A Paixão e o Amor
Gisela Haddad
Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
Eduardo e Monica, Renato Russo
São inúmeras as produções culturais que alimentam
a idéia de que a vida não tem sentido se não encontramos nosso par amoroso, por
isso, na cultura atual, as escolhas
amorosas habitam o centro nervoso da relação de cada um com seus eleitos e
todos valorizam esta busca e suas questões. Mas como nos apaixonamos? O que faz
com que nos sintamos atraídos amorosa e sexualmente por alguém? Como se explica
que quando menos esperamos alguém nos leve a experimentar uma aceleração de
nossos batimentos cardíacos, um suar frio, às vezes um rubor ou uma inesperada
inibição?
Em geral, quando o amor bate à
nossa porta sem avisar e sua presença se impõe prescindindo de definições ou
apresentações prévias estamos diante da paixão.
Considerada o auge do sentimento de amor, na paixão a fronteira entre nós e
este outro ameaça desaparecer e contra
todas as provas de nossos sentidos, declaramos que somos praticamente um só,
fazendo disso um fato. A verdade é que a
experiência da paixão é a de um amor
ideal em que colocamos nosso eleito no lugar de nosso próprio eu idealizado
e não mais podemos distinguir ele de nós
mesmos. Apagam-se as diferenças e tem-se a sensação de nada faltar. Toda
escolha apaixonada de alguém para amar revela essa captura narcísica inconsciente,ou seja vemos no outro o
que somos, o que fomos ou o que gostaríamos
de ser ou possuir. É assim que imaginamos estar diante daquela pessoa perfeita
que faz nosso coração pular de alegria e ficar descompassado de amor. O
amor-paixão busca esta complementaridade; amamos para ser amados.
A maioria dos
encontros amorosos partilha deste momento amoroso idealizado da paixão.
Espera-se, no entanto que aos poucos possa surgir uma relação menos fusional, quando
então deverá haver um reconhecimento de cada um
como diferente do outro. Esta pode ser uma diferença entre a paixão e o amor.
Os neurocientistas
estabeleceram um tempo de duração da paixão, esta magia do amor, normalmente
entre 12 e 18 meses, mas embora seja possível através destas pesquisas
verificar as alterações físicas e orgânicas desencadeadas neste período de
paixão ou na desilusão que ela pode gerar, os grandes mistérios do amor
continuam a surpreender-nos. Temos
sempre a sensação de que no amor nada está escrito por antecipação, e que seu
encontro, ao contrário do espermatozóide e do óvulo, não pode ser programado,
assim como não depende dos genes.
E
quando estamos vivendo a paixão não
só temos a convicção de que o outro pode sanar a nossa falta como a de que nós
temos aquilo que lhe falta. Imaginamo-nos capaz de oferecer todo o prazer ao nosso
par sem jamais sermos fonte de sofrimento o que cria uma dependência passional.
Um é necessário e vital para a sobrevivência do outro, não há possibilidade de
se pensar ou desejar algo que não seja voltado para o outro, as divergências
são ameaçadoras e a exigência de exclusividade é exorbitante. Vivemos tal e
qual uma relação aditiva e alienada.
Na
experiência do amor, embora nosso eleito
possa ter sido idealmente escolhido, ele precisará se tornar um depositário
privilegiado e não exclusivo de nossas demandas de prazer. Cada um precisa ter um
mesmo poder de prazer e de sofrimento, o que limita a dependência de um e outro
e possibilita certa autonomia dos investimentos que cada um precisa preservar.
Podemos aceitar não sermos o único a habitar o desejo de nosso eleito, dar a
ele o que não temos ou receber o que não pedimos. O que está em jogo, um em
relação ao outro, é uma esperança de satisfação.
A possibilidade
de “transformar” a vivencia da paixão na experiência do amor não está garantida
antecipadamente e exige um “trabalho psíquico”; esta passagem pode não se dar e
mesmo que isto aconteça nada garante que permaneça ou que seja para ambos os
parceiros. Vejamos as razões.
As escolhas amorosas
Nem sempre
sabemos quem são aqueles que irão despertar em nós os rumores ensurdecedores da paixão. É que cada
um escolhe seu parceiro em função de suas experiências de vida, suas marcas de
prazer e de desprazer, seus modos de sentir o outro ou de interpretar a busca
de prazer na vida. Nossa biografia amorosa contém a memória de nosso corpo
erotizado, assim como as maneiras singulares de desejar reconhecimento e amor
do outro. Na grande parte do tempo essa escolha amorosa se dá de forma inconsciente
o que impede que os parceiros conheçam de verdade as motivações de sua escolha.
