sexta-feira, 6 de março de 2020

O lugar da vergonha



Desde suas origens, em seu papel de investigadora da condição humana, a psicanálise empenha a bandeira da desconstrução e da compreensão da majestade do eu e dos ideais absolutos de seu tempo. Nem por isso estivemos ou estamos isentos, como psicanalistas, de no exercício da tarefa de cuidar/ouvir o sofrimento e a dor humana, ocupar o lugar dos que imaginam saber como “deveria ser”. 
Tanto os que curam quanto os que precisam ser curados podem facilmente comungar da ideia de que as insatisfações ou desconfortos sejam desvios a serem suprimidos, e esta tentativa de ajuste sem brechas acaba por desvelar o quanto as doenças