sexta-feira, 6 de março de 2020


Da maternidade à maternagem: o lugar do social


                                                            
Gisela Haddad

Gravidez e gestação, maternidade e maternagem, palavras que podem ser utilizadas às vezes como sinônimos, mas que podem e devem adquirir nuance que as diferencie, quando atendemos uma futura mamãe ou uma mulher que acabou de se tornar mãe utilizando-nos de uma escuta psicanalítica. Aqui podemos encontrar inúmeras modulações na discriminação destes pares de palavras.
Apresentarei a seguir algumas reflexões a respeito do atendimento de uma mãe novata que se sentiu atropelada pelo que ela mesma nomeou de depressão pós-parto. Neguinha, apelido familiar carinhoso de Rosicler, chega para a primeira consulta com Gustavo, seu bebê de três meses e meio, que chama a atenção pela vivacidade do olhar. Um olhar que convoca a quase todos por onde passa a emitir um manhês, ao qual ele prontamente responde encarando ou sorrindo. Acompanha-os o aparato característico de mães que cuidam de seu bebezinho. Gustavo não só está impecavelmente vestido, como recebe o tempo todo o olhar atento de Neguinha. No caminho até a sala os elogios a Gugu (como ela o chama) deixam-na orgulhosa. Por isso a cena seguinte, em que ela se desmancha em lágrimas doídas e conta sobre sua “depressão pós-parto” me causa, entre outras coisas, um estranhamento. Aos poucos fico sabendo detalhes de sua vida, não muito diferentes em alguns pontos de outras pessoas daquela comunidade, vinda que é de uma cidade da Paraíba, onde ainda reside sua mãe. Recém-chegada a São Paulo trabalhou como babá em uma casa no Morumbi por longos oito anos, morando na casa da patroa. Um trabalho que aos poucos vou percebendo ter sido de grande valor em sua vida. A patroa, mãe dos dois meninos que ela ajudou a criar, elegeu-a como substituta e alçou-a a um posto de responsabilidade na casa. Cabia a ela decidir sobre muitas coisas, desde a hora de dormir, o que e quando comer até manter as regras da casa e das condutas dos meninos. Neste período, sempre responsável, Neguinha havia juntado dinheiro para casar com seu namorado, equipar sua casa e sonhar com seu próprio bebê. Acostumados a planejar e a realizar os sonhos, ela e seu marido, ao “engravidarem”, já contavam com um período relativamente longo em que Neguinha ficaria afastada do trabalho. Era desejo dela que todo o processo até a maternidade pudesse ser perfeito. Sentia-se preparada para isso e a experiência de maternagem  adquirida em sua função de babá a tranquilizava. O primeiro golpe veio com o aborto natural sofrido um ano antes de Gugu nascer. A despeito da recomendação médica que lhe propunha aguardar um tempo, quis engravidar logo a seguir, como a evitar que qualquer coisa pudesse se interpor entre ela e seu projeto de ser mãe. Com o intuito de se esmerar na preparação do parto inscreveu-se no PAG (Programa de Atenção a Gestante) do PECC (Programa Einstein de Atendimento a Comunidade de Paraisópolis) e participou do grupo de gestantes. Após o nascimento de Gugu, no entanto, sentiu-se supreendentemente desamparada. Uma força maior do que ela a derrubava e ela não conseguia sair da cama. Era o marido quem a ajudava (uma ajuda preciosa e carinhosa) e incentiva-a a dar o banho, trocar e dar de mamar ao Gugu. Como uma bola de neve, ao perceber que seu desânimo e a sensação de cansaço a impedia de sair da cama, Neguinha sentia-se cada vez mais desesperada, censurando-se e chorando o tempo todo. Passado algumas semanas do nascimento de Gugu o marido que tentava entender o seu pesar e anima-la com conversas e palavras de conforto, decidiu, sob alguns protestos de Neguinha, pedir socorro à única de suas irmãs que viera da Paraíba e residia no Rio de Janeiro. Ela prontamente veio a SP e conseguiu aos poucos que Neguinha retomasse a rotina da casa, levantando-se ao amanhecer e deitando-se a noite. Ela chora por alguns minutos ao se lembrar destes dias. Mais do que culpa seu sentimento parece ser de vergonha. Ela não pode se perdoar por não ter sido a mãe que havia sonhado ser e parece ter certeza que, tal como ela, Gugu jamais esquecerá sua negligencia. Quer entender o que se passou. Mesmo com seu lindo e vivo bebê, Neguinha chora com muita dor