segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Dezembrite

Dezembro é um mês que concentra um número infinito de providencias, trabalhos e eventos a serem cumpridos dentro do curto prazo que antecede as festas do final do ano. E mesmo que já saibamos e tentemos antecipar algumas destas “obrigações” é quase impossível não sermos atropelados pelo seu excesso. São grandes e pequenas confraternizações dos diferentes grupos a que pertencemos, pequenos mimos aos que nos fornecem serviços durante o ano, presentes para os mais chegados, planejamento de ceias/almoços junto aos familiares ou de férias quando acontecem nesta época e tudo isso em paralelo aos “fechamentos” e balanços de nossas atividades sejam elas quais forem. A febre do final de ano ainda promove um corre-corre de multidões às lojas e shoppings da cidade e passeios aos pontos mais enfeitados para a ocasião, o que em geral torna o trânsito das cidades mais lento e caótico. Ao lado deste movimento intenso em torno do cumprimento das agendas de cada um, mantém-se uma tradição entre algumas empresas, famílias e indivíduos, de doações em dinheiro, alimentos ou presentes a certas instituições que se dedicam a abrigar crianças ou adultos órfãos, com câncer, com AIDS, deficientes, idosos. Mesmo sendo uma tradição enraizada em nossa cultura é curioso que se concentre nos finais de ano este movimento de doações aos mais necessitados, seja em forma de contribuições ou ainda em oferta de serviços, lazer,visitas, aparentemente de forma desinteressada, sem contrapartida. Embora pareça simples, é sempre complexo invocar o sentido desta economia de doações, trocas e retribuições que permeiam as nossas relações. Poucos contestariam, por exemplo, que as doações ou gestos de solidariedade sempre rendem ao seu portador um ganho, seja em satisfação pessoal e íntima ou em um reconhecimento social, de poder ou de status. Neste sentido elas poderiam apenas confirmar, de forma cética, um regime de domínio de uns sobre outros. Por outro lado as celebrações de fim de ano fazem ecoar nossas heranças religiosas na forma de leis divinas cujas inscrições indicam uma série de “obrigações”, renúncias e sacrifícios no empenho infinito de administrar e organizar nossa vida social. “Não matarás”, “Não roubarás”, “Não desejarás a mulher do próximo”, “Amarás ao próximo como a ti mesmo”, “Não cobiçarás as coisas alheias” são algumas das restrições a que todos devem se submeter, algo como passes para garantir um lugar no “paraíso”. Na verdade, em forma de leis, costumes ou crenças, estamos falando da fundação da cultura humana que precisa reiterar esta passagem (sempre delicada) de nossa porção animal sendo civilizada pela necessidade de convivermos, sempre a nos lembrar a fronteira com um regime de pura violência, de uso bárbaro da força e do poder, do “ou eu ou ele”. Só participamos destas trocas quando tememos tal “natureza” e aceitamos nossos pactos civilizatórios. Se isto nos coloca em um constante conflito entre ser e dever ser, é como cada um “constrói” de forma permanente sua humanidade, ou seja, um “poder ser”, que fará a diferença. De certa forma é salutar que possamos nos lembrar que somos seres de passagem, que vamos morrer ,que somos inacabados, porque assim podemos (com)partilhar os sentimentos de desamparo, talvez o que nos permite dar importância à solidariedade contra a precariedade e insuficiência de todos. Nesta tarefa infinita de inventarmos novas maneiras de viver nossos limites é que reiteramos o papel do amor: não o amor ansioso de uma fusão para impedir a sensação de brechas, mas o que nos faz sentir orgulho de nossa (com)paixão pelos outros. Nada mais alentador para o “fim” do ano, tempo de semear a esperança de um começo/recomeço deste círculo sem fim de “viver.com”.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O melhor dos tempos, o pior dos tempos

Parece que estamos sempre revisitando o passado - seja o nosso ou da historia da humanidade- e assim seguimos (re)avaliando certos fatos, reverenciando ou não personagens importantes, analisando criticamente certas paixões,renovando-as, etc. Algumas semanas atrás Paul McCartney esteve em São Paulo ao mesmo tempo em que algumas salas de cinema da cidade exibiam o filme “O garoto de Liverpool” sobre a vida do adolescente John Lennon. Não fui ao show, mas pude acompanhar o clima de emoção das mais diversas gerações que ali foram para cantar e ouvir as canções que uma parcela significativa do globo terrestre conhece. Muitos celulares emocionados gravaram os momentos mais tocantes para compartilhar no YouTube ou no Facebook. Tal como uma lenda viva, Paul parece não desprezar este culto a algo que o transcende e sabe que o público reconhece nele uma parte de sua própria historia. Os Beatles sintetizaram como poucos o espírito de uma das mais fascinantes e controversas épocas de todos os tempos e sua discografia capta estes anseios e sonhos, os medos e o ódio, a loucura e as drogas, a vida e a morte. Por isso, assistir ao filme de um adolescente comum que vive em uma pacata (e ainda desconhecida) cidade portuária da Inglaterra nos anos 50, pode nos informar um pouco sobre a eminência da erupção deste movimento de contracultura global. A geração dos jovens nascidos no pós guerra dos anos 40 tinha que assimilar os ecos desta devastação, já que a guerra é aquele período entre parêntesis, em que valores, preceitos, regras de condutas e sonhos são colocados de pernas para o ar. Findo o tormento da “tempestade” é comum que se tente fazer um retorno ao passado tranqüilo em que tudo parecia ter um lugar certo para estar ou acontecer. Todos os desvios, os amores escusos e os pecados vividos durante o fatídico período se tornam feridas abertas que só podem sangrar no silencio. Este é o clima que perpassa o filme sobre a vida de John. Aos 16 anos ele tenta quebrar (com alguma irreverência) as regras zelosas e austeras de sua contida tia Mimi, ganhando muitas vezes a aliança disfarçada de seu tio George que o brinda aqui e ali com alguns mimos. Por decreto de Mimi na casa destes pais “postiços” o rádio só transmite música clássica. Mas George o presenteia com uma gaita, assim como o ajuda a instalar uma caixa de som em seu quarto que lhe permita ouvir faixas mais divertidas do rádio. Separado desde a infância de sua mãe Julia- irmã de Mimi -, John parece saber pouco sobre seu (silenciado) passado embora este o assombre em seus pesadelos. Será na morte inesperada e dolorosa de tio George que ele irá revê-la, passará a tentar conhecê-la e enfrentará as dores de “saber” mais sobre ela e sua própria historia. Uma historia de amores/ódios, ciúme/vingança, dores/sonhos enterrados- como muitas- mas principalmente a historia de uma época que começa a questionar seus valores, prestes a virarem do avesso, já que o prazo de validade de seus sentidos já estava vencido. Esta Julia mais mundana, mais sexy e irreverente, que sabe tocar banjo, adora dançar, é fã de jazz, blues e rock lhe injetará o vírus do espírito da época e lhe apresentará aquele que ele desejará “ser”: Elvis Presley. Em alguns outros lugares do planeta também nascia uma nova era em que a música passava a ter este efeito de reunir multidões e transmitir de forma instantânea, certas ideias e prazeres compartilhados por muitos e muitos jovens.
Para conferir: O garoto de Liverpool (2009)
título original: Nowhere Boy
direção: Sam Taylor-Wood

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Vampiros e bruxos

Dizem que a turma dos “vampiros” não se bica com a turma dos “bruxos”, ou seja, que os fãs da saga “Crepúsculo” consideram-se de uma tribo diferente daqueles que curtem Harry Potter. Com certeza isso não se aplica a todos, mas de qualquer maneira ambas as tribos mostram facetas importantes sobre os jovens atuais e dão algumas pistas sobre seus dilemas. O mundo “paralelo” e mágico de Harry Potter, aquele que transpõe a realidade do cotidiano, nos mostra a dimensão do grande acervo dos símbolos construídos pela humanidade na sua eterna e árdua tarefa de questionar os caminhos e ações de cada um rumo a uma vida digna. Filho de dois bruxos poderosos e do “bem”, assassinados por Lorde Voldemort, do “mal”, o órfão Harry é criado por parentes não-bruxos e quando completa 11 anos recebe o convite para estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Mais ou menos como se a partir dali ele pudesse passar a “construir” seu lado humano (crenças, ideais, ética) analisando seu legado (a herança simbólica deixada pelos seus pais, suas ideias, escolhas morais, ações) para definir seu lugar no mundo. Enquanto ele é pequeno e inseguro sente-se protegido por esta herança viva dos pais que serve de guia para seu percurso. Na medida em que cresce, seus heróis podem decepcioná-lo e a vida adulta passa a acenar-lhe com aquilo que todos temos que nos deparar um dia: ele está por sua própria conta. Dali para frente terá que decidir sobre seu futuro, sua vida amorosa e profissional. A saga Crepúsculo tem pretensões mais leves. Ela já nasce no despertar da sexualidade dos pré-adolescentes e, portanto anuncia a abertura de um mundo de desejos, impulsos e fantasias em torno do “uso” do outro como par sexual e todas as incertezas, medos e sentimentos contraditórios das águas tumultuadas da sexualidade e da vida amorosa humana. Mas não é por acaso que ambas as sagas criaram uma infinidade de fãs mundo afora. Elas captam o espírito desta geração de jovens frutos de um mundo globalizado, diversificado, que exige rapidez, conhecimento técnico, informação, mas que os deixa desamparado e desassistido de valores de conduta ou de um autoconhecimento. Por isso muitos gostam de um mundo em que os bruxos precisam ser éticos e respeitar o outro e os vampiros têm vergonha da “avidez” e da violência de seu desejo. A mídia contemporânea vem dedicando um espaço importante sobre a necessidade de “mais ética” nas relações humanas, na política, na ciência, nas empresas. Ao contrário de outras “juventudes”, esta já nasceu em um mundo supostamente mais “justo”. A escravidão (uma tradição que acreditava em hierarquias entre os povos) é universalmente repudiada e mesmo que seja praticada, todos sabem que a liberdade alheia deveria ser respeitada. Mas se a liberdade e o respeito à diferença podem ser considerados valores importantes deste nosso tempo, a verdade é que a liberdade humana é relativa e condicionada à aceitação de limites imprescindíveis à convivência. Precisamos não só aceitar agir de acordo com normas socialmente impostas, mas ser capaz de avaliarmos nossas ações e as dos outros do ponto de vista moral. Nunca estamos livres do ódio, da aversão ou da discriminação produzidos por nossa intolerância, que nos “autoriza” a desrespeitar e agredir o diferente. Mas se odiar é um fato humano, desfrutar deste ódio com uma certa satisfação não é a mesma coisa. A possibilidade de ultrapassar esta fronteira, como fez o grupo de jovens que atacou gratuitamente os gays na semana passada em São Paulo, pede uma repercussão e um debate muito bem-vindo. A geração “harrypúsculo” clama por estes valores.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Estranho/familiar mundo da política

