sexta-feira, 6 de março de 2020

Racismo, este estranho familiar.


Racismo, este estranho familiar.

Se o fenômeno de “estranhamento”, constitutivo do psiquismo humano, pode produzir uma sensação de alívio ao psicanalista que trabalha com patologias dos primórdios do psiquismo por balizar um resultado de movimentação psíquica em direção à saúde mental, também pode causar-lhe repúdio se deslocar seu olhar para certos movimentos sociais que transformam o mesmo fenômeno em exclusão ao outro semelhante.
Dentre as várias manifestações deste fenômeno que pode ser uma das vias de se entender o preconceito, estaria o racismo, que em nossa cultura brasileira assume facetas particulares, e mostra que o latente existente no “homem cordial” pode surpreender os desavisados que fazem a leitura apenas do conteúdo manifesto. 
Sérgio Buarque, que tomou o termo emprestado do escritor Ribeiro Couto para definir uma característica típica do povo brasileiro, mostra que essa cordialidade tem a ver com "coração", não com bondade ou tampouco com polidez, fingimento ou hipocrisia. Tal "ética de fundo emotivo" nos levaria a traduzir o mundo a partir dos laços primordiais vividas no convívio familiar sem sermos atravessados pelas instituições, pelos rituais ou pelas tradições sociais. Ou seja, a esfera dos "contratos primários", dos laços de sangue e de coração que permeiam a vida doméstica, forneceria o modelo de qualquer composição social entre nós.
Historicamente, veremos que a experiência da escravidão no Brasil é responsável por várias facetas da cultura e da sociedade brasileira e, mesmo após seu término oficial, suas marcas persistem de forma profunda. Na arquitetura social contemporânea, a divisão entre “área de serviço” e “área social”, insiste simbolicamente na separação entre a casa grande e a senzala. Podemos encontrar na língua palavras e expressões como “denegrir”, “a coisa está preta” e “passado negro”, que atestam como as atitudes racistas estão incorporadas às estruturas sociais mesmo que inconscientemente. Negros são abordados pela polícia em número muito maior do que os brancos e já são considerados suspeitos à priori, não só pela polícia, mas pelo resto da população em geral.
No livro “Brasil: Uma biografia”, Lilia Schwartz e Heloisa Sterling mostram como aqui convivem duas realidades diversas, de um lado um país profundamente mestiçado em suas crenças e costumes e de outro o local de um racismo invisível e de uma hierarquia arraigada na intimidade. Um silêncio que ajuda a desmobilizar a sociedade e “naturalizar” as desigualdades. Se no cotidiano brasileiro paira o silenciamento das diferenças e discriminações, sobre a nossa história é possível detectar uma tentativa de branqueamento da população, positivada pelos próprios negros.
Neusa dos Santos ao entrevistar pessoas negras para a sua dissertação de mestrado, compilou inúmeros relatos em que suas famílias aconselhavam o casamento com pessoas brancas a fim de “branquear” e “melhorar” a raça. 
O velamento da discriminação esconde sua violência e contribui para negativar a identidade do negro. Resta-lhes ansiar ideais brancos que produzem identificações de um Ideal de Ego branco, incompatível com seu corpo, que passa a ser um perseguidor.(Costa, 1984).
Em sua tese de doutorado Isildinha Batista Nogueira (1998) vai além ao afirmar que a experiência de discriminação se manifesta para a criança negra, muito antes de esta sofrer qualquer experiência social de discriminação. A criança negra viveria uma particularidade ao reconhecer-se durante o estádio do espelho, pois simultaneamente ao fascínio que a experiência produz, haveria uma repulsa à imagem por não coincidir com o desejo da mãe, atravessado que está pelo ideal de brancura. Nogueira apoia sua tese na teorização do psicanalista Sami-Ali, para quem o horror que a criança manifesta diante do rosto estranho, faz parte da experiência da alteridade, quando a criança se dá conta de que há outros rostos, diferentes do rosto da mãe o que abre a possibilidade de ela própria ter um rosto diferente do da mãe, um rosto estranho. 
É nesse processo que o sujeito se descobre como duplo, pois a imagem de si garantida num primeiro momento pela identificação com o rosto da mãe se vê afetada pela dimensão de alteridade, que produz para o sujeito uma perda de si mesmo no estranho.
Um “estranhamento” que se perpetua nas relações entre domésticas e patrões no âmbito de muitas famílias brasileiras, unidos e separados pelos laços cordiais, que abarcam sentimentos ambíguos de forma indistinta e de difícil formalização ou contenção. Tensão belamente retratada no recém-lançado filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert.

Texto produzido pela equipe da seção Debate da Revista Percurso 54

Cristiane Abud Curi, Gisela Haddad, Thiago Majolo e Vera Zimmermann



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