Assistir ao filme “No” impõe a todos um sobrevoo sobre a história recente
do Chile. O golpe militar que derrubou Salvador Allende em 1973 - presidente
eleito neste país em1970 - é considerado o mais cruento da história da América
Latina, deixando um saldo de três mil mortos e desaparecidos, além de milhares
de presos políticos, exilados e torturados. Depois de 15 anos à frente de tal
ditadura sangrenta, Augusto Pinochet foi pressionado pelos governos
internacionais a submeter-se a um plebiscito popular que legitimasse seu desejo
de mais oito anos no poder. Certo de que os plebiscitos feitos sob ditaduras
costumavam ser favoráveis a quem detinha o poder, foi surpreendido pela vitória
do “não”. É sobre esse fato verídico que o filme “No”, de Pablo Larraín discorre. O diretor conta que tinha 12 anos
quando as emissoras de TV do Chile exibiram a vitória apertada (56% contra 44%)
do referendo que rejeitou a permanência do governo militar no país, um
acontecimento que marcou sua vida e a de seu país. A partir da leitura da peça “O plebiscito”, do escritor chileno Antonio
Skármeta, e de muitas pesquisas sobre o período, Larraín decidiu priorizar as
campanhas publicitárias do Sim e do Não que tinham 15 minutos diários na
televisão para convocar o povo a votar a seu favor. Na época, o jovem René
Saavedra, filho de um exilado político que volta ao Chile, e talentoso publicitário
em franca ascensão no país, é convidado a assumir a campanha do "não"
e acaba criando uma peça inovadora para a época, que vendia a ideia de
esperança e felicidade, ao invés de expor os terrores da era Pinochet. De forma
astuta, a campanha derrota o ditador utilizando as mesmas ferramentas de sua
propaganda política com fartas visões sobre um promissor futuro do país. Mas
seria mesmo esta vitória apenas fruto de uma manobra publicitária bem feita? Ao
assistir ao filme com amigos, finda a sessão, ainda que o final feliz produzisse
uma sensação de redenção, no burburinho dos comentários, espectadores mais
engajados confessavam certo estranhamento, uma desconfiança de que o
publicitário, longe de comungar com alguma ideologia política, teria apenas
“vencido” uma concorrida disputa com seu rival, no caso a turma que cuidava da
campanha do “sim”. Instalada a polemica, surgiam as perguntas. Teria sido a peça
publicitária decisiva para que o governo Pinochet ganhasse maior visibilidade
negativa, nacional e internacionalmente, obrigando-o a deixar o governo dois
anos depois? Qual teria sido seu diferencial? Que valor moral atribuir aos
métodos utilizados na campanha, mais próximos ao marketing político (tão
vigente na atualidade)? Ou ainda, porque deixar de fora o sofrimento legítimo
dos que foram destituídos de seus direitos, dos que perderam seus familiares,
dos que foram torturados? Como não usar o espaço dos 15 minutos para denunciar as
barbaridades cometidas pelo governo compulsoriamente censuradas para o povo? Vale
dizer que o filme sustenta um clima de suspense do inicio ao fim só por mostrar
as tensões vividas pela equipe do “não” que, pisando em ovos em um governo sob
censura, precisa fazer sua omelete parecer maravilhosa, apesar de quase sem
ovos. Tarefa ardilosa que este publicitário vivido pelo ator mexicano Gael
García Bernal tenta desempenhar, convencendo a turma do “não” a eleger programas otimistas, que pudessem despertar principalmente aos jovens,
convocando-os a reconquistar a alegria de viver e a confiança no futuro ao
divulgar seu slogan "Chile, a alegria está chegando”, fazendo-os acreditar que seu voto poderia mudar a situação politica do
país. De meu
lado, surpreendi-me positivamente pela escolha da “alegria”. Fiquei imaginando
(talvez de forma romântica) que aquele “menino” já tinha em seu currículo as
duras experiências dos que precisam viver exilados de seu país. Quem sabe em
sua volta, já desenhasse a possibilidade de um novo país, por isso insistia em despertar
nos jovens a paixão de viver uma nova época e uma nova cultura. Pode ser que quisesse
transformar, pela via da publicidade - que como sabemos corre atrás dos desejos
humanos- seu desejo de pertencimento a um novo país incitando um sentimento de
humanidade comum a todos os chilenos, sem diferenças de idade, posição social,
partidos políticos. Se o mundo não cessa de refazer ciclos em que alguns se
instituem donos absolutos de uma verdade por algum período, há que haver os que
rememoram a força do desejo de renovar em cada um, e da possibilidade de fazer
historia com alguma ousadia. De forma sensível, o diretor farejou nos
comerciais produzidos na época (ele não os reproduziu e sim utilizou os
originais) algo de diferente sob o céu de brigadeiro. Vale a pena conferir este
tônus de uma fina ironia, bom humor e alegria.
(No), de Pablo Larraín, Chile / França / EUA, 2012