Ela era jovem, entre 23 e 26 anos, e tentava explicar a alguns outros jovens presentes, o impacto que o filme Tropa de Elite 2 lhe causara. Não é que não tivesse gostado. Afinal o filme era impecável, bons atores, excelente fotografia e efeitos especiais, narrativa instigante, senão como explicar o público de 7 milhões de espectadores? Mas saíra confusa do cinema, tendo se emocionado (e chorado) diante da crueza das revelações das ligações interesseiras da maioria dos políticos - sempre em busca de votos e poder - ou da polícia (na pele de seus policiais) sedenta em utilizar seu poder de “fogo” na perpetuação de trocas de favores ($$$), ora com o mundo do crime e tráfico, ora com os que dependem de sua “proteção” para não morrerem como gado. Qual a solução? A seu ver, o diretor José Padilha teria deixado no ar a possibilidade disso não ter saída e era isso que a deixava incomodada e por que não, assustada. Pode ser que dentre os jovens leitores que assistiram ao filme, muitos compartilhem deste sentimento desconfortável. Tendo estreado no intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições, na vigência da tarefa política de cada um em exercer seu direito de voto e no clima da disputa acirrada entre os dois candidatos, o filme desvenda a fragilidade do sistema de segurança pública e mostra seu comprometimento com os interesses da corrupção política em geral. Detalhe: tal funcionamento parece transcender brigas partidárias e se instalar tal e qual um câncer difícil de tratar. Era isto que dava o tom (do temor) da “descrença” generalizada que permeava a conversa entre os jovens citados acima. Será que as suas dúvidas ultrapassariam as intenções do filme? Vejamos. Para sermos afetados seria necessário que o filme – mesmo afirmando ser seu roteiro fictício- ganhasse veracidade ao apresentar nossa realidade. De fato é impossível assisti-lo e não perceber a familiaridade das situações ali presentes, o que convoca a cumplicidade do espectador. A partir do momento em que respondemos a este apelo passa a ser natural que esperemos que uma denúncia tão séria no “motor” de nossa vida pública/política possa nos dar alguma esperança de soluções à vista. Mas ao contrário, no filme, a figura do tenente-coronel Nascimento (Wagner Moura) seu protagonista principal, é também a do narrador perplexo que divide sua história dramática com o público que o assiste, criando um ótimo clima de suspense, mas também de intimidade, ao relatar não só a trajetória da decadência de sua confiança no BOPE e no sistema político em geral, mas também de suas dúvidas, dores, frustrações e principalmente da sensação de fracasso e impotência que o acompanham neste percurso. Quem sabe a jovem tenha razão em se sentir confusa com os sentimentos suscitados pelo filme que traz à tona uma lógica de funcionamento social injusta, a despeito de uma aposta inicial (BOPE) em nossa capacidade de criar aparelhos mais sensíveis ao justo e ao injusto, ao legal e ilegal, aos vícios e as virtudes. Ao final o tenente-coronel Nascimento parece ceder à “coragem” de seu desafeto Fraga que sustenta, mesmo em meio a todas as pressões, seus ideais de integridade social e política. E se não há “instituições” que possam permanecer imunes à sedução das vantagens de uns sobre os outros, sobra a cada um fazer suas escolhas morais e “pagar” por elas. É o que faz o tenente no limite que a vida contra a morte impõe, às vezes.
Para conferir: Título:Tropa de Elite 2 Direção: José Padilha
Roteiro: Bráulio Mantovani
Elenco: Maria Ribeiro (Rosane), Wagner Moura (Capitão Nascimento), Seu Jorge, Milhem Cortaz (Capitão Fábio), Tainá Müller, Irandhir Santos (Fraga)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Quem são os clássicos?

Formávamos uma roda de amigos em volta de uma mesa em cuja superfície descansava pratos e copos usados, ali deixados para dar lugar à prosa e ao riso das falas e das memórias de cada um. A certa altura invocávamos as mudanças ocorridas na maneira como no Brasil atual a figura do negro, que em nossa infância sofria claramente uma discriminação “natural”, hoje começava a tomar um lugar especial, de importância na composição de nossa identidade cultural, o que aos poucos abatia as cores vivas do racismo. No tom das lembranças, uma amiga confessava o quanto ela e o irmão ansiavam a presença de tia Nastácia em sua cozinha, já que descendente de alemães e nada talentosa para a gastronomia (mesmo a trivial), em algumas ocasiões sua mãe não só ameaçava nunca mais cozinhar para eles, mas deixá-los a cargo da cozinheira “preta” do Sítio do Picapau Amarelo. “Quantas vezes torcemos para que isto acontecesse!” - disse ela. Estavam abertas as portas de nossa memória para as leituras deste mundo mágico e brasileiro das histórias infantis escritas por Monteiro Lobato. Vi-me invadida pelo clima especial de seus personagens, habitantes de um recanto de magia de minha infância. Ora era Narizinho e suas mediações consistentes, ora a espevitada e incansável Emilia com suas invenções inesperadas. Ambas as meninas eram minhas inspirações infantis e isso graças à minha amiga Tereza, que na mesma rua, algumas casas depois da minha, mantinha imponente na estante de sua sala, esta coleção que de certa maneira me introduziu no fantástico mundo da leitura. Um após outro, fui devorando as Reinações da Narizinho, Emilia no país da Gramática, A Reforma da Natureza, Historias de Tia Nastácia, Os Doze trabalhos de Hércules, satisfeita de saber que havia outros livros ali na estante, com os mesmos habitantes deste universo tipicamente infantil. Refiro-me ao fato de que nada seja mais parecido com o mundo infantil do que a “naturalidade” do espaço do faz de conta, em que uma boneca de pano fala, um boneco de sabugo de milho- o Visconde de Sabugosa- é um sábio e conhecedor das ciências, em que há um burro falante filósofo, um rinoceronte (Quindim) conhecedor de gramática, etc. Também não há nada mais próximo às fantasias infantis do que a “supressão” das figuras do pai e da mãe, sempre responsáveis pelo chamado à realidade, informando incansavelmente aos filhos suas obrigações e deveres, seus limites, interrompendo assim o mundo do “faz de conta”. No Sitio, os adultos embora figuras protetoras, estão representados por Dona Benta, a avó que tenta aconselhar e transmitir alguns conhecimentos mas está longe de exercer as funções coercitivas dos pais e Tia Nastácia, a quituteira “preta” que encarna a cultura popular, com suas crendices e superstições. Nas últimas décadas as prateleiras das livrarias abriram um espaço especial à literatura infantil diante dos números cada vez maiores de títulos, nacionais e estrangeiros. Mas nos anos 50 e 60 é provável que Monteiro Lobato fosse imbatível na composição de uma realidade próxima à nossa, habitada por jabuticabas, saci-pererê, boneca de pano, leitões,besouros, borboletas, ao mesmo tempo em que invocava clássicos gregos ou fazia incursões à lua, marte e saturno. A recente nota distribuída pelo Conselho Nacional de Educação classificando o livro “Caçadas de Pedrinho” de “racista” talvez não esteja levando em consideração o fato da obra de Monteiro Lobato já fazer parte de um acervo clássico de nossa literatura. Só assim pode fazer parte das rodas de conversas sobre a infância de uma geração que se nutriu destes livros e sabe bem que eles foram escritos em tempos diferentes, capturando os valores e costumes da época e, portanto servindo de pesquisa destes traços que atravessam nossa cultura geral.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Elas podem vir a saber o que querem

Está causando “tititi” a estréia marcada para o próximo 11 de novembro da nova série em seis capítulos da rede Globo. Inspirada na célebre frase proferida por Freud em uma carta escrita à amiga e princesa Marie Bonaparte, a trama de “Afinal, o que Querem as Mulheres?” é baseada nas inquietações e questionamentos do estudante de Psicologia André Newman (Michel Melamed), cujo mestrado é dedicado a esclarecer tal premissa. O que não deixa de ser surpreendente, no entanto, é que tendo atravessado quase um século de existência, a famosa frase continue a provocar debates, fomentar textos, ou simplesmente a servir de mote para uma historia contemporânea. De certa maneira ela tanto intriga aos homens para quem (ao menos alguns) as mulheres seriam um eterno enigma, quanto às próprias mulheres que muitas vezes acatam esta imagem de seres sem definição. É bom que lembremos que a frase foi originalmente dirigida a uma mulher e tendo partido de Freud, um pesquisador incansável da alma humana, pretendia não só apontar a complexidade das possíveis respostas, como compartilhar ou dar ouvido às suas falas. Se há um consenso quanto a historia recente das mulheres (ocidentais) este diz respeito às conquistas sociopolíticas que garantiram a todas o direito de serem donas de suas próprias vidas. Mas há também um fato importante que às vezes passa despercebido e que de certa forma mudou o panorama geral das atuais e das próximas gerações de mulheres. Estamos falando de todas aquelas que nas últimas décadas vem contribuindo com a construção de um acervo de depoimentos, reflexões, livros, músicas, projetos sociais, programas de TV, blogs, oferecendo assim um repertorio de ações, pensamentos e sentimentos próprios da “espécie” feminina. Algo com o qual se pode contar quando aquela sensação de vazio ou desamparo, de ódio e cólera, de desespero e angústia invade e já não se sabe o que se passa e porquê. Nestas horas é bom poder imaginar que alguma mulher em algum lugar já pensou ou já sentiu algo semelhante. Que elas existem, tem questões próprias e buscam respostas para si. Segundo o diretor Luiz Fernando Carvalho (o mesmo de “os Maias” e “Capitu”) o seriado não pretende responder a questão freudiana e sim contar a travessia aflita e angustiada de um homem obcecado e fascinado pelos meandros da mente feminina. E ainda que o diretor confesse achar ridícula a tragédia deste personagem, não por acaso o tema do seriado gira em torno desta busca. Afinal o que insiste através dos tempos - mesmo com a consolidada igualdade de direitos entre os sexos- parece ser o “real” de sua diferença, quem sabe a primeira experiência de confronto com um “outro diferente de mim” que toda a criança enfrenta em sua vida social. E foi este talvez o mais perspicaz ponto da pesquisa freudiana, ao dar importância às “teorias” que as crianças constroem para dar conta de tal diferença ou ainda das fantasias criadas para aceitar/ reconhecer a existência de uma outra lógica sexual, atribuída ao sexo oposto, mas que pode muito bem habitar o interior de todas as identidades. Sabemos que a melhor maneira de sustentarmos nossas crenças é nunca confrontá-las. Mas as narrativas atuais têm preferido abrir o debate de certas premissas sobre as quais construímos nossas identidades, questionando ( ainda bem!) as relações humanas, os medos, desejos e anseios de todos nós. Talvez por isso, o diretor se diz animado em apostar em uma nova forma de fazer dramaturgia, uma prosa contemporânea, mais coloquial, que una o romântico ao patético, a tragédia à comédia. Vamos conferir.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Mr. Freud

“Durante a vigília, vejo um tigre e tenho medo; no sonho, tenho medo e vejo um tigre”
Jorge Luis Borges


Pensadores importantes de áreas diversas e épocas diferentes já habitaram as bancas de jornal em coleções que pretendiam ampliar a divulgação (fato que acho louvável) de seus feitos. Recentemente a mídia vem anunciando uma nova coleção de livros sobre alguns que mudaram o mundo, ocasião em que será ressuscitado Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Darwin, Marx, entre outros nomes que contribuíram com suas idéias em áreas como a filosofia, a política, a economia, a religião, e fizeram diferença na maneira como pensamos o mundo e a nós mesmos. A surpresa fica por conta de que um destes livros será dedicado a Freud o que o eleva ao patamar dos personagens importantes da história da humanidade. No senso comum, Freud é lembrado sempre que achamos que ele “explicaria” certos atos ou pensamentos humanos que fogem ao padrão considerado corriqueiro. Quem nunca ouviu a célebre frase “Freud explica”? De certa forma este jargão popular não deixa de apontar para o sentido do “novo campo de saber” inaugurado por Freud, batizado de psicanálise, um ramo da psicologia que se situa entre a filosofia e a medicina e que busca explicar os conteúdos de nossa vida psíquica que ficam fora de nossa consciência. Nossos sonhos seriam o paradigma deste funcionamento psíquico “inconsciente” ou virtual já que insistem em nos causar um estranhamento ao deixar emergir, sempre disfarçados, certos conteúdos soterrados em algum lugar de nossa memória afetiva. Os lapsos, as piadas e finalmente nossos sintomas psíquicos seriam outras das produções deste lugar ao mesmo tempo longínquo e familiar. Por isso nossa história oficial, aquela com a qual nos apresentamos, tem sempre uma versão própria que precisa incluir nossas crenças e fantasias e até sofrer ratificações a fim de escamotear seu conteúdo reprimido. Mas ainda que a cultura atual já tenha absorvido muitas das contribuições da psicanálise tais como a importância atribuída às experiências infantis e aos pais enquanto influência fundamental e determinante para o futuro de cada um de nós, há sempre resistências tanto no nível individual quanto no coletivo, na admissão de uma vida psíquica complexa cujas dimensões possam co-existir sem o nosso conhecimento absoluto. O próprio Freud já teria antecipado tais resistências ao comparar sua psicanálise ao inevitável caos e desordem da chagada da “peste” nos séculos anteriores. No bojo desta inquietação estaria o fato dela não endeusar a consciência e repetir indefinidamente o quanto somos movidos a paixões, o quanto nosso eu não é senhor em sua própria casa e o quanto muito do que somos nos escapa. Não custa lembrar que a experiência psicanalítica, por meio de um dispositivo simples– falar sobre nós mesmos a uma outra pessoa – convida-nos a um mergulho aos meandros de nossa alma, a fim de que possamos tentar conhecer algo daquilo que nos determina à nossa revelia e que nos leva, na maior parte de nossas vidas, a atribuir a outros (pais, parceiros amorosos,chefes, corpo) as nossas infelicidades. E é justamente por não excluir, ao contrário, incluir estes fatores que não estão disponíveis, que ela continua sendo uma experiência que pode levar a uma profunda transformação de nós mesmos: ao permitir que descubramos mais de nós ao nos ouvir falar, que possamos quiçá encontrar e elaborar nossa historia e nossa vida dando-lhe um sentido que não seja demasiado custoso, que nos ajude a encarar a brutalidade do mundo sem a necessidade de interpretá-la como se fosse um complô ou uma penitência merecida por ousarmos criar novos rumos para nossas vidas.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Gula humana

