quarta-feira, 14 de julho de 2010

Mercado de almas

O que você diria se soubesse que uma empresa oferece um serviço de remoção e depósito de almas? Pois este é o fio que conduz um filme que está em cartaz na capital (Almas à venda) em que um reverenciado ator prestes a estrear a conhecida peça de teatro “Tio Vania” do russo Tchecov, encontra-se angustiado, longe do “tom” que ele considera necessário para a interpretação de um personagem tão importante da literatura. Sem conseguir dormir, atormentado e desesperado, aceita a dica de seu agente e decide se desfazer de sua alma, em busca de alívio. Mas já “desalmado”, percebe que a peça em questão reflete justamente sobre o que fazemos com o nosso tempo, nossas relações, nossa existência e sem o “peso” da alma e seus incômodos, ele teria se transformado em alguém irreconhecível, desafetado e insensível. Apesar do nonsense do tema, a diretora (Sophie Barthes) parece ter pretendido tratar de forma irônica e crítica, a velha questão sobre os mistérios da alma humana. O serviço oferecido por uma espécie de clínica de Nova York tem à sua frente um médico que promete aos que o procuram, uma vida menos carregada pelos afetos, sentimentos e emoções humanas, sem que isso altere sua inteligência. E mais: caso sintam-se “vazios” demais, é possível “alugar’ por uns tempos a alma de outra pessoa. Em um ambiente “clean” e super moderno o ator deverá passar por uma espécie de aparelho semelhante aos que realizam as tomografias e antes que sua alma seja extirpada (e devidamente guardada) o médico lhe oferece uma espécie de binóculos especiais com o qual ele pode examiná-la pela ultima vez. Surpreso e aterrorizado com esta possibilidade, ele opta por não “saber” nada sobre ela. O filme começa com uma frase de Descartes, o filósofo e matemático que ficou conhecido por ter tentado separar o que seria da alma do que pertencia ao corpo humano, inaugurando os preceitos para a Ciência moderna. Na frase, Descartes afirma que nossa alma seria uma glândula em nosso cérebro, possível de ser identificada e extirpada. Segundo sua teoria, as emoções serviriam para alertar sobre o que estaria funcionando mal em nossos organismos, e a força da alma estaria ligada a possibilidade de vencer as emoções ou não se deixar dominar por elas. Grande parte do entendimento sobre as emoções e sua influencia sobre o nosso comportamento tem sido marcado por este dualismo mente e corpo, dando uma idéia de gerenciamento neutro da razão sobre as emoções. No filme, a possibilidade de retirar, devolver ou “trocar” a alma por uma de outra pessoa, é apenas uma paródia sobre esta suposição de controle, que não deixa de ser algo amplamente ansiado por todos nós. Na contramão desta visão sobre nosso funcionamento, a psicanálise acredita que a integração entre a psique e o soma seria a base de um desenvolvimento harmonioso. Desde o nosso nascimento e a partir dos cuidados dispensados ao nosso corpo, nossa psique estaria elaborando uma memória afetiva em que estariam sendo significados cada sensação experimentada. Longe de ser algo simples, ao questionar as clássicas divisões entre natureza e cultura, razão e emoção, mente e corpo, a psicanálise acredita que haja uma lógica nas emoções, sempre portadoras de sentido mesmo quando beiram o nonsense. Nosso “aparelho psíquico” interpretaria desde o inicio nossas experiências emocionais e é esperado que possamos desenvolver “ferramentas” internas para conter as intensidades e excitações que nos chegam tanto de nosso interior, quanto de fora. Nada disso estaria fora do que poetas e artistas insistem em apontar e é o que este filme pretende problematizar. A trama ainda percorre caminhos inspirados até que o nosso ator possa retomar sua “velha e boa alma”. Obrigado pelas circunstancias a finalmente encará-la, sua aflição e desespero dão lugar a uma compreensão de seus sentimentos e afetos. Mais ajustado com os “ruídos” de sua alma, ele pode fazer suas escolhas sem tanta angustia.
Para conferir:
"Almas à Venda" (Cold Souls, EUA, França, 2009)
Com Paul Giamatti, Dina Korzun, David Strathairn e Emily Watson.
Direção de Sophie Barthes

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