segunda-feira, 3 de junho de 2024

 


  Divagando sobre amor, fidelidade, cultura e psicanálise

 

Gisela Haddad 2006

Mesmo testemunhando as inúmeras mudanças que rondam as relações amorosas na era atual, não é difícil detectar na cultura indícios de um “credo amoroso”: continuamos a considerar o amor universal, incontrolável e condição inquestionável de felicidade. Em seu livro Sem fraude nem favor (1998) Freire Costa tenta desmistificar o ideal do amor romântico apontando todas as incongruências da manutenção ainda atual de sua aura transcendente propondo que se pense em alternativas e lembrando que “a emoção amorosa não nasceu pronta e acabada em algum lugar da mente, podendo ser aperfeiçoada por outros sentimentos, razões e ações”. Segundo ele, deveríamos inventar um “neo-romantismo” mais comprometido com as demandas do mundo e do sujeito atual.

A argumentação empregada por Freire Costa (1998), pode ser comparada a utilizada por Freud (1927) em seu texto O futuro de uma ilusão, em que este propõe uma desmistificação da religião por ser esta um recurso ilusório a serviço da dificuldade humana em viver na orfandade, sem garantias transcendentes e idealizadas de onisciência e onipresença. Nesta crítica à visão totalitária e empobrecedora de mundo característica das religiões, Freud buscava questionar a necessidade da manutenção de um Deus todo-poderoso em um mundo  “desencantado”, assim como Freire Costa se surpreende com a continuidade do mito de fusão e  perfeição ansiado no amor romântico que coloca os sujeitos entre a culpa ou a impotência  pelo fracasso e a condenação da paixão como um desvario. Ambos defendem novos roteiros sociais para a felicidade, que não precisem conter a promessa de preencher faltas, soldar frestas ou realizar a sonhada e inalcançável completude.

É certo que no final de sua obra podemos ver um Freud mais preocupado com as criações humanas destinadas a encobrir de alguma maneira, a verdade sobre a fragilidade e a efemeridade de sua condição, embora o combate às ilusões fosse uma constante em sua obra, junto às idealizações do passado e do futuro.

O conceito central da obra freudiana, a castração, está diretamente relacionado a possibilidade de aceitar o ônus de sofrimento que é imposto à condição humana, ou melhor à necessidade de se renunciar aos ideais de perfeição, totalidade e infinitude e de se admitir a imperfeição e a incompletude humanas.

Mas, a despeito da insistência de Freud na necessidade de se assumir a castração, em direção a aceitação das vicissitudes da vida, com os prazeres e as dores que os outros podem oferecer aos nossos sentidos, não se consegue eliminar as insistências e as permanências das ilusões humanas.

Entre estas ilusões, certamente incluem-se as religiões, mas também o amor, seja associado à felicidade, a eternidade ou a liberdade, o que explicaria em parte a permanência do mito do amor romântico.

Ao ocupar um lugar sagrado na cultura, com direito a ser desejado sem questionamentos, o amor é visto como uma contingência das biografias individuais, sem uma história própria, sem narrativas datadas. Esquece-se que seus repertórios são construídos e contados em versos, prosas, filmes e novelas.

A psicanálise freudiana é, em sua essência, um discurso sobre o conflito entre tendências e uma tentativa de desconstruir a crença em qualquer referente absoluto. Em sua obra Freud tentou construir uma metapsicologia amorosa, em busca de um fundamento objetivo para seus fenômenos. Para ele a dinâmica amorosa se dá em torno de processos de idealização, na tentativa de restaurar um estado fictício de completude. Apaixonar-se seria ter acesso ao ideal e à completude narcísica e nesse sentido teria um caráter ilusório (1914)

No contexto cultural de sua época, a imagem do amor romântico era indissociável da fusão paixão, idealização sentimental, ternura e desejo erótico. Mas Freud quase chega a afirmar a impossibilidade de um amor “normal” ao postular que a escolha amorosa é devedora de um tempo anterior e a busca incessante que se faz, jamais será realizada satisfatoriamente.