quando evoca aquela mãe prostrada, sem forças para curtir e cuidar de Gugu. Assim como outros transtornos, a depressão pós-parto ganhou vulto na área da saúde, com pesquisas que apontam uma porcentagem entre 10 a 15% de mulheres assim diagnosticadas. Algumas pesquisas médicas preferem destacar como fatores de risco para depressão na gravidez, as dificuldades econômicas e a falta de parceiro ou de suporte familiar e social, outras para certos desfechos obstétricos, como prematuridade, o baixo peso ao nascer, a irritabilidade do bebê, ou mesmo a mortalidade neonatal. No entanto valeria a pena questionarmos o impacto deste diagnostico para qualquer mulher que se torna mãe. O Programa de Atenção à Gestante ao qual Neguinha participou realiza um grupo educativo com uma equipe multiprofissional (enfermeiras, nutricionistas, pedagoga, psicólogas, fisioterapeutas, assistentes sociais e agentes comunitárias) em 14 encontros semanais, dos quais 12 deles são seguidos pelos “Momentos com a Psicologia”, um grupo psicoeducativo que oferece espaço para a circulação de questões concernentes à gestação e à maternidade. Foi ali que Neguinha ouviu falar de depressão pós-parto, e com imenso pesar, instalou-se nesta categoria quando Gugu nasceu. Desde o início de 2012 o Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae firmou uma parceria com o PECC, ocasião em que um pequeno grupo formado por membros deste Departamento passou a colaborar com atendimentos junto à equipe de psicólogos contratada pelo Programa. Esta equipe formada por jovens vem buscando um afinamento com a psicanalise e enfrenta com muita competência os desafios dos atendimentos da população de Paraisópolis e das exigências da instituição em relação aos seus resultados. Pela população, há uma preocupação em desenvolver um repertório no imaginário que amplie as formas de se entender e lidar com a realidade social e psíquica. Pela instituição, transformar fatos em dados que deem mais visibilidade e crédito ao trabalho feito pela equipe. Utilizar uma adaptação dos IRDS (indicadores de riscos psíquicos para o desenvolvimento) que já possuem uma inserção no setor público e algum reconhecimento na área da saúde foi uma das opções desta equipe para criar um diálogo com outras áreas e prestar contas da evolução terapêutica. Por exemplo, o brincar é anunciado como uma aquisição importante para a criança que indica que ela está evoluindo, ou fazendo deslocamentos rumo a uma autonomia subjetiva. Como o programa é voltado para a prevenção, ou para a saúde total da criança, os atendimentos dirigem-se para a população de gestantes ou de mães e bebes e oferecem grupos de planejamento familiar, de escolha consciente, de gestantes e de materno-infantil sempre com equipes multiprofissionais (pediatra, T O , fono, fisioterapeuta, assistentes sociais e psicólogos) resposáveis por triarem os casos que são encaminhados para os atendimentos individuais. Na medida do possível as equipes tentam criar estratégias de trabalho conjunto, o que permite uma troca de conhecimento entre as áreas afins que se destinam aos cuidados da primeira infância. A equipe do Sedes participa até o momento dos atendimentos individuais triados pela equipe. A população local respeita o PECC e reconhece a qualidade dos serviços e dos profissionais. Sob o ponto de vista social aqueles que usufruem deste serviço são a fatia que aposta/deseja “melhorar suas vidas e a de seus filhos”. Neguinha foi uma das primeiras mães encaminhadas a mim, quando eu ainda buscava um “modelo” de atendimento e questionava o lugar clássico, especial, hierárquico em várias dimensões do terapeuta que deve oferecer respostas ou direções à população de uma comunidade em que reina precariedades de toda ordem. Depois de algum tempo em contato  com as historias ali ouvidas, firmei um compromisso comigo mesma de repensar a métrica de meu envolvimento, da minha implicação. Quase que intuitivamente passei a reconhecer nos dramas individuais, algo da comunidade humana, colocando-me como alguém que poderia estar às voltas com as mesmas questões, dúvidas, medos e dores, como forma de ajudar a construir referencias alternativas para elas mesmas e para suas vidas. Com a minha normopatia sob vigilância ativa, tentava quebrar alguns tabus ou crenças dos dois lados, meu e delas. (Bairro do Morumbi & Favela). Criar novas e impensadas oportunidades ou soluções não deveria ficar restrito a um ganho maior de dinheiro ou à mudança de bairro, por exemplo. Tentava ampliar minha escuta incluindo o entorno social especial, e aprendendo a entender as leis que ali circulavam.
