Divagando
sobre amor, fidelidade, cultura e psicanálise
Gisela Haddad 2006
Mesmo testemunhando as
inúmeras mudanças que rondam as relações amorosas na era atual, não é difícil
detectar na cultura indícios de um “credo amoroso”: continuamos a considerar o amor
universal, incontrolável e condição inquestionável de felicidade. Em seu livro Sem fraude nem favor (1998) Freire Costa
tenta desmistificar o ideal do amor romântico apontando todas as incongruências
da manutenção ainda atual de sua aura transcendente propondo que se pense em
alternativas e lembrando que “a emoção amorosa não nasceu pronta e acabada em
algum lugar da mente, podendo ser aperfeiçoada por outros sentimentos, razões e
ações”. Segundo ele, deveríamos inventar um “neo-romantismo” mais comprometido
com as demandas do mundo e do sujeito atual.
A argumentação empregada
por Freire Costa (1998), pode ser comparada a utilizada por Freud (1927) em seu
texto O futuro de uma ilusão, em que este
propõe uma desmistificação da religião por ser esta um recurso ilusório a
serviço da dificuldade humana em viver na orfandade, sem garantias
transcendentes e idealizadas de onisciência e onipresença. Nesta crítica à
visão totalitária e empobrecedora de mundo característica das religiões, Freud buscava
questionar a necessidade da manutenção de um Deus todo-poderoso em um
mundo “desencantado”, assim como Freire
Costa se surpreende com a continuidade do mito de fusão e perfeição ansiado no amor romântico que
coloca os sujeitos entre a culpa ou a impotência pelo fracasso e a condenação da paixão como
um desvario. Ambos defendem novos roteiros sociais para a felicidade, que não
precisem conter a promessa de preencher faltas, soldar frestas ou realizar a
sonhada e inalcançável completude.
É certo que no final de
sua obra podemos ver um Freud mais preocupado com as criações humanas
destinadas a encobrir de alguma maneira, a verdade sobre a fragilidade e a
efemeridade de sua condição, embora o combate às ilusões fosse uma constante em
sua obra, junto às idealizações do passado e do futuro.
O
conceito central da obra freudiana, a castração, está diretamente relacionado a
possibilidade de aceitar o ônus de sofrimento que é imposto à condição humana,
ou melhor à necessidade de se renunciar aos ideais de perfeição, totalidade e
infinitude e de se admitir a imperfeição e a incompletude humanas.
Mas,
a despeito da insistência de Freud na necessidade de se assumir a castração, em
direção a aceitação das vicissitudes da vida, com os prazeres e as dores que os
outros podem oferecer aos nossos sentidos, não se consegue eliminar as
insistências e as permanências das ilusões humanas.
Entre
estas ilusões, certamente incluem-se as religiões, mas também o amor, seja
associado à felicidade, a eternidade ou a liberdade, o que explicaria em parte a
permanência do mito do amor romântico.
Ao
ocupar um lugar sagrado na cultura, com direito a ser desejado sem questionamentos,
o amor é visto como uma contingência das biografias individuais, sem uma história
própria, sem narrativas datadas. Esquece-se que seus repertórios são
construídos e contados em versos, prosas, filmes e novelas.
A
psicanálise freudiana é, em sua essência, um discurso sobre o conflito entre
tendências e uma tentativa de desconstruir a crença em qualquer referente absoluto.
Em sua obra Freud tentou construir uma metapsicologia amorosa, em busca de um fundamento
objetivo para seus fenômenos. Para ele a dinâmica amorosa se dá em torno de
processos de idealização, na tentativa de restaurar um estado fictício de completude.
Apaixonar-se seria ter acesso ao ideal e à completude narcísica e nesse sentido
teria um caráter ilusório (1914)
No
contexto cultural de sua época, a imagem do amor romântico era indissociável da
fusão paixão, idealização sentimental, ternura e desejo erótico. Mas Freud
quase chega a afirmar a impossibilidade de um amor “normal” ao postular que a
escolha amorosa é devedora de um tempo anterior e a busca incessante que se
faz, jamais será realizada satisfatoriamente.