Estamos
sempre buscando em nossas escolhas amorosas as condições infantis de amar, ou
seja, tentando reconhecer no outro os traços de nossas relações com nossos pais
ou traços que o erotizam, seguindo nossas marcas (registros inconscientes) de
prazer. Pode tanto ser um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem
para cada um de nós uma função determinante em nossa escolha amorosa. Mas
escapa totalmente às neurociências, por ser próprio de cada um e ter a ver com nossa
história singular e íntima, sempre atravessada por nossas fantasias e pelos
ideais que nosso eleito representa como veículo de satisfação.
Uma história que
começa quando somos bebê e ainda não podemos separar o que é nosso e do outro,
quando dependemos dos cuidados dos adultos (e recebemos tanto o seu amor,
quanto seu ódio, desejos, angústias) em geral de forma excessiva e sem
possibilidades de adquirir sentido. Neste momento o olhar deste adulto é de
extrema importância para podermos ter uma
imagem de nós mesmos. À medida que conseguimos nos distinguir, passamos a
ansiar o amor deste outro e vivenciar momentos de submetimento e de insurgência
em relação a ele. No percurso em direção ao mundo extra familiar ainda precisamos
passar pelas disputas (principalmente com nossos irmãos) na tentativa frustrada
de reaver o amor incondicional que
supomos ter existido, e que nos dará a chance de ter que reconhecer que há
outros entre nós e nossa imagem, dor necessária tanto para que ansiemos menos avidamente o amor deste outro, como
para que possamos suportar que ele possa
ou não amar-nos.
Neste complexo percurso, cada uma das etapas delineia
diferentes formas de amar relacionadas à possibilidade ou não de
reconhecermos o outro, reconhecermos o desejo do outro e reconhecermos a
existencia de um terceiro (outros) entre nós e o outro. Aquisições que fazem
parte de um processo, de uma organização simbólica que permite a cada um de nós
fazer esta passagem de um amor primitivo
e básico em que nos imaginamos amados incondicionalmente para outro onde é
necessário contar com o risco de não ser amado ou ser amado de forma diferente
do que desejaríamos. O que complica ainda mais é que mesmo tendo podido avançar
na direção de nossa percepção do outro, para muitos de nós, dependendo do que
certas experiencias amorosas despertam, nada impede que regridamos à modos mais
“primitivos” de nos relacionarmos.
Na
relação amorosa podemos assumir duas diferentes posições, ora como o amado, ocupando o lugar de quem é
investido pelo outro, ora como o amante,
aquele que investe. Quando somos amados, buscamos o que fomos, o que imaginamos
que perdemos ou o que gostaríamos de ter sido. Quando somos o amante seguimos o
modelo amoroso de nossos cuidadores e suas formas de amar, acolher e proteger. Raramente
estas posições existem em seu estado
puro, já que em geral ora somos o amado
ora o amante, sobressaindo um pouco mais desta ou daquela em
diferentes momentos de nossas vidas ou em uma mesma relação amorosa. Mas assim
como a maioria das pessoas transitam entre estes dois lugares, outras podem ficar
aprisionadas em um deles. Nossa capacidade de amar (parceiros, filhos, amigos) depende
de quanto e como fomos amados e do lugar que ocupamos na história de nossos
pais; se não pudemos ser amados em nossa
infância, teremos dificuldades para saber amar alguém.
De qualquer forma, existem muitas
formas de escolha amorosa, e para cada uma delas o “outro” ocupa um lugar
diferente em nossa imaginação. Podemos amar alguém pelas perfeições que
gostaríamos de adquirir, ou seja, como um meio de nos sentirmos melhores do que
somos. Mas esta escolha pode nos cegar e consumir, ao nos sentirmos cada vez
“menos” e nosso eleito cada vez mais perfeito, por não podermos deixar de
idealizá-lo. Este tipo de relação tanto pode chegar a um extremo em que o nosso
fascínio nos impele a nos submetermos totalmente a este outro, ou ao contrário,
enriquecer-nos com o que consideramos serem as “perfeições” de nosso eleito, ao
incorporamos algumas delas. Tanto a literatura quanto o cinema exploraram e
continuam a nos fornecer repertórios desta diversidade de tons responsáveis por
nossas idas e vindas amorosas. O filme Closer (2004) do diretor Mike Nichols oferece
esta oportunidade ao apresentar tal como um caleidoscópio, a formação,
dissolução e troca de pares entre quatro
personagens (dois homens -Dan e Larry e duas mulheres – Alice e Anna) mostrando
os diferentes modos com que cada um dos personagens se posiciona tanto em
relação ao seu desejo de amor pelo outro quanto às suas expectativas em relação
ao amor deste outro, delineando alguns traços de condição de escolha amorosa e
a dança das cadeiras das diferentes posições ( amado-amante) que cada um assume. E claro, não deixa de fora o
lado mais sombrio destas relações, o das disputas, rivalidades, ódio, desprezo,
vingança, ressentimento, ou seja, das dores.