quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Quem pai?

Desde que meu filho se tornou pai, adotamos a prática de trocar  textos/reportagens/blogs de pais que descrevem seu percurso nesta empreitada, buscando novas referencias desta função antes relegada a um segundo plano nos cuidados com o bebê. Graças a estes novos pais sensíveis, alguns textos são verdadeiros bálsamos ao revelarem os sentimentos de amor lado a lado com as tentativas de compreender os sinais vindos do convívio com o filho(a), os pactos com a cônjuge na divisão do tempo “full time” que um bebê exige ou na condução das escolhas diante dos impasses da tarefa de fazer de um bebê um menino ou uma menina que possa entender seu lugar na família e no mundo e ainda gostar de viver no mundo humano. Esta tendência, somada às imagens cada vez mais comuns de pais que sozinhos conduzem os carrinhos de seu bebê pelas ruas das grandes cidades do mundo, dão mostras de um deslocamento, ainda que tímido, na imagem que os homens têm de si mesmos e nas referencias que os representam enquanto gênero. No entanto não é tão simples ou fácil que mudanças de costumes, principalmente aquelas que vêm acopladas a comportamentos que dão corpo e alma a determinados papéis já consagrados dentro das sociedades, possam se processar em curto prazo. Aqui e ali, ao mesmo tempo em que somos contemplados com ícones importantes da sociedade contemporânea que tentam escapar do “formal” ou da cartilha do “bem-sucedido” preocupado em manipular sua imagem tal e qual um personagem, ainda nos deparamos, com certa perplexidade, com uma fatia considerável de pessoas que se alinham aos “tementes”, outra categoria que ensurdece e borra qualquer sinal de “bom” futuro. O papa Francisco é um exemplo destes ícones inovadores que surpreende o mundo ao convocar a todos a debater temas tabus dentro de uma instituição conservadora. Aos olhos perplexos de muitos, ele propôs ao quadro dos “servidores” da própria Igreja, um debate sobre questões que atravessam o sagrado conceito de “família” como a homossexualidade e os divorciados, antes excluídos das bênçãos divinas. Se isto pode se configurar como um serviço a favor da vida e principalmente do afeto como seu combustível, uma grande fatia dos “tementes” representam ao contrário, forças religiosas conservadoras que apoiam a volta ao militarismo e às guerras e instigam as atitudes machistas e homofóbicas. Na linha do equívoco da mistura entre governos e religião, talvez o exemplo mais contundente seja o Islã, que parece ter perdido seu rumo ao tentar restabelecer um tempo em que puderam ser importantes e referendar a cultura mundial. Ainda que não sejam aprovados pela maioria dos muçulmanos, o novíssimo Estado Islâmico, considerado por muitos como um sucessor ainda mais radical do movimento Al-Queda, representa a imagem de um Islã que busca a volta ao século VII, ou seja, de um tempo em que podiam ser vitoriosos e poderosos e que tal feito podia ser atribuído  aos desígnios de um Deus. Em um mundo em que cabe cada vez mais a cada um buscar um lugar “político”, em que questões éticas e políticas como justiça, hospitalidade, responsabilidade e democracia fiquem subentendidas, esta “missão” que não é nada simples, exige que se considere os legados, as heranças, mas sempre para argumenta-las e supera-las, adequando-as às novas formas de se viver. Esta tarefa está diretamente relacionada com os cuidados e a educação das crianças do futuro, que precisam de tempo, espaço e dicas para explorar o mundo, descobrir quem são e quiçá desafiar as metas parentais e de seu tempo.


A vida entre parêntesis

Em entrevista à Folha de São Paulo no mês de novembro, o artista londrino Damien Hirst  que veio ao Brasil para abrir uma exposição de seus trabalhos, e que há 20 anos é considerado uma celebridade no mundo das artes, confessava que desde 2008, quando percebeu que não era imortal, que podia envelhecer, adoecer ou morrer, conseguiu finalmente ter uma visão de si, de seu passado e de sua vida, mesmo que no início tivesse ficado tomado pelo pânico. Detalhe: a morte sempre foi seu tema principal. Mergulhado nos excessos de si, de grana, de drogas, não lhe era possível sequer balizar o valor que suas obras tinham para ele. A impressão que se tem ao final da entrevista é que uma parte de si não pode deixar de administrar este personagem, e o tom mais confessional o ajuda a manter-se mais “amado” do que “odiado” ou “invejado”. Líder dos YBAs, ou melhor, dos jovens artistas britânicos dos anos 90, Damien teve uma carreira meteórica ao se associar a um colecionador conhecido pelo estilo agressivo na aposta midiática e marqueteira, o que o fez acumular uma grande fortuna. Nos últimos dez anos, no entanto tornou-se, junto ao sucesso de suas obras, uma pessoa non grata em boa parte de Londres e em alguns lugares da Europa, a ponto de evitar comparecer às vernissages de suas exposições. Em São Paulo, entre alguns selfies com os admiradores, apelava para o caráter mais genuíno e cordial dos brasileiros. Vivendo em uma época em que o recurso midiático projeta os famosos num perímetro antes inimaginável, ao mesmo tempo em que glamuriza sua intimidade, Damien talvez não estivesse preparado (será que alguém está?) para se tornar, assim como sua obra, um objeto da curiosidade e apetite infinito do público. Já a Ilustríssima do dia 9 de novembro, na onda do projeto Alemanha+Brasil 2013-2014, uma parceria do governo alemão e do Instituto Goethe para celebrar as relações entre os dois países, desafiou 11 nomes representativos das duas culturas para escreverem a partir de um futuro fictício: "Estamos no ano de 2064 e hoje você está celebrando seu 50º aniversário. Como está o mundo neste dia?" Imaginar-se nascendo hoje e vivendo aos 50 anos em 2064 não é tarefa fácil. O que escolher para ficar ou mudar? Que tons usar, os cinzas ou os coloridos? Como pensar o mundo ou as pessoas? Um resumo dos relatos mostra que a maioria consagra a hegemonia da ciência e da tecnologia para os corpos e para os modos de viver, embora alguns acentuem as notas mais nostálgicas, de um passado com mais recursos naturais e menos vida artificial. Uma boa parte aposta que a ciência e a tecnologia levarão às ultimas consequências o projeto de parecermos felizes, vivos por muito mais tempo, com possibilidade de apagarmos a memória a fim de evitar as dores, as paixões ou os loucos desejos. Mas se para alguns só resta tentar “comprar” memórias justamente para não esquecer o passado de amores e dores, para outros sempre haverá brechas, furos e tréguas, e a humanidade não cessará de inventar novas formas de resistência ao status quo. Saber/poder improvisar pode vir as ser valioso. Apenas um (alemão) imaginou um mundo sustentável, que teria derrubado o modo de vida baseado no consumo infinito de objetos, e instalado o desapego, inventando um estilo de vida do alivio e do prazer. No balanço final o mundo pode ser vivido sem futuro, em guerra perpétua, muito gelado ou muito quente, e principalmente com muito medo. A entrevista feita a Damien discutida no inicio do texto, tenta capturar a “verdade” de sua vida, escarafunchando o passado e o presente, como a oferecer ao leitor um sentido que não está claro e precisa ser narrado. Ao discorrer sobre minhas impressões a respeito do artista baseada em suas respostas ao repórter, opto por privilegiar um ângulo de sua vida ao invés de outros. Os 11 relatos apresentados pela Ilustrissima também contém esta diversidade de olhares para o futuro do mundo, provavelmente construída a partir do sentido que cada autor atribui à sua vida. 