O
modelo da paixão amorosa em Freud segue o modelo do narcisismo primário
infantil (1914) tramado numa rede intersubjetiva, na qual a supervalorização
dos pais gera uma visão supervalorizada de si mesmo. A paixão amorosa seria uma
maneira de se manter a crença na possibilidade de perpetuação deste tempo
feliz, resgatando a completude narcísica, ao preço de uma experiência efêmera e
repetitiva de regressão a um estado infantil de indiferenciação. Por conter
essa ilusão de plenitude, seu caráter alienante afastaria o sujeito da
realidade e da verdade.
Entretanto
as experiências de êxtase proporcionadas pelo apaixonamento romântico, embora
ilusórias e construídas sobre fantasias e desejos, parecem ter um sentido de
“verdade psíquica”, ainda que temporário. “Verdade fugaz” que alimenta a crença na
universalidade do amor romântico como ideal de felicidade, que mesmo sendo
datado, resiste bravamente à mudanças, reivindicando o direito à eternidade e
ignorando sua própria contingência no mundo.
A história do amor romântico no
Ocidente vem de mãos dadas com a história do individualismo e é no ápice desta
história que, em finais do século XIX, surge a psicanálise, todos tributários
do pensamento moderno.
É a partir da criação da idéia de
individuo como entidade independente, com uma dimensão interior e capacidade
reflexiva, que foi possível a construção do conceito de sujeito, tão cara a psicanálise.
Segundo Garcia e Coutinho (2004) hoje seria impossível pensar-se a concepção de
sujeito sem a idéia do indivíduo e, desde
a modernidade, as novas configurações do individualismo costumam provocar
efeitos subjetivos.
A instauração da cultura
individualista no Ocidente como uma manifestação da ideologia moderna, em seus
aspectos econômicos, políticos e religiosos teve como marco inaugural a
Revolução Francesa (Dumont,1985). Esta seria a vertente iluminista do
individualismo que privilegia a idéia do homem como centro do universo, uno,
livre e responsável por seus próprios atos. Mas o individualismo tem também uma
herança romântica, na qual as idéias de privacidade, singularidade e de uma
biografia pessoal única para cada individuo foram intensamente cultivadas.
A evolução do individualismo nas
sociedades ocidentais culminou com a figura do individuo moderno, como uma
entidade econômica e psicológica, e uma interiorização que privilegia a esfera
privada.
Pode-se detectar duas revoluções
individualistas, uma mais antiga que enfatiza o discurso dos valores centrais
de igualdade e liberdade, e outra (século XIX e XX) que privilegia a
singularidade; ambas coexistiriam na cultura contemporânea sob a forma de duas
tendências em constante tensão.A indicação de que o amor romântico conhece um
desenvolvimento sem precedentes no século XIX está em estreita harmonia com
esta segunda tonalidade de que se reveste o individualismo a partir de então.
Dos primórdios da psicanálise, quando
Freud se deparava com uma cultura que cerceava o individuo, impedindo a
satisfação das pulsões sexuais e agressivas (1908), passamos a uma sociedade
que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e que
estimula a busca do prazer constante.
Vale a pena examinarmos outras
dimensões do individualismo que foram se configurando na época atual,
privilegiando o ideário de liberação presente nas diversas formas da relação do
individuo com o social. Este ideário, segundo Garcia e Coutinho (2004)
questiona todo e qualquer constrangimento social, particularmente sobre as
questões da sexualidade, e promove o corpo a um status antes inimaginável de
construção de identidades pessoais.
Para Lipovetzky (1998) a vertente do
individualismo moderno que dispensou as ideologias de solidariedade e
consciência de classe elegeu o singular com especial acento aos valores
privados de liberdade e autonomia individuais, fugindo de dispositivos religiosos
de submissão humana à princípios superiores fora de alcance. Neste sentido, o
ethos moral atual seria mais sensível às liberdades democráticas do que o
burguês tradicional.
Não parece arriscado dizer que estas
mudanças socioculturais vêm provocando impactos nas subjetividades. O século XX
assistiu a uma transformação acelerada dos ideais sociais, dos valores morais e
dos laços sociais. As novas formas de subjetivação produzidas pelo mundo
contemporâneo mostram novos olhares sobre o universo das mulheres e dos homens,
com novas configurações amorosas, novos desdobramentos éticos e estéticos.