Quando o filme Wall Street: poder e cobiça chegou aos cinemas, em 1987, as bolsas de valores tinham sofrido um crash de grandes proporções, e os americanos estavam em choque. O filme expunha as entranhas do mercado financeiro e o mundo ilegal de suas negociações ao mostrar como banqueiros compravam empresas, destituíam-nas de seus ativos e destruíam-nas deixando trabalhadores desempregados. Era a década em que bancos e fundos de investimentos lucravam de forma inimaginável na base do capital especulativo e Gordon Gekko (Michael Douglas), paradigma destes excessos financeiros, encarnava um dos melhores e mais ricos especuladores do mercado, um tipo agressivo que sabia como e onde conseguir informações que lhe permitiam manter o jogo “poder e cobiça”. O nome Gekko não foi pensado por acaso. Deriva-se de Gekkonidae - animal da família de répteis- silencioso, observador e sorrateiro. Na esteira da grande crise financeira de 2008 que abalou o globo, atraiu a ira universal de políticos e expôs uma sucessão de escândalos na área das finanças, estreou há algumas semanas Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme. O mesmo Gordon Gekko (ainda Michael Douglas) após oito anos preso por fraudes financeiras, lança seu livro “A ganância é boa?” e passa a fazer palestras em universidades questionando o "risco moral", a tal pirâmide financeira que todos compactuam ao hipotecar seus imóveis. Gekko, tal e qual um guru às avessas, começa a ganhar pontos junto a nova geração de aspirantes a investidores e milionários de Wall Street, que inclui os muitos estudantes de MBAs que já comandam companhias de investimentos. Um destes é justamente Jacob Moore ou Jake, o jovem idealista que trabalha nesta área em um banco e sonha em abrir caminhos em Wall Street para investimentos na chamada “energia verde”. Namorado de Winnie Gekko, filha de Gordon Gekko, Jake não tem como dividir com a amada seu fascínio pelo sogro. Desde a morte do irmão por overdose no período em que o pai estava preso, ela se afastara decepcionada e magoada, mantendo-se resistente a uma reaproximação. Winnie também não esconde o desprezo que sente pelo mundinho que fascina Jake e, ao contrário dele,comanda um blog jornalístico "sem fins lucrativos" em que são constantes as denúncias sobre o mundo corporativo. É bom lembrar que “Wall Street” era apenas uma rua da baixa Manhatan em Nova York que nas ultimas décadas foi se tornando o centro do mundo financeiro global graças ao fato de abrigar a mais famosa Bolsa de Valores. Tanto o primeiro quanto o segundo filme do diretor Oliver Stone pretendem apresentar um pouco deste mundo formado basicamente por homens poderosos ou desejosos deste poder, fascinados pelo jogo de astúcia que envolve o “ganhar sempre mais”. Um jogo cujas regras incluem farejar frestas “legais” do mercado financeiro que podem gerar lucros rápidos, mudando-se apenas os alvos e as pessoas. Mas se este jogo pode se manter dentro das leis ou de suas falhas, ele aponta para o “risco moral” como irá pregar o Gekko pós- cadeia, tentando “vender” sua experiência anterior acrescida dos riscos que ela pode conter. Existe limite para a ganância humana? Ela pode ser “boa”? Na verdade a ganância habita a seara do “gozo” humano e fascina a todos- os que imaginam que a tem e os que se sentem excluídos- e o perigo começa quando ela é de certa forma “legalizada”. Aí é como se não pudesse haver mais limites para a acumulação de capital e menos ainda para seus desastrosos efeitos à “boa e justa” convivência humana. Não importa se a busca de lucros é trágica para alguns ou se transforma em farsa para outros: permanece a cumplicidade dos interessados em manter certa imunidade e proteção mútua, até que algum furo no sistema detone alguma nova “crise”. No entanto o jogo continua e as pessoas que se beneficiam ou são prejudicadas são apenas parte deste jogo; suas chances dependem dos interesses dos que comandam as peças naquele momento. Por ser um jogo que subverte as leis e as normas para benefícios de poucos, cria-se a ilusão de um “limbo” que passa a ser objeto de desejo de todos. É assim que trocando pessoas, crises e bolhas econômicas, a roda do jogo não pára e nem cessa a reverencia aos jogadores. Mas talvez a magia do mercado financeiro esteja não na proeza dos magos que a executam, já que de tempos em tempos transforma-se em truques baratos, mas na necessidade humana de crer, de se iludir. Espaço das paixões?

Para conferir: Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme
titulo original: (Wall Street - Money Never Sleeps) 2010 (EUA)
direção: Oliver Stone
atores: Shia LaBeouf , Carey Mulligan , Charlie Sheen , Michael Douglas, Susan Sarandon

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Simples reciclagens

Garrido arqueou as sobrancelhas para expressar sua conclusão: se o Brasil era campeão em reciclagem de latinhas de cervejas, que tal reciclar pessoas? Um negro de cinqüenta e poucos anos, olhar penetrante, coração aberto, Garrido falava para uma pequena platéia composta de profissionais da área psi, sobre seu projeto de recuperação e “reciclagem” de pessoas. Sendo ex-boxeador, há alguns anos atrás, abril de 2004, parecia que seu sonho se realizaria. Depois de anos treinando o filho Fabio batendo em geladeiras, pneus e surdinas de caminhão pendurados na academia da família - Vila Ré, Zona Leste da cidade de São Paulo- este iria enfrentar o então campeão em uma luta que valia o título brasileiro dos meio-pesados pela Confederação Brasileira de Boxe. Mas foi duramente nocauteado, e além de ficar entre a vida e a morte, sua carreira (e com isso o sonho de um lugar especial) ficara abortada pela contusão cerebral que sofrera. Tempos depois, trabalhando como segurança no centro de São Paulo, ao ver crianças cheirando cola e fumando crack, Garrido resolveu trazer a idéia da geladeira velha, os restos de carros/ pneus usados e algumas pedras para improvisar uma academia de boxe e oferecer a quem quisesse, um espaço para treinar. Logo a idéia cresceu e o antigo espaço sob o Viaduto do Café, local de tráfico de drogas e de desabrigados tornou-se referencia no bairro do Bexiga, atraindo moradores e até empresários que se sensibilizaram com a “paixão” com que Garrido se dedicava ao resgate de qualquer pessoa em vulnerabilidade social, desde crianças de rua, ex-detentos, meninos recém-saídos da Febem, catadores de lixos, moradores de rua,etc. Em meio ao pensamento contemporâneo marcado pelo ceticismo e pelo individualismo, ouvir alguém falar de forma ao mesmo tempo despretensiosa e apaixonada sobre as possibilidades de se abrir ao outro, mesmo em face às mais pungentes adversidades é no mínimo alentador. A maioria dos que o assistiam se surpreendia pela forma simples com que ele afirmava o resgate de pessoas totalmente excluídas da rede social.Parecia mal se dar conta da potencia de seus projetos pessoais e da aposta sensível na resposta positiva de seus investimentos no outro, mesmo com todas as evidencias de falência. Paradoxalmente o boxe acenava com um destino para a violência, uma violência submetida às regras, à disciplina e, portanto capaz de gerar vida e ajudar na criação da realidade compartilhada. Já se vão seis anos e Garrido continua com sua “garra”. Seu projeto cresceu, ganhou a parceria da amiga Cora Batista que há anos trabalhava com assistência social às mulheres e chega à terceira ponte (no bairro de São Miguel Paulista) transformada em espaço aos moradores pobres locais ou a quem se interessar por “novas oportunidades, disciplina, e autoestima” segundo suas palavras. O Cora Garrido Boxe ou o Projeto Viver continua transformando alguns que vivem assujeitados pelo medo,pela violência,pela falta de oportunidades ao oferecer uma brecha de acesso à vida, uma “reciclagem” do desejo que permite a construção de um sentido, em um clima de trocas e solidariedade.Garrido leva a mesma“palavra” aos seus pupilos, incitando-os a manterem seus espíritos abertos à multidão dos excluídos, marginalizados, pobres em geral.Algo como a construção da tal responsabilidade social. Sua frase preferida é a que reafirma sua aposta: transformar “pessoas em seres humanos”, “reciclá-las”. Mas a que mais toca é a que diz que isto é simples, muito simples, basta querer fazer.


Para conferir:
Cora Garrido Boxe (Projeto Viver)
Email: coragarrido@gmail.com

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Confiar desconfiando

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos divulgou recentemente uma propaganda que parece ter a intenção de afirmar e resgatar algo precioso para seu funcionamento: a confiança. Não há como negar uma certa tradição desta instituição que, mesmo em meio as várias tempestades político-sociais do país, consegue manter sua credibilidade. Não titubeamos em mandar não só cartas, mas itens diversos para todo e qualquer lugar deste Brasil e do mundo. No fundo apostamos que irá chegar. Em geral chega. A propaganda que está sendo veiculada também nos cinemas, conta a história de um menino extremamente desconfiado. Nas cenas que se sucedem, ele tanto desconfia que seus pais não sejam verdadeiros como fica estudando minuciosamente um cachorro quente sem coragem de comê-lo. Já mais adolescente ele chega ao correio e pergunta à atendente se seu Sedex chegaria para a fulana que mora na cidade X. Sorridente, ela recebe prontamente o pacote e lhe devolve um “sim” cheio de certeza. Ele acredita. Está curado. Na simplória maneira de retratar o percurso da desconfiança até a aquisição da confiança a propaganda também aponta a importância desta última para o bem viver. Não por acaso. O mundo contemporâneo com seus riscos e sua permanente busca de segurança exige que cada um de nós possa contar com uma confiança básica, quer dizer, uma capacidade para confiar que inclua a desconfiança. Na difícil tarefa de aprendermos a lidar com os sentimentos (nossos e dos outros) é importantíssimo que a desconfiança que surge diante das separações e frustrações inevitáveis possa ser articulada a uma confiança nas pessoas e no meio em que vivemos. É comum que algumas propagandas que visem despertar a nossa “confiança” para determinados serviços ou produtos exibam cenas em que bebês- cuja fragilidade é sempre notória - são arremessados ao ar por seus pais: em foco a expressão de medo, tensão e excitação até o retorno ao abraço vigoroso e protetor que os recebe. Uma cena paradigmática do exercício da “boa” confiança pois implica que se possa admitir o medo diante da percepção de um perigo externo real sem que este impeça a exposição voluntária ou intencional ao perigo e ao medo justamente por se apostar tanto no fim do perigo quanto no fato de que o medo será tolerado e dominado. Confia-se (a revelia das ambivalências e tensões) que se sairá ileso e seguro desta experiência. Claro que estamos falando de uma confiança ideal, já que no duro e intranqüilo percurso de nos tornarmos adultos, nossa confiança faz embates sem fim à desconfiança e muitas vezes não podemos ou não conseguimos sair dos extremos em que ficamos retidos ou em uma confiança idealizada e indiscriminada em que acreditamos ingenuamente para em seguida desconfiar, descartando os sinais de perigo ou a sensação de medo, ou na desconfiança de tudo e todos que nos impele a manter distancia e controle, “confiando” demasiadamente em ferramentas nossas ou externas contra todos os perigos. Na verdade a propaganda dos Correios, ao exibir o sorriso acolhedor da atendente e o pronto levantar de seus braços em direção ao pacote do adolescente, deixa no ar a grande dica: a construção de nossa confiança precisa ser um projeto que implique a presença de um outro confiável, que suporte nossas ambivalências, medos, ódios, amor, etc.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O Lula é pop