Acredito que cada geração de analistas é convocada a pensar sobre as questões típicas de sua época, com suas particularidades sociais e culturais, indissociáveis das manifestações psicológicas dos indivíduos.
Atualmente há uma presença insidiosa de categorias psiquiátricas propagandeadas pela mídia, e todos se veem confrontados com estas novas “verdades” e identificam-se com os sintomas. É interessante pensar que o diagnostico de “depressão pós-parto” que Neguinha exibia, ao mesmo tempo em que lhe dava um lugar de pertencimento e lhe ajudava a se sentir incluída entre as mulheres que também podiam enfrentar este drama, pesava-lhe na alma ao desnudar sua insuficiência e inadequação. Nos seis meses que passamos juntos, eu ela e Gugu, ao mesmo tempo em que fazia curativos em sua ferida narcísica, construía com ela, muitas vezes via Gugu, a imagem da mãe cuidadosa e amorosa que ela acreditava ter ficado chamuscada para sempre naquelas semanas. Aos poucos fomos ajustando essa imagem para que ela pudesse aceitar-se como uma mãe que,  diferente da profissão de babá, não precisava ser perfeita, talvez o passo mais difícil para ela se autorizar a pleitear sem “vergonha” tanto o direito à completude ego-narcísica quanto o perdoar-se por ser falível. Gugu ajudou muito. Ele era a prova cabal de que os bebês, guardados certos limites, podem suportar as falhas maternas sem ter que entrar em alguma categoria psicopatológica, principalmente quando estas mães, caso de Neguinha, conseguem garantir as respostas mínimas e necessárias a uma constituição subjetiva regular. Quando quis compartilhar este atendimento com meu grupo, ao tentar passar para o papel a sequencia de sessões, me deparei com um dilema. Não tinha nenhuma vontade de abordar os aspectos conhecidos na clínica psicanalítica que seguiriam o percurso da crise e do sofrimento em direção às falhas da constituição subjetiva de Neguinha ou aos percalços de sua construção da maternidade. Queria enfatizar um recorte que abrangesse aspectos psíquicos e sociais de sua vida e de seus projetos.
Na busca de alguma bibliografia psicanalítica que pudesse emprestar à vergonha algum tipo de reflexão sobre seu papel na atual conformação de nossa cultura, surpreendeu-me o livro “Sofrimentos Narcísicos” organizado por Julio Verztman, Regina Herzog, Teresa Pinheiro e Fernanda Pacheco-Ferreira, fruto de um projeto de pesquisa desenvolvido durante 10 anos no NEPECC, um núcleo integrado por professores e pesquisadores do Rio de Janeiro. Com textos de vários autores, o par vergonha e perdão ganha uma reflexão importante para o trabalho de escuta do mundo atual, em que todos precisam conferir o tempo todo se são objetos de investimento de um outro, de onde decorre o paradoxo do medo da exposição ao outro e o medo de ser ignorado. Os autores recorrem à economia narcísica para explicar que na raiz do processo de envergonhamento estaria o olhar materno sem intenção de amor, ou sem possibilidade disso, o que contribuiria para que a representação imaginária se cristalizasse em torno do vazio de ideais de eu, com a consequente inconsistência do eu. Por outro lado a vergonha, que reflete a vitimização do eu pelo eu, também pode ser uma proteção para a difícil tarefa da gestão psíquica. Manter o eu na posição de traído pelo desejo do outro pode estar a serviço de evitar o trabalho de desejar. Neste caso perdoar a si mesmo significaria admitir-se passível de falhas e insuficiências e apesar disso, tocar a vida para frente.
Neguinha teve que fazer este mergulho para voltar do tamanho que dava, com Gugu não só lhe devolvendo a confiança perdida, mas apaziguando-a diante de seu medo de falhar. 

Referencias Bibliográficas
Aragão, R.O. 2010 “Tornar-se mãe do próprio filho” Curitiba, Editora Certa
Verztman, J.e al ( Orgs ), 2012 “Sofrimentos Narcísicos”, Rio de Janeiro, Cia de Freud 

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