O trabalho de Foucault é hoje uma referência para pensarmos a
contextualização histórica e social da experiência humana e das verdades e crenças
que dão sentido as relações dos sujeitos consigo, com os outros e com o mundo. Não
sendo a subjetividade nem universal nem prévia, torna-se necessário analisar os
mecanismos de sua construção dentro de determinada época para saber sobre a
constituição dos estilos de existência, das estruturas sociais que sustentam os
sujeitos e das relações de poder que os dominam. Para Foucault (1998), é
sobre estas formas de poder que se produzem campos de resistência, que na
modernidade concentram-se na esfera subjetiva. A psicanálise freudiana
protagonizou uma leitura inédita e subversiva das experiências subjetivas de
seu tempo ao dar sentido à sintomas psíquicos perturbadores, revelando um
cenário de fantasias humanas nem sempre sensatas ou coerentes e desvendando um
sujeito dividido entre seus desejos e as exigências e proibições de sua
cultura.
Nas últimas décadas, a cultura ocidental foi palco de intensas
mudanças e invadiu quase todos os setores da vida humana. Seus ícones passaram
a ser temas de pesquisas de diferentes áreas de conhecimento, que não só reconhecem
sua importância e sua permanente transformação, como buscam refletir sobre seus
novos paradigmas. Tema privilegiado pela sociedade ocidental, a família, ícone
cultural por excelência, tem sido alvo de estudos interdisciplinares que buscam
constituir um saber a respeito de seu sentido e função na era contemporânea.
Lugar especial no qual o bebê humano nasce, é cuidado, satisfaz suas primeiras
necessidades, efetua seus primeiros intercâmbios afetivos, e é objeto de
investimento amoroso, a família reúne um sistema de relações simbólicas e
emocionais que lhe asseguram o lugar de importante núcleo de produção de subjetividade.
No último século, este núcleo familiar viu-se atropelado por mudanças culturais
importantes e por novas possibilidades que a ciência produziu.
Os avanços da biotecnociências foram responsáveis por uma
reviravolta no processo da reprodução humana, provocando uma revolução no
próprio conceito que designava até pouco tempo a união, reconhecida e apoiada
pela sociedade, entre um homem e uma mulher com fins de criar e manter os
filhos. Mudanças nos papéis tradicionais de pai e mãe, de homem e mulher, na
gestão da autoridade, na educação e transmissão dos valores e normas para as
novas gerações, produzem discursos às vezes alarmantes às vezes nostálgicos
diante de um futuro que se apresenta incerto. Este texto pretende refletir
sobre estas mudanças através da articulação entre a cultura e a produção de
subjetividade na atualidade e analisar as regras e normas que hoje orientam e
regulamentam a vida familiar ocidental e sua absorção de tais mudanças. Para
isso partiremos de uma breve revisão da história da família moderna,
ressaltando o valor do amor na constituição de um novo modelo familiar e de uma
particular subjetividade que passa a existir a partir da Modernidade.
Após as revoluções burguesas do século XVIII o espírito
moderno apostou que a razão soberana igual para todos pudesse assumir o exercício
de organizar as condutas e os consensos necessários ao convívio humano. Mas a
tarefa de nos livrarmos das hierarquias pré-estabelecidas e exaltar o indivíduo
como membro de uma humanidade comum se mostrou lenta e árdua, além de produzir
inúmeros restos. O modelo familiar que conhecemos surge em meio à euforia do
projeto civilizatório iluminista e teve em Rousseau seu maior idealizador. Tal
projeto englobava uma proposta filosófica e política para a sociedade burguesa que
pretendia fazer do amor apaixonado a base da construção da família, o que significava
integrar a sexualidade ao amor e ao casamento. Bem recebida na época pelos
literatos em geral, tal composição não só se alinhava aos anseios de autonomia dos
indivíduos como previa um arranjo conjugal em que a sexualidade ganhava
legitimidade. Mas a pesquisa realizada por Gay (2000 p. 47) sobre o século
burguês denuncia como a imaginação da época vai ficar capturada pelo componente
físico da vida erótica e das estratégias de conquista sexual, com suas
promessas de êxtase. Para a sociedade burguesa de então, era necessário que a bandeira
do amor servisse de norte para os excessos do sexo e não faltava literatura
cuja finalidade era a de mostrar os destinos trágicos do apaixonamento quando
