Da maternidade à maternagem: o lugar do social
Gisela Haddad
Gravidez e
gestação, maternidade e maternagem, palavras que podem ser utilizadas às vezes
como sinônimos, mas que podem e devem adquirir nuance que as diferencie, quando
atendemos uma futura mamãe ou uma mulher que acabou de se tornar mãe
utilizando-nos de uma escuta psicanalítica. Aqui podemos encontrar inúmeras
modulações na discriminação destes pares de palavras.
Apresentarei a
seguir algumas reflexões a respeito do atendimento de uma mãe novata que se
sentiu atropelada pelo que ela mesma nomeou de depressão pós-parto. Neguinha,
apelido familiar carinhoso de Rosicler, chega para a primeira consulta com
Gustavo, seu bebê de três meses e meio, que chama a atenção pela vivacidade do
olhar. Um olhar que convoca a quase todos por onde passa a emitir um manhês, ao
qual ele prontamente responde encarando ou sorrindo. Acompanha-os o aparato
característico de mães que cuidam de seu bebezinho. Gustavo não só está
impecavelmente vestido, como recebe o tempo todo o olhar atento de Neguinha. No
caminho até a sala os elogios a Gugu (como ela o chama) deixam-na orgulhosa. Por
isso a cena seguinte, em que ela se desmancha em lágrimas doídas e conta sobre
sua “depressão pós-parto” me causa, entre outras coisas, um estranhamento. Aos
poucos fico sabendo detalhes de sua vida, não muito diferentes em alguns pontos
de outras pessoas daquela comunidade, vinda que é de uma cidade da Paraíba,
onde ainda reside sua mãe. Recém-chegada a São Paulo trabalhou como babá em uma
casa no Morumbi por longos oito anos, morando na casa da patroa. Um trabalho
que aos poucos vou percebendo ter sido de grande valor em sua vida. A patroa,
mãe dos dois meninos que ela ajudou a criar, elegeu-a como substituta e alçou-a
a um posto de responsabilidade na casa. Cabia a ela decidir sobre muitas
coisas, desde a hora de dormir, o que e quando comer até manter as regras da
casa e das condutas dos meninos. Neste período, sempre responsável, Neguinha
havia juntado dinheiro para casar com seu namorado, equipar sua casa e sonhar
com seu próprio bebê. Acostumados a planejar e a realizar os sonhos, ela e seu
marido, ao “engravidarem”, já contavam com um período relativamente longo em
que Neguinha ficaria afastada do trabalho. Era desejo dela que todo o processo
até a maternidade pudesse ser perfeito. Sentia-se preparada para isso e a
experiência de maternagem adquirida em
sua função de babá a tranquilizava. O primeiro golpe veio com o aborto natural
sofrido um ano antes de Gugu nascer. A despeito da recomendação médica que lhe
propunha aguardar um tempo, quis engravidar logo a seguir, como a evitar que
qualquer coisa pudesse se interpor entre ela e seu projeto de ser mãe. Com o
intuito de se esmerar na preparação do parto inscreveu-se no PAG (Programa de
Atenção a Gestante) do PECC (Programa Einstein de Atendimento a Comunidade de
Paraisópolis) e participou do grupo de gestantes. Após o nascimento de Gugu, no
entanto, sentiu-se supreendentemente desamparada. Uma força maior do que ela a
derrubava e ela não conseguia sair da cama. Era o marido quem a ajudava (uma
ajuda preciosa e carinhosa) e incentiva-a a dar o banho, trocar e dar de mamar
ao Gugu. Como uma bola de neve, ao perceber que seu desânimo e a sensação de
cansaço a impedia de sair da cama, Neguinha sentia-se cada vez mais
desesperada, censurando-se e chorando o tempo todo. Passado algumas semanas do
nascimento de Gugu o marido que tentava entender o seu pesar e anima-la com
conversas e palavras de conforto, decidiu, sob alguns protestos de Neguinha,
pedir socorro à única de suas irmãs que viera da Paraíba e residia no Rio de
Janeiro. Ela prontamente veio a SP e conseguiu aos poucos que Neguinha
retomasse a rotina da casa, levantando-se ao amanhecer e deitando-se a noite. Ela
chora por alguns minutos ao se lembrar destes dias. Mais do que culpa seu
sentimento parece ser de vergonha. Ela não pode se perdoar por não ter sido a
mãe que havia sonhado ser e parece ter certeza que, tal como ela, Gugu jamais
esquecerá sua negligencia. Quer entender o que se passou. Mesmo com seu lindo e
vivo bebê, Neguinha chora com muita dor quando evoca aquela mãe prostrada, sem
forças para curtir e cuidar de Gugu. Assim como outros transtornos, a depressão
