segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Madame Psicanálise

Alguns leitores me perguntam por que sendo eu uma psicóloga, assino minha coluna como psicanalista? Por uma questão de identidade, eu diria. Mas o que é esta tal psicanálise, que às vezes parece tão sofisticada e longe do acesso dos simples mortais e em outras, tão deslocada do resto das disciplinas que se ocupam em entender, interpretar ou criar ferramentas de cuidados para o ser humano? A verdade é que não é muito fácil delimitarmos o campo de estudos sobre a psique humana. Desde a antiguidade, a filosofia tentou resolver os enigmas da relação entre a mente e o corpo, o espírito e a carne. Nossa longeva tradição católica nos informou sobre as tentações de nossa carne e os dilemas de nossa alma, sempre em busca de uma verdade que permitisse o convívio entre estes dois mundos conflitantes e muitas vezes apresentados como separados. Mas desde os tempos de Descartes, o conhecimento exige método, além de coerência suficiente para que possa ser partilhado entre todos. Podemos dizer que a clínica médica inaugurou um saber e uma prática que focalizava a experiência de sofrimento de cada pessoa em particular, o que fez com que o foco deixasse de ser a doença e passasse a ser o doente. A psiquiatria nasceu da necessidade que a ciência impunha para o entendimento da loucura, das patologias da mente, ou melhor dizendo, dos sofrimentos psíquicos e foi graças a todos os que se debruçaram sobre as tentativas de formular sentido ao que parecia sem sentido, que aos poucos se pode compor um acervo de conhecimentos sobre um suposto funcionamento de nossa psique. Freud já era um neurologista quando se interessou em descobrir porque a histeria era considerada uma doença sem causas físicas “reais”, mas afetava a vida e o corpo de um número importante de mulheres de sua época. Suas teorias psicológicas nascem a partir do momento em que decide “escutar” estas histéricas, tentando entender as razões de sua dor psíquica e os caminhos que as levavam a criar sintomas físicos sem correspondência alguma com os diagnósticos da ciências médicas. Cientista rigoroso, partilhava do espírito iluminista dos séculos modernos e apostava na razão, mas descobriu que sua proposta em mergulhar nas misteriosas entranhas da alma humana o levava à existência de uma segunda consciência, ou melhor de um inconsciente. Percebeu que muitas vezes não conseguíamos “ver” ou criávamos estratégias para fechar nossos olhos, construindo sintomas que tinham a intenção de nos cegar para nossos conflitos, e que funcionavam como proteção para os excessos que nossa psique não poderia suportar. Ao não “poder” saber sobre as razões de nosso sofrimento, nossos sintomas continham um significado importante: mantinham este desconhecimento para nossa sobrevivência psíquica. Sua teoria e método pretendiam tornar esta “escuta diferenciada de nosso inconsciente” uma ferramenta que pudesse finalmente fazer certas ligações e substituir os sintomas por novas possibilidades de soluções, mais comprometidas com a verdade de nossos desejos, já que mais longe de nossas angústias e inibições. Claro que as subjetividades são modos de estar no mundo e mudam ao sabor da história e das diversas tradições culturais, assim como o mal estar que produz nossos sintomas. Se a época de Freud produzia mulheres histéricas com seus sofrimentos, estes sintomas eram parte do caldo da cultura burguesa que ainda não oferecia um lugar de verdade às mulheres. Quem iria negar que hoje as depressões, bulimias e pânicos expressam melhor o sintoma social contemporâneo? Na atualidade os saberes ganharam um volume inimaginável e resta-nos torcer para que se amplie o tímido movimento de busca de uma maior colaboração entre áreas antes opostas. Quem sabe a psiquiatria biológica que entende os transtornos mentais como passíveis de serem solucionados via psicofármacos, as neurociências que se esmeram nas pesquisas sobre o funcionamento do cérebro humano trazendo sempre novos dados, as terapias cognitivistas que buscam mudanças de comportamentos via consciência, e a psicanálise com seu acervo clínico e teórico sobre o funcionamento psíquico possam contribuir para uma rede geral do cuidar humano?

