Amor e fidelidade no século xxi
Resenha de Renata Cromberg*
Haddad, Gisela. Amor e fidelidade. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2009. 187 p.
Serás o
meu amor, serás, amor, a minha paz.
Consta no
Google, no Twitter, no face, no Tinder, no WhatsApp,
no
Instagram, no Snapchat, no Orkut, no Skype.
(Chico Buarque e Clara Buarque interpretam “Dueto”,
com um acréscimo feito em 2017 à letra original)
O livro de Gisela Haddad antecipa uma discussão
nevrálgica em tempos tecnológicos e de todas as mudanças que as redes sociais e
os novos meios de comunicação estão trazendo desde os anos 2000 no campo dos
afetos e dos comportamentos sexuais de todas as idades. Ele fala das
vicissitudes das relações entre sexo, amor e fidelidade. Sua questão central,
em torno da qual muitas espirais se abrirão, é que o amor e a fidelidade não
são verdades sagradas e eternas nem sinônimos, mas são construções culturais
que mudam ao longo da história humana.
Recentemente realizado, o
filme A vigilante do amanhã (Ghost Shelter/2017) expressa uma
distopia futura que pode tornar a dúvida freudiana – se a sexualidade ainda
permaneceria no futuro – uma afirmação plausível. No filme,
a personagem principal tem corpo sintético, escultural e belo, mas sem
orifícios. A sexualidade genital é algo remoto, aludido a um passado. Os
personagens se relacionam com muita disputa guerreira através de longas línguas
tecnológicas que sugam os cérebros uns dos outros, regressão primária oral
espantosa. De humano resta o cérebro extraído de uma moça morta cuja trajetória
de vida a heroína tenta remontar e recordar a partir de flashes e encontros,
mostrando que a necessidade de uma origem e uma história é o que ainda dá a
possibilidade de sentido e um toque final não desumano, num mundo em que a
guerra e a disputa de poder predominam.
Com uma escrita fluida e de
agradável leitura, com epígrafes de composições musicais de Chico Buarque de
Holanda, Caetano Veloso e Ed Motta, que trazem uma divertida poesia aos temas,
Haddad reflete sobre as razões da insistência do ideal mítico do amor romântico
nas uniões amorosas e sexuais no nosso imaginário cultural e em sua
insistência, mesmo na era do individualismo radical da contemporaneidade.
Entendo que esse individualismo se expressa no campo amoroso e sexual de várias
formas em uma exposição desmedida e sem controle de imagens sexuais nos meios
midiáticos, acessível a todas as idades e formas de sexualidade em todas as
manifestações possíveis: bi, hetero, trans, e nos 75 gêneros já catalogados, em
poliamor ou monogamicamente, em relações longas ou breves, nas quais a
singularidade de cada organização fantasiosa é o que rege os arranjos e acordos
sexuais.
É insólita essa persistência
porque, na própria definição de amor romântico, está implícita uma união
conjugal duradoura e exclusiva, que implica um sentimento de completude amorosa
e sexual. O objeto escolhido deve ser único e insubstituível, pois para
o sujeito do amor romântico seu objeto é permanente e exclusivo, fazendo com
que ele não tenha de sentir desejo por outro objeto, o que o torna fiel sem
necessidade de imposições externas. É mantendo-se como o único que poderá
verdadeiramente produzir uma satisfação sexual plena. A fidelidade faz parte
dessa idealização amorosa e é causa recorrente das dores de amor.
As pesquisas de Miriam Goldenberg
e Maria Luiza Heilborn, ambas de 2004, parecem confirmar à autora que a maioria
dos homens e mulheres aspira a uma relação mais duradoura com um único
parceiro. Mas, segundo as pesquisas, a relação deveria preservar a
individualidade, o respeito à privacidade e a independência financeira das duas
partes.