este não se enquadrava na construção da família. O amor poderia incluir os
suspiros do sexo, mas deveria seguir um percurso de sensatez e atender os
compromissos de criação dos filhos, reprodução da família e formação do
cidadão. Era este o cenário em que a dupla moral burguesa denunciada por Freud
(1908 p.180), expunha as limitações impostas pela cultura à satisfação sexual
principalmente das mulheres, chamadas a privilegiar seu papel de mãe. A
literatura romântica da época era pródiga em incentivar o amor como remédio aos
excessos do sexo, prescrevendo destinos trágicos às paixões que se afastavam
dos moldes previstos pela família burguesa. Grande parte dos romances narravam
histórias de amor em que os sentimentos de angústia e de sofrimento vividos por
seus protagonistas giravam em torno de um único objetivo: a realização do ideal
de amor. Este repertório literário se alimentava da idealização romântica do
amor ao mesmo tempo em que propiciava cenários de encontros e experiências
amorosas cujas paixões e desesperos passam a colorir as fantasias humanas. As
narrativas românticas se encaixavam na ideologia individualista em curso e ajudavam
a criar uma interioridade psicológica com identidades fundadas em sentimentos
íntimos, o que produzia uma subjetividade e uma experiência amorosa inédita.
Nascia um novo conhecimento, uma ciência do homem, de suas particularidades e
singularidades, expressa por uma nova linguagem, auto-referente, com sujeitos
capazes de falar de si.
O amor romântico se consolida em um ideal reverenciado pela sociedade,
suporte deste modelo de família e parte de um horizonte futuro da vida de cada um,
uma aspiração poderosa que acenava com a possibilidade de uma felicidade humana
terrena em contraposição aos antigos ideais religiosos. Também inaugura uma
convivência familiar mais centrada em seu núcleo pai-mãe-filhos, transformando-se
em uma fortaleza afetiva restrita, o que funda a vida privada e íntima,
característica da era burguesa.
Como bem aponta Roudinesco (2002 p.106), os casamentos
realizados por amor começam a apresentar, a longo prazo, um esgotamento do
desejo e um desencantamento do sexo, dando margem ao surgimento de uma relação
muito próxima entre mãe e filho. O bem-estar familiar gira em torno deste ninho
e à mulher resta o papel de mãe que
ganha as atenções e a reverência da sociedade. O amor materno passa a ocupar um
espaço jamais conquistado anteriormente na história da humanidade e seu corpo é
alçado ao lugar de um paraíso originário. O ocidente passa a cultuar a imagem
da Virgem Maria e seu filho como símbolos da maternidade. Tal reverência à
maternidade ajuda a incrementar a figura mitológica da sagrada família moderna e de mãe para filha, o modelo materno
adquire uma áurea própria: ao se casar e ter filhos a mulher se despoja de sua
humanidade, recebe o cetro e a coroa e desfruta de seus poderes maternos. Aos
poucos a mulher-mãe se torna condição de sobrevivência, indispensável ao
desenvolvimento e à educação dos futuros homens. Mas se a influência materna
passa a ser decisiva para a criança, os desvios e falhas infantis passam a ser
fracassos de sua função de mãe.
Estamos diante do momento histórico (Ariès, 1978) em que a
infância moderna se instala em um compósito entre a idéia de um tempo feliz
protegido pelo amor dos pais, mas principalmente pelos cuidados de uma mãe
amorosa, e a preocupação social em produzir cartilhas e especialistas que
preenchessem quaisquer limites ou insuficiências da vida familiar. É assim que
no plano social inicia-se a interferência pública nos cuidados e proteção à
criança, promovendo o desenvolvimento de uma infinidade de setores que de forma
gradual, passam a oferecer saberes considerados mais adequados ao
desenvolvimento do futuro adulto.
Seguindo Foucault (1988), a organização patriarcal da
sociedade, herança do poder soberano, que mantinha a hierarquia entre os
gêneros, passa a conviver com uma nova maneira de poder, um poder disciplinar,
mais coerente com a ideologia de liberdade, igualdade e autonomia do
individualismo social em
andamento. Tal poder se dispersa pelos múltiplos setores da
cultura (mídia, publicidade, escola, empresa, etc.) e subverte o permitido e o
proibido, estimula o sexo e os prazeres e funda novas regras e normas de
controle sobre a vida dos indivíduos. É este biopoder que vai lentamente
invadir a vida privada familiar, oferecendo alternativas de cuidados mais adequados e saudáveis para seus membros.