coluna do dia 21 de outubro de 2009

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Mondo Cane

Um crítico de cinema questionava esta semana se o diretor Quentin Tarantino não teria se tornado um cineasta graças ao seu passado adolescente de balconista de vídeo-locadora, local em que (diz a lenda) teria assistido a todos os filmes que ali existiam. Certamente este fato deve ter funcionado como um elemento facilitador, ao introduzi-lo à linguagem especial do mundo cinematográfico em seus diversos estilos e criações. Mas prefiro imaginar que a escolha deste trabalho já continha sua paixão e o acesso gratuito a tantos filmes só lhe acrescentou respostas sobre muitas de suas interrogações, além de facilitar-lhe encontrar palavras ou cenas que podiam descrever sentimentos estranhos ou disfarçados, empolgantes ou perturbadores. Sabemos o quanto um filme, seja ele sobre histórias de amores, de perdas ou de violências, de ficção, de heróis ou anti-heróis, pode nos carregar a lugares ou sentimentos inesperados e tocantes. Provavelmente este acervo ajudou e muito este americano a construir seu ideal de cinema, embora sua fama de diretor ousado e muitas vezes excêntrico precise ser debitada a uma somatória de fatores. Tarantino, nascido nos anos sessenta, é filho de pai descendente de italianos e de mãe meio irlandesa, meio cherokee, mas também é filho de uma geração de tecno-crianças, que cresceu jogando vídeo games e transita de maneira confortável pela estética pop em todas as suas versões. Quem já assistiu a seus filmes sabe que eles privilegiam a ação ao invés dos diálogos e não se esquivam de cenas em que a violência é mostrada com requintes de crueldade, ou seja, com os excessos que normalmente seriam poupados por outros diretores. A razão de seu sucesso, portanto, não é tão simples. Seu esperado Bastardos Inglórios que estreou neste final de semana em circuito nacional depois de balançar Cannes, o coloca entre os mais criativos diretores de cinema da atualidade, mas também entre os mais apaixonados por este gênero. A surpresa fica por conta de ser tanto um filme de época, mais um dentre os muitos que empreendem uma leitura sobre a segunda guerra mundial, o nazismo e a perseguição aos judeus, quanto um filme que desconstrói a história, ao conduzir a trama a um desfecho alternativo ao que conhecemos. Ao mesmo tempo em que reproduz cenários e personagens importantes do período da ocupação nazista na França, que juntou os algozes (alemães da Gestapo), as vítimas (os judeus), os reféns (franceses) e os mocinhos (americanos), o diretor carrega na composição de cada um destes grupos como se ao apresentar a caricatura ao invés do rigor da história, pudesse mostrá-los mais hilários e próximos da humanidade a que todos pertencem. O roteiro segue a estética dos jogos de vídeo games de seus filmes anteriores, em que os atos cruéis e violentos de uns sobre os outros são apresentados sem grandes dilemas morais, como se o que valesse fosse apenas o querer ou o não querer matar. Mas dentro desta lógica utilitária, há uma nova modalidade de jogo, um jogo de poder e de persuasão, de estratégias sádicas e sutis de torturas empregadas pelo farejador e caçador de judeus, talvez o personagem que carregue a alma do filme. Ele é o coronel nazista Hanz Landa, que desfila seu alemão, inglês, francês e italiano com perfeição e delicadeza, comparece desde as primeiras até as últimas cenas do filme sempre com um semblante amigável e se ufana por conseguir perscrutar as almas de seus perseguidos e perseguidores a seu favor. Uma crueldade silenciosa, rasteira, das mais danosas, ao não deixar dúvidas ao seu interlocutor nem sobre a impotência deste, nem sobre o seu total poder. Muitos fatos de nosso mundinho tem nos mostrado os desastres que podemos cometer quando perdemos a fé no valor dos homens e de suas leis. Começa a valer a banalidade do mal.