O modelo da paixão amorosa em Freud segue o modelo do narcisismo primário infantil (1914) tramado numa rede intersubjetiva, na qual a supervalorização dos pais gera uma visão supervalorizada de si mesmo. A paixão amorosa seria uma maneira de se manter a crença na possibilidade de perpetuação deste tempo feliz, resgatando a completude narcísica, ao preço de uma experiência efêmera e repetitiva de regressão a um estado infantil de indiferenciação. Por conter essa ilusão de plenitude, seu caráter alienante afastaria o sujeito da realidade e da verdade.

Entretanto as experiências de êxtase proporcionadas pelo apaixonamento romântico, embora ilusórias e construídas sobre fantasias e desejos, parecem ter um sentido de “verdade psíquica”, ainda que temporário.  “Verdade fugaz” que alimenta a crença na universalidade do amor romântico como ideal de felicidade, que mesmo sendo datado, resiste bravamente à mudanças, reivindicando o direito à eternidade e ignorando sua própria contingência no mundo.

A história do amor romântico no Ocidente vem de mãos dadas com a história do individualismo e é no ápice desta história que, em finais do século XIX, surge a psicanálise, todos tributários do pensamento moderno.

É a partir da criação da idéia de individuo como entidade independente, com uma dimensão interior e capacidade reflexiva, que foi possível a construção do conceito de sujeito, tão cara a psicanálise. Segundo Garcia e Coutinho (2004) hoje seria impossível pensar-se a concepção de sujeito sem a idéia do indivíduo e,  desde a modernidade, as novas configurações do individualismo costumam provocar efeitos subjetivos.

A instauração da cultura individualista no Ocidente como uma manifestação da ideologia moderna, em seus aspectos econômicos, políticos e religiosos teve como marco inaugural a Revolução Francesa (Dumont,1985). Esta seria a vertente iluminista do individualismo que privilegia a idéia do homem como centro do universo, uno, livre e responsável por seus próprios atos. Mas o individualismo tem também uma herança romântica, na qual as idéias de privacidade, singularidade e de uma biografia pessoal única para cada individuo foram intensamente cultivadas.

A evolução do individualismo nas sociedades ocidentais culminou com a figura do individuo moderno, como uma entidade econômica e psicológica, e uma interiorização que privilegia a esfera privada.

Pode-se detectar duas revoluções individualistas, uma mais antiga que enfatiza o discurso dos valores centrais de igualdade e liberdade, e outra (século XIX e XX) que privilegia a singularidade; ambas coexistiriam na cultura contemporânea sob a forma de duas tendências em constante tensão.A indicação de que o amor romântico conhece um desenvolvimento sem precedentes no século XIX está em estreita harmonia com esta segunda tonalidade de que se reveste o individualismo a partir de então.

Dos primórdios da psicanálise, quando Freud se deparava com uma cultura que cerceava o individuo, impedindo a satisfação das pulsões sexuais e agressivas (1908), passamos a uma sociedade que cultua a liberdade individual como valor absoluto e hegemônico e que estimula a busca do prazer constante.

Vale a pena examinarmos outras dimensões do individualismo que foram se configurando na época atual, privilegiando o ideário de liberação presente nas diversas formas da relação do individuo com o social. Este ideário, segundo Garcia e Coutinho (2004) questiona todo e qualquer constrangimento social, particularmente sobre as questões da sexualidade, e promove o corpo a um status antes inimaginável de construção de identidades pessoais.

Para Lipovetzky (1998) a vertente do individualismo moderno que dispensou as ideologias de solidariedade e consciência de classe elegeu o singular com especial acento aos valores privados de liberdade e autonomia individuais, fugindo de dispositivos religiosos de submissão humana à princípios superiores fora de alcance. Neste sentido, o ethos moral atual seria mais sensível às liberdades democráticas do que o burguês tradicional.

Não parece arriscado dizer que estas mudanças socioculturais vêm provocando impactos nas subjetividades. O século XX assistiu a uma transformação acelerada dos ideais sociais, dos valores morais e dos laços sociais. As novas formas de subjetivação produzidas pelo mundo contemporâneo mostram novos olhares sobre o universo das mulheres e dos homens, com novas configurações amorosas, novos desdobramentos éticos e estéticos.

