Sobre o Amor
Gisela Haddad
Em seu minucioso trabalho de pesquisa
sobre a era burguesa, o historiador Peter Gay (2000) denuncia como a imaginação do século XIX
vai ficar capturada pelo componente físico da vida erótica e das estratégias de
conquista sexual, com suas promessas de êxtase. Era necessário que a bandeira
do amor servisse de norte para os excessos do sexo e não faltava literatura
cuja finalidade era a de mostrar os destinos trágicos do apaixonamento quando
este não se enquadrava na construção da
família. O amor poderia incluir os suspiros do sexo, mas deveria seguir um
percurso de sensatez e atender os compromissos de criação dos filhos,
reprodução da família e formação do cidadão. Talvez por apostar que a
sexualidade pudesse ser “normatizada” se associada ao amor, o amor romântico ou
“amor verdadeiro” se mantinha na sociedade burguesa tanto como um regulador da
vida familiar e societária quanto como uma promessa de felicidade amorosa
e sexual,incentivando o vínculo
exclusivo do par conjugal. Ao se
consolidar em um ideal
reverenciado pela sociedade, suporte do
modelo de família e parte de um
horizonte futuro da vida de cada um , torna-se uma aspiração poderosa e acena com a possibilidade de uma felicidade humana
terrena em contraposição aos antigos
ideais religiosos.
Por ser um critério privilegiado para
a constituição dos pares conjugais, o amor
inaugura uma convivência familiar mais centrada em seu núcleo
pai-mãe-filhos, uma vida privada, intima e
transforma esta família em uma fortaleza afetiva restrita. A
importância do amor para a constituição
e regulação das relações entre os homens e as mulheres na era burguesa, se
reflete no estreitamento do vínculo entre a mãe e a criança. Embora fosse
condição e critério de sucesso dos casamentos, o que não cessava de ser
legitimado por revistas femininas, romances e filmes hollydianos, o amor não
consegue garantir o eterno romance conjugal. É assim que a infância assume o
prolongamento deste ideal de amor e felicidade irrealizável na aspiração de um
tempo feliz e perdido. Os filhos passam a representar a esperança da realização
da felicidade almejada pelos pais e o
amor dos pais à seus filhos sustenta-se nesta possibilidade de
assisti-los transformarem-se na imagem de felicidade idealizada por eles. Surge
assim um circuito amoroso fundamental para a subjetividade moderna. Como parte
deste caldo cultural moderno, a psicanálise passa a desvendar este particular
contexto familiar e a complexidade das
subjetividades de seus membros, ao revelar os bastidores conflituosos das relações entre mãe,pai, filhos e filhas e
o lugar privilegiado das funções parentais na constituição do psiquismo humano.
Ao diminuir a importância do legado e normas familiares restou ao individuo
cultuar este amor que recebe dos pais o que lhe impõe a necessidade de buscar
indícios do amor do outro
É a subjetividade que se encarrega de
interrogar os limites, os ideais e os restos que organizam as relações entre os
indivíduos. O drama da subjetividade atual é pertencer a rede social desejando
manter sua singularidade e sua autonomia, conciliando a necessidade de
identificação e portanto dos outros com a necessidade de salvar a autonomia
narcisica. É necessário, além disso, romper com o ideal narcísico dos pais para
constituir um ideal de eu, encaixando-se em algum lugar da cultura. Cultura
esta que oferece hoje uma multiplicidade de opções de identificações e de
ilusões imaginarias, que passa a ser vivido como uma exigência temperada de
prazer e realização. As exigências que a cultura faz hoje pertencem ao controle
disciplinar de que falava Foucault: é necessário ser feliz, belo, estar nas
normas do corpo aprovado pela cultura, realizar-se profissionalmente através de
um consumo diversificado de conhecimento, etc Sua sexualidade também passa a
fazer parte destas exigências culturais que cobram performance. As antigas
regras sustentadas pelo poder patriarcal
que regulamentavam a aliança, o sistema de matrimonio e de parentesco, a
transmissão de nome e bens, vão dando lugar às vivencias de prazer. A
sexualidade confisca e absorve a família e as regras migram para regular os
prazeres do corpo.