Nas últimas edições de grandes jornais e revistas brasileiras é possível encontrarmos textos de alguns pensadores que tentam analisar a força de Lula e sua inabalável liderança política. Afinal como explicar que em um país nada pequeno e nenhum pouco homogêneo como o Brasil, uma candidata praticamente desconhecida, sem um currículo político relevante para a lembrança dos cidadãos, passasse em tão pouco tempo de campanha, a liderar de forma tão exuberante as pesquisas eleitorais? Há os que comparam Lula a Getulio Vargas, um líder que, em seu tempo, soube compor a figura de pai e protetor das classes menos favorecidas ao organizar o caótico panorama das leis trabalhistas e sociais do país, garantindo um patamar mínimo de direitos aos trabalhadores e deveres aos empresários. Mas se Getulio também governou como um pastor ciente de seu lugar de líder, alimentado por suas ovelhas satisfeitas, não conseguiu evitar o crescimento de uma oposição importante, responsável por sua queda. O fenômeno Lula chama a atenção de gregos e troianos justamente porque mesmo após a sua reeleição (em bases democráticas) e as muitas denúncias de uma certa degradação moral e irrestrita da vida política do país,parece não haver uma oposição que lhe faça sombras. Há sim uma gritaria sem fim (vide os zilhões de e-mails que circulam na web) de uma faixa que percebe Lula como o protótipo do “sem lugar” que se apossou indevidamente de “um lugar” que lhe confere mais poderes e benesses do que mereceria. Mas estas vozes estão mais do lado dos guardiões de uma suposta e idealizada estabilidade confortável e longe de se constituir em uma crítica construtiva para a política do país. E, ao que parece, tanto a “direita” quanto a “esquerda” encontram-se desorientadas diante da força do lulismo, o que fica particularmente claro nas minguadas e irrelevantes propostas que seus candidatos alardeiam. É neste vácuo que vemos surgir candidaturas - caso de Tiririca e outros – que seriam impensáveis em países que atribuem uma seriedade maior ao papel de sua dimensão política. Como bem lembraram alguns, ainda que importantes figuras do PT pudessem ter mantido nestes oito anos um trabalho permanente de consolidação de suas bases políticas, é a figura de Lula e seu indiscutível carisma que continua “causando”. Pode-se facilmente discordar de seus méritos, mas a verdade é que Lula é hoje uma espécie de mito no cenário político global e sua popularidade lembra a de alguns grandes líderes de nossa era moderna, capaz de mobilizar uma importante massa de pessoas. E a história nos conta que tais líderes nascem quando sabem ocupar com maestria este lugar idealizado de um pai ao mesmo tempo forte, amoroso e protetor, cujas palavras conseguem “garantir” aos seus diferentes filhos, a boa condução do futuro de cada um. Não por acaso seus discursos parecem proferidos por um profeta, com toda a carga de onipotência que caracteriza os que se imaginam estar em um lugar especial, quase divino. Resta a nós pensarmos cá com nossos botões porque, ao longo da historia humana e da tarefa de nos constituirmos como sujeitos adultos, cônscios de nosso papel social, moral e político, cedemos tão facilmente às promessas de um pai, passamos-lhe o bastão desta tarefa e outorgamos-lhes direitos que muitas vezes comprometem nossas conquistas em direção a uma vida compartilhada , mais justa e produtora de novas versões.

Eternos românticos

O filósofo e economista americano Francis Fukuyama ficou famoso ao inventar uma versão moderna do fim da história. Cético, ele previu o futuro sem voltas de um mundo sob a tutela do mercado, um jogo infinito em que qualquer acordo (nacional ou internacional) ficaria atado à provável ou improvável “reação do mercado”. Um pouco mais além estariam os que apostam que nossa civilização possa ser mortal e tal como qualquer ser vivo, venha a desaparecer com seus procedimentos, suas obras de arte, sua filosofia, seus monumentos. Quem sabe as previsões para os rumos de nossa civilização nunca cessem de percorrer este fio entre a aspiração de que possamos calculá-los em números exatos, sob uma lógica objetiva e a eterna aptidão humana para preencher os espaços vazios com sua dimensão romântica, que rompe com este pensamento. A cada momento da história, uma fatia da humanidade se ocupa destes espaços, encarna uma espécie de Dom Quixote e inventa sonhos e quimeras - de certa forma necessários -para que seja possível continuarmos a crer em nós mesmos ou em algo além de nós. Nas décadas de 50 e 60, o mundo assistiu o surgimento de um esquerdismo romântico, das revoluções aos protestos de jovens que buscavam novos mestres e novas metas. A relação atual do homem tecno com a natureza, por exemplo, produziu o movimento “verde” pró preservação e proteção do meio ambiente e de quebra um apelo ao convívio mais íntimo com o natural. A medicina homeopática continua a roubar uma porcentagem de consumidores de medicina tradicional ao oferecer um tratamento individualizado, que privilegia a relação de cada um com seus sintomas. Parece ser na busca interminável de sentido para nossas vidas que inventamos o “romântico”. É necessário transformar a crueza de nosso funcionamento biológico em fonte de emoções e sentimentos que inspirem nossas produções artísticas, sejam músicas, ilustrações ou narrativas (literatura/cinema). E que não esqueçamos nem o humor, esta via que nos lembra o lado cômico de nossas pretensões, nem a tragédia, pronta a tocar o mais fundo de nossas almas, submetidos que estamos ao duro convívio com nossos pares, conosco mesmos e com nossa finitude. Personagem privilegiado destas paragens românticas, o Amor se mantém nas paradas de sucesso.Tal e qual uma roupa quentinha e aconchegante que nos conforta em dias gélidos, “conhecê-lo” continua sendo um alento dos mais ansiados.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O que eles têm em comum?

Assim como outros episódios desastrados de nossa história, a queda das torres gêmeas em 11 de setembro de 2001 não pode deixar de ser lembrada. A longa caminhada humana rumo à civilização, em busca de formas de vida mais justas em que se respeitem os direitos de cada um sem que se tenha que recorrer à barbárie e à força é um valor moderno precioso. Mas está sempre a apresentar paradoxos e incoerências. O espetáculo fatídico do ataque ao World Trade Center despertou o mundo para a expansão do islamismo não só como divulgação de uma fé, mas como uma ideologia política pautada pela violência. Desde então o Islã passou a ser associado ao terrorismo e ao ódio contra o Ocidente. No entanto, da mesma forma que os fundamentalistas cristãos ou os judeus ortodoxos, os islâmicos consideram como sua política básica o retorno às leis das Sagradas Escrituras, no caso o Alcorão. Trata-se de um imenso tratado moral e ético que cobre todos os aspectos da vida pública e privada de seus seguidores, orienta cada um a encontrar o bom caminho, reprimir os seus maus instintos, resistir à maldade e à perversão com o consolo e o apoio das palavras de Alá. A diferença é que, ao contrário do que ocorre na maioria das nações ocidentais, nos países islâmicos a linha divisória entre religião e política praticamente não existe. Sendo o Alcorão Absoluto e Divino, a visão de mundo islâmica não se presta a debates ou questionamentos, o que gera conflitos às tentativas políticas e sócio-culturais de interação, comunicação ou consenso internacionais. Já as nossas sociedades, quase todas democratas, estão submetidas às leis modernas e sujeitas a redimensionamentos constantes. Proclamamos a individualização, ou o direito irrestrito do indivíduo à escolha de suas crenças o que quer dizer que não importa se elegemos algo para acreditar, desde que não interfira no direito do outro de acreditar no que quiser. É bom que se lembre que a crença não se resume ao âmbito das religiões, mas a tudo o que concerne aos ideais políticos, aos valores morais e éticos, às novas visões de mundo. Ora, nos USA, junto às noticias das comemorações no dia 11 de setembro último, a mídia anunciou um movimento hostil ao governo Obama (denominadoTea Party) orquestrado por uma direita americana que estaria se sentindo ameaçada em perder sua hegemonia branca. Tendo como pano de fundo uma América Ideal, uma cultura unificada e tradicional, fonte de solidariedade e conforto, esta fatia da população parece querer dizer “não” ao “outro”. Que “outro”? Aos não brancos, aos não cristãos, aos estranhos enfim. Paradoxalmente o mesmo individualismo que promove novas formas de convívio com a diferença e a diversidade, exige a aceitação desta alteridade o que significa aceitar a existência de um outro como diferente de cada um de nós. Mas a persistência da intolerância nos mostra como é difícil este exercício e o quão fácil caímos na tentação de possuir a verdade absoluta e de querer impô-la a todos, seja por determinação divina ou por vontade popular. Diante da convivência plural que a globalização impõe, muitos indivíduos ou grupos exibem um sentimento de insegurança que parece ser ameaçador para a sua inserção no mundo. Alguém duvida ser aqui que mora o fascínio pelo absoluto?

Procura-se felicidade

Daniel Kahneman, da Universidade Princeton, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2002 é coautor de uma pesquisa recém publicada na revista científica PNAS que, para saber até que ponto o dinheiro “compra” felicidade, analisou um banco de dados gigantesco nos EUA. Cerca de 450 mil americanos relataram a frequência com que se sentiram tanto felizes quanto estressados recentemente e as respostas obtidas foram cruzadas com dados sobre suas vidas. Na mesma linha de suas pesquisas anteriores esta também revela que os seres humanos não tomam decisões de modo racional, mesmo quando o que está em jogo é o “enriquecimento”, ou seja, a busca do sucesso financeiro como item de felicidade ou como facilitador dela. A pesquisa revela, por exemplo, que a maioria prefere não receber nada a ganhar um pagamento considerado irrisório ou se sente mais feliz quando ganha mais do que um colega mesmo que o valor absoluto do salário não seja dos mais atraentes. Ser alguém especial parece habitar o mais profundo anseio humano. Se tomarmos o valor do dinheiro como um “ideal” de felicidade é provável que poucos não imaginem uma certa quantia pela qual poderiam adquirir ou chegar a realização de alguns de seus sonhos. Na verdade, a dimensão da “idealização” tão cara e necessária à vida humana e cujo peso é evidente em todas as suas escolhas, é também uma das mais complexas. Isto fica particularmente claro nas paixões amorosas, esta espécie de amor ideal, em que se confunde o eleito com o que consideramos uma “idealização” de nós mesmos: desaparecem as diferenças e acreditamos que nada mais nos falta. É que este “outro” está investido daquilo que somos, fomos ou gostaríamos de ser e por isso nossa sensação é de que ele é perfeito. O lado sombrio da paixão é quando ela fica capturada aí, sem lugar para o reconhecimento de cada um como diferente do outro, espaço de trocas e experiências construídas. Quando isso acontece permanecemos convictos de que nosso “amado” é necessário e vital para a nossa sobrevivência e vice versa. As divergências passam a ser ameaçadoras e a exigência de exclusividade é exorbitante: não aceitamos não sermos o único a habitar o seu desejo. Neste caso estamos analisando o valor do “outro” como veículo de satisfação para cada um de nós e destacando o lugar deste “ideal” ao qual nos rendemos. Quando a idealização assume este lugar de promessa de satisfação absoluta vivemos presos à expectativa de que em algum lugar finalmente encontraremos “paz”, algo como um sentimento de plenitude, o “paraíso” ou o Éden bíblico. Mas quem sabe a “felicidade” seja apenas uma possibilidade de se desfrutar de certo bem estar, conquistado à custa de muitas e muitas revisões de nossos ideais, sempre à espera de novos ajustes, já que nas águas desta busca do absoluto nadam, sem muita censura, nossos velhos e “caríssimos” ideais infantis.De quebra é bom não nos esquecermos do potencial de ilusão inesgotável contido em nossas razões, sejam elas científicas ou banais.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Mão e contramão