As normas e valores patriarcais perdem sua potência na medida em que o
indivíduo passa a ser o objeto de novas estratégias políticas que visam
proteger e melhorar as condições da vida de cada um. Novas normas e parâmetros são
fixados, novas verdades e estilos de viver aos quais os indivíduos precisam se
ajustar para serem reconhecidos, aceitos e desejados.
Na intimidade da família nuclear, o amor se mantém como item
importante na constituição e na regulação das relações entre os homens e as
mulheres, mas também se articula a um estreitamento do vínculo entre a mãe e a
criança e inaugura um prolongamento do ideal de amor e felicidade irrealizável
na aspiração de um tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a
esperança da realização da felicidade almejada pelos pais. O amor dos pais à
seus filhos sustenta-se nesta possibilidade de assisti-los transformarem-se na
imagem de felicidade idealizada por eles. Surge assim um circuito amoroso
fundamental para a subjetividade moderna.
Além da infância, o casamento entre o amor parental narcísico
e o individualismo moderno produz outro fenômeno social importante, a
adolescência, que surge no pós-guerra como depositária idealizada dos atributos
de coragem, alegria e esperança e inaugura um tempo em que a felicidade, o
prazer e a boa vida serão admitidos e depois incentivados, entre a infância e a
idade adulta. (Calligaris, 2003)
Nascida no caldo cultural moderno, a psicanálise passa a
desvendar este particular contexto familiar e a complexidade das subjetividades
de seus membros, ao revelar os bastidores conflituosos das relações entre mãe,
pai, filhos e filhas e o lugar privilegiado das funções parentais na
constituição do psiquismo humano. O momento amoroso da infância, graças aos
cuidados e reverência dos pais passa a ser considerado de suma importância para
a emergência psíquica do bebê, mas é esperado que ainda no seio familiar ele
possa ser confrontado com sua humanidade: aceitar não ser rei, não ser único e
nem desfrutar da exclusividade amorosa que imaginava. Tarefa das mais difíceis,
será entre a ameaça de perder e o desejo de obter novamente este lugar
privilegiado e exclusivo, que a criança deverá abrir mão desta importante
ilusão de ser amada incondicionalmente para dar lugar às infinitas condições a que ela terá que se submeter mas que tentará evitar. É neste jogo amoroso
singular que ela construirá sua subjetividade. A lembrança deste amor
incondicional imaginado permanecerá na aspiração de um reencontro amoroso futuro.
O ideal de amor romântico se incorpora à subjetividade moderna, fundando um
ideal para o eu (Haddad, 2006). Sabemos o quanto ao longo do último século, a
sociedade ocidental tornar-se-á militante do amor, cujo argumento revolverá
normas, valores e leis.
À medida que aumentam os saberes sobre o humano, as funções parentais
tornam-se maiores e mais complexas. Além de se responsabilizar pelo fato físico
do nascimento, os pais devem reconhecer sua criança, dar-lhes um nome e uma
filiação, cuidar do seu sustento, educação e saúde, proporcionar-lhes um espaço
de convivência em que sua subjetividade se constitua e cumprir a função
simbólica de transmissão dos valores, normas e interditos da cultura.
Embora esta célula familiar moderna assuma um papel primário
na transmissão da cultura e das gerações, ela é ao mesmo tempo fonte de
normalidade e das piores patologias, o que faz com que as funções parentais se
tornem cada vez mais alvo de cuidados públicos. Do ponto de vista social e ao
longo do tempo, tais funções migram gradualmente do espaço privado ao público.
Na tentativa de manter este modelo idealizado, a família se torna um centro
irradiador de demandas de estudos e pesquisas que visam conhecer suas características
e especificidades para criar todos os tipos de serviços, cuidados e proteção
que garantam seu bem-estar ou técnicas e projetos que auxiliem o
desenvolvimento de seus membros.
