sexta-feira, 6 de março de 2020

Dos bebês quem cuidará?


Dos bebês, quem cuidará? 
                            
A tarefa de receber os novos humanos, uma tarefa das mais complexas e talvez a mais importante das tarefas humanas deste e dos próximos séculos, inclui não só a apresentação da cultura, seus interditos, seus valores, seus ideais e prazeres, mas a criação de um sentido para aquela nova vida. É necessário, ainda, que se constitua uma tarefa política, que integre os recém-chegados ao mundo civilizado para que possam conviver com seus pares. Nas últimas décadas, as questões socioculturais que gravitam em torno do nascimento e da criação de bebês sofreram mudanças radicais em relação aos dois séculos anteriores, principalmente no que se refere à constituição da família, ao significado da maternidade e ao lugar da infância, três eixos importantes desta tarefa de acolher e cuidar dos que nascem.
O modelo da família atual questionou radicalmente certas naturalizações em torno da diferença biológica dos sexos, ressaltou as identidades sexuais ou gêneros e impôs uma simetria inédita entre os mesmos, o que  contribuiu para mudanças significativas na maneira como se vive a sexualidade e se formam os pares conjugais, assim como se compartilha (ou não) o projeto de criação de um filho, um projeto, portanto, que deixou de ser uma decorrência “natural” da vida de todos ou de assegurar a perpetuação dos mesmos agentes cuidadores. 
A maternagem antes intrinsecamente relacionada à maternidade e definida como função feminina por excelência, assim como o amor materno como “instintivo” e “natural”, passam a mitos do passado diante das conquistas de liberdade e direitos inéditos das mulheres, hoje convocadas a fazer escolhas em todas as áreas de suas vidas, privada e pública. Os projetos de constituir uma parceria conjugal ou de ter filhos podem ou não fazer parte desta, modificando seu destino anterior de “se casar e ter filhos”.  Desde o século XVII, quando as crianças passaram a ser consideradas diferentes dos adultos, elas ganharam um novo estatuto, visando educá-las e prepará-las para se tornarem adultos bons e produtivos que assegurassem o futuro da civilização. Ao adquirirem um valor novo e especial, agregado ao culto à maternidade, tal configuração familiar desencadeou transformações na organização social e na concepção da subjetividade humana.
É assim que a gestação, o nascimento e o desenvolvimento físico e psíquico do bebê passaram a ocupar o espaço e a atenção de todas as instituições sociais, mantendo-se como foco constante de produção de saberes múltiplos que se dirigem ao acolhimento das necessidades do bebê e de seu futuro. Ao lado de modelos normatizados e idealizados destas funções, na expectativa de que os pais ou cuidadores possam vir a ser “especialista”, o discurso prometeico da cultura apresenta a gestação e a maternagem como um campo que pode ser experimentado sem grandes percalços. 
Por seu lado a clínica psicanalítica, que vem ampliando seus saberes sobre a gestação e os dois primeiros anos de vida de um bebê, aponta para o fato de que, apesar da busca muitas vezes promissora de preparação feita pelas novas gerações, invariavelmente o bebê real desconstrói o modelo ideal que se tentou montar. Não há como evitar a surpresa, a estranheza e o enigmático que ronda esta passagem de um ser que demanda cuidados de todas as ordens e que precisará, graças a estes cuidados, ser adotado pelos pais e pela cultura. Uma adoção que mais do que um saber ativo, demanda uma disponibilidade psíquica. Também colocou luzes na questão da presença, da ausência e da influência de um sujeito sobre outro (a identificação), das angústias de intrusão ou de abandono do bebê, dos que cuidam e que não podem ou não conseguem exercer seu papel de refletir ao bebê quem é ele ou servirem-lhe de intérpretes do mundo, e de alternativas para tais situações. 
Em um plano ideal, espera-se que aqueles que cuidam possam assumir as funções de sustentar, conter, reconhecer, espelhar, interpelar e convocar para que a criança possa construir uma referência para si mesma, tornando-se ela mesma capaz de vivenciar e dar nome às suas próprias emoções. Um bebê que, por seu lado, apresenta-se hoje mais ativo desde o nascimento, com competências e capacidades para interagir com seu entorno. 
Enfim, este encontro dos que recebem e cuidam dos que nascem não é nada simples, ao contrário inaugura um longo processo de adoção, de construção da parentalidade, e de filiação, que deve marcar tanto a continuidade entre as gerações como a diferença entre elas. Assim, o que define uma “família”, além da presença implicada de agente(s) cuidador(es) é que esta possa cumprir a exigência de abrigar ao menos duas gerações e fazer circular as normas que impedem o uso e abuso do corpo da criança.
Ainda que a gestação e nascimento de um bebê possam não fazer parte de um projeto que contenha o desejo de ter filhos, sendo muitas vezes por razões equívocas ou contingenciais, em geral o lugar que a criança ocupa no narcisismo daqueles que a acolhem e cuidam é suporte do investimento de desejo nos filhos, o que os torna depositários de seus ideais de sucesso e encarregados de compensar e reparar seus fracassos com seu sucesso e sua felicidade. Se a transmissão da parentalidade, e o lugar ocupado pelos “cuidadores” assumem um protagonismo ímpar na atualidade, cabe questionar quem, nos tempos contemporâneos de “eus” narcísicos e frágeis, se disporia a regular o seu prazer em prol de uma consciência da dívida, do dever com as gerações passadas, futuras ou com o outro, diante de um discurso social que acena com a possibilidade de não se ter de passar pelos constrangimentos da condição humana?

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