“Há quase três décadas somos
testemunhas de transformações importantes na ordem da divisão social dos papéis
sexuais, dos lugares e dos atributos do feminino em particular” diz Lipovetzky
(2005).
Soler (2005) também destaca a grande
contribuição da ciência para a mudança
da realidade social das mulheres que conquistaram o direito a escolhas antes impensadas, produzindo desdobramentos
importantes no campo profissional, social,
pessoal e amoroso.Com a dissociação entre casamento, sexo e maternidade
é grande o número de possibilidades de arranjos
que estão disponíveis para os indivíduos.A liberdade sexual tão desejada
e conquistada também aponta mudanças em valores importantes como, por exemplo,
a fidelidade, antes um valor cultural compartilhado e hoje uma exigência subjetiva,uma reivindicação ou
uma predisposição pessoal pactuada entre os indivíduos.
Soler ainda aponta para o fato dos
antigos modelos de identidade de gênero, que ordenavam as relações entre os
sexos, terem sofrido importantes
modificações.Não só o ideal da mulher no lar sofreu uma erosão rápida e
profunda, como os homens já não consideram indigno participar das tarefas
domésticas e dos cuidados com os filhos. A satisfação sexual é hoje uma
exigência justificada para todos, um fim em si mesma, independente das
finalidades da procriação e dos pactos de amor, além de merecer a atenção e cuidados
de terapeutas e sexólogos.
Segundo Costa (1998), é a cultura
quem assinala as novas imagens do amor apontando seu lugar entre os ideais
aprovados e fazendo com que estes sejam desejáveis. Neste sentido as formas de
amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a felicidade fazem
parte, num conluio nem sempre explícito, dos valores morais de cada época.
Sabemos que o amor romântico já foi
responsável pela conversão dos homens e mulheres em pais e mães, favoreceu a
formação da família nuclear e os cuidados amorosos com os filhos, dividiu os
indivíduos em heterossexuais e homossexuais e, principalmente, ofereceu uma
opção de “êxtase” físico e sentimental que se tornou hegemônico na modernidade,
em contraposição aos êxtases religiosos ou revolucionários.
Por outro lado, se o amor romântico
burguês habitou a cultura da contenção de uma época em que reinavam valores
tais como família, pudor, vergonha, repressão sexual, casamentos que visavam a
procriação e a dessimetria de liberdade sexual entre homens e mulheres, hoje
estes valores perderam em importância, cedendo seu espaço a novos. Mas quais?
Como é amar hoje? O que é certo ou
errado no amor? Como se apaixonar sem sofrer? Pode-se viver sem o amor? Sem sexo?
O que fazer quando se ama e não se é amado? O que fazer quando se trai ou se é traído?
A infidelidade deve ser aceita, repudiada, discutida? Ainda cabe sonhar com a
tríade casamento-filhos-família? Estas são algumas das questões que povoam os
consultórios de psicanálise, mas também a literatura, o cinema, as novelas e
músicas cujos temas privilegiam as vicissitudes do amor, em suas fronteiras com
o desejo erótico, fazendo parte do imaginário popular.
Apesar da união permanente entre os
casais ter sofrido grandes transformações, o ideal romântico permanece
existindo para os dois de forma majoritária. Tanto homens quanto mulheres vivem
problemas diretamente associados às dificuldades para a realização do amor
romântico, revelando uma contradição, em relação ao desejo de casar ou viver um
relacionamento afetivo estável, duradouro e monogâmico. Dentre estes problemas
os mais citados teriam sido os ciúmes e a infidelidade, sendo que esta última
estaria muitas vezes referida ao rompimento de um pacto de confiança mútua
entre os parceiros.Por outro lado, revelaria a permanência de uma aspiração de
exclusividade sexual para ambos.
Hoje convivem de maneira conflituosa os
valores “tradicionais” e “modernos” dos modelos de conjugalidade e os homens e mulheres
procuram conciliar desejos, comportamentos e valores hierárquicos e
igualitários e individuais, num processo de ressignificação dos arranjos
conjugais que rompe com a dualidade tradicional versus moderno.