Esta passagem da função da parentalidade ao espaço público
acontece em concomitância ao desenvolvimento das ciências e outros saberes que
passam a assumir parte das funções de cuidados dos infantes e de leis que
garantem à criança esta tutela ou cobram dos pais seus deveres e obrigações. Ao
ser invadida pelo olhar público, a estrutura familiar burguesa revela seu avesso
e sua fragilidade. Em meio à movimentação dos setores da sociedade que buscam
corretivos, a psicanálise segue revelando seus descompassos. Por ser uma
sociedade centrada na autoridade patriarcal, as leis de recato sexual tinham o
objetivo de regulamentar principalmente a vida erótica das mulheres já que qualquer
exposição de sua sensualidade era motivo de desconforto. Além de serem mães por
vocação natural, seus desejos sexuais
deveriam ser limitados pelas vicissitudes desta função. Ao escutar as
histéricas, Freud desvenda uma subjetividade que não confirma tal natureza feminina.
O ideal de amor e sexo não cessa de alimentar o imaginário cultural
e se mantém ansiado por homens e mulheres. Tal fato contribui para o surgimento
de novas perspectivas para se questionar as maneiras de amar, as transformações
do erotismo, as práticas sexuais condenadas, a prostituição e as restrições
impostas aos sexos. A psicanálise bebe deste momento cultural e ajuda a retirar
o tema da sexualidade dos bastidores da vida humana. Entre outras coisas, a
falsa moral burguesa escondia o medo e a preocupação cultural com a
incapacidade de os homens gerenciarem o controle sobre seus impulsos sexuais e
agressivos. Ainda que lentamente, começa a haver uma subversão das mitologias
naturalistas da diferença entre os sexos fazendo cair por terra o instinto
maternal e a raça feminina. O tabu da virgindade feminina (Freud, 1917) revela
o temor de ambos os sexos em relação à passagem da menina à sua condição de
mulher sexuada. A preocupação social da época em adestrar o corpo e a
sexualidade feminina para a procriação e para o casamento, abrigava uma
tentativa de evitar um excesso sexual perturbador e temido. Acresce-se a isso que a complexidade da
relação dos homens com a figura da mãe-mulher, no melhor dos casos, produzia uma separação
entre a mãe virgem e pura de um lado e a
mulher sensual e sexuada de outro ( Freud,1912 p. 185).
No plano do conhecimento humano, o século XIX vivia um embate
entre o legado das tradições e as rupturas a estas que não cessavam de se
suceder. Reinava o pensamento crítico, as idéias de progresso e renovação e o
desejo de se libertar do obscurantismo e da ignorância pela difusão da ciência
e da cultura em geral. Tal
efervescência gerava a produção de discursos médicos, psicológicos, jurídicos,
políticos e religiosos que pretendiam ora analisar ora criticar a convivência
de valores antagônicos e moralistas ou criar novos discursos que respondessem aos
alardes das mudanças reivindicadas pelas gerações que se sucediam às antigas.
Por seu lado, a psicanálise ampliava seus saberes sobre a
construção de uma interioridade psíquica cujo personagem principal era a
complexa e enigmática sexualidade humana,
com destaque para seu papel no interior da família, na constituição psíquica da
criança e dos conflitos vividos nas tramas amorosas da infância. O amor dos
pais, tão reverenciado, precisava existir na justa medida entre os cuidados e a
erotização do corpo infantil responsável pelo anseio de viver e ser amado,
e certas rupturas de um estado fusional
e primitivo com a mãe, que o auxiliassem a entrar no mundo simbólico e
partilhado da cultura, carregando o legado das aspirações parentais e das
crenças, ideais e proibições vigentes no discurso social. Nasce o sujeito
dividido entre o que ele quer, o que ele teme e o que a cultura lhe permite e
oferece. O conflito entre a necessidade de amparo e amor e o anseio de
separação e independência ocupa o centro da constituição desta subjetividade
moderna, uma subjetividade amorosa.
No pensamento moderno deveria caber a cada indivíduo
construir seu próprio destino e seu próprio eu, rumo a um futuro que não
dependeria mais dos deuses. A aposta no futuro passa a significar uma aposta em
novos sentidos para a existência humana que acenem com uma maior satisfação,
prazer e conforto. A conquista desta
individualidade autônoma dentro do círculo doméstico começa a se dar à medida
que o poder familiar vai se restringindo e os interesses pessoais aumentando em
consonância com uma exigência de simetria entre os pares conjugais. Aos poucos,
as mulheres vão ganhando espaço público e com o advento dos métodos
anticoncepcionais, conquistam o direito ao amor livre, ao aborto e ao divórcio.
