Racismo, este estranho familiar.
Se o fenômeno de “estranhamento”, constitutivo do psiquismo
humano, pode produzir uma sensação de alívio ao psicanalista que trabalha com
patologias dos primórdios do psiquismo por balizar um resultado de movimentação
psíquica em direção à saúde mental, também pode causar-lhe repúdio se deslocar
seu olhar para certos movimentos sociais que transformam o mesmo fenômeno em
exclusão ao outro semelhante.
Dentre as várias manifestações deste fenômeno que pode ser uma das
vias de se entender o preconceito, estaria o racismo, que em nossa cultura
brasileira assume facetas particulares, e mostra que o latente existente no
“homem cordial” pode surpreender os desavisados que fazem a leitura apenas do
conteúdo manifesto.
Sérgio Buarque, que tomou o termo emprestado do escritor
Ribeiro Couto para definir uma característica típica do povo brasileiro, mostra
que essa cordialidade tem a ver com "coração", não com bondade ou
tampouco com polidez, fingimento ou hipocrisia. Tal "ética de fundo
emotivo" nos levaria a traduzir o mundo a partir dos laços primordiais
vividas no convívio familiar sem sermos atravessados pelas instituições, pelos
rituais ou pelas tradições sociais. Ou seja, a esfera dos "contratos
primários", dos laços de sangue e de coração que permeiam a vida
doméstica, forneceria o modelo de qualquer composição social entre nós.
Historicamente, veremos que a experiência da escravidão no Brasil
é responsável por várias facetas da cultura e da sociedade brasileira e, mesmo
após seu término oficial, suas marcas persistem de forma profunda. Na
arquitetura social contemporânea, a divisão entre “área de serviço” e “área
social”, insiste simbolicamente na separação entre a casa grande e a senzala.
Podemos encontrar na língua palavras e expressões como “denegrir”, “a coisa
está preta” e “passado negro”, que atestam como as atitudes racistas estão
incorporadas às estruturas sociais mesmo que inconscientemente. Negros são
abordados pela polícia em número muito maior do que os brancos e já são
considerados suspeitos à priori, não só pela polícia, mas pelo resto da
população em geral.
No livro “Brasil: Uma biografia”, Lilia Schwartz e Heloisa
Sterling mostram como aqui convivem duas realidades diversas, de um lado um
país profundamente mestiçado em suas crenças e costumes e de outro o local de
um racismo invisível e de uma hierarquia arraigada na intimidade. Um silêncio
que ajuda a desmobilizar a sociedade e “naturalizar” as desigualdades. Se no
cotidiano brasileiro paira o silenciamento das diferenças e discriminações,
sobre a nossa história é possível detectar uma tentativa de branqueamento da
população, positivada pelos próprios negros.
Neusa dos Santos ao entrevistar
pessoas negras para a sua dissertação de mestrado, compilou inúmeros relatos em
que suas famílias aconselhavam o casamento com pessoas brancas a fim de
“branquear” e “melhorar” a raça.
O velamento da discriminação esconde sua
violência e contribui para negativar a identidade do negro. Resta-lhes ansiar
ideais brancos que produzem identificações de um Ideal de Ego branco,
incompatível com seu corpo, que passa a ser um perseguidor.(Costa, 1984).
Em sua tese de doutorado Isildinha Batista Nogueira (1998) vai
além ao afirmar que a experiência de discriminação se manifesta para a criança
negra, muito antes de esta sofrer qualquer experiência social de discriminação.
A criança negra viveria uma particularidade ao reconhecer-se durante o estádio
do espelho, pois simultaneamente ao fascínio que a experiência produz, haveria
uma repulsa à imagem por não coincidir com o desejo da mãe, atravessado que
está pelo ideal de brancura. Nogueira apoia sua tese na teorização do
psicanalista Sami-Ali, para quem o horror que a criança manifesta diante do
rosto estranho, faz parte da experiência da alteridade, quando a criança se dá
conta de que há outros rostos, diferentes do rosto da mãe o que abre a
possibilidade de ela própria ter um rosto diferente do da mãe, um rosto
estranho.
É nesse processo que o sujeito se descobre como duplo, pois a imagem
de si garantida num primeiro momento pela identificação com o rosto da mãe se
vê afetada pela dimensão de alteridade, que produz para o sujeito uma perda de
si mesmo no estranho.
Um “estranhamento” que se perpetua nas relações entre domésticas e
patrões no âmbito de muitas famílias brasileiras, unidos e separados pelos
laços cordiais, que abarcam sentimentos ambíguos de forma indistinta e de
difícil formalização ou contenção. Tensão belamente retratada no
recém-lançado filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert.
Texto produzido pela equipe da seção Debate da Revista Percurso 54
Cristiane Abud Curi, Gisela Haddad, Thiago Majolo e Vera Zimmermann
Cristiane Abud Curi, Gisela Haddad, Thiago Majolo e Vera Zimmermann
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