Gisela Haddad cerca-se de bons
companheiros no percurso de desdobramento de sua questão. Muitas leituras de
psicanalistas, filósofos, músicos e escritores. O Banquete, de
Platão, e seus sete discursos sobre os diferentes tipos de amor, aparecem como
referência-mor de literatura sobre o amor no Ocidente. Foucault ajuda a pensar
a naturalização e a normatização da sexualidade pela Igreja. Jurandir Freire
Costa, em Sem fraude nem favor (1998), aponta a naturalização
do ideal do amor romântico impedindo a percepção de que ele é produzido
culturalmente, o que o torna um ideal inalcançável. Inês Loureiro traz sua
cuidadosa e exaustiva pesquisa sobre as relações da psicanálise com o
romantismo e teorizações freudianas sobre o campo amoroso e sexual. Stendhal,
Balzac, Flaubert e Tolstói trazem as formas nas quais a literatura figurou, no
século XIX, o ideário do amor romântico.
No primeiro capítulo, Haddad
traça um panorama histórico dos caminhos do amor e da idealização romântica do
amor e sua articulação com o nascimento da psicanálise e da subjetividade
moderna. A concepção de amor moderna e ocidental é uma invenção recente e diz
respeito a uma relação exclusiva entre um homem e uma mulher que aspiram a se
unir na busca de uma completude feliz. Se a relação amorosa e o casamento
existiam desde a Antiguidade, foi no século burguês que a conjunção amor,
casamento e sexo deu origem ao amor romântico. Entre o final da Idade Média e o
começo da modernidade teria havido uma produção da intimidade subjetiva do
amor. Ao cindir de um lado o amor e de outro o amor de si e o sexo,
a Igreja Católica produziu uma literatura importante sobre a luta íntima que
cada um travava pela necessidade de renunciar aos apelos das paixões sexuais e
agressivas e aos desejos de ser amado e reconhecido por seus semelhantes a fim
de se sentir digno do amor divino. A partir das reformas cristãs propostas por
Lutero, a relação do homem com Deus passa a ser individual e não mais
hierarquicamente determinada, e ele começa a buscar a verdade dentro de si,
corroborando a produção de uma interioridade que será valorizada na
modernidade. Freud viveu o apogeu do amor romântico e é a valorização da
interioridade que fará com que a experiência amorosa ocupe um lugar
privilegiado na sua obra bem como a renúncia das paixões humanas ou a
interdição de um gozo, imprescindível enquanto base para os pactos sociais que
fundam ou mantêm as civilizações. O amor cortês valorizou a figura da mulher
através dos trovadores e a inacessibilidade idealizada da mulher foi a herança
do amor romântico nos tormentos, dores e frustrações do sujeito do amor. O
estilo romântico das produções literárias oitocentistas revelam de maneira
inédita os anseios amorosos de cada indivíduo em busca de completude,
inaugurando um novo mito do amor, cuja meta é a plenitude conseguida por meio
da união de dois corpos e duas almas. Agora o sentimento amoroso
está num patamar elevado e passa a ser visto como fonte de felicidade e destino
pessoal de homens e mulheres. A subjetividade amorosa toma um espaço central na
vida de homens e mulheres. A interioridade passa a ser alimentada em suas
fantasias humanas e ideais amorosos pela literatura romântica nascente. Aos
poucos, as mulheres passam a ser sujeitos de uma escolha amorosa. A revolução
que Freud trouxe, indo atrás dos percalços do inconsciente, exigia um confronto
com a hipocrisia da época, que impunha silêncio sobre o tema tabu da
sexualidade, enquanto reivindicava a inclusão da sexualidade na vida cotidiana.