Homens ou mulheres, cada um se torna o único ou o principal regulador de suas
práticas afetivo-sexuais, assumindo a liberdade para experimentá-las e gerenciá-las.
Sem as amarras das regras de aliança, homens, mulheres, homossexuais ou não,
começam a formar seus pares fundados somente em escolhas amorosas e mantidos
por acordos e negociações. Tal liberdade incide tanto nas escolhas dos
parceiros quanto nas decisões de interrupção das relações quando estas se
mostram impossibilitadas de cumprirem os acordos estipulados.
Muda a
realidade social, despontam novos modelos de convivência e novos repertórios de
condutas. A formação dos pares conjugais torna-se independente do sexo ou da
orientação sexual de cada um. Resultado de um movimento de desvencilhamento da
tradição e das regras coercitivas sociais, ao manterem apenas o amor como eixo
central de suas escolhas, estas novas parcerias inauguram uma nova ética e
estética do convívio amoroso e embarcam em uma aventura incerta. Com relações amorosas
mais efêmeras os indivíduos passam a formar mais de um vínculo conjugal durante
sua vida, o que altera a constituição dos agrupamentos familiares e a
convivência entre os pais que geram e os que cuidam e os filhos legítimos ou
adotivos.
Os métodos
anticoncepcionais e a biogenética rompem a antiga junção
casamento-sexo-procriação. A concepção não decorre somente do contato sexual.
Não é mais necessário estar casado ou ter um cônjuge para ter um filho. As
uniões homoafetivas não só têm o reconhecimento social como podem adotar filhos
ou mesmo concebê-los e assumirem uma função parental.
A partir dos
novos casamentos que cada um dos pares pode fazer e dos novos filhos destes
novos casamentos, os núcleos familiares precisam receber os filhos de um ou
ambos os integrantes de um novo par, provenientes de um vínculo anterior,
promovendo a fusão de duas ou mais famílias às vezes com características e
modos de vida diferentes. São códigos, regras e estilos de parentalidade
diversos. Uma criança pode pertencer simultaneamente a mais de um grupo
familiar e sua circulação entre eles pode ser constante e organizada ou
irregular e informal. Alguns núcleos formam redes em que convivem ex-cônjuges,
antigos e novos avós e tios, novos irmãos, enteados, padrastos e madrastas.
A filiação passa a não ser mais definida pelos laços
sanguíneos, legais ou residenciais e sim por uma filiação social ou socioafetiva,
fundando um grupo doméstico cada vez que em uma casa se juntam o novo casal e
os filhos de um, de outro ou de ambos. Ser pai ou mãe, ou exercer uma função de
parentalidade depende apenas de um comprometimento. O lugar do pai e da mãe não
tem que ser necessariamente ocupado nem pelos pais legítimos nem por um homem e
por uma mulher assim como a função
paterna ou função materna não
implicam a presença de um homem e de uma mulher.
As relações familiares se horizontalizam e provocam uma maior
proximidade entre as gerações nos modos de existir, desconstruindo as antigas atribuições
de poder e autoridade. Ao se tornar preferencialmente uma tarefa amorosa, o
exercício da função parental impõe uma nova forma de convivência entre pais e
filhos. O bem-estar dos filhos se torna um ideal importante para seus pais.
Mais atenciosos, disponíveis e compreensíveis, o imperativo de amá-las que
decorre da necessidade narcísica de vê-las felizes, provoca não só angústia e
culpa se o sentimento de seu amor for insuficiente, como os enche de incertezas
em relação ao seu papel de transmissor de valores e normas, quando este exercício
significa frustrá-los. Qualquer obstáculo real ou imaginário que se oponha ao
ideal de felicidade imaginado para os rebentos causa desconforto quanto às
direções das tarefas educativas ou a assunção da dessimetria da função parental.
Por outro lado, o alto valor narcísico atribuído aos filhos cobra seu preço nas
expectativas de que estes sejam perfeitos e sem falhas. Muitas vezes por ocupar
este lugar de espelho narcísico e de produção de satisfação para os pais, os filhos
ficam sem um lugar de verdade, aquele que cada uma precisa buscar para si no
mundo adulto, das leis e normas da sociedade em que vive.