coluna do dia 14 de outubro de 2009

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Enem e outras histórias sobre exames

Já se vão mais de 30 anos ( e é bom que não me lembre dos números exatos) que deixei Ribeirão Preto com meu diploma de psicóloga em uma das mãos e nada na outra. Havia naquela época um certo pioneirismo dos formandos psicólogos, uma profissão recém reconhecida no Brasil, cujo mercado estava por ser aberto. Olhando com mais cuidado para o passado tenho a impressão de ter feito parte de uma geração sanduiche. Não cheguei a cursar o preparatório para a admissão ao ginásio, que justamente na minha vez, tornou-se obsoleto. Já na quinta série sonhava em escolher o Clássico para o secundário (as outras opções eram o Científico e o Normal), mas assisti, ainda na oitava série, a mudança para um colegial integrado: todos deveriam cursar um básico e somente no terceiro ano seria possível fazer escolhas de matérias optativas. Avessa às matemáticas e outras disciplinas que exigiam um raciocínio mais objetivo, tive que adiar meu projeto de dedicação exclusiva às humanidades e assistir o fim de estudos mais aprofundados nas áreas da filosofia, literatura e sociologia no ensino secundário. Química, física, biologia, matemática eram as vedetes da vez, acompanhando o boom das ciências. Muitos de meus interlocutores do antigo Clássico, eleitos meus modelos de identificação, com quem eu costumava trocar dicas de leituras de livros e de cultura em geral, chegaram a ingressar nas Ciências Sociais, cujo destino eu acalentava. Mas ainda cursando meu colegial, eis que surgem novos e estranhos “lugares” com nomes como Cecem, Cecea e Mapofei, exames vestibulares diferenciados para os que elegessem a área biológica, de humanas ou de exatas, respectivamente. Tudo tinha que ser revisto, à luz das novas opções. Começam a pipocar aqui e ali os cursos de preparação para o vestibular, em que alunos geralmente “nerds” de faculdades diversas, tornam-se professores e passam a preparar “aulas- shows” visando a despertar o interesse pela ingestão rápida e eficiente dos mais diversos conhecimentos exigidos para cada uma destas grandes áreas. Mantendo minha opção pelas humanidades passei a me preparar para fazer o vestibular do Cecea. Na inscrição, era possível eleger um primeiro e um segundo curso e, dependendo de meu desempenho na prova, ou seja, do número de pontos que eu conseguisse fazer e da minha classificação diante dos pontos conquistados pelos outros concorrentes, meu nome poderia constar na lista dos aprovados. Interiorana, este esquema acenava com uma abertura inesperada de novas opções para o meu antigo futuro nas Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara. Por que não escolher Psicologia, logo ali em Ribeirão Preto? Mais pomposo e muito mais atrativo, o estudo da psique humana me parecia um desafio que valia o deslocamento e o preço das mudanças que me esperavam. Este acesso mais fácil aos cursos das faculdades públicas estaduais era inédito, mas inaugurava um longo período em que o Vestibular tomaria um vulto assombroso, nos dois sentidos da palavra. Tanto na sua importância para os destinos profissionais dos jovens, que precisavam encarar um ano de muitos sacrifícios para driblar a concorrência, quanto na política das escolas particulares, que passaram (em sua maioria) a dirigir os conhecimentos oferecidos aos alunos, visando conquistar um lugar de respeito pelo número de aprovados nas faculdades mais disputadas. Embora polêmica e com certeza ainda engatinhando, a proposta de se utilizar os pontos obtidos na prova do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) que avalia o desempenho dos alunos durante o curso médio, como pontos decisivos para seu ingresso nas universidades, parece acenar com uma tentativa de chacoalhar a estrutura arcaica desta verdadeira indústria do vestibular. No mínimo, há um desvio para as melhorias do ensino que as escolas, tanto públicas quanto particulares, desejarão oferecer aos seus alunos, em uma era em que o conhecimento exige um entendimento que extrapola em muito as antigas fórmulas do decoreba. Talvez este desvio possa ampliar o debate, em geral parcimonioso, sobre a cada vez mais complexa rede de profissões que o nosso mundo global oferece.