Já no final de sua vida, após ter sofrido a experiência surpreendente de exílio forçado e às pressas de sua Viena encharcada pela ideologia nazista, Freud pregava que a psicanálise, por ser uma tentativa de perscrutar também o lado sombrio de nossas almas, jamais se livraria das resistências a tal análise. O recente “boom” das psicologias empresariais e políticas carregam sutilmente este paradigma. É bom que se lembre que a psicologia nasceu como ciência graças às exigências de um maior entendimento sobre o comportamento e as motivações humanas na Alemanha da era industrial. Rapidamente o avanço do capitalismo americano incorporou este segmento como motor para o incremento do consumo. A publicidade e o marketing sempre se alimentaram da busca do desejo humano na tentativa de vender justamente o que poderia ser um objeto de desejo de todos. Hoje as prateleiras de consumo são infinitas e diversificadas o que promove uma corrida das pesquisas de marketing em direção às tendências futuras do desejo do consumidor, e torna os jovens e suas “traquinagens” alvos definitivos de tais análises. A historia de nossa economia recente demonstra que aos poucos os consumidores passaram de passivos a ativos e que o fascínio pela conquista do excesso para garantir o reconhecimento do sucesso de cada um vai dando espaço a uma busca de paz, tranqüilidade e outros itens mais próximos de uma felicidade interior. Esta valorização de um bem estar interno torna a subjetividade um tema de pesquisa da hora. Não só com o intuito de fisgar a fidelidade de sua clientela como também os melhores talentos do mercado para compor seu pessoal, as empresas se apressaram em sua repaginação: buscam serem éticas, transparentes, socialmente responsáveis, e se transformam em lugares onde se possa aprender e se desenvolver. Embutidos nos salários, são os benefícios alternativos que compõem o diferencial de cada empresa: planos de saúde, yoga,massagem, academia de ginástica,MBA, cursos de línguas, etc. Na mão e na contramão desta lógica, os marqueteiros políticos mergulham na difícil tarefa de maquiar seus clientes para torná-los o mais “apetitoso” possível em suas disputas eleitorais, mas precisam garantir-lhes um mínimo de credibilidade. Não são mais as pautas de seus discursos sobre o programa de governo de cada um, mas quais aspectos de suas subjetividades e aparência que deverão ser valorizados. No corre-corre que as pesquisas eleitorais impõem, cada candidato se submete às transformações visuais e às sabatinas de “etiquetas” de comportamento e imagem pessoal que lhe favoreçam individualmente através do estudo das possíveis causas de sua rejeição. A idéia parece ser a de aproximá-los dos ideais de pai e mãe bondosos e competentes que habitam o imaginário popular. Mas ao contrário das empresas que precisam do lucro para sobreviver, os políticos atuais (não só no Brasil) contam com certo descaso da população em geral, em relação a este hiato entre o que são e o que vendem ser, o que dizem serem suas crenças e ideias e o quanto estas se aliam aos seus interesses pessoais ou eleitoreiros.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Sua majestade, o bebê

O cinema continua nos premiando com a possibilidade de fazer circular temas que em geral nos são impactantes ou que raramente entram no discurso de nosso cotidiano. É o caso de “O estranho em mim”, filme alemão que traz à cena a depressão pós-parto vivida por inúmeras mulheres (entre 10% a 25% segundo dados brasileiros). Rebecca tem um comércio de arranjos de flores naturais cultivadas em sua linda casa, que neste momento se transforma para a chegada de seu primeiro filho. Julian, o futuro pai, mostra orgulhoso à seu pai, uma das portas do armário da cozinha transformada em “cabaninha” já à espera deste novo ser que passará a dividir a casa, a rotina e a vida com eles. Os bebês são assim, sempre uma promessa, um espaço virtual em que esperamos que se inscrevam as marcas de um futuro. Mas impõem perguntas nem sempre possíveis de serem respondidas antecipadamente. Em geral o período de gestação é mesmo uma preparação necessária a cada mulher nesta função que para nós humanos, tem o peso de uma transmissão geracional que não se reduz à biologia, e sim abarca a nossa própria história de seres de cultura. Esta passagem de filha à mãe implica sim em um “frio na barriga” e em geral transporta a cada uma de nós às nossas reminiscências infantis femininas e a todas as tentativas de nos tornarmos mulheres adultas. Estaríamos aptas a cuidar deste que habita por algum tempo nosso ventre? Claro que a cultura atual se encarrega de nos oferecer um verdadeiro arsenal de serviços, informações e cuidados. Há pouco tempo a mídia divulgou a abertura de uma Universidade de Pais na Espanha que por meio de aulas organizadas por especialistas e fundamentadas em princípios da pedagogia e da psicologia, pretendia ensinar adultos a educar seus filhos desde o período da gestação. Mas o que este filme apresenta é justamente aquilo que escapa ao conhecimento técnico e que é próprio ao acontecimento psíquico do nascimento de um bebê para a mãe dele. Paradoxalmente, ao lado da idealização da maternidade mantida pela cultura, o nascimento de um filho nos coloca diante de um estranhamento que precisará ser ultrapassado. Quando isso não é possível, a mãe vive o inferno: a angústia por não se reconhecer, a culpa pelo “não amor infinito” ao seu bebê, o contato com seus sentimentos hostis e agressivos e a solidão (e o desespero) destas vivencias. Assim como pode ser difícil para esta nova mãe tornar-se “naturalmente mãe”, também não será fácil para os familiares aceitarem esta “ausência de mãe”. Rebecca vive este inferno solitariamente até que, sem encontrar saídas possíveis, “foge” de seu filho, possivelmente como uma forma de protegê-lo de si mesma. Com roteiro e direção femininos (Emily Atef), o filme presenteia as mães e seus dilemas, neste que é um momento de extrema tensão à vida de todas. Mas também contribui com a abertura de um tema em geral tabu, por conter o insuportável e o insustentável da experiência humana da ambivalência.


Para conferir: O Estranho em Mim
( Das Fremde in mir / The Stranger in Me) Alemanha 2008
Direção: Emily Atef

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O mundo dos opostos

A imagem recém divulgada pelas mídias em que o Brasil figura entre os países bem cotados para se tornarem futuras potências do mundo pode ser analisada por diversas dimensões. Aquela que mais me atrai é a que tenta refletir sobre o peso diferencial da identidade da cultura brasileira. Acostumados a não termos muitas razões para ufanismos nacionais, parecia natural que recebêssemos de braços abertos influencias, costumes e práticas do além mar. Mesmo fazendo parte de uma América nova que poderia ser promissora, o movimento imigratório do final do século XIX e início do século XX foi diferente daquele que marcou a America do Norte. Por diversas razões, éramos menos exigentes. Ainda que o território brasileiro possuísse sua grandeza em terras, minérios, matas e águas, sua historia política foi marcadamente descomprometida com o “progresso coletivo” e voltada para interesses de poucos. Paradoxalmente, ao lado deste descaso político generalizado, se impunha uma convivência menos competitiva e mais solidária entre as diferentes culturas que aqui aportaram. Nem guetos para os imigrantes, nem grandes discriminações para os negros livres, tampouco imposições religiosas aos que não fossem cristãos. Esta “abertura” que pode ao mesmo tempo ser analisada sob o ponto de vista de um descaso de seus sucessivos governos, contribuiu para a construção de uma cultura que hoje podemos chamar de “brasileira”. Uma cultura capaz de assimilar outras, realizando ao longo do tempo uma combinação fecunda de diferentes hábitos, costumes e crenças. Em um século em que algumas religiões voltam a assombrar pelo fanatismo de seus seguidores, o sincretismo religioso do Brasil pode ser um contraponto ao mundo dos opostos que faz parte dos fundamentalismos em geral. Neta de imigrantes libaneses cristãos que fugiam da falta de perspectiva econômica de sua região - então dominada pela política turco-otomana - cresci ouvindo meus avós se referirem às diferenças religiosas de sua cultura. Cristão-árabe, judeu-árabe, muçulmano- árabe cada um destes ocupava um lugar na minha imaginação, mas estavam longe de acenar com algum sentido que importasse para a minha infância. Sempre me senti brasileira, embora convivesse (ou quem sabe por conta disso) com dois troncos diferentes de adaptação imigratória. De um lado minha família paterna que abraçou sem muitas resistências o solo tropical, sua língua, seu futuro. Já meus avós e tios maternos guardavam certa melancolia em relação às suas raízes e reverenciavam com mais ênfase suas tradições. A tradição é sempre portadora de uma memória, de um código de sentido, mas precisa ser geradora de uma continuidade. É sempre bom quando podemos transformar as “tradições” em heranças ou transmissões que irão atualizar o passado no presente, confrontar o velho e conhecido com o novo e diferente, inventar o que ainda não existe. Quem sabe esta seja a matéria prima que o Brasil conseguiu criar,hoje tão cultuada mundo afora.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Em espiral

Às vésperas de eleições de grande porte (presidente, governadores, senadores, deputados), quando seria esperada uma mobilização do povo brasileiro em torno desta disputa, o clima anda mais do que morno, dando a impressão de pairar uma certa descrença geral na dimensão política como agente de mudanças significativas para a vida de cada um. Ao que parecem, as substituições de políticos nestes cargos antes tão reverenciados tem mostrado que, independente de partidos, a dinâmica que impera para o sobe e desce de sua popularidade, está mais atada às estratégias montadas por assessores técnicos especializados em “marketing pessoal” e menos aos ideais legítimos que pudessem alavancar a confiança de seus eleitores. Alguns pensadores afirmam que a relação do homem com o mundo hoje tem mostrado que as verdades estão quase mortas, os valores em baixa e as esperanças e crenças bastante minguadas. A crise econômica teria balançado e muito a confiança no valor “transcendente” do capital, ao mostrar que nem os mais ricos estariam excluídos de perderem suas fortunas de um dia para o outro. Sem a garantia de um Estado democrático constituído por políticos que representem efetivamente os interesses da maioria e sem a antiga aposta ( ou crença) no sistema financeiro mundial, abre-se um vácuo e muitos setores se sentem mobilizados a repensarem o destino da condição humana. É certo que a história humana está cheia de exemplos que reiteram a idéia de que os momentos de crise podem representar uma oportunidade, uma possibilidade de mudança, uma busca de novos caminhos ou soluções. O caos funcionaria como um alerta que em geral deflagra um movimento mais amplo e diversificado de interesse por mudanças que tentam resgatar o fio sempre precário da esperança. Nestas horas é necessário reverenciar o espírito humano, em sua dupla possibilidade de conservação e transformação, de ordem e desordem, de racionalidade e delírio criativo. É da sensibilidade humana que nascem idéias que são notícias aqui e ali e podem fazer diferença. A Revista Época há algumas semanas atrás (edição de 27/07/2010), trazia uma reportagem sobre a jovem economista parisiense Esther Duflo, de 38 anos, que em dezembro de 2009, teria sido incluída na lista dos 100 intelectuais mais influentes do planeta pela revista Foreign Policy. E o que fez Duflo? Filha de um matemático e de uma médica que viajou inúmeras vezes à África em missões assistenciais, ela desde pequena se atribuiu uma missão: reduzir a pobreza mundial. Ao ingressar em seu doutorado, conheceu o economista indiano Abhijit Banerjee, fundador do Laboratório da Pobreza do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e sentiu-se em casa. Pesquisa, ações específicas e criativas em nichos de pobreza extrema como a Índia, Paquistão e África, levaram-na a intervenções importantes que resultaram em mudanças de atitudes em pró de uma vida melhor destas populações. Seu segredo? O respeito e a consideração às tradições e aos costumes locais. Apenas uma ponte nova, um destino alternativo aos muitos que ainda vivem sob condições subumanas.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Um novo caminho

O dia está só começando quando o dono de uma agência de notícias de Paris pega a sua mala. Sua expressão é de dor, sua aparência descuidada. Ele dá a volta na cama de casal em busca do olhar de sua mulher, um olhar desesperançado. Ela se apressa a fechar os olhos evitando qualquer palavra. Ao deixar a casa não percebe que seu filho adolescente o fita em silencio. Antes de entrar no taxi que irá levá-lo à estação de trem, passa em um bar e toma duas taças de vinho branco como se fossem água.Em alta velocidade o trem deixa a cidade e a paisagem do campo, com seu verde, rios, montanhas, invade sem pedir passagem. Ao contrário de filmes que nos colocam diante do tormento repetitivo de alcoólatras (Despedida em Las Vegas -1995) ou dos que se drogam até a morte ( Sid & Nancy-1986),este é baseado nos relatos autobiográficos do jornalista e produtor de TV francês Hervé Chabalier (“Le Dernier pour la Route”) quando decide por um basta a este circuito autodestrutivo. Intelectual engajado ideologicamente com o futuro da condição humana, Hervé sabe que precisa de ajuda para se livrar de sua compulsão, mas sofre ao ver-se obrigado a conviver com seus “colegas” de vício na clínica em que se interna. Seguindo algumas máximas do AA - a consagrada e mundialmente difundida reunião de alcoólicos anônimos - todos os que ali estão ou trabalham consideram-se “doentes do vício”, e Hervé passa a fazer parte de um grupo com o qual terá que dividir reuniões, refeições e lazer diariamente. De cara, surpreende-se com o ritual da “oração” repetido a cada manhã: "Que Deus me dê serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as que posso e sabedoria para distinguir umas das outras". Sente-se invadido pela descrença e começa a duvidar da eficácia de sua escolha. Em tempo, é socorrido pela terapeuta, que o convida a tentar destrinchar o significado e a importância da frase, que impõe a cada um lembrar-se dos motivos pelos quais está ali, ou seja, do quanto ele precisará repensar seus ideais (sua relação consigo, com o outro e com o mundo), à luz de suas possibilidades e limites. Mas Hervé ainda não está preparado para tal reflexão. As constantes piadas e risadas de seus colegas sobre a relação “erotizada” de cada um com a bebida o deixam irritado. Ele está longe do toxicômano em vias de recuperação que reconhece sua impotência perante as drogas, o que talvez pudesse lhe permitir rir de si próprio. O filme é básico na apresentação do percurso de um drogadito que busca o fim do redemoinho que a droga impõe. Mas muito sensível ao mostrar como, apesar de se encontrarem no mesmo barco enfrentando as mesmas tempestades, cada integrante do grupo carrega sua historia de dores e tormentos que o levou à eleição deste “remédio- veneno”. Hervé sofre envergonhado com as lembranças de seus estados de torpor ou “apagamento” em situações inusitadas e de seu choro desesperado pela impotência diante da bebida.Ela, a “bebida”, também era sua salvadora, aquela a quem ele podia se entregar ao buscar cessar a angústia deflagrada pelo hiato entre o que ele percebia ser e o que gostaria ou deveria ser. Um círculo sem fim, em que a tentativa de evitar a realidade ou esquecê-la acaba inexoravelmente falhando, dando lugar a uma intolerável consciência de decrepitude moral e física. Historias de pessoas que às vezes conseguem traçar “um novo caminho”, às vezes não.