No segundo capítulo, a autora
realiza um recenseamento histórico da fidelidade entre dois imperativos
culturais em épocas distintas: o da pressão sexual e o do gozo sexual. As
qualidades morais de lealdade, firmeza e constância nas afeições e nos
sentimentos nem sempre foram associadas à exclusividade sexual num par amoroso
e se deu apenas na Era Moderna, em que compôs uma complexa e intricada faceta
do amor romântico na constituição dos pares conjugais. Aí exclusividade sexual
passa à manutenção da família tradicional, regulando a obrigação moral da
monogamia e reinando como norma para acasalamento no mundo ocidental por
séculos. No entanto, segundo Foucault, ela já estava presente na ética dos
comportamentos do casal homem e mulher na Grécia Antiga, num casamento que
privilegiava seu objetivo de descendência, cujo ethos será
preservado pelo cristianismo. Neste momento, se a fidelidade masculina dizia
respeito a um fator de delicadeza, de uma conduta hábil e afetuosa, cujos
deslizes deveriam ser tolerados pelas mulheres, a fidelidade feminina era
delegada a um cuidado legislado pelos homens, que precisavam manter sob
controle a reprodução da espécie e, por extensão, o corpo da mulher. A autora
se aprofunda na análise das transformações ocorridas a partir da modernidade.
Os debates sobre a sexualidade feminina nos séculos XIX e XX tiveram efeitos
decisivos sobre a vida das mulheres e de homens e iriam desembocar em mudanças
importantes no casamento como célula da família burguesa, na relação entre os
sexos e no lugar da fidelidade sexual. Nos manuais sobre casamento na era
vitoriana já não se conseguia esconder a inquietação sobre o erotismo feminino
em erupção. É nesse caldeirão que surge Freud, no final do século XIX, ao
apontar que por trás da máscara cultural da vergonha, da reticência e da
frigidez paralisante, estava a sexualidade humana e em especial a feminina. A
autora aprofunda-se então nas considerações sobre a fidelidade sexual e o
enigmático feminino, bem como no reinado da infidelidade sexual masculina e nos
laços entre fidelidade e conjugalidade, traçando toda a complexidade do par
amor e sexo. Ao se tornar o eixo da vida dos indivíduos, o amor inaugura uma
nova maneira de existir, mais centrada na tarefa amorosa de cuidado com as
crianças e na ânsia de ser amado e reconhecido pelos pares. “Os sujeitos
contemporâneos se definem pelo romance que tecem sobre si desde sua infância e
que se destina a responder sobre o quantum de amor que lhes cabe” (p. 94).
É no terceiro capítulo que as
teses freudianas sobre a vida amorosa de homens e mulheres de seu tempo são
apresentadas. Haddad traça um roteiro completo e cronológico dos escritos em
que Freud contribuiu para pensar sua questão mestra. A fidelidade em Freud está
ligada ao sentimento de exclusividade na idealização amorosa vivida na relação
originária com a mãe, a memória fantasiada de um tempo de plenitude que se
deseja repetir. Mas ela indica também o sofrimento produzido pela perda dos
objetos amados originários. Tanto a perda amorosa originária como a edipiana
serão responsáveis pelos sentimentos de ciúmes e rivalidade na luta por essa
exclusividade, compondo a novela familiar do intrincado mundo afetivo infantil
até alcançar o lugar de sujeito apto a compartilhar e buscar na cultura seu
futuro. Desde os primeiros textos Freud marcava tanto a impossibilidade de se
manter um vínculo amoroso e sexual eterno sem as tentações contínuas de
infidelidade, como o fato de a exigência de fidelidade criar um impasse nas
uniões conjugais, ao lembrá-las de sua existência precária e sem garantias.