Na época de Freud, a tarefa de encontrar uma acomodação feliz
entre as reivindicações individuais e culturais indicava a necessidade de
internalizar a repressão social dos sentimentos destrutivos e dos desejos
sexuais temidos, que deveriam se transformar em uma consciência moral vinculada
à culpa. Hoje a pluralidade dos códigos de convivência nos coloca em contínuos
conflitos a serem administrados para que possamos validar a diversidade de
nossas opções. Mantém-se a procura por realizações sentimentais e satisfações
sensoriais, mas a liberdade sexual que hoje se usufrui, impensável mesmo há
três ou quatro décadas atrás, incentiva a
busca e não condena mais o prazer físico. Estamos, sob este ponto de
vista, mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos
corpos, sensual e eroticamente emancipados
As alianças fraternas possibilitam aos jovens explorar e ampliar
seu campo de referencias . É também a estas alianças que eles pedem
reconhecimento e amor.
Platão
explicitou a ambivalência estrutural do ser humano, mostrando não só a
reverência à quimera da busca por um Bem Supremo e a emergência da realidade do
desejo e de suas intensidades, mas os vários sentidos que o amor pode assumir
como resposta aos anseios humanos: amor de si, amor fraterno, amor filial,
amor-paixão, amor erótico etc.
Para os gregos, o Amor Supremo, que
continha as qualidades da Justiça, da Beleza e da Verdade figurava como o
grande ideal de cada cidadão e estava atado às virtudes com as quais cada um
queria ser reconhecido pelo coletivo. O amor sensual não era proibido, mas o
domínio sobre seus excessos era bem-visto como um caminho para o supremo bem.
A era cristã inaugurou um longo domínio sobre os destinos do amor, separando de um lado o amor permitido, dirigido a Deus e ao semelhante e de outro o amor proibido, carnal e pecaminoso. Entre os desejos “carnais” (gula) o sexo era o mais temido por ser o mais rebelde e persistente. O sexo era visto como algo poderoso. O ethos cristão exigia contrapor a miséria e a dor humana à bondade de Deus. Por isso Adão era culpado por ter transgredido as leis de Deus. O inferno humano era explicado sempre pelo pecado e a culpa acusava as razões do sofrimento. A partir de Agostinho, a “servidão” a autoridade terrena da Igreja era necessária pois o homem imaginado autossuficiente seria idealizado. Este era o novo ethos moral que reinava na Idade Média. O sexo como um núcleo de resistência à liberdade do sujeito.
A era cristã inaugurou um longo domínio sobre os destinos do amor, separando de um lado o amor permitido, dirigido a Deus e ao semelhante e de outro o amor proibido, carnal e pecaminoso. Entre os desejos “carnais” (gula) o sexo era o mais temido por ser o mais rebelde e persistente. O sexo era visto como algo poderoso. O ethos cristão exigia contrapor a miséria e a dor humana à bondade de Deus. Por isso Adão era culpado por ter transgredido as leis de Deus. O inferno humano era explicado sempre pelo pecado e a culpa acusava as razões do sofrimento. A partir de Agostinho, a “servidão” a autoridade terrena da Igreja era necessária pois o homem imaginado autossuficiente seria idealizado. Este era o novo ethos moral que reinava na Idade Média. O sexo como um núcleo de resistência à liberdade do sujeito.
No entanto é importante sublinhar a grande importância que a Igreja católica
tem no entendimento do valor do amor para nós modernos. E estamos falando tanto
do amor com o sentido de Bem Supremo quanto do amor erótico ou sensual. A
igreja assumiu a tarefa de controlar ou conter a sexualidade pregando o
abandono de interesses mundanos da cidade, e valorizando a vida de casal e o
recolhimento. A partir de Santo Agostinho é possível perceber a inclusão do
amor- paixão a Deus, um amor que será vivido internamente, acompanhado de uma
reflexão sobre seus efeitos. A Igreja passa a convidar a todos a buscar dentro
de si o amor a Deus e será este êxtase sentimental o núcleo das paixões
amorosas herdadas pelo romantismo. O amor passa a vir de dentro, das entranhas
e esta interioridade irá definir o individuo da modernidade.
Sabemos que uma das marcas da modernidade é o nascimento da
ciência. Descartes, Razão, Iluminismo são ícones modernos cuja aposta maior
seria a de que pelo uso da razão sairíamos das trevas em direção à aquisição de
conhecimentos que finalmente nos permitiriam entender e controlar o mundo, a
natureza, e quiçá nosso futuro, com a possibilidade de entendimento da natureza humana. De fato nestes séculos modernos a ciência mudou e muito nossas vidas.
Comparada às vidas humanas do longo período da Idade Média estas mudanças foram
rápidas, em especial as do século XX, com o avanço das biotecnociencias. Mas se
estas transformações nos trouxeram confortos e benesses inimagináveis é verdade
que em relação aos costumes e à moral nosso mundo virou de ponta cabeça,
indicando que para o quesito felicidade, outra grande aposta dos tempos
modernos, a coisa é bem mais complexa.
