LIBERDADE,
SEXUALIDADE E VISIBILIDADE
GISELA HADDAD[1]
Uma reportagem de uma
edição recente da Revista Época[2] chamou a atenção para o
fato de, com diferentes motivos, mulheres comuns estarem tirando suas roupas e
mostrando sua nudez. Algumas, para presentear maridos ou namorados com ensaios
de fotos sensuais feitas em estúdios de fotografia; outras, para estampar
calendários cuja venda contribuiria para angariar fundos para alguma causa
social. Ou ainda aquelas mães de família americanas que, sem motivos aparentes,
teriam respondido ao apelo de um site
para serem fotografadas nuas em alguma atividade banal, como ao jogar pôquer.
Teria o mundo se
transformado em uma grande vitrine e somente quem conseguir certa visibilidade
(seja lá a qual preço) pode se sentir parte dele? A liberdade sexual alcançada
nas últimas décadas pelas mulheres estaria incentivando-as a “assumirem” sua
sensualidade sem constrangimentos? Seria mais fácil hoje para qualquer mulher
viver sua fantasia (antes inadmissível) de ser parte integrante do imaginário
erótico masculino? Por que, diante de tanta liberdade para escolhermos estilos
de vida sexual e modos inusitados de gerenciar nossos corpos, a exibição destes
nos parece tão sedutora?
Refletir sobre esta
composição entre Liberdade, Sexualidade e Visibilidade requer uma pequena e não
tão simples revisão do percurso da cultura - este complexo patrimônio simbólico
produzido por nós mesmos - sem deixar de lado a relação entre imagem,
conhecimento e subjetividade, e o fato de as mudanças em alguns valores, que
antes demoravam mais de uma geração, hoje nos atropelarem com novas e
inusitadas questões.
Dentre estas
desconstruções radicais de antigas crenças e modos de existência, estão tanto a
maneira de viver a nossa sexualidade (homens e mulheres), incluindo aí os
contornos e limites de nosso corpo erótico (principalmente para as mulheres),
quanto a midiatização de nosso cotidiano, lembrando o quanto a publicidade se
apropriou de imagens eróticas femininas para agregar valor às mercadorias.
Freud foi um dos teóricos
mais sensíveis ao papel que a sexualidade humana teria na produção de cultura
e, percebendo seu caráter disruptivo, apontou a importância de sua regulação
para um gerenciamento da convivência entre nós. Para cada época existem
comportamentos que são incentivados e aprovados e outros que são desestimulados
e condenados. Nosso apetite sexual já foi encarado como uma alquimia de feiticeiras
e bruxas prontas a exercer as tentações que culminariam com a perdição da alma
humana, mas estão longe de nós os dias em que o sexo e a sexualidade humana
eram assunto tabu. Eles hoje fazem parte integrante de uma ciência que se
preocupa em nos informar sobre como bem vivê-los.
Mas é justamente por
falhar repetidamente em se conformar às normas e restrições da cultura que a
regulam, que a sexualidade humana manteve-se durante grande parte de nossa
história como um tema a ser pouco veiculado.
Isto foi particularmente
mais verdadeiro em relação à sexualidade feminina, abafada sob diferentes
justificativas, fosse pela ideologia judaico-cristã que nos guiou durante
séculos e exaltava um modelo de mulher assexuada, fosse porque coube aos homens,
durante um longo período, gerenciar a distribuição de prazer (e de poder) da
cultura, tomando para si a parte majoritária. Com isso, as mulheres viveram
muito tempo entre dois modelos, o da santa (todas as “mães” puras) e o da
prostituta (todas as mulheres que exalassem sensualidade), ambos gravitando em
torno de uma lógica masculina de compreensão do feminino, fantasia que ainda
prende homens e mulheres. O recato (cobrir as partes do corpo que pudessem
lembrar qualquer sinal de êxtase) foi por muito tempo uma norma imperativa, que
visava acalmar as pulsões eróticas das mulheres, assim como os temores
masculinos de uma sexualidade feminina ilimitada. Paradoxalmente este recato
como regra abriu a possibilidade para que cada pedaço do corpo feminino pudesse
se transformar em fetiche para os olhos desejosos dos homens (vide o longevo
sucesso das revistas com poses sensuais ou com nudez parcial, voltadas para o
consumo, principalmente masculino). Hoje não só a mulher foi sensualizada e
está eroticamente emancipada, como a corporeidade de ambos os sexos ganhou um
vulto nunca antes alcançado em termos de visibilidade e espaço na vida social.
Mas, se é verdade que um
certo excesso do “erótico” pode funcionar como uma forma de se opor ao longo
período de censura e repressão à sexualidade feminina, também é verdade que a
mídia contemporânea incentiva a cultura atual da exaltação do corpo e da
imagem. Esta passagem do recato à visibilidade não é gratuita. Vivemos em
sociedades cada vez mais complexas em que o excesso de imagens exige-nos a
tarefa permanente de traduzir e discernir este “a mais”. Há uma articulação
constante entre a prevalência de imagens, a circulação de informações e
estímulos velozes e simultâneos e a produção e consumo de narrativas. Sabemos
que a imagem nos constitui e dela nos apossamos em um constante movimento de
subjetivação para nos apresentarmos, nos comunicarmos, seduzirmos e sermos
seduzidos. Se hoje dependemos muito mais do olhar de reconhecimento dos outros
sobre nós para afirmar e reafirmar nossa existência e nosso valor, a mídia se
alimenta de nosso interesse e nos acena o tempo todo com a possibilidade de
alguns minutos de fama, motor da espetacularização da vida social.
Ficamos diante desta tênue
fronteira que a lógica do consumo e do espetáculo impõe à Ética e que
descortina ao menos dois fatos da atualidade:
1- Cabe à cultura
conciliar uma civilização mais erótica e ao mesmo tempo mais livre e mais justa,
sem que isto se confunda com fundamentos moralistas de comportamento sexual;
2- Cabe a cada um o
gerenciamento da exposição de sua imagem, incluída aí a difícil administração dos apelos sedutores aos
minutos de fama, cada vez mais acessíveis, e muitas vezes alimentando nossa
sede de amor.
Difícil tarefa.
[1] Psicanalista, membro do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Semana de 18/02/2010.
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