sexta-feira, 20 de março de 2020

Ficar, namorar, casar


Ficar, namorar, casar

Gisela Haddad

Já sei namorar
Já sei beijar de língua
Agora, só me resta sonhar
Já sei onde ir
Já sei onde ficar
Agora, só me falta sair

Já sei namorar ,Tribalistas

Foi a partir da Modernidade que o par amor e sexo guiou a formação das famílias pelo casamento. A sociedade passou a ser organizada  pelos sentimentos e, além de só se casar por amor, os laços de sangue passaram a valer menos que os laços de afetos abrindo espaço para que o amor  fosse condição dos laços. O amor inaugurou uma  nova maneira de existir mais centrada na tarefa amorosa  de cuidado com as crianças e na ânsia de ser amado e reconhecido pelos pares.
 Mas o modelo da família nuclear, fechada sobre si mesma e voltada para a produção de bem-estar nunca foi um mar de rosas e  muitas vezes transformou-se em um canteiro de violência psicológica. Os filhos podiam frustrar as expectativas dos pais e vice-versa, o amor podia se transformar em barganha ou chantagem mútua e a esperança de entendimento entre cada um podia ficar obstruído pela culpa.
Ao longo do último século a busca de relacionamentos mais satisfatórios implicou grandes mudanças nas relações entre pais e filhos, entre os pares amorosos e por consequência no modelo familiar. As novas gerações  separam amor, sexo e casamento, antes fusionados  pelo ideal de amor romântico e se desenvolvem em torno de inúmeras possibilidades identificatórias, ao contrário das gerações anteriores que seguiam modelos binários (pai ou  mãe, feminino ou masculino). A virilidade  e a feminilidade passeiam entre os gêneros e ajudam a compor esta diversidade identitária. Como consequência mudou a forma como cada um  pensa sua própria identidade e realiza suas relações com os outros, trazendo uma renovação nos repertórios de condutas e nos modelos de convivência.
A partir da década de sessenta, com os reposicionamentos sociais e as redefinições dos papéis sexuais, homens e mulheres e, sobretudo os jovens começaram a ver e a viver a sexualidade de forma totalmente diversa. O advento da pílula anticoncepcional e a liberação do aborto permitiram que se  morasse juntos, tivesse relações sexuais fora de uma conjugalidade mais séria, separasse-se quando não houvesse mais motivos para se estar juntos, e assumisse preferências sexuais mesmo quando estas não pertencessem ao modo tradicional das relações heterossexuais.
Não há idade certa para se casar, alguns casais apenas moram juntos, outros se casam mas não tem filhos ou tem filhos sem se casar. A liberdade sexual incentiva a  busca e não condena mais o prazer físico e, embora todos continuemos a buscar realizações sentimentais e satisfações sexuais, estamos  mais livres para decidir sobre o que fazer (e como fazer) com os nossos corpos.
Estas mudanças que hoje já estão mais digeridas pela cultura ocidental, mudaram a paisagem social e admitiram uma nova ética da sexualidade. Amor e sexo estão separados e o ficar, prática que se consolidou entre os adolescentes, hoje permeia as relações de todas as idades ao abrir um espaço inusitado para relacionamentos passageiros, fortuitos, que não visam compromissos futuros e em que  predomina a sensorialidade. Nem por isso deixou de existir o espaço privilegiado das relações amorosas que buscam um envolvimento mais efetivo entre os pares e por isso preveem uma confluência de interesses e desejos continuamente negociados. Apostando ainda em sua durabilidade, estas relações incluem a possibilidade de uma ruptura, caso haja a finitude de interesse de uma ou ambas as partes ou quando os pactos que as asseguravam se desfazem.
O casamento  deixou de ser uma instituição, tornando-se apenas uma formalidade que tenta administrar as expectativas de laços conjugais  mais duráveis com uma experiência sexual prazerosa.  Os novos parceiros se formam em regime de simetria  e como cada um é o único legislador de sua relação amorosa, precisa negociar e investir constantemente no parceiro, se o objetivo de ambos for prolongar o relacionamento. A duração do casamento, a capacidade de viver junto por um longo tempo, as tentativas do casal de manter o interesse sexual recíproco, o cuidado com a gerência da vida familiar e o desgaste do casamento por problemas relacionados aos filhos ou às finanças, são alguns dos  fatores que surgem no cenário atual e pedem  soluções aos envolvidos. Transgressiva por natureza, a sexualidade como ingrediente de valor, não cessa de impor negociações.
O preço por nossa maior autonomia e liberdade para escolher e viver nossa vida amorosa são nossas incertezas e  nossa maior dependência de um olhar amoroso, o que nos faz mais vulneráveis aos fracassos e ao sentimento de impotência. O sucesso de nossa vida amorosa depende de um investimento infinito das partes envolvidas e principalmente da possibilidade de cada uma destas partes suportar a individualidade do outro, mas todos sabem que no terreno do amor e do sexo, não há como eliminar a contingência, a ambiguidade e a dúvida.



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