Se os
valores morais são tributários de sua época histórica e se, o amor
romântico, esteve presente na história da Modernidade, assumindo as feições
tanto políticas e econômicas quanto sócio-culturais de cada época, pergunta-se o que, na cartografia emocional contemporânea,
cabe o nome de transformação, redescrição ou aquisição de novos valores para o
amor romântico.O tema da fidelidade representa sem duvida os paradoxos da
manutenção do mito do amor romântico na atualidade, por encerrar ao mesmo tempo
um anseio a um ideal de exclusividade, mas
produzir grandes sofrimentos diante dos impasses da realização deste
desejo.
Como os pares conjugais da
atualidade, cuja união tem como base o amor romântico, se relacionam com a
promessa de fidelidade sexual no mundo contemporânea?
A fidelidade tem um papel histórico
importante, seja no cumprimento de uma qualidade valorizada coletivamente como
um domínio de si, seja na pontuação divina que transforma a desonra em pecado
ou ainda nos dramas íntimos do sujeito moderno.
A história da fidelidade sexual
revista em seus aspectos sociais
políticos e jurídicos de preservação da família, descendência e patrimônio,
permeados pela moral sexual de cada época da história ocidental põe em
foco a hegemonia do pensamento masculino no Ocidente.Neste sentido, o tabu da
virgindade e outros mitos teriam ajudado a encarcerar o feminino como
enigmático e perigoso, mantendo uma longa dessimetria entre os gêneros quanto à
aceitação social da infidelidade sexual.Por outro lado, Gay (1998) nos mostra
em seu trabalho sobre o século burguês, como a enigmática sexualidade feminina
despertava reações as mais diversas no sexo masculino.Por este motivo,
tentaremos mapear estas diferenças entre os gêneros à luz da fidelidade sexual.
Se hoje os amores e prazeres são
contratuais e dependem exclusivamente dos parceiros, os casamentos do início da
era moderna seguiam uma série de regras sociais, políticas e jurídicas, o que
aponta também para diferentes contornos da questão da fidelidade sexual.
Por outro lado a “sexualidade”, como
uma ciência do sexual, surgiu na modernidade pretendendo focalizar a saúde dos indivíduos,
criando dispositivos e normas para o prazer sexual, um biopoder e uma bioética.
Como lembra Foucault, sendo o sexo acesso à vida do corpo e à vida da espécie,
ele passa a ter lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos,
religiosos e psicológicos.
A psicanálise certamente se alimentou
destes discursos e empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana
desenhada pelo inconsciente. Ao apontar o recalcamento da sexualidade das
histéricas no final do século XIX, ela também salientou o lugar de fantasia
deste sexual, produzindo uma teoria singular sobre a sexualidade humana onde o
sujeito é, ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela.
Freud, em suas descobertas sobre o
amor erótico e terno, suas análises sobre o casamento monogâmico e a
constituição da família nuclear como um
ideal de desenvolvimento emocional, seu engajamento contra as imposições de uma
moral sexual civilizada que constrangia
a vida sexual de homens e mulheres e sua perspicácia quanto à impossibilidade
de se manter um vínculo amoroso e sexual eterno sem as tentações contínuas da
infidelidade, produto de fantasias infantis que remetem aos primórdios das
relações narcísicas e edipianas. Veremos como Freud, já no final de sua obra
(1930), mesmo diante dos limites do real da pulsão de morte e da insistência do
imaginário narcísico, mantêm a constituição da família como uma saída possível
para a realização sexual e psíquica dos sujeitos. Família esta, restrita hoje ao
par conjugal identificado como uma “unidade
social” que, mesmo diante da ambição igualitária entre os gêneros
propagada pelo individualismo moderno,
mantêm-se às custas do ideal de completude prometido pelo mito do amor
romântico, enfrentando assim as agruras de uma convivência que requer
permanentemente uma “contabilidade conjugal”.
É neste panorama que a fidelidade
fica reduzida a um elemento de “impasse”, sempre a rondar as uniões conjugais e
a lembrá-las de sua finitude eminente ou de sua existência efêmera.
Quem sabe por se constituir como
impossibilidade real na manutenção do mito da completude amorosa prometida pelo
amor romântico, a fidelidade sexual atravessou os séculos modernos sendo tema
recorrente de filmes, novelas, músicas e romances. Alimentando de forma
inigualável o repertório do imaginário cultural amoroso, não se cansa de contar
em verso e prosa as dores e o sofrimento provocados pelas experiências de
perdas que rondam as expectativas de fidelidade sexual.
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