Para conferir: Um novo caminho
Nome original: Le Dernier Pour la Route
País: França/2009
Direção: Philippe Godeau
Com: François Cluzet, Mélanie Thierry e Anne Consigny

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Assim caminha a humanidade

Sou das que acredita na frase que diz que a infância é nossa pátria. Quantas vezes nos pegamos lembrando fatos, objetos, palavras, cheiros ou sentimentos desta época de nossas vidas a partir de algo que vemos ou vivemos no presente? Foi assim que pude resgatar um empoeirado sonho de possuir um diário quando pequena. Não qualquer um, mas um especial, que tivesse uma capa acolchoada branca com os dizeres “Meu Diário” em dourado e que ficasse guardado em algum lugar cujo acesso só eu teria. De família numerosa e do interior, cresci rodeada de irmãos, primos, quintal e rua para brincar, sem lugar e tempo para este colóquio interno comigo mesma. Mas me perdi em livros os mais diversos na minha pré-adolescência, aproveitando-me do fato de morar a uma quadra da Biblioteca Municipal. Às vezes me imaginava escrevendo, sempre com aquele começo romântico - querido diário- para em seguida contar em palavras bonitas e escolhidas a dedo, sobre o meu dia, meus feitos, meus desejos. Como seria bom falar com um terceiro “sem nome” sobre o que me inquietasse a alma, fossem questões não resolvidas ou aquelas que ultrapassassem as possibilidades de entendimento. Um interlocutor, alguém eleito para confiar meus mais secretos sentimentos. Já cursando a faculdade e (nem tão) longe de minha família, cheguei a ter um caderno brochura comprado especialmente para cumprir esta tarefa de companheiro especular, que pudesse escutar e guardar em um lugar seguro e acessível, as conjecturas sangradas nos momentos de angustia, solidão e desamparo. Mas foi por pouco tempo. Ainda guardo o caderno, já com muitos anos de vida, esquecido em alguma caixa, junto às cartas trocadas com meus pais e irmãos na época, pedaço importante de um período significativo em que precisamos costurar nossa infância com nosso futuro de adultos. Assim como a história da evolução da própria humanidade com todas as aquisições que isto significa em termos de conhecimento e de reflexões sobre os modos de se explicar e responder as indagações que fazemos sobre nós, os outros e a realidade, é fundamental que possamos ressignificar nossas lembranças da infância, ajustando-as aos nossos ideais do presente. Mas ao contrário de algumas décadas atrás, quando nasci, hoje existem novas e inusitadas opções para se dividir os momentos de satisfação e de angústia que cada um enfrenta em seu cotidiano. Há uma geração “conta-tudo” que nasceu na era do acesso à rede e que costuma compartilhar qualquer coisa de sua vida na web. Aos trancos e barrancos, acertos e erros, esta geração terá que se haver com as conseqüências (boas e más) deste peculiar modo de se estar e viver no mundo atual. A “visibilidade” na web pode favorecer a divulgação de talentos, trabalhos e pensamentos que nem sequer seriam veiculados, possibilitando parcerias ou soluções. Mas pode ser cruel, assim como a “vida real”, caso as informações postadas não possam contar com alguma reflexão sobre seus possíveis destinos. Ao contrário dos pequenos diários escritos por muitos que já se foram, para este mundo web, não há como restringir ou limitar o acesso dos leitores, nem impedir que cada um interprete o que lê como bem quiser.

o prato é nosso

Posted by Picasa

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Um crime para dar o que falar

Ainda em clima de Copa do Mundo, quando de quatro em quatro anos nosso país pára e lojas, bancos, escolas e tudo mais seguem os ditames da tabela de jogos, fomos surpreendidos com a notícia de um crime bizarro cujo personagem central seria o goleiro de um dos times mais cultuados do Brasil, ganhador de dois títulos importantes no ano passado. Conhecido como a Nação Rubro Negra por ter o maior contingente de torcedores, o Flamengo é tipicamente carioca e coleciona, dentre suas estrelas, algumas polemicas como as de Romário e Edmundo e mais recentemente Adriano, exemplos de atletas que freqüentam tanto as páginas de esportes como as de celebridades excêntricas. A notícia de que Bruno, o aclamado goleiro do Flamengo, seria o mandante da morte de uma ex-namorada e mãe de um possível filho seu, passou a fazer parte do dia a dia dos noticiários de todos os jornais do país. Nas capas de revistas, um homem alto, moreno, corpo atlético, chamava a atenção por sua face inexpressiva, impassível. Como acontece em crimes deste porte, passamos a ler curiosamente os detalhes da novela que antecedeu a tragédia, ligando fatos, ameaças, confissões, denúncias, relatos de testemunhas, estória de vida de cada um. Em qualquer lugar, este seria o assunto a ser discutido, provocando surpresa, horror, repulsa, enfim, trocas inflamadas de pareceres sobre os motivos ou o destino de Bruno. Vindo de uma família pobre, criado pela avó, o goleiro tinha boas razões para se orgulhar de sua conquista, fosse pelo salário de causar inveja a qualquer um ou pelas chances de realizar o sonho acalentado de jogar na próxima copa defendendo a seleção brasileira. Já Eliza, a mãe de Bruninho, depois de vagar à procura de um lugar ao sol talvez sonhasse em ser amparada pelo goleiro, via a comprovação de sua paternidade. Até aí, são estórias banais iguais as de milhões de pessoas que anseiam por este pequeno espaço habitado pelos que ganham dinheiro e fama. Mas a de Bruno tem um “plus”, um “não sei o quê” que reverte as expectativas, que ultrapassa os limites. Ele acredita que sua lei pode ser a lei de seu desejo, de suas escolhas e de suas avaliações sobre o mundo e as pessoas. Ele parece não temer as conseqüências de seus atos e longe disso, reitera a lógica que o fez descartar a mulher que o importunava com o pedido de reconhecimento de um filho que ele não queria. Nossa consciência crítica, aquela que gerencia nossas satisfações e nossas culpas diante do que consideramos transgressivo faz com que nos choquemos diante desta “im-passividade”. A ausência de arrependimento, de vontade de reparação ou consideração causa-nos tal estranhamento que passamos a compactuar com os que decidem “abandonar” o goleiro à própria sorte. Que ele seja entregue aos famintos leões e consumido vivo! De nossas janelas, assistimos ao mesmo tempo imparciais (seguros) e intrometidos os indícios de assassinato, os destinos dos envolvidos, tal e qual em um filme de suspense que nos provoca medo e alívio ao mesmo tempo. Medo dos afetos e sentimentos que podem nos surpreender e alívio por estarmos fora, apenas assistindo. De repente um fato questiona estas previsões: uma criança vestida com a camisa do Flamengo, de mãos dadas com o pai, pede ao repórter para dizer ao Bruno que ela o ama. Crenças infantis, das quais muito penosamente nos livramos.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Mercado de almas

O que você diria se soubesse que uma empresa oferece um serviço de remoção e depósito de almas? Pois este é o fio que conduz um filme que está em cartaz na capital (Almas à venda) em que um reverenciado ator prestes a estrear a conhecida peça de teatro “Tio Vania” do russo Tchecov, encontra-se angustiado, longe do “tom” que ele considera necessário para a interpretação de um personagem tão importante da literatura. Sem conseguir dormir, atormentado e desesperado, aceita a dica de seu agente e decide se desfazer de sua alma, em busca de alívio. Mas já “desalmado”, percebe que a peça em questão reflete justamente sobre o que fazemos com o nosso tempo, nossas relações, nossa existência e sem o “peso” da alma e seus incômodos, ele teria se transformado em alguém irreconhecível, desafetado e insensível. Apesar do nonsense do tema, a diretora (Sophie Barthes) parece ter pretendido tratar de forma irônica e crítica, a velha questão sobre os mistérios da alma humana. O serviço oferecido por uma espécie de clínica de Nova York tem à sua frente um médico que promete aos que o procuram, uma vida menos carregada pelos afetos, sentimentos e emoções humanas, sem que isso altere sua inteligência. E mais: caso sintam-se “vazios” demais, é possível “alugar’ por uns tempos a alma de outra pessoa. Em um ambiente “clean” e super moderno o ator deverá passar por uma espécie de aparelho semelhante aos que realizam as tomografias e antes que sua alma seja extirpada (e devidamente guardada) o médico lhe oferece uma espécie de binóculos especiais com o qual ele pode examiná-la pela ultima vez. Surpreso e aterrorizado com esta possibilidade, ele opta por não “saber” nada sobre ela. O filme começa com uma frase de Descartes, o filósofo e matemático que ficou conhecido por ter tentado separar o que seria da alma do que pertencia ao corpo humano, inaugurando os preceitos para a Ciência moderna. Na frase, Descartes afirma que nossa alma seria uma glândula em nosso cérebro, possível de ser identificada e extirpada. Segundo sua teoria, as emoções serviriam para alertar sobre o que estaria funcionando mal em nossos organismos, e a força da alma estaria ligada a possibilidade de vencer as emoções ou não se deixar dominar por elas. Grande parte do entendimento sobre as emoções e sua influencia sobre o nosso comportamento tem sido marcado por este dualismo mente e corpo, dando uma idéia de gerenciamento neutro da razão sobre as emoções. No filme, a possibilidade de retirar, devolver ou “trocar” a alma por uma de outra pessoa, é apenas uma paródia sobre esta suposição de controle, que não deixa de ser algo amplamente ansiado por todos nós. Na contramão desta visão sobre nosso funcionamento, a psicanálise acredita que a integração entre a psique e o soma seria a base de um desenvolvimento harmonioso. Desde o nosso nascimento e a partir dos cuidados dispensados ao nosso corpo, nossa psique estaria elaborando uma memória afetiva em que estariam sendo significados cada sensação experimentada. Longe de ser algo simples, ao questionar as clássicas divisões entre natureza e cultura, razão e emoção, mente e corpo, a psicanálise acredita que haja uma lógica nas emoções, sempre portadoras de sentido mesmo quando beiram o nonsense. Nosso “aparelho psíquico” interpretaria desde o inicio nossas experiências emocionais e é esperado que possamos desenvolver “ferramentas” internas para conter as intensidades e excitações que nos chegam tanto de nosso interior, quanto de fora. Nada disso estaria fora do que poetas e artistas insistem em apontar e é o que este filme pretende problematizar. A trama ainda percorre caminhos inspirados até que o nosso ator possa retomar sua “velha e boa alma”. Obrigado pelas circunstancias a finalmente encará-la, sua aflição e desespero dão lugar a uma compreensão de seus sentimentos e afetos. Mais ajustado com os “ruídos” de sua alma, ele pode fazer suas escolhas sem tanta angustia.
Para conferir:
"Almas à Venda" (Cold Souls, EUA, França, 2009)
Com Paul Giamatti, Dina Korzun, David Strathairn e Emily Watson.
Direção de Sophie Barthes

