segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Dezembrite

Dezembro é um mês que concentra um número infinito de providencias, trabalhos e eventos a serem cumpridos dentro do curto prazo que antecede as festas do final do ano. E mesmo que já saibamos e tentemos antecipar algumas destas “obrigações” é quase impossível não sermos atropelados pelo seu excesso. São grandes e pequenas confraternizações dos diferentes grupos a que pertencemos, pequenos mimos aos que nos fornecem serviços durante o ano, presentes para os mais chegados, planejamento de ceias/almoços junto aos familiares ou de férias quando acontecem nesta época e tudo isso em paralelo aos “fechamentos” e balanços de nossas atividades sejam elas quais forem. A febre do final de ano ainda promove um corre-corre de multidões às lojas e shoppings da cidade e passeios aos pontos mais enfeitados para a ocasião, o que em geral torna o trânsito das cidades mais lento e caótico. Ao lado deste movimento intenso em torno do cumprimento das agendas de cada um, mantém-se uma tradição entre algumas empresas, famílias e indivíduos, de doações em dinheiro, alimentos ou presentes a certas instituições que se dedicam a abrigar crianças ou adultos órfãos, com câncer, com AIDS, deficientes, idosos. Mesmo sendo uma tradição enraizada em nossa cultura é curioso que se concentre nos finais de ano este movimento de doações aos mais necessitados, seja em forma de contribuições ou ainda em oferta de serviços, lazer,visitas, aparentemente de forma desinteressada, sem contrapartida. Embora pareça simples, é sempre complexo invocar o sentido desta economia de doações, trocas e retribuições que permeiam as nossas relações. Poucos contestariam, por exemplo, que as doações ou gestos de solidariedade sempre rendem ao seu portador um ganho, seja em satisfação pessoal e íntima ou em um reconhecimento social, de poder ou de status. Neste sentido elas poderiam apenas confirmar, de forma cética, um regime de domínio de uns sobre outros. Por outro lado as celebrações de fim de ano fazem ecoar nossas heranças religiosas na forma de leis divinas cujas inscrições indicam uma série de “obrigações”, renúncias e sacrifícios no empenho infinito de administrar e organizar nossa vida social. “Não matarás”, “Não roubarás”, “Não desejarás a mulher do próximo”, “Amarás ao próximo como a ti mesmo”, “Não cobiçarás as coisas alheias” são algumas das restrições a que todos devem se submeter, algo como passes para garantir um lugar no “paraíso”. Na verdade, em forma de leis, costumes ou crenças, estamos falando da fundação da cultura humana que precisa reiterar esta passagem (sempre delicada) de nossa porção animal sendo civilizada pela necessidade de convivermos, sempre a nos lembrar a fronteira com um regime de pura violência, de uso bárbaro da força e do poder, do “ou eu ou ele”. Só participamos destas trocas quando tememos tal “natureza” e aceitamos nossos pactos civilizatórios. Se isto nos coloca em um constante conflito entre ser e dever ser, é como cada um “constrói” de forma permanente sua humanidade, ou seja, um “poder ser”, que fará a diferença. De certa forma é salutar que possamos nos lembrar que somos seres de passagem, que vamos morrer ,que somos inacabados, porque assim podemos (com)partilhar os sentimentos de desamparo, talvez o que nos permite dar importância à solidariedade contra a precariedade e insuficiência de todos. Nesta tarefa infinita de inventarmos novas maneiras de viver nossos limites é que reiteramos o papel do amor: não o amor ansioso de uma fusão para impedir a sensação de brechas, mas o que nos faz sentir orgulho de nossa (com)paixão pelos outros. Nada mais alentador para o “fim” do ano, tempo de semear a esperança de um começo/recomeço deste círculo sem fim de “viver.com”.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O melhor dos tempos, o pior dos tempos

Parece que estamos sempre revisitando o passado - seja o nosso ou da historia da humanidade- e assim seguimos (re)avaliando certos fatos, reverenciando ou não personagens importantes, analisando criticamente certas paixões,renovando-as, etc. Algumas semanas atrás Paul McCartney esteve em São Paulo ao mesmo tempo em que algumas salas de cinema da cidade exibiam o filme “O garoto de Liverpool” sobre a vida do adolescente John Lennon. Não fui ao show, mas pude acompanhar o clima de emoção das mais diversas gerações que ali foram para cantar e ouvir as canções que uma parcela significativa do globo terrestre conhece. Muitos celulares emocionados gravaram os momentos mais tocantes para compartilhar no YouTube ou no Facebook. Tal como uma lenda viva, Paul parece não desprezar este culto a algo que o transcende e sabe que o público reconhece nele uma parte de sua própria historia. Os Beatles sintetizaram como poucos o espírito de uma das mais fascinantes e controversas épocas de todos os tempos e sua discografia capta estes anseios e sonhos, os medos e o ódio, a loucura e as drogas, a vida e a morte. Por isso, assistir ao filme de um adolescente comum que vive em uma pacata (e ainda desconhecida) cidade portuária da Inglaterra nos anos 50, pode nos informar um pouco sobre a eminência da erupção deste movimento de contracultura global. A geração dos jovens nascidos no pós guerra dos anos 40 tinha que assimilar os ecos desta devastação, já que a guerra é aquele período entre parêntesis, em que valores, preceitos, regras de condutas e sonhos são colocados de pernas para o ar. Findo o tormento da “tempestade” é comum que se tente fazer um retorno ao passado tranqüilo em que tudo parecia ter um lugar certo para estar ou acontecer. Todos os desvios, os amores escusos e os pecados vividos durante o fatídico período se tornam feridas abertas que só podem sangrar no silencio. Este é o clima que perpassa o filme sobre a vida de John. Aos 16 anos ele tenta quebrar (com alguma irreverência) as regras zelosas e austeras de sua contida tia Mimi, ganhando muitas vezes a aliança disfarçada de seu tio George que o brinda aqui e ali com alguns mimos. Por decreto de Mimi na casa destes pais “postiços” o rádio só transmite música clássica. Mas George o presenteia com uma gaita, assim como o ajuda a instalar uma caixa de som em seu quarto que lhe permita ouvir faixas mais divertidas do rádio. Separado desde a infância de sua mãe Julia- irmã de Mimi -, John parece saber pouco sobre seu (silenciado) passado embora este o assombre em seus pesadelos. Será na morte inesperada e dolorosa de tio George que ele irá revê-la, passará a tentar conhecê-la e enfrentará as dores de “saber” mais sobre ela e sua própria historia. Uma historia de amores/ódios, ciúme/vingança, dores/sonhos enterrados- como muitas- mas principalmente a historia de uma época que começa a questionar seus valores, prestes a virarem do avesso, já que o prazo de validade de seus sentidos já estava vencido. Esta Julia mais mundana, mais sexy e irreverente, que sabe tocar banjo, adora dançar, é fã de jazz, blues e rock lhe injetará o vírus do espírito da época e lhe apresentará aquele que ele desejará “ser”: Elvis Presley. Em alguns outros lugares do planeta também nascia uma nova era em que a música passava a ter este efeito de reunir multidões e transmitir de forma instantânea, certas ideias e prazeres compartilhados por muitos e muitos jovens.
Para conferir: O garoto de Liverpool (2009)
título original: Nowhere Boy
direção: Sam Taylor-Wood

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Vampiros e bruxos

Dizem que a turma dos “vampiros” não se bica com a turma dos “bruxos”, ou seja, que os fãs da saga “Crepúsculo” consideram-se de uma tribo diferente daqueles que curtem Harry Potter. Com certeza isso não se aplica a todos, mas de qualquer maneira ambas as tribos mostram facetas importantes sobre os jovens atuais e dão algumas pistas sobre seus dilemas. O mundo “paralelo” e mágico de Harry Potter, aquele que transpõe a realidade do cotidiano, nos mostra a dimensão do grande acervo dos símbolos construídos pela humanidade na sua eterna e árdua tarefa de questionar os caminhos e ações de cada um rumo a uma vida digna. Filho de dois bruxos poderosos e do “bem”, assassinados por Lorde Voldemort, do “mal”, o órfão Harry é criado por parentes não-bruxos e quando completa 11 anos recebe o convite para estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Mais ou menos como se a partir dali ele pudesse passar a “construir” seu lado humano (crenças, ideais, ética) analisando seu legado (a herança simbólica deixada pelos seus pais, suas ideias, escolhas morais, ações) para definir seu lugar no mundo. Enquanto ele é pequeno e inseguro sente-se protegido por esta herança viva dos pais que serve de guia para seu percurso. Na medida em que cresce, seus heróis podem decepcioná-lo e a vida adulta passa a acenar-lhe com aquilo que todos temos que nos deparar um dia: ele está por sua própria conta. Dali para frente terá que decidir sobre seu futuro, sua vida amorosa e profissional. A saga Crepúsculo tem pretensões mais leves. Ela já nasce no despertar da sexualidade dos pré-adolescentes e, portanto anuncia a abertura de um mundo de desejos, impulsos e fantasias em torno do “uso” do outro como par sexual e todas as incertezas, medos e sentimentos contraditórios das águas tumultuadas da sexualidade e da vida amorosa humana. Mas não é por acaso que ambas as sagas criaram uma infinidade de fãs mundo afora. Elas captam o espírito desta geração de jovens frutos de um mundo globalizado, diversificado, que exige rapidez, conhecimento técnico, informação, mas que os deixa desamparado e desassistido de valores de conduta ou de um autoconhecimento. Por isso muitos gostam de um mundo em que os bruxos precisam ser éticos e respeitar o outro e os vampiros têm vergonha da “avidez” e da violência de seu desejo. A mídia contemporânea vem dedicando um espaço importante sobre a necessidade de “mais ética” nas relações humanas, na política, na ciência, nas empresas. Ao contrário de outras “juventudes”, esta já nasceu em um mundo supostamente mais “justo”. A escravidão (uma tradição que acreditava em hierarquias entre os povos) é universalmente repudiada e mesmo que seja praticada, todos sabem que a liberdade alheia deveria ser respeitada. Mas se a liberdade e o respeito à diferença podem ser considerados valores importantes deste nosso tempo, a verdade é que a liberdade humana é relativa e condicionada à aceitação de limites imprescindíveis à convivência. Precisamos não só aceitar agir de acordo com normas socialmente impostas, mas ser capaz de avaliarmos nossas ações e as dos outros do ponto de vista moral. Nunca estamos livres do ódio, da aversão ou da discriminação produzidos por nossa intolerância, que nos “autoriza” a desrespeitar e agredir o diferente. Mas se odiar é um fato humano, desfrutar deste ódio com uma certa satisfação não é a mesma coisa. A possibilidade de ultrapassar esta fronteira, como fez o grupo de jovens que atacou gratuitamente os gays na semana passada em São Paulo, pede uma repercussão e um debate muito bem-vindo. A geração “harrypúsculo” clama por estes valores.