O individualismo social promove indivíduos autônomos
necessariamente narcísicos, diz Calligaris (1996). Sua consistência subjetiva,
mais livre das obrigações simbólicas e sem o peso da herança dos valores e
tradições da família e da cultura, é fruto de contínuas tentativas de se manter
desejável aos olhos dos outros. O momento narcisista de sua constituição
subjetiva, definido como a condição em que toma a si mesmo como objeto de amor
fica vinculado a uma superestima parental. É ela que o faz especial,
inteligente e desprovido de defeitos. Este amor do narcisismo parental, produto
de suas aspirações não realizadas (ideal do eu) será o responsável pela
idealização que cada um fará de si mesmo- seu eu ideal. Instala-se um circuito
amoroso em que o ideal de eu, enquanto instância narcisicamente investida e
voltada para os futuros interesses no mundo e na cultura, contém em sua origem
o desejo de ser dos pais. É assim que o ideal de eu torna-se o meio pelo qual
os indivíduos se relacionam mutuamente em busca de aceitação, reconhecimento e
proteção. A tarefa amorosa da subjetividade atual se confunde com o esforço de
cada um em coincidir com a imagem que possa satisfazer primeiramente aos pais e
depois aos outros. Esta maneira de existir, ansiando ser amado e admirado pelos
outros, cria demandas para que a cultura favoreça dispositivos que auxiliem a
enfrentar a precariedade e a centralidade da presença deste amor. Diante das
dores de amor, será necessário buscar saídas alternativas ao submetimento, à
alienação ou à adição.
Na cultura atual o amor se tornou o eixo central da vida e
das escolhas dos indivíduos e o ideal de amor romântico ganhou novas roupagens.
Se no tempo de Freud a cultura cerceava o indivíduo impedindo a satisfação de
suas pulsões sexuais e agressivas (1908), a sociedade atual cultua a liberdade
individual como valor absoluto e hegemônico e estimula a busca do prazer. As
formas de amar, sua ligação ou não com o sexo, com o casamento ou com a
felicidade, fazem parte dos valores morais que na modernidade mantêm uma
parceria exitosa com a literatura, o cinema e a música, os quais refletem e
produzem repertórios amorosos (conjugais ou familiares) e ajudam a compor o
imaginário popular. Se a literatura romântica da era burguesa exaltava o amor a
fim de evitar os excessos de uma sexualidade enigmática e temida, a incorporação
do saber sobre o sexual, inclusive os difundidos pela psicanálise, permitiu à
cultura contemporânea separar amor e sexo e despojar o amor de sua idealização
anterior, ainda que apostando no seu valor de felicidade. O conflito entre
pulsões sexuais e repressão cultural que produzia sujeitos inibidos e
recalcados dá lugar a sujeitos que buscam o prazer sem culpa, mas oscilam entre
potência e impotência diante dos múltiplos mandatos culturais a que se deparam
e que anseiam cumprir para serem reconhecidos.
A fabricação do sujeito moderno está intimamente ligada à sua
singularização, base e convicção do individualismo como ideologia. As muitas
dimensões do individualismo que se configuraram na época atual questionaram
todo e qualquer constrangimento social, com destaque especial para as questões
sobre a sexualidade e a autoridade patriarcal. Na contemporaneidade a formação
de pares conjugais e o exercício da tarefa parental elegem o amor como
principal e às vezes único critério. É o amor dos pais que produz uma
confirmação narcísica, promove a erotização do corpo e inventa a criança perfeita, a qual por identificação constrói seu
eu ideal. É este eu que ela vai amar que dará uma representação de quem ela é e
de quem é o outro. A organização dos arranjos familiares e a relação entre seus
membros incorporou grande parte das descobertas feitas pela psicanálise neste
século. Se como diz Foucault (1988), é a subjetividade que se encarrega de
interrogar os limites, os ideais e os restos que organizam as relações entre os
indivíduos, talvez coubesse à psicanálise, que analisou regiamente a
subjetividade moderna do século anterior, se desvencilhar de sua nostalgia e se
autorizar a encarar as mudanças, não como escombros irremediáveis de um modelo familiar idealizado, mas como novas
possibilidades do viver humano.
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