Alguns pensadores destacam o papel da tradição como um critério
para a divisão entre o mundo pré-moderno e moderno. No mundo antigo, os homens
nasceriam com lugares predeterminados, sem chances de transitarem por lugares
sociais diferentes. Nascidos escravos, ferreiros ou aristocratas, morriam como
tal. Os valores e costumes funcionavam mais como crenças do que acordos
sociais. A Igreja funcionava como a única doadora de regras, impondo suas leis
e suas punições via controle dos saldos
de pecados. O mundo moderno irá criar o universo das leis e passará ao Estado
esta função de controle das normas e costumes. Assim as certezas que vinham pelo reconhecimento da
comunidade à que cada um pertencia, as certezas morais e cognitivas
transmitidas pela tradição, a segurança de um destino preestabelecido pelo
projeto de um Deus onisciente se esvaneceram. Caberia a cada um cuidar de si,
de seu destino, de suas escolhas, e também de sua parceria amorosa.
O amor romântico acenava com uma junção possível: casamento, amor e sexo a serviço da família conjugal. Mas nos primeiros séculos modernos a Igreja ainda emprestará seus códigos morais, na tentativa de cobrir o desamparo e o vazio deixado pela quebra destas tradições. Aos poucos o amor passou a ser uma peça essencial na cultura individualista, à frente das lutas atropelou as tradições, acabou com barreiras sociais, raças, culturas, religiões, preconceitos. Seu sucesso se mantém porque assim como o agir humano, sua razão é subjetiva: quando fazemos algo por amor, fazemos por nós mesmos, sem precisar obedecer a ninguém, se não às nossas paixões. Casamos ou vivemos juntos porque amamos e aos poucos a cultura foi “naturalizando” o fato de que nossas escolhas pudessem ser fundadas tendo como critério o amor; hoje estranhamos quando isso não acontece e em geral classificamos estas escolhas em hipócritas ou interesseiras. Cuidamos de nossas crianças porque as amamos e quando isso não acontece estranhamos. Talvez porque sejam razões que testemunhem nossa autonomia conquistada às duras penas. Por outro lado ficamos desorientados, desamparados, e ainda nos encontramos tateando novos valores, em particular os que giram em torno do amor e da sexualidade, eixos modernos de nossas vidas. Namoros, sexo, casamentos, famílias, descendências, educação e destino dos filhos são temas que se tornaram atuais e pedem reflexões e debates.
Nossas parcerias românticas construídas na promessa da incondicionalidade, da exclusividade e da felicidade demonstram não ter garantias e pedem revisões. O amor nos deixa desprotegidos contra o sofrimento e ou ficamos a mercê do outro, ou expostos a dores extremas quando rejeitados, traídos ou abandonados e assim por diante. A enorme expectativa que depositamos sobre nossas parcerias amorosas é quase sempre um terreno propício à frustração e a decepção. Cada vez mais temos que enfrentar uma revisão ou mesmo o desabamento de nossos projetos de realização erótica e existencial a dois. Por quê? O que mudou?
O amor romântico acenava com uma junção possível: casamento, amor e sexo a serviço da família conjugal. Mas nos primeiros séculos modernos a Igreja ainda emprestará seus códigos morais, na tentativa de cobrir o desamparo e o vazio deixado pela quebra destas tradições. Aos poucos o amor passou a ser uma peça essencial na cultura individualista, à frente das lutas atropelou as tradições, acabou com barreiras sociais, raças, culturas, religiões, preconceitos. Seu sucesso se mantém porque assim como o agir humano, sua razão é subjetiva: quando fazemos algo por amor, fazemos por nós mesmos, sem precisar obedecer a ninguém, se não às nossas paixões. Casamos ou vivemos juntos porque amamos e aos poucos a cultura foi “naturalizando” o fato de que nossas escolhas pudessem ser fundadas tendo como critério o amor; hoje estranhamos quando isso não acontece e em geral classificamos estas escolhas em hipócritas ou interesseiras. Cuidamos de nossas crianças porque as amamos e quando isso não acontece estranhamos. Talvez porque sejam razões que testemunhem nossa autonomia conquistada às duras penas. Por outro lado ficamos desorientados, desamparados, e ainda nos encontramos tateando novos valores, em particular os que giram em torno do amor e da sexualidade, eixos modernos de nossas vidas. Namoros, sexo, casamentos, famílias, descendências, educação e destino dos filhos são temas que se tornaram atuais e pedem reflexões e debates.