De um lado, uma fidelidade amorosa a um objeto
original, buscando o retorno a uma perfeição narcísica; de outro, a
infidelidade do desejo diante dos objetos impessoais da pulsão. A fidelidade e
as infidelidades ainda irão se articular à figura do terceiro, responsável pela
constituição da alteridade, delineando mapas diferentes para cada gênero, assim
como condições singulares para cada sujeito. (p. 118)
No quarto capítulo,
sugestivamente denominado “Perto demais ninguém é fiel”, a análise do
filme Closer (Perto demais) funciona aqui como um
estudo de caso do paradigma dos amores contemporâneos em que as infidelidades
detonam dores e sofrimento provocados pelas experiências de perdas ou pelas
vicissitudes que rondam as expectativas de fidelidade sexual. As narrativas dos
sentimentos dos quatro personagens, entre 30 e 40 anos, de classe média de uma
grande metrópole, que compõem casais alternados, são traçadas do ponto de vista
de quem traiu e de quem trai e apontam essa experiência não de acordo com seu rompimento
com as convenções sociais, o que indicaria seu valor moral, mas do ponto de
vista de um individualismo radical e, portanto, na esfera exclusiva do foro
íntimo. A narrativa da autora dá um retrato ficcional à faixa de população das
pesquisas sobre amor e fidelidade que ela utiliza nos capítulos anteriores. Ela
conclui que não é fácil renunciar à promessa de completude e exclusividade que
se mantém através do ideal amoroso romântico.
"A expectativa de fidelidade entre os pares parece
comungar na tentativa de encobrir a verdade sobre a necessidade de
aceitar a atenuação do prazer absoluto, assim como as infidelidades desvendam
essa ilusão. O jogo amoroso pressupõe mediação, recalque e aceitação da
impossibilidade do gozo pleno, ou tentativas de se esquivar e velar sua
impossibilidade, ainda que nós e a cultura optemos por manter estampado em
algum lugar de nossos futuros os letreiros que acenam com o amor verdadeiro." (p. 174).
Nas conclusões, Gisela Haddad
refaz sua questão: seria o paradoxo do amor manter-se indefinidamente
alimentado pela ilusão apontada por Freud de uma unidade imaginada plena ou da
promessa de uma indenização amorosa alhures a que em geral se acredita de
direito?
Embora a transitoriedade do amor
seja mais aceita, a fidelidade não esteja mais do lado da convenção social, já
que o proibido e o permitido convivam e estejam mais nuançados, Haddad nos diz
que ele faz parte mais do que nunca das grandes ilusões humanas ocidentais. Seu
reiterado fracasso não parece fazer com que se abdique de buscá-lo assim como
de se esperar a fidelidade do amado e uma união mítica ancorada em acordos
mútuos que possam fornecer uma certeza mínima de um compromisso de preservação
deste desejo de união amorosa.
Acrescento a sua renovada questão
a minha questão a partir da leitura deste estimulante e inquietante livro: como
construir uma intimidade que possa preservar a alteridade de cada um no amor e
uma união que saia de um pacto mortífero que transforma a fusão amorosa na
destruição da alteridade e, portanto, na morte do desejo e do outro e do Outro
para cada um? Como construir um íntimo entre dois que seja esteio para a
criação singular de cada um e que, com isso, alimente a invenção e reinvenção
constante do amor?
Os tempos tecnológicos
contemporâneos oferecem facilmente os meios de realização do perverso polimorfo
da sexualidade, na consumação instantânea, ao sabor das fantasias ou dos actings
out “no Google, no Twitter, no face, no Tinder, no WhatsApp, no
Instagram, no Snapchat, no Orkut, no Skype”, conforme a epígrafe que
escolhi para esta resenha.
Mas eles também podem ser novos
veículos de transposição de todos os obstáculos que se renovam para a promessa
em devir de que “Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz”, para além da
guerra e da morte, alimentando o devir do mar dos “Futuros amantes”, lindamente
poetado por Chico Buarque de Holanda, tão homenageado pelo livro de Gisela
Haddad.
RENATA UDLER CROMBERG
Rua Inhambu, 873/203
04520-013 – São Paulo – SP
Telefone 11 992790487
renatauc@uol.com.br
* Psicanalista, membro do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae, pós-doutora pelo
Instituto de Psicologia (IP-USP), autora dos livros Cena incestuosa e Paranoia,
da coleção Clínica Psicanalítica, e de Sabina Spielrein – vida e obra
de uma pioneira da psicanálise (Vol. I).
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