pós-parto ganhou vulto na área da saúde, com pesquisas que apontam uma
porcentagem entre 10 a 15% de mulheres assim diagnosticadas. Algumas pesquisas médicas
preferem destacar como fatores de risco para depressão na gravidez, as
dificuldades econômicas e a falta de parceiro ou de suporte familiar e social,
outras para certos desfechos obstétricos, como prematuridade, o baixo peso ao
nascer, a irritabilidade do bebê, ou mesmo a mortalidade neonatal. No entanto
valeria a pena questionarmos o impacto deste diagnostico para qualquer mulher
que se torna mãe. O Programa de Atenção à Gestante ao qual Neguinha participou realiza
um grupo educativo com uma equipe multiprofissional (enfermeiras,
nutricionistas, pedagoga, psicólogas, fisioterapeutas, assistentes sociais e
agentes comunitárias) em 14 encontros semanais, dos quais 12 deles são seguidos
pelos “Momentos com a Psicologia”, um grupo psicoeducativo que oferece espaço para
a circulação de questões concernentes à gestação e à maternidade. Foi ali que Neguinha
ouviu falar de depressão pós-parto, e com imenso pesar, instalou-se nesta
categoria quando Gugu nasceu. Desde o início de 2012 o Departamento de
Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae firmou uma parceria com o PECC,
ocasião em que um pequeno grupo formado por membros deste Departamento passou a
colaborar com atendimentos junto à equipe de psicólogos contratada pelo
Programa. Esta equipe formada por jovens vem buscando um afinamento com a
psicanalise e enfrenta com muita competência os desafios dos atendimentos da
população de Paraisópolis e das exigências da instituição em relação aos seus resultados.
Pela população, há uma preocupação em desenvolver um repertório no imaginário
que amplie as formas de se entender e lidar com a realidade social e psíquica.
Pela instituição, transformar fatos em dados que deem mais visibilidade e
crédito ao trabalho feito pela equipe. Utilizar uma adaptação dos IRDS
(indicadores de riscos psíquicos para o desenvolvimento) que já possuem uma
inserção no setor público e algum reconhecimento na área da saúde foi uma das
opções desta equipe para criar um diálogo com outras áreas e prestar contas da
evolução terapêutica. Por exemplo, o brincar é anunciado como uma aquisição
importante para a criança que indica que ela está evoluindo, ou fazendo
deslocamentos rumo a uma autonomia subjetiva. Como o programa é voltado para a
prevenção, ou para a saúde total da criança, os atendimentos dirigem-se para a
população de gestantes ou de mães e bebes e oferecem grupos de planejamento
familiar, de escolha consciente, de gestantes e de materno-infantil sempre com
equipes multiprofissionais (pediatra, T O , fono, fisioterapeuta, assistentes
sociais e psicólogos) resposáveis por triarem os casos que são encaminhados
para os atendimentos individuais. Na medida do possível as equipes tentam criar
estratégias de trabalho conjunto, o que permite uma troca de conhecimento entre
as áreas afins que se destinam aos cuidados da primeira infância. A equipe do
Sedes participa até o momento dos atendimentos individuais triados pela equipe.
A população local respeita o PECC e reconhece a qualidade dos serviços e dos
profissionais. Sob o ponto de vista social aqueles que usufruem deste serviço
são a fatia que aposta/deseja “melhorar suas vidas e a de seus filhos”. Neguinha
foi uma das primeiras mães encaminhadas a mim, quando eu ainda buscava um
“modelo” de atendimento e questionava o lugar clássico, especial, hierárquico
em várias dimensões do terapeuta que deve oferecer respostas ou direções à
população de uma comunidade em que reina precariedades de toda ordem. Depois de
algum tempo em contato com as historias ali
ouvidas, firmei um compromisso comigo mesma de repensar a métrica de meu
envolvimento, da minha implicação. Quase que intuitivamente passei a reconhecer
nos dramas individuais, algo da comunidade humana, colocando-me como alguém que
poderia estar às voltas com as mesmas questões, dúvidas, medos e dores, como forma
de ajudar a construir referencias alternativas para elas mesmas e para suas
vidas. Com a minha normopatia sob vigilância ativa, tentava quebrar alguns
tabus ou crenças dos dois lados, meu e delas. (Bairro do Morumbi & Favela).