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Entre alegria e decepção

Todo brasileiro sabe que os dias que antecedem às Copas Mundiais de Futebol também anunciam que o país entrará em recesso. Há uma espera ansiosa pelos momentos dos gols que deverão definir a vitória do time verde e amarelo. É comum que os dias em que há jogos do Brasil já amanheçam diferentes, nervosos. Ao passear pelas ruas minutos antes do início das partidas percebe-se uma transformação da população em um grande coletivo nacional e todos parecem estar confortavelmente instalados em um “big buffet infantil”. Não há diferenças de idades, raças, aparências: está concedida uma informal licença do cotidiano que autoriza cada um a vestir qualquer coisa que lembre a identidade patriota, sejam grandes chapéus, fitas,vuvuzelas,apitos, bandeiras. Carros buzinam incessantemente , sejam a lembrar que já é hora de estar a postos em alguma tela, ou para alardear a inquietação que virá com o tempo de espera que cada partida impõe. Bares, padarias e restaurantes embandeirados disputam a clientela exibindo grandes e moderníssimas TVs ligadas no alto e exaltado som dos locutores. Levas de funcionários tagarelas e devidamente aparelhados de algum item verde-amarelo saem de suas empresas em direção a algum local eleito para ver o jogo. A diferença de fuso horário entre a África e o Brasil definiu (sem qualquer oposição) alguns semi-feriados nacionais: grandes e pequenas empresas, chefes e subalternos, patrões e empregados não discutiram tal prerrogativa. É provável que em nenhum outro país a população acedesse tão prontamente ao parêntesis geral formado pelos jogos nacionais. Canais de TV, pagos ou gratuitos ofertaram seus pacotes de celebridades: locutores mais disputados, ex-jogadores (e craques) mais dispostos a emprestar sua experiência para palpitar sobre as melhores estratégias, grandes “teóricos” (mais conhecidos como boleiros), que a cada jogo se reuniam em torno de uma mesa desde o amanhecer até o final da noite, no antes e no depois, comentando, criticando, justificando ou crucificando jogadores e técnicos. Pela tela era possível também conhecer um pouco mais da África, este país meio irmão nas cores, na música, nos desafios e na diversidade cultural de seu continente. Era franca e maciça a torcida africana dedicada ao Brasil. E, ainda que a seleção brasileira houvesse decepcionado desde sua estréia,a esperança de um próximo jogo que fizesse brilhar o melhor futebol do mundo continuou a alimentar a grande maioria. Ninguém queria ouvir a temida frase que sela o fato do futebol ser “uma caixinha de surpresas”. Há que se tentar prever e controlar possíveis furos. Vários jornalistas, colunistas de áreas as mais diversas (cinema, economia, cultura, política) derramaram suas análises sobre os rumos da seleção de Dunga, sobre a Copa, os times adversários, ditaram regras, tentaram consertar táticas. Com tamanho investimento pessoal de cada torcedor, era natural que a derrota fosse sofrida e, apesar de tudo, inesperada. Muito doída mesmo. Como consolar o país, todo vestido de verde e amarelo, sobre um resultado adverso? Teria sido o imponderável, o caráter imprevisível de todo jogo (a jabulani ?) ou a equivocada convocação dos jogadores e as estratégias armadas por seu técnico? Foi despreparo psicológico? De heróis a vilões, jogadores e técnicos evitaram aparecer nas telas e encarar o olhar de tantos. E no dia seguinte o grito parado explode no samba feito para a seleção da Alemanha. Nossos “irmãos” e arquirivais argentinos são duramente eliminados. Ainda na festa do parque infantil, vestidos de verde amarelo, respiramos aliviados. A Alemanha é outra cultura, outro mundo, outro futebol. A Argentina campeã do mundo iria doer demais. São demasiadamente vizinhos.

sábado, 3 de julho de 2010

Saramago

Final de janeiro de 2005 em Porto Alegre. Fazia muito calor e os dias lindos de sol e céu azul combinavam com o colorido da multidão diversificada que comparecia ao Fórum Social Mundial. Éramos um grupo de psicanalistas convocados por Paulina Rocha (psicanalista de origem croata que vive em Recife desde a década de 70) para escutar os sons que viessem deste inusitado encontro de pessoas do mundo todo em busca de trocas de idéias sobre os rumos de nossa condição humana. Havia uma fila imensa para entrar no Auditório Araújo Viana, local em que deveriam se apresentar os escritores, o português José Saramago e o uruguaio Eduardo Galeano em uma conferencia denominada “Quixotes de Hoje: Política e Utopia”. De minha parte havia uma especial expectativa em torno dos pronunciamentos que viriam de Saramago, autor de obras singulares como “O evangelho segundo Jesus Cristo” ou “Ensaio sobre a cegueira”.Um escritor que não se afastava de seu papel de vivente contemporâneo, ao colocar suas idéias sempre voltadas ao futuro dos homens e de seu mundo. Foi um encontro feliz. Jamais me esquecerei de sua postura humilde, sensível e sagaz, ao se colocar frontalmente contra a idéia de qualquer utopia que pudesse funcionar como ideologia anestesiante. Saramago já estava com mais de 80 anos e sua luta era pela vida, mas isso significava trabalho: um trabalho permanente de reflexão, de ações, de comprometimento com o que poderia fazer sentido para o futuro humano. Que não nos alienássemos em utopias confeccionadas para preencher nossos sonhos. Dom Quixote teria habitado outras terras, outras épocas mais românticas, em busca de um mundo mais justo. A vida deste escritor é de fato uma luta. Contra qualquer designação do destino, Saramago vinha de uma família de analfabetos humildes e nem imaginava que pudesse se tornar um escritor. Mas quando convocado a falar sobre si e sua vida não se utilizava de uma ética ressentida, comum a muitos que parecem querer se vingar de empecilhos injustos do passado; ao contrário, apresentava-se de forma consistente e robusta como cidadão do mundo em seu estágio atual. Lúcido, doce e simpático, parecia afirmar reiteradamente o presente como forma de pensar o futuro, quem sabe um sinal de sua ânsia pela possibilidade de apreender definitivamente o sentido da vida, mas não para guardá-la para si. Fazia uso da condição de prêmio Nobel para reivindicar a escuta de sua voz. Aos 63 anos deixou-se afetar e viveu intensamente sua paixão por Pilar, a jornalista espanhola e sevilhana, 28 anos mais jovem, que se enamorou primeiramente do escritor, o que a fez desejar conhecer o ser atrás do livro. Todos os seus futuros livros mereceriam uma citação à sua musa inspiradora, como a reiterar uma de suas frases mais imponentes: a de que “nossa única defesa contra a morte, é o amor”.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Possíveis razões de desrazões

Conhecido por suas afirmações que ora celebram a si próprio ora desmentem falcatruas que o envolvem, o deputado Paulo Maluf anda dizendo não temer que a Lei da Ficha Limpa impeça sua candidatura à reeleição à Câmara Federal, ou mesmo que seu registro seja negado pelo Tribunal Regional Eleitoral. Ao contrário, utilizando suas estratégicas frases repetiu: "A minha ficha é a mais limpa do Brasil". Condenado em decisão colegiada há dois meses por compra superfaturada de frangos em 1996, então prefeito de São Paulo, Maluf também é procurado pela Interpol fora do país, tem seus bens bloqueados pela Justiça brasileira, processos por crimes financeiros, de lavagem de dinheiro e contra a administração pública. Como é sabido, o projeto Ficha Limpa nasceu de uma campanha lançada em 2008 e coletou mais de 1,5 milhão de assinaturas de eleitores que exigiam uma “limpeza” em nossos órgãos representativos , graças às possibilidades de comunicação e intercâmbios que a internet propicia. Espaço democrático por excelência, muitas vezes a diversidade e velocidade com que as notícias daqui e do mundo circulam virtualmente permite que possamos conferir, avaliar, compartilhar, criticar, etc. Assim é possível saber que o PSDB de José Serra decidiu recentemente apoiar a candidatura do ex-governador Joaquim Roriz para o Distrito Federal, mesmo diante do fato deste ter tido que renunciar ao Senado em 2007, resultado de uma investigação sobre desvios ocorridos no Banco Regional de Brasília. Sabemos que às vésperas de eleições de tal porte como as de presidente do país e governadores, um número sem fim de acordos e apoios políticos tramita veladamente entre os candidatos, todos em busca de votos e lugares garantidos. Neste sentido tanto Maluf quanto Roriz (e sem dúvida poderíamos acrescentar muitos outros políticos brasileiros) representa algo que os transcende: mantêm uma eterna porcentagem de eleitores que, sem se importarem com suas contravenções ou seus discursos estritamente demagógicos, continuam fiéis em seus votos. Porque estes eleitores parecem permanecer impermeáveis às denúncias ou aos desmascaramentos públicos de seus favoritos? Como explicar o fascínio de muitos de nós diante de certos líderes que, ao contrário do que se espera de uma autoridade pública, não se importam em manter uma “ficha” pessoal pautada por uma ética transparente? É possível que a atração exercida por estes políticos (assim como por certas “celebridades”) esteja no fato destes serem portadores de uma audácia que a grande maioria de nós gostaríamos de ter com a lei, mas que ao longo de nossas vidas tivemos que interditar a favor de nossa convivência com os outros. É como se pudéssemos realizar através deles, nosso desejo de transgredir, de não precisar nos submeter às regras sociais que nos cerceiam e nos obrigam a levar em consideração os direitos iguais que a lei tenta garantir a todos. De forma simplória seria como se pudéssemos agir em interesse próprio sem que isso nos prejudicasse legalmente, nos comprometesse moralmente ou nos enlouquecesse internamente por nosso sentimento de culpa. E como não nos autorizamos a isso por todas as conseqüências que as transgressões às leis ou às normas demandam, alguns de nós desloca seu desejo através de votos ou devoção aos que conseguem driblar este funcionamento e sair aparentemente ileso. As razões destas desrazões não são fáceis de serem detectadas, mas podem ser explicadas. Quando crianças podemos explorar, exagerar e transgredir seguindo somente nossas satisfações.Não importa muito se as nossas intenções ou se o que fazemos irá perturbar o outro. Mas é graças aos cuidados de nossos pais ou de quem quer que ocupe este lugar que seremos alertados sobre o que podemos causar aos outros e convidados a sentirmos o que os outros podem estar vivendo em suas dores ou desconfortos. É assim que construímos nossos sentimentos morais de vergonha, culpa e nojo e será de porte destes que poderemos ter consideração às misérias alheias, nos arrepender de atos danosos ou desejarmos repará-los. Muitos (espera-se que seja a maioria) irão fazer suas escolhas, mesmo que à custa de renúncias e resignações, pautados nestes sentimentos de consideração ao outro e ao coletivo. Alguns, porém, formarão o time dos que buscam incessantemente o poder ou a fama como lugares que os isentam de seus compromissos com os outros. Por isso a cultura (nós) precisa reiterar indefinidamente seus mecanismos de regulação das relações entre as pessoas.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Paixão consentida

Estréia do Brasil na copa do mundo de 2010. A maioria dos estabelecimentos, empresas, escolas e serviços se organizam para que o país possa parar. São poucos carros nas ruas, muitos almoços com telonas e o verde-amarelo a encher os olhos de todos. O técnico de futebol que vive em cada um de nós, brasileiros, seja homem, mulher, criança ou idoso, assume seu posto de análise e vigia, enquanto Dunga, tanto pode ganhar como perder pontos, a depender do desenrolar da partida. Não deixa de ser interessante perceber que quase todos nós temos lembranças significativas em torno do clima especial que se instala em épocas de Copas do Mundo. Das expectativas, das decepções nas derrotas, do júbilo pelas vitórias. Dos jogos acompanhados ao redor de um rádio (para os mais “antiguinhos”), na tela branca e preta ou finalmente nas coloridas. Dos buzinaços e cortejos de carros após algumas conquistas de títulos. Desde algumas décadas, os jogadores escolhidos um a um para jogar na seleção brasileira de futebol das copas mundiais, habitam este lugar de limbo, e tanto podem seguir direto ao paraíso, eternizados por suas jogadas inesperadas e criativas e seus gols de craques, ou ao inferno, por suas falhas imperdoáveis. Sendo ou não o país das chuteiras, a verdade é que por várias e nem tão simples razões, o futebol vem se mantendo como uma poderosa paixão, capaz de despertar um forte sentimento de irmandade e identidade nacional. Mas ainda que haja uma concordância em torno de seu alto valor sócio-cultural e uma reverencia à sua arte pelo mundo afora, parece difícil escrever sobre o tema ou sobre a forte emoção que ele provoca. Como explicar o que causa frisson e admiração geral ao estilo de nossas partidas? Ou o fascínio de seus torcedores, capaz de derrubar as fronteiras raciais e sociais? Claro que existem outros tipos de esportes coletivos cujas características capturam torcedores, mas nenhum se compara ao futebol. Talvez por permitir que suas jogadas sejam mais abertas ao estilo e à intuição de cada jogador e menos submetidas às estratégias prévias que exigem somente técnica e perfeição, é que ouvimos comumente a expressão “futebol arte”. E assim como acontece em nossa música, difundida e reconhecida para além de nossas fronteiras geográficas, nosso futebol se alimenta desta liberdade que todos os brasileiros têm ao seu alcance, independente de origem e estudos. A de brincar com a bola nos pés desde que nascem ou a de gritar gol se a bola entra em qualquer trave improvisada. E pode se constituir em uma meta para centenas de jovens que sonham em vestir as camisas de seus clubes ou da seleção ou proporcionar uma experiência única de compartilhamento informal e gratuito de alegria. Claro, nem tudo são flores. Na medida em que nosso futebol se transforma no melhor do mundo, nos ombros de cada jogador eleito repousa o fardo que carrega a expectativa não só de todo um país, mas de muitos apreciadores estrangeiros. Não é difícil imaginarmos como cada um deles poderá se sentir intimidado e/ou temeroso diante da possibilidade de não conseguir corresponder a este tipo de exigência. Haja confiança!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O si mesmo

