolescência são em geral
esquecidas na idade adulta. Várias cenas trazem este sentimento de nojo de Joe
em relação aos modos da mãe, comendo, bebendo ou se divertindo. A vontade de
ser autônomo livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado.
No filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a
sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada. Se Caterina não performa
o modelo ideal de mãe, ou mesmo se nem quisesse muito sê-lo, ela tenta se virar
com isso.
Debate
sobre o filme La Luna de Bertolucci realizado em junho de 2017 no CEP a convite
de Karin de Paula
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