Criar novas e impensadas oportunidades ou soluções não deveria ficar restrito a
um ganho maior de dinheiro ou à mudança de bairro, por exemplo. Tentava ampliar
minha escuta incluindo o entorno social especial, e aprendendo a entender as
leis que ali circulavam.
Acredito que cada
geração de analistas é convocada a pensar sobre as questões típicas de sua
época, com suas particularidades sociais e culturais, indissociáveis das
manifestações psicológicas dos indivíduos.
Atualmente há
uma presença insidiosa de categorias psiquiátricas propagandeadas pela mídia, e
todos se veem confrontados com estas novas “verdades” e identificam-se com os
sintomas. É interessante pensar que o diagnostico de “depressão pós-parto” que
Neguinha exibia, ao mesmo tempo em que lhe dava um lugar de pertencimento e lhe
ajudava a se sentir incluída entre as mulheres que também podiam enfrentar este
drama, pesava-lhe na alma ao desnudar sua insuficiência e inadequação. Nos seis
meses que passamos juntos, eu ela e Gugu, ao mesmo tempo em que fazia curativos
em sua ferida narcísica, construía com ela, muitas vezes via Gugu, a imagem da
mãe cuidadosa e amorosa que ela acreditava ter ficado chamuscada para sempre naquelas
semanas. Aos poucos fomos ajustando essa imagem para que ela pudesse aceitar-se
como uma mãe que, diferente da profissão
de babá, não precisava ser perfeita, talvez o passo mais difícil para ela se
autorizar a pleitear sem “vergonha” tanto o direito à completude ego-narcísica
quanto o perdoar-se por ser falível. Gugu ajudou muito. Ele era a prova cabal
de que os bebês, guardados certos limites, podem suportar as falhas maternas
sem ter que entrar em alguma categoria psicopatológica, principalmente quando
estas mães, caso de Neguinha, conseguem garantir as respostas mínimas e
necessárias a uma constituição subjetiva regular. Quando quis compartilhar este
atendimento com meu grupo, ao tentar passar para o papel a sequencia de sessões,
me deparei com um dilema. Não tinha nenhuma vontade de abordar os aspectos
conhecidos na clínica psicanalítica que seguiriam o percurso da crise e do
sofrimento em direção às falhas da constituição subjetiva de Neguinha ou aos
percalços de sua construção da maternidade. Queria enfatizar um recorte que
abrangesse aspectos psíquicos e sociais de sua vida e de seus projetos.
Na busca de
alguma bibliografia psicanalítica que pudesse emprestar à vergonha algum tipo
de reflexão sobre seu papel na atual conformação de nossa cultura, surpreendeu-me
o livro “Sofrimentos Narcísicos” organizado por Julio Verztman, Regina Herzog,
Teresa Pinheiro e Fernanda Pacheco-Ferreira, fruto de um projeto de pesquisa
desenvolvido durante 10 anos no NEPECC, um núcleo integrado por professores e
pesquisadores do Rio de Janeiro. Com textos de vários autores, o par vergonha e
perdão ganha uma reflexão importante para o trabalho de escuta do mundo atual, em
que todos precisam conferir o tempo todo se são objetos de investimento de um
outro, de onde decorre o paradoxo do medo da exposição ao outro e o medo de ser
ignorado. Os autores recorrem à economia narcísica para explicar que na raiz do
processo de envergonhamento estaria o olhar materno sem intenção de amor, ou
sem possibilidade disso, o que contribuiria para que a representação imaginária
se cristalizasse em torno do vazio de ideais de eu, com a consequente
inconsistência do eu. Por outro lado a vergonha, que reflete a vitimização do eu
pelo eu, também pode ser uma proteção para a difícil tarefa da gestão psíquica.
Manter o eu na posição de traído pelo desejo do outro pode estar a serviço de
evitar o trabalho de desejar. Neste caso perdoar a si mesmo significaria
admitir-se passível de falhas e insuficiências e apesar disso, tocar a vida
para frente.
Neguinha teve
que fazer este mergulho para voltar do tamanho que dava, com Gugu não só lhe
devolvendo a confiança perdida, mas apaziguando-a diante de seu medo de
falhar.
Referencias
Bibliográficas
Aragão, R.O. 2010
“Tornar-se mãe do próprio filho” Curitiba, Editora Certa
Verztman,
J.e al ( Orgs ), 2012 “Sofrimentos Narcísicos”, Rio de Janeiro, Cia de
Freud
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