domingo, 9 de novembro de 2014

O pão nosso de cada dia


O diretor Richard Llnklater é cultuado por uma parcela importante de jovens que assistiram a sua trilogia Before "Antes do Pôr-do-Sol"/ "Antes do Amanhecer"/ "Antes da Meia-Noite", e desfrutaram do roteiro aparentemente despretensioso destes filmes que apresentavam uma inovação ao eleger como protagonistas do par amoroso, os mesmos atores, em três épocas diferentes de suas vidas, perfazendo um intervalo de nove anos. Assim, os sonhos e expectativas amorosas de juventude, podiam ser revistos e checados sob outras perspectivas pelo casal, à medida que ficavam mais velhos. Seu mais novo projeto, “Boyhood”, ganhador do Urso de Prata de Berlim pela direção, é tão ou mais ousado e primoroso. Durante 12 anos, também com os mesmos atores, Linklater filmou a historia de uma família de classe média, que vive no Estado do Texas – local pouco utilizado como cenário no cinema americano – permitindo a nós, espectadores, acompanharmos seus membros em seus pequenos dramas, conflitos e anseios, na tristeza e na alegria. É a vida cotidiana que nos toca viver que se apresenta, com seus altos e baixos, ainda que o projeto de Linklater não deixe de fora certos acontecimentos impactantes como a invasão do Iraque no governo Bush, a surpreendente eleição de Obama, o sucesso da saga Harry Porter entre jovens e crianças e claro, as transformações que o mundo digital trouxe aos modos de vida de todos. São dois filhos de pais separados – o caçula e sua irmã mais velha - que vivem com a mãe e precisam segui-la em suas mudanças de casa, cidade, maridos. O pai músico, que no inicio do filme usa a metáfora “trabalhando no Alaska” como desculpa por não pertencer ao mundo dos bem sucedidos,  logo retoma sua parte no convívio com os filhos. Assim como na sua trilogia sobre o amor, neste também os diálogos entre os adultos, entre estes e as crianças, entre as próprias crianças ou os adolescentes, são um diferencial do filme. Linklater parece fazer questão de utilizar o espaço cênico para debater ideias importantes sobre as relações humanas. Nada é deixado de lado, nem as brincadeiras bem humoradas, nem as mágoas, as dúvidas, as más escolhas (e suas consequências), as humilhações ou as questões sem respostas. Mas embora possa parecer um roteiro sem pretensões maiores do que a de apresentar a vida de uma família comum sem julgamentos morais ou normativos, não há como não aplaudir a preocupação do diretor em salientar o papel fundamental que os adultos contemporâneos precisam exercer não só quando escolhem serem pais, mas simplesmente por ocuparem um lugar assimétrico em relação aos mais jovens, e só por isso já estarem convocados a assumir a tarefa civilizatória e humanizadora. Neste sentido, de forma despretensiosa e deslocada dos discursos idealizados sobre família/pais e filhos, ele sublinha a importância desta responsabilidade e, portanto do comprometimento e cuidados com esta função, que para ser amorosa – fator imprescindível para acontecer um link com a vida e consigo mesmo – exige menos competências intelectuais e mais conhecimento sobre si, sobre o sentido/valor da vida de cada um, sobre a importância de se deixar afetar e de suportar /respeitar o estranho ou desconhecido. Moral da história: fica muito mais difícil ajudarmos os “garotos” a se emancipar e ganhar autonomia, se não percorremos antes este caminho e pudemos compreender a importância de discriminar o que deve ser incentivado, o que precisa de parâmetros e limites claros e o que necessita ser vetado. Não, não precisamos ser/bancar os adultos sabichões, ao contrário, pode ser salutar dividir algumas dúvidas e incertezas.
Para conferir: Boyhood  - 2014 - USA
Diretor: Richard Linklater

Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke