A vida sexual dos casais
na atualidade
Boa noite a todos, estou
bastante feliz e grata por ter sido convidada pela minha colega e querida amiga
Lisete Weismann para esse debate tão interessante. Também quero agradecer ao
CEP por essa oportunidade. Gostaria de me apresentar, sou psicanalista, membro
do Departamento de Psicanálise do Sedes Sapientiae, instituição na qual faço
parte da equipe editorial da Revista Percurso, do Blog do Departamento, do
Grupo Generidades e do Grupo Intervenção e pesquisa clínica da Gestação e da
primeira infância. Imagino que minha amiga Lisete tenha me convidado para ser
uma das debatedoras, porque em 2006 defendi minha tese de mestrado com o tema
Reflexões sobre a manutenção do ideal de amor romântico na atualidade: um
estudo sobre a fidelidade conjugal, tema que em 2009 foi transformado no livro
Amor e fidelidade. Na ocasião em que o tema foi pensado para minha pesquisa, um
livro em especial, lançado em 1998 pelo psicanalista Jurandir Freire Costa e
intitulado Nem fraude nem favor: reflexões sobre o amor romântico, foi decisivo
para que eu me lançasse nesse universo cultural ao mesmo tempo banal, como o
amor, o sexo, o casamento, mas tão fundamental e complexo, como fui percebendo
à medida em que minhas leituras mostravam o caráter histórico das crenças e
costumes que os sustentam. Havia lido uma entrevista em que Jurandir, por
ocasião do lançamento de seu livro, relatava que sua pesquisa sobre a história
do amor romântico teria sido pensada a partir do resultado de uma pesquisa feita
sob sua supervisão no Instituto Social da UERJ, sobre a opinião de adolescentes
a respeito de questões que rondavam suas vidas sexuais. Para sua surpresa, embora
a sexualidade apresentasse mudanças principalmente de ordem morais, ela parecia
não ser um impasse para a satisfação amorosa daqueles jovens. Já o amor estava
no topo das expectativas de ambos os sexos produzindo um discurso de descrença
e desilusão. Minha tese buscava as razões pelas quais ainda perseguíamos o amor
romântico e apontava as consequências desta insistência. Éramos reféns desta aposta
no amor ao buscarmos sermos únicos, amados e especiais para alguém. Se houvera
um tempo em que a criação de deuses e mitos ofereceu alguma proteção à nossa
fragilidade diante de nossa finitude ou respondeu aos enigmas de nossa
existência, agora era o amor que nos proporcionava um significado às nossas vidas,
e nos oferecia um lugar em que solicitávamos do outro que nos respondesse sobre
nossa importância. Passados quase 20 anos, fica mais evidente
constatar o caráter histórico das balizas que sustentam nossas vidas, principalmente
de nossas relações psicossociossexoafetivas. Nossa subjetividade não é universal nem
prévia, o que nos convida como psicanalistas, a ter que analisar os mecanismos
de sua construção dentro de cada época, se quisermos saber sobre a constituição
dos estilos de existência, das transformações dos nossos modos de viver juntos,
das estruturas sociais que nos sustentam e das relações de poder que nos
dominam. Assim, ao ser convidada a falar sobre a sexualidade dos casais, pensei
que poderíamos questionar de que sexualidade e de que casais falamos. Acho que estamos
vivendo um momento cultural diverso, talvez uma mudança civilizatória
importante. Fica mais fácil hoje para nós, reavaliarmos o amor romântico como uma
ficção necessária, historicamente construída, que se por um lado embelezava e
dignificava a experiência amorosa, justificando-a por sua dimensão passional,
por outro alimentava expectativas e idealizações sobre os vínculos amorosos, em
um projeto tão elevado, que nos tornava presa fácil das decepções. Sua
proposta de que um laço amoroso intenso, com um único parceiro e foco central e
exclusivo de todo o desejo, pudesse sustentar uma ligação conjugal eterna com
funções afetivas tão diversas como: a satisfação erótica; o sentimento de amar
e ser amado ternamente; estabilidade, parceria, cumplicidade e fidelidade;
constituição de um ambiente saudável para o cuidado e a educação dos filhos
etc., não tardou a se mostrar um terreno propício para as frustações e
decepções. Além disso, havia o fato inequívoco de que nossa sexualidade questiona
e ultrapassa o campo do amor, da ternura e da satisfação, seja esta a dois ou
não.
De algumas décadas para
cá, os reposicionamentos sociais e a redefinições dos papéis sexuais,
repercutiram de forma decisiva nas relações humanas, que hoje não se restringem
mais ao binômio homem/mulher, ao contrário, se ampliam para gêneros diversos. Também
assistimos uma mudança importante nas relações amorosas entre os jovens, que
começaram a ver e a viver sua sexualidade de forma mais aberta. A liberdade
sexual que hoje usufruímos, incentiva a busca e não condena o prazer físico.
Estamos mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos
corpos. Essa
nova ética da sexualidade muda a paisagem social. Amor e sexo estão separados,
ainda que possam compor várias melodias. O enigmático se desloca de nossa
sexualidade para nossos desejos. O ficar, prática que se consolidou entre os
adolescentes, permeia as relações de todas as idades, e abre um espaço
inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam
compromissos futuros e em que predomina a sensorialidade. Alguns casais admitem
um relacionamento aberto, arriscando-se a gerenciar suas consequências para
suas vidas amorosas e sexuais. É certo que ao radicalizar nossa autonomia e
nossa liberdade para escolher e viver nossa vida amorosa, desconstruindo
antigos códigos e referências, aumentamos nossas incertezas e desconfortos. A
pluralidade dos códigos de convivência nos coloca em contínuos conflitos a
serem administrados para que possamos validar a diversidade de nossas opções. No
terreno do amor e do sexo, não há como expurgar a contingência, a ambiguidade e
a dúvida. São custos a serem incluídos. O sucesso que ansiamos de nossa vida
amorosa depende necessariamente de um investimento infinito das partes
envolvidas, mas principalmente da possibilidade de cada uma destas partes
atribuir ao outro uma individualidade (ou alteridade) a ser respeitada. O que
mantém este anseio é o fato de se considerar a vida amorosa ou conjugal como um
dos poucos espaços que empresta a cada um o sentimento de pertencimento, de não
se estar só, de poder dar um sentido para a vida e para a morte. Através deste
contrato, sempre em aberto para os infinitos ajustes, é possível temperar a
existência com pitadas de fantasias e transformar a banalidade do cotidiano em
um teatro de magias. Estamos no plano das trocas sexuais. A vida a dois também
pode incentivar a invenção de novas maneiras de ser, mais próximas do que
imaginamos do que queremos ou do que o outro quer que sejamos, ou ainda nos
fazer apostar que podemos ser melhores, mais amáveis, mais leves. Nossas dores
e temores ficam na pendência da confiança que conseguimos ou não obter sobre
nossas potencialidades. (Costumo brincar que trocamos a culpa pela
responsabilidade) São tempos de individualidades e cabe a cada um tomar conta
de seu destino.
Ao relativizar a
diferença biológica dos sexos e focalizar as identidades sexuais ou gêneros,
multiplicamos as diferenças sociais e identitárias. Os movimentos sociais que
ganharam espaço social e aumentaram sua visibilidade através da internet não só
questionam o modelo binário (feminino/masculino, hetero/homossexualidade, sexo/
gênero) e seu discurso de poder, como dão visibilidade às transexualidades e a violência
e segregação a que estão sempre submetidas. Quer queiramos ou não, vivemos em
uma época pós-identitária e essas novas identidades aguardam seu reconhecimento.
A nós psicanalistas, é
pedido que no lugar da diferença dos sexos, concentremo-nos no sexual
como
potência intensiva, perverso-polimorfa, fora de qualquer estruturação prévia
pelo dispositivo diferença sexual e aberto a todo tipo de identidade erótica,
do qual o sexuado procede, e não o contrário.
A instigante proposta
deste debate em questionar a vida sexual dos casais me levou a revisitar minha
clínica. Em geral, a sexualidade dos casais comparece na clínica seguindo
alguns padrões, seja na frequência em que o sexo é realizado, na disparidade
dos desejos, da importância do sexo na vida de cada um, na ausência total de
vida sexual, ou em alguma mudança significativa na disponibilidade de um dos
cônjuges para a vida sexual do casal. Ou seja, como a clínica psicanalítica é a
escuta privilegiada dos tropeços, lapsos, associações, silenciamentos, ou dos
sofrimentos que se repetem na tristeza, culpa, violência, medo, vergonha, a
vida sexual dos casais comparece ou não, na pendência destas frestas. No
entanto, de maneira geral, embora a sexualidade na atualidade mantenha sua
relação com o erotismo e as fantasias sempre singulares, ela ganhou publicidade
há décadas. Na ponta dos dedos de qualquer um está o acesso a todos os seus
produtos, história e cenários. De certa forma, assim como o resultado da
pesquisa da UERJ sobre a vida sexual dos jovens, não pareceu ser algo que lhes
impedissem de vive-la, ao contrário da possibilidade de manter uma relação
amorosa, penso que o grande desafio da cultura atual é a convivência e todas as
decorrências e custos que cada um tem que assumir para possibilitá-la.
Enquanto eu escrevia
essas linhas, tentando me lembrar de cenas de atendimentos de casais, não pude
deixar de pensar neste grande capítulo de nossa história recente, a pandemia. O
confinamento de todos nós produziu um enorme campo de aflições humanas. Muitos
casais precisaram rever seus contratos de convivência, nas áreas mais diversas,
e com certeza também em suas vidas sexuais.
Muito obrigada pela
atenção
Texto apresentado no Debate realizado no Centro de Estudos de Psicanálise (CEP) em julho de 2022