segunda-feira, 3 de junho de 2024

 


       

Amor e fidelidade: a vida amorosa da mulher na atualidade

 

Gisela Haddad

 

Pode-se identificar na cultura atual a persistência da linguagem do ideal de amor romântico presente nas relações amorosas, seja através de filmes, canções, novelas ou mesmo propagandas. Também é de consenso o quanto a relação amorosa desfruta de um lugar especial na vida subjetiva de todos, atestado inclusive pelo lugar de privilégio que ocupa nas demandas de análise.

Algumas pesquisas realizadas no rico contexto da Antropologia Urbana do Museu Nacional do Rio de Janeiro apontam que, apesar de homens e mulheres desfrutarem hoje de uma considerável liberdade e autonomia que lhe permitiriam manter vínculos separados entre amor e sexo, ou mesmo inventarem novos arranjos mais adequados às demandas da sociedade contemporânea, o ideal de amor romântico continua a fazer parte integrante dos mecanismos constitutivos das conjugalidades. Por outro lado, estas pesquisas também indicam o quanto é árdua a manutenção destes vínculos e as negociações necessárias para se administrar a intimidade sem invadir os limites da privacidade de cada um dos pares, fatores estes diretamente relacionados aos ideais de igualdade e  liberdade contemporâneos.Entre estas dificuldades merece destaque as divergências entre a aspiração romântica a uma relação duradoura e exclusiva que deixa implícita a fidelidade sexual esperada entre os pares e as  vicissitudes da implantação de um individualismo libertário que exige a simetria e o respeito às singularidades. Estes anseios aparentemente contraditórios, a constatação de uma certa assimetria entre os gêneros nos dramas da vida a dois, ou a evidencia de uma singularização dos conflitos,  convocam a psicanálise  a refletir sobre as mudanças na vida amorosa atual.

Na obra freudiana a vida amorosa de homens e mulheres foi tema recorrente de reflexões, sem deixar de fora o lugar ocupado pela cultura. Se a sexualidade como ciência do sexual surgiu na modernidade pretendendo focalizar a saúde dos indivíduos, criando dispositivos e normas para o prazer sexual, um biopoder e uma bioética e o sexo passou a ter lugar de destaque nos discursos médicos, políticos, jurídicos, religiosos e psicológicos, a psicanálise se alimentou destes discursos e empreendeu um projeto de conhecimento da sexualidade humana desenhada pelo inconsciente. Ao apontar o recalcamento da sexualidade das histéricas no final do século XIX, ela também salientou o lugar de fantasia deste sexual, produzindo uma teoria singular sobre a sexualidade humana onde o sujeito seria, ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela.

Mas a psicanálise também destacou o lugar do amor articulando-o com a relação original com a mãe,  com a constituição do eu e com a formação dos ideais.A nova ação psíquica que Freud anuncia no narcisismo é o surgimento de uma representação na qual o sujeito é visto como uma unidade, um eu considerado modelo de perfeição, graças à fascinação do amor materno.Esta unidade ilusória é a responsável pelo sentimento de onipotência e de exclusividade que transforma o bebê em eu ideal.Será esta perda amorosa necessária que dará inicio a busca desta unidade, busca esta que constitui a dimensão mítica do amor e do desejo de ser amado.

A subjetividade amorosa ocupou desde sempre um lugar central na clínica e na teoria psicanalítica servindo ao mesmo tempo de sujeito e objeto de suas pesquisas. Nossa acepção de amor ocidental é uma invenção relativamente moderna e diz respeito a uma relação exclusiva entre um homem e uma mulher ou um par que aspira se unir na busca de uma completude feliz, idealmente organizado somente pela força proclamada dos sentimentos íntimos. Ao se fazer um percurso histórico desta conjunção de amor, sexo e conjugalidade, é possível articulá-la ao surgimento da psicanálise.

O amor romântico tornou-se norma das relações amorosas da Europa do século XVIII, ao final de um percurso de laicização do amor operado pela Modernidade. Se para os antigos e os cristãos, o amor buscava a posse eterna do objeto amado, imortal por natureza, aos poucos ele foi se transformando em desejo e átomo da constituição individual. Este deslocamento objeto-sujeito do amor acontece pari passu a uma crescente interioridade alimentada por uma poetização religiosa nascida na era cristã (estou me referindo aqui ao debate intimo que a noção de pecado introduz entre o que se quer e o que se teme).  A gradual humanização do objeto de amor provocou ao longo dos séculos, um desvio do gerenciamento da experiência amorosa e sexual para o próprio sujeito, típico do amor romântico moderno. É graças a esta interioridade que na obra freudiana a experiência amorosa irá ocupar um lugar de privilégio e será na tentativa de decifrar seu tumulto que Freud percorrerá seus caminhos, para saber o que eles revelam nas dores, sofrimentos, lapsos, sintomas, delírios e alucinações.