coluna do dia 7 de outubro de 2009

domingo, 4 de outubro de 2009

As razões humanas

Dizem que os romances costumam preencher os espaços desérticos ou conflituosos de nossa vida cotidiana e por isso continuariam a angariar um grande número de leitores (ou espectadores) espalhados por este mundo afora. Alguns porque oferecem histórias que se encaixam aos anseios e dores que vivemos naquele momento, outros porque promovem um sentimento de esperança ou de aventura ao colorir a vida e renovar as apostas que fazemos em nós mesmos ou no mundo. Quem sabe este adjetivo que tanto prezamos, o romântico, seja na verdade uma invenção humana que guardaria um lugar para nossa imaginação, para as fantasias e desejos que podem nos transportar a mundos e vidas fictícias, sem que nos fosse necessário buscar grandes razões para isso. Algo que cobriria as verdades nuas e cruas ou a realidade áspera de nossas vidas e de nossas infinitas responsabilidades. Pelo romance, podemos viver amores, grandes paixões em que somos finalmente pessoas especiais e reverenciadas, mas também imaginar nossa força destrutiva, vingando-nos dos que nos desprezam, nos molestam ou nos excluem. Na verdade, esta dimensão romântica de nossa humanidade insiste, também porque vivemos a era da razão, em que somos chamados a responder permanentemente à nossa capacidade de discernir nossas boas e más condutas, escolhas ou idéias. Mas desde que o mundo passou a ser uma vitrine em que todos os seus habitantes assistem os acontecimentos em tempo e imagem real, aconteceu o inevitável: não podemos mais acreditar que somos ou já fomos razoáveis e coerentes “naturalmente”. O bom uso da razão depende de um processo longo e de um complexo funcionamento de nossa psique, que precisa crer no valor desta razão, ou seja, aceitar o preço das renúncias e dos sacrifícios que ela nos impõe e o difícil empenho em viver com as diferenças e com as injustiças sem desistir de encontrar um destino possível e aceitável para tais conflitos. O recente bafafá em torno da censura de nossa imprensa imposta por certas estratégias políticas é um exemplo interessante e denunciador não só do panorama sócio-político em que vivemos mas dos comportamentos nada “razoáveis” dos políticos que nos representam, que sem se sentirem constrangidos e em plena era da livre informação, tentam impedir que as notícias sobre as suas falcatruas e militâncias em causa própria, cheguem a público. Já o presidente da Venezuela, que desde que surgiu na cena política anunciou seu desejo de ser imortalizado como Fidel II, concedeu a si próprio o direito de não ser razoável em suas medidas de imposição de silêncio à imprensa nacional e à liberdade de expressão de seu povo. Na Argentina, seu jornal de maior circulação foi invadido por “tropas” de fiscais do governo,em uma clara intenção de constranger a publicação das não tão boas notícias sobre o casal presidente. Se a razão impõe a todos um saber sobre o certo e o errado através dos valores que são compartilhados pela comunidade, ser razoável depende de um esforço e um investimento permanente na atribuição de valor ao nosso semelhante, seja ele quem for. As decisões e ações destes políticos contrariam o razoável e contribuem para mostrar que aqueles que elegemos para nos representar em nossos interesses (assim como nós) não estão imunes aos anseios humanos de poder ou aos de se evitar os tributos morais e a submissão às leis e aos códigos que deveriam regular, ainda que razoavelmente, nossas vidas em comum. Quem sabe fazem parte das “razões” que nossa própria razão desconhece.

coluna do dia 30 de setembro de 2009