“Há quase três décadas somos testemunhas de transformações importantes na ordem da divisão social dos papéis sexuais, dos lugares e dos atributos do feminino em particular” diz Lipovetzky (2005).

Soler (2005) também destaca a grande contribuição da ciência para a  mudança da realidade social das mulheres que conquistaram o direito a escolhas  antes impensadas, produzindo desdobramentos importantes no campo profissional, social,  pessoal e amoroso.Com a dissociação entre casamento, sexo e maternidade é grande o número de possibilidades de arranjos  que estão disponíveis para os indivíduos.A liberdade sexual tão desejada e conquistada também aponta mudanças em valores importantes como, por exemplo, a fidelidade,  antes   um valor cultural compartilhado e hoje  uma exigência subjetiva,uma reivindicação ou uma predisposição pessoal pactuada entre os indivíduos.

Soler ainda aponta para o fato dos antigos modelos de identidade de gênero, que ordenavam as relações entre os sexos, terem  sofrido importantes modificações.Não só o ideal da mulher no lar sofreu uma erosão rápida e profunda, como os homens já não consideram indigno participar das tarefas domésticas e dos cuidados com os filhos. A satisfação sexual é hoje uma exigência justificada para todos, um fim em si mesma, independente das finalidades da procriação e dos pactos de amor, além de merecer a atenção e cuidados de terapeutas e sexólogos.

Segundo Costa (1998), é a cultura quem assinala as novas imagens do amor apontando seu lugar entre os ideais aprovados e fazendo com que estes sejam desejáveis. Neste sentido as formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a felicidade fazem parte, num conluio nem sempre explícito, dos valores morais de cada época.

Sabemos que o amor romântico já foi responsável pela conversão dos homens e mulheres em pais e mães, favoreceu a formação da família nuclear e os cuidados amorosos com os filhos, dividiu os indivíduos em heterossexuais e homossexuais e, principalmente, ofereceu uma opção de “êxtase” físico e sentimental que se tornou hegemônico na modernidade, em contraposição aos êxtases religiosos ou revolucionários.

Por outro lado, se o amor romântico burguês habitou a cultura da contenção de uma época em que reinavam valores tais como família, pudor, vergonha, repressão sexual, casamentos que visavam a procriação e a dessimetria de liberdade sexual entre homens e mulheres, hoje estes valores perderam em importância, cedendo seu espaço a novos. Mas quais?

Como é amar hoje? O que é certo ou errado no amor? Como se apaixonar sem sofrer? Pode-se viver sem o amor? Sem sexo? O que fazer quando se ama e não se é amado? O que fazer quando se trai ou se é traído? A infidelidade deve ser aceita, repudiada, discutida? Ainda cabe sonhar com a tríade casamento-filhos-família? Estas são algumas das questões que povoam os consultórios de psicanálise, mas também a literatura, o cinema, as novelas e músicas cujos temas privilegiam as vicissitudes do amor, em suas fronteiras com o desejo erótico, fazendo parte do imaginário popular.

Apesar da união permanente entre os casais ter sofrido grandes transformações, o ideal romântico permanece existindo para os dois de forma majoritária. Tanto homens quanto mulheres vivem problemas diretamente associados às dificuldades para a realização do amor romântico, revelando uma contradição, em relação ao desejo de casar ou viver um relacionamento afetivo estável, duradouro e monogâmico. Dentre estes problemas os mais citados teriam sido os ciúmes e a infidelidade, sendo que esta última estaria muitas vezes referida ao rompimento de um pacto de confiança mútua entre os parceiros.Por outro lado, revelaria a permanência de uma aspiração de exclusividade sexual para ambos.

 Hoje convivem de maneira conflituosa os valores “tradicionais” e “modernos” dos modelos de conjugalidade e os homens e mulheres procuram conciliar desejos, comportamentos e valores hierárquicos e igualitários e individuais, num processo de ressignificação dos arranjos conjugais que rompe com a dualidade tradicional versus moderno.