O amor romântico ou “amor verdadeiro” funcionava na era burguesa tanto como um regulador da vida familiar e societária quanto como uma promessa de felicidade e êxtase sexual, ao valorizar o vínculo exclusivo do par conjugal. É neste cenário que o amor passa a ser algo que pertence ao sujeito e que pode levá-lo à felicidade ou ao sofrimento, tornando-se personagem de paixões e desesperos e alimento das fantasias humanas, o que produzia uma experiência amorosa inédita.

A felicidade que seria conquistada pelo laço amoroso, sexual e exclusivo entre um homem e uma mulher previa a constituição de uma nova família, assentada pelo amor entre os cônjuges e destes em relação aos seus filhos. Roudinesco mostra como esta família burguesa se transforma em uma fortaleza afetiva restrita a interesses privados e aponta o fato destes casamentos por amor resultarem, a longo prazo, em um esgotamento do desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação muito próxima entre mãe e filho. Do ponto de vista social é Áriès quem confirma este contexto especial ao marcar a invenção da infância na era moderna, referindo-se à idéia de um tempo feliz, protegido pelo amor dos pais e objeto de reflexões, planos, projetos e debates. É assim que o ideal de amor romântico com seu valor político e cultural de regulador das relações entre os homens e mulheres se articula a um estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança, inaugurando um prolongamento deste ideal de felicidade irrealizável na aspiração de um tempo feliz e perdido. Psicanálise e interioridade parecem se juntar para caucionar a ideia do amor romântico e seu particular contexto familiar.

Na modernidade, a subjetividade amorosa passa a ter um espaço central na vida dos dois sexos, mas abre novos caminhos principalmente para a posição social da mulher que passa a ser sujeito de uma escolha amorosa e decisiva, simultânea a uma desmistificação lenta e gradual dos tabus generalizados construídos pela civilização em relação a sua figura.

Embora mantivesse uma atitude ambígua em relação à mulher em geral e à sexualidade feminina em particular, Freud ajudou a promover o feminino ao estatuto de cultura, ao contribuir para desnaturalização da sexualidade humana e ao permitir à mulher tornar-se um sujeito desejante. Seu texto de 1922 sobre o tabu da virgindade, é também uma tentativa de  entender as motivações e os mistérios que estariam por trás destes tabus, fosse em relação à menstruação, à virgindade, à gravidez ou a maternidade.

Na verdade, os tabus têm seu fundamento no temor de algum perigo desconhecido e o tabu da virgindade como construção social seria uma tentativa de se dar conta da passagem da menina à sua condição de mulher sexuada. Mesmo contaminado pelos padrões culturais de sua época, é Freud quem, atento ao sentido do “proibido” desvenda a necessidade de um velamento entre a figura da mulher-mãe assexuada, protótipo do primeiro objeto de amor para todos e a figura da mulher-objeto sexual, figuras estas cindidas na cultura de sua época.  A mulher passiva, assexuada por sua natureza sensível, destinada à maternidade, e a mulher excessiva, propensa à degenerescência física e moral e perigosa para a sociedade, se alternavam no imaginário de ambos os sexos na cultura burguesa, o que é facilmente constatado, seja pela produção de romances cujas mulheres tinham um destino trágico quando cediam aos seus impulsos amorosos  como pela profusão de manuais sobre casamentos que continham polemicas pedagógicas sobre o recato das mulheres, ora com inspirações religiosas ou com acentos moralistas mas que não escondiam a inquietação sobre o erotismo feminino, sua natureza e intensidade.

A preocupação em adestrar o corpo e a sexualidade feminina com vistas à procriação e ao casamento era constante. Qualquer desejo ou comportamento sexual que ultrapassasse estes limites era considerado excesso, degeneração ou patologia. Na cultura burguesa, a mulher-mãe pressupunha uma mulher que renunciava aos excessos sexuais.

A separação entre feminilidade e maternidade, ato carnal e procriação,  desejo e reprodução acontece através de um lento movimento, inclusive de crítica às teorias da sexualidade elaboradas por homens ao longo da história ocidental. Em seu livro A Educação dos Sentidos, Gay dedica um capítulo ao “medo dos homens” e à literatura do século XIX que se preocupou em descrever o sentimento generalizado de que a virilidade estava em perigo. A sociedade masculina burguesa sentia-se ameaçada diante da possibilidade da emancipação das mulheres. Será a psicanálise que irá elucidar o quanto as tentativas masculinas de proibição e controle sobre o gozo feminino em grande parte das civilizações denunciavam a “angústia” do homem frente a um suposto gozo excessivo da mulher. Este temor estaria ligado tanto ao medo quanto ao desejo da transgressão sexual e da perda dos limites, cujo fantasma assombrador seria a figura incestuosa da mãe.