Nossas parcerias românticas construídas na promessa da incondicionalidade, da exclusividade e da felicidade demonstram não ter garantias e pedem revisões. O amor nos deixa desprotegidos contra o sofrimento e ou ficamos a mercê do outro, ou expostos a dores extremas quando rejeitados, traídos ou abandonados e assim por diante. A enorme expectativa que depositamos sobre nossas parcerias amorosas é quase sempre um terreno propício à frustração e a decepção. Cada vez mais temos que enfrentar uma revisão ou mesmo o desabamento de nossos projetos de realização erótica e existencial a dois. Por quê? O que mudou?
Em geral as mudanças nos costumes e nos valores eram mais lentas.
Passavam-se décadas até que um novo
costume pudesse ultrapassar as resistências naturais às mudanças e se impor
como novidade aceita. O mundo atual pede uma aceleração jamais vista. Em poucas
décadas vimos alguns de nossos mais caros valores serem questionados,
derrubados e substituídos.
Os processos de emancipação feminina, a desconstrução dos papeis
masculinos e femininos, redefiniram a família, o amor, a vida profissional e
transformaram profundamente as relações.
Antes o masculino e o feminino formavam um par em que um só se
definiria em relação ao outro. Hoje existem estudos sobre o gênero humano que
nos mostram que cada sociedade constrói
de um jeito a diferença dos sexos. Não
há como naturalizar esta diferença, embora por séculos a feminilidade esteve
ligada ao lugar que a mulher ocupava junto ao homem, já que a mulher foi
definida e interpretada a partir da concepção do homem. Durante muito tempo
coube aos homens definir como as mulheres funcionavam, o que as
caracterizava, como elas reagiam, etc.
Faz algumas décadas que as mulheres começaram a escrever sobre si mesmas.
E o amor? O amor segue como o grande protagonista do psiquismo humano, gerando
inúmeras histórias. Talvez porque nossas relações amorosas são desde a nossa infância as responsáveis pelas nossas ficções. São elas que nos guiam no contato com o mundo. Já há algum tempo estas historias nos dão pistas sobre o percurso do amor na cultura, assim como as ligações nem sempre pacificas entre amor e sexo. São elas que marcam as maneiras de amar e as transformações do erotismo.
Como o amor será vivido, ou melhor as maneiras de amar dependem de como cada um consegue negociar com o que imagina lhe ser prometido, esperado permitido e proibido. Suas maneiras de desejar, de ser reconhecido, de pedir amor.
E o amor? O amor segue como o grande protagonista do psiquismo humano, gerando
inúmeras histórias. Talvez porque nossas relações amorosas são desde a nossa infância as responsáveis pelas nossas ficções. São elas que nos guiam no contato com o mundo. Já há algum tempo estas historias nos dão pistas sobre o percurso do amor na cultura, assim como as ligações nem sempre pacificas entre amor e sexo. São elas que marcam as maneiras de amar e as transformações do erotismo.
Como o amor será vivido, ou melhor as maneiras de amar dependem de como cada um consegue negociar com o que imagina lhe ser prometido, esperado permitido e proibido. Suas maneiras de desejar, de ser reconhecido, de pedir amor.
Se o que nos faz humanos, ou seja,o que
nos constitui subjetivamente é este encontro de almas, este encontro entre um
bebê que nasce e aquele que o recebe ávido para mostrar-lhe o lugar que se
destina a ele, sabemos que nem todos os bebês possuem
este ser de amor à sua espera. E mesmo os que possuem, cada um deles têm suas historias de amor, seu romance
familiar, de amor e dores.
E o que é o amor? Como sabemos se estamos amando ou não? Que amores devemos reverenciar ou quais devemos
rejeitar? Existe diferença entre paixão e amor?Amor por nossos parceiros,
nossos pais, nossos filhos, nossos irmãos. Há diferenças?
A verdade é que o amor, apesar de ter se tornado um personagem
banal de nossas vidas ainda ocupa um lugar
sagrado em nossa cultura. Prova disso é que em geral não discutimos suas
razões. Mesmo que ele tenha assumido
feições diferentes pela historia, seu valor se mantém incontestável. Diante de
frases como ele ama ela ou ela o ama
muito, ela fez por amor, o assunto se encerra. Sabemos do que se trata ao mesmo
tempo que não podemos explicar muito bem. Quem sabe mistérios da alma e ponto
final.
Palestra proferida em Sorocaba 2010
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