Fala-se muito no sentimento de si, no amor a si mesmo, na badalada auto estima e parece haver um certo consenso sobre o fato de em nosso mundo atual haver mais espaço para uma exaltação do eu. Para quem aprecia literatura, por exemplo, a estética das narrativas da época áurea do romantismo privilegiava o recato em relação a uma exposição vaidosa de si, o que fazia com que os personagens fossem discretos quando se descreviam aos outros, evitando valorizar em demasia seus talentos, atos ou renúncias. Eram tempos em que a etiqueta social carregava normas bastante específicas e a elegância implicava em uma reserva da intimidade de todos. Se pudéssemos ser simplórios com um tema tão complexo quanto as práticas sociais e culturais de cada época, era só fazer o jogo do “contrário”. Tornou-se prática comum o falar de si, o que inclui livros, blogs, entrevistas em que o personagem é o próprio sujeito, sua história, seu passado, suas idiossincrasias, suas receitas, sua maneira de estar e pensar a vida. E não há restrições de verbos e adjetivos enaltecedores. Transformamo-nos em narcisistas. Mas é bom que se saiba que o mito de Narciso não cabe apenas na frase do amor a si mesmo. Desde seu nascimento o belo Narciso estava condenado a não se olhar, pois isto implicaria em sua morte. Apaixonada por ele, Eco não consegue mais do que sua indiferença e acaba por morrer, deixando “ecoar” para sempre seu lamento. Responsabilizado pela morte dela, Narciso é conduzido à lagoa em que Eco morrera e ao contemplar sua imagem refletida nas águas, apaixona-se por si mesmo e morre. Estamos diante da característica principal do narcisismo, esta etapa a qual todas as crianças precisam passar como parte importante da formação de uma imagem de si mesmos, quando o olhar dos pais devolvem a elas sua adorável imagem e os outros são apenas reflexos deste si mesmo, não sendo possível enxergá-los como diferentes porque sua fragilidade não lhes permite saber que desde o começo de sua história, estes “outros”estão à sua volta para amar, cuidar, punir, frustrar, trair. Por isso Narciso oscila constantemente entre a euforia pelo reconhecimento de uma imagem engrandecedora e adorada e a agressividade contra o espelho que muitas vezes (e no decorrer da vida cada vez mais) lhe nega esta imagem idealizada de si. Mas Narciso é também um mito lembrado na era atual porque encarna nosso anseio de ser alguém que ao ficar fechado em um grande amor por si mesmo, não precisa de mais ninguém. Quem de nós já não teve seus sonhos de autonomia total, longe de todos e tudo, somente em “paz” consigo mesmo, sem a necessidade de ter que “responder” a todas as demandas de seu meio e mais, a todas as demandas de sua consciência crítica, aquela que mede de modo permanente e infernal a imagem que achamos que temos de nós, a imagem que achamos que os outros tem e aquela que queríamos ter? Ao contrário do que imaginamos, no entanto, para se ter uma boa “auto estima” é necessário reconhecer de alguma forma não só que o controle sobre esta “imagem de si” não está em nossas mãos mas que ela é altamente instável e precária. Portanto, um sentimento de si que possa compensar esta fragilidade é sempre uma conquista, pois implica “suportar” que os outros tenham uma imagem de si mesmos diferentes, assim como refletem nossa imagem de maneiras as mais inesperadas. Se esta descoberta nos expõe ao curso da vida, ela introduz ao nosso antes pobre vocabulário, uma infinidade de verbos e adjetivos novos. (Claro, nem todos prazerosos)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Busca-se sentido

O mundo hoje pede alegria, confiança, euforia, velocidade. Precisamos demonstrar que vamos conseguir nossos objetivos e que tudo vale a pena. Este parece ser “o segredo” do sucesso e da felicidade e muitas vezes embarcarmos na promessa de que a felicidade e o bem estar estaria ao alcance de todos que souberem se organizar para bem produzir e consumir. Seria esta nossa utopia pós moderna? Acreditar que o saber tecnocientífico que nos antecede guarda toda e qualquer interrogação sobre nossa humanidade e seu futuro e a nós resta aprender a 'gerir' da melhor forma sua eficácia, a valorizar sua gestão? Caberia às futuras famílias e escolas transformarem-se em experts ,aptos a enquadrar cada novo ser humano em categorias ordenadoras previamente estabelecidas, que pressupõem uma descrição detalhada e cada vez mais refinada, em um movimento classificatório que tende ao infinito? Etiquetados, poderíamos finalmente ser “desviantes”, desde que com alguma causa cientificamente explicada, bem descrita. Alguns teriam pânico, bulimia, esclerose múltipla, outros TDAH (transtorno de déficit de atenção e de hiperatividade), depressão, transtorno bipolar, etc. A verdade é que o paradigma contemporâneo tenta anular qualquer interrogação frente ao sofrimento, ao improvável, em uma luta contra o insuportável da experiência humana da ambivalência. Insistimos em tornar o mundo legível, instrutivo, em naturalizar a experiência humana, transformando nossas opções (fruto de nossa subjetividade) em necessidades naturais. Mas o preço pelo congelamento de nossos conflitos é alto e produz um esvaziamento da vida subjetiva, um embotamento da criatividade. Perdemos uma parte importante de nós mesmos. Um fenômeno ilustrativo deste dilema é o aumento de drogaditos. Em geral fazemos um grande estardalhaço (com razão) em torno dos usuários de cocaína ou de crack , pessoas que se tornam zumbis, totalmente apassivados em sua anestesia diária e interminável.Mas estes “desviantes” nos informam, de alguma maneira, sobre nossos sintomas sociais, ao demonstrarem sua inaptidão para as experiências humanas de sofrimento, de dúvidas, de excesso ou carência de sentidos.
E o que nos faz humanos?
Poderia ser nossa possibilidade de falar, que em sua origem apontaria para a necessidade de nos comunicarmos uns com os outros. A condição humana não pode prescindir da relação com um outro. Nascemos prematuros e não conseguiríamos sobreviver se não fossemos cuidados por um outro. Mas não basta ser um outro anônimo, qualquer, sem um endereçamento para cada um de nós. Precisamos que seja alguém que dê um sentido à nossa existência, nos dê um nome, um legado simbólico, uma origem que nos anteceda. Algo que nos possibilite contar alguma historia sobre nós, nos situar, poder dizer de onde viemos e para onde queremos, sonhamos ou podemos ir. No percurso que cada um faz, levando suas heranças em busca de novas conquistas há sofrimentos, há dores que expressam nossas impossibilidades e que precisam e podem buscar circulação de sentidos,que permitam fluir, criar, inventar e produzir caminhos novos e inusitados. Se nossas escolhas forem por caminhos que se mostrem fechados, há sempre novas chances de "reconstrução" de nós mesmos e novos futuros à frente. Para quem como eu, que trabalha com a escuta de vidas humanas, é sempre alentador se deparar com o fato de que tenhamos recursos inimagináveis para lidar com situações as mais atrozes.Muitas vezes absorvemos essas experiências e as transformamos em novos sentidos para as nossas vidas.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Por que Aline?

Na história recente de nosso país é possível mapear o surgimento e a consolidação das tirinhas de humor produzidas por artistas brasileiros, muitos deles reverenciados principalmente pelo público jovem. Ainda que as tiras em nossos jornais já existissem desde o começo do século XX, a partir dos anos 60 e 70, a despeito de uma maior divulgação das histórias em quadrinhos que cumpriam com êxito uma função mais política do que só de entretenimento, foi possível acompanhar as aventuras de personagens como os da turma de Charlie Brown (do cartunista americano Shulz), ou da Mafalda (criação do argentino Quino), a garota “filósofa”, questionadora e politizada, capaz de deixar seus pais perplexos diante de suas avaliações sociológicas. Ambos os autores utilizavam-se do universo infantil para produzir suas críticas sociais: crianças de classe média, que vão à escola, possuem amigos e se aproveitam deste cotidiano para questionar o tempo todo o mundo adulto burguês e engessado pelas formalidades, injustiças e preconceitos de sua época. É certo que a garotinha Mafalda era mais ousada e não poupava sua mãe de suas sacadas irônicas ao enfatizar o papel inferior ocupado pela mulher, que não questionava suas obrigações de dona de casa e de mãe dedicada. Pode-se dizer que Quino soube ilustrar com firmeza e delicadeza a trajetória feminina na defesa de seus direitos. Se aqui já era possível perceber a construção de personagens menos heróicos e mais humanos, muito mais próximos das questões enfrentadas pela maioria de seus leitores, a partir da década de 80, com a queda de utopias sociais, religiosas ou moralistas, os quadrinistas passam a ficar mais próximos de sua existência cotidiana, da reflexão sobre seus valores, das questões de gêneros, em uma exaltação à liberdade de pensar e criar. Surge um número significativo e importante de cartunistas brasileiros, que começam a produzir histórias e personagens nascidos das entranhas de nossa cultura, mas também de uma cultura que já tomava o bonde do pós moderno, ou seja, de uma pós revolução dos costumes, da ordem social. Uma era em que caberia a cada um construir novas referências em cima das cinzas das passadas, líquido fértil para se recriar a realidade através do humor, um humor mais transgressor, mais urbano, embora mantendo uma verve política, erótica e comportamental. Passam a desfilar tipos masculinos caricatos como o Meiaoito, o militante de esquerda que ainda se apega a seus ideais em um mundo em transformação, os velhos hippies Wood e Stock deslocados no tempo, o punk Bob Cuspe, Walter Ego, o apaixonado por si mesmo, Osgarmo e seus problemas de ejaculação precoce, Hippo-Glós o hipocondríaco, ou o conquistador machista e mais do que confiante Bibelô, todos criações de Angeli, que refletem a estupefação e os conflitos do homem de sua geração, que além de suas próprias questões de identidade, também têm que enfrentar uma mulher emancipada pelas conquistas feministas, cuja liberdade os assusta. Mas os tipos femininos não ficam atrás em suas angústias. Quem não se lembra da emblemática Rê Bordosa, que passava a noite bebendo e paquerando nos bares e, no dia seguinte, instalada em sua banheira, tentava recordar o que lhe aconteceu? Ou da famosa Dona Marta, a secretária imortalizada por Glauco, que assediava office boys ou chefes de seu escritório, intimidando-os? Glauco ainda nos presenteou com o Casal Neuras, revelando os bastidores das relações amorosas sempre perpassadas pelos rompantes de ciúmes, o medo das traições e as ameaças de abandonos; e as aventuras de Geraldinho, que com sua mãe, mostrava o cotidiano neurótico de uma relação simbiótica, de amor e ódio. Nos anos 90 foi a vez do gaúcho Adão Iturrusgarai criar personagens mais “conformados” aos novos tempos. Surgem os caubóis homossexuais Rock & Hudson, caricaturas de um mundo gay que respira à nossa volta e Aline, a jovem sensual, agitada e ousada que divide sua cama com seus dois namorados Pedro e Otto. De todos os personagens que comentamos, Aline foi a “escolhida” pela Rede Globo e no ano passado ganhou uma série entre outubro e novembro, que este ano deverá voltar em uma segunda temporada. Por que Aline?