Na cultura atual a tão temida sexualidade feminina ocupa um lugar menos ameaçador, e a valorizada virilidade masculina deixou de assombrar os próprios homens exigindo ajustes de antigas aspirações diante das imposições de um novo ethos. No entanto, o nivelamento da liberdade sexual para ambos os sexos escancarou as diferenças dos gêneros, singularidades construídas pelos fantasmas infantis que habitam o percurso de um e outro, nascidos no complexo edípico. O destino da vida amorosa humana está diretamente ligado a possibilidade de interdição da relação primária com a mãe. As figuras da mulher-mãe e da mulher-prostituta são menos construções culturais do que cisões importantes do feminino para a vida amorosa de homens e mulheres, até porque a mulher está destinada a ser tanto a mãe que cuida e ama quanto a prostituta que se deleita com os jogos de amor.

A igualdade de direitos entre os sexos permite desvendar os significados de muitos tabus e mitos considerados ícones de uma dominação masculina. Um deles seria o valor social da fidelidade feminina, hoje uma exigência subjetiva e muito ligada às idiossincrasias das relações entre amor e sexo. Por outro lado, a infidelidade masculina que desfrutou de um consentimento geral (homens e mulheres) de algumas sociedades modernas, contribuiu para a manutenção desta dominação masculina em constante afirmação de sua virilidade, traço importante e definidor da identidade masculina.

A difícil passagem da mulher para uma posição de sujeito suscitou mudanças tanto para ela quanto para os homens. Ao relativizar a diferença biológica dos sexos e focalizar as identidades sexuais ou gêneros, a modernidade valorizou o lugar que homens e mulheres ocupavam na cultura, multiplicando as diferenças sociais e identitárias. O complexo patriarcal do século XIX se desmantelou durante o século XX e a autoridade cujo poder era idealizado e respeitado se esfumaçou em contratos individuais e grupais. Os modelos identitários que em geral eram binários (pai ou mãe, isso ou aquilo) hoje apresentam uma multiplicidade de figuras de referência. Isto incide diretamente na maneira como os pares amorosos gerenciam suas relações, a saber, os consensos e acordos que substituem as antigas regras sociais que orientavam de maneira bem mais rígida os papéis sexuais, delimitando o poder, o prazer, o permitido e o proibido.

De uma certa maneira a igualdade entre os gêneros, que no âmbito social aparece como conquista referendada e, portanto, poderia acenar com sentimentos de segurança, confiança ou pertencimento, no convívio íntimo se atraca com a liberdade, também esperada, mas causadora de incertezas e riscos, deflagrando os conflitos que as singularidades impõem. Pode-se dizer que a fidelidade sexual esperada ou exigida pelos pares passeia entre estes três ângulos e resiste de forma insistente ao exercício da contabilidade conjugal.

Se a figura do adultério perdeu a consistência de ofensa moral, a exclusividade amorosa ou sexual passou a ser uma exigência que demanda negociações entre os pares. Para Freud (1914) esta exigência de exclusividade de ambos os sexos nasce diante da eminência de perda do amor pleno da fusão com a mãe, assim como a intervenção de um terceiro, ou do nascimento dos irmãos, são fatores responsáveis pelas vivencias dos sentimentos de ciúmes e rivalidade. Esta seria a articulação da fidelidade com o amor, com a necessidade de se sentir amado, reconhecido e valorizado de forma exclusiva.

Sabemos como nas receitas dos pares amorosos a fidelidade esperada ou exigida é um ingrediente de peso.Fantasma poderoso que ameaça a sempre instável imagem de um eu que precisa insistentemente ser refletida no olhar de reconhecimento do outro, ela também acusa a difícil convivência do par amor e sexo.Sempre ameaçada pelo prazer da fruição sexual, é chamada a se explicar na ética amorosa, na exigência de lealdade a um contrato em geral ilusório que pretende a exclusividade, o amor incondicional.

Ilusão da qual gostamos de compartilhar, nas historias de amor e sexo encenadas com os mais diversos obstáculos, percalços infinitos, desde que no final possamos reiterar nossa crença na possibilidade do amor romântico, verdadeiro, aquele que ainda nos promete conhecer em algum momento, este êxtase infinito da paixão que imaginamos ter tido ou perdido um dia. Se a condição de amor romântico é a manutenção da ilusão de completude, a infidelidade sexual é um dispositivo do real que revela a construção ilusória do par amoroso.

 

 

 

 

                  

 

 

 

 

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