Se os  valores morais são tributários de sua época histórica e se, o amor romântico, esteve presente na história da Modernidade, assumindo as feições tanto políticas e econômicas quanto sócio-culturais de cada época, pergunta-se  o que, na cartografia emocional contemporânea, cabe o nome de transformação, redescrição ou aquisição de novos valores para o amor romântico.O tema da fidelidade representa sem duvida os paradoxos da manutenção do mito do amor romântico na atualidade, por encerrar ao mesmo tempo um anseio a um ideal de exclusividade, mas  produzir grandes sofrimentos diante dos impasses da realização deste desejo.

Como os pares conjugais da atualidade, cuja união tem como base o amor romântico, se relacionam com a promessa de fidelidade sexual no mundo contemporânea?

A fidelidade tem um papel histórico importante, seja no cumprimento de uma qualidade valorizada coletivamente como um domínio de si, seja na pontuação divina que transforma a desonra em pecado ou ainda nos dramas íntimos do sujeito moderno.

A história da fidelidade sexual revista em seus aspectos sociais  políticos e jurídicos de preservação da família,  descendência e  patrimônio,  permeados pela moral sexual de cada época da história ocidental põe em foco a hegemonia do pensamento masculino no Ocidente.Neste sentido, o tabu da virgindade e outros mitos teriam ajudado a encarcerar o feminino como enigmático e perigoso, mantendo uma longa dessimetria entre os gêneros quanto à aceitação social da infidelidade sexual.Por outro lado, Gay (1998) nos mostra em seu trabalho sobre o século burguês, como a enigmática sexualidade feminina despertava reações as mais diversas no sexo masculino.Por este motivo, tentaremos mapear estas diferenças entre os gêneros à luz da fidelidade sexual.

Se hoje os amores e prazeres são contratuais e dependem exclusivamente dos parceiros, os casamentos do início da era moderna seguiam uma série de regras sociais, políticas e jurídicas, o que aponta também para diferentes contornos da questão da fidelidade sexual.

Por outro lado a “sexualidade”, como uma ciência do sexual, surgiu na modernidade pretendendo focalizar a saúde dos indivíduos, criando dispositivos e normas para o prazer sexual, um biopoder e uma bioética. Como lembra Foucault, sendo o sexo acesso à vida do corpo e à vida da espécie, ele passa a ter lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos.

A psicanálise certamente se alimentou destes discursos e empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente. Ao apontar o recalcamento da sexualidade das histéricas no final do século XIX, ela também salientou o lugar de fantasia deste sexual, produzindo uma teoria singular sobre a sexualidade humana onde o sujeito é, ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela.

Freud, em suas descobertas sobre o amor erótico e terno, suas análises sobre o casamento monogâmico e a constituição da família  nuclear como um ideal de desenvolvimento emocional, seu engajamento contra as imposições de uma moral  sexual civilizada que constrangia a vida sexual de homens e mulheres e sua perspicácia quanto à impossibilidade de se manter um vínculo amoroso e sexual eterno sem as tentações contínuas da infidelidade, produto de fantasias infantis que remetem aos primórdios das relações narcísicas e edipianas. Veremos como Freud, já no final de sua obra (1930), mesmo diante dos limites do real da pulsão de morte e da insistência do imaginário narcísico, mantêm a constituição da família como uma saída possível para a realização sexual e psíquica dos sujeitos. Família esta, restrita hoje ao par conjugal identificado como uma   “unidade social” que, mesmo diante da ambição igualitária entre os gêneros propagada  pelo individualismo moderno, mantêm-se às custas do ideal de completude prometido pelo mito do amor romântico, enfrentando assim as agruras de uma convivência que requer permanentemente uma “contabilidade conjugal”.

É neste panorama que a fidelidade fica reduzida a um elemento de “impasse”, sempre a rondar as uniões conjugais e a lembrá-las de sua finitude eminente ou de sua existência efêmera.

Quem sabe por se constituir como impossibilidade real na manutenção do mito da completude amorosa prometida pelo amor romântico, a fidelidade sexual atravessou os séculos modernos sendo tema recorrente de filmes, novelas, músicas e romances. Alimentando de forma inigualável o repertório do imaginário cultural amoroso, não se cansa de contar em verso e prosa as dores e o sofrimento provocados pelas experiências de perdas que rondam as expectativas de fidelidade sexual.

 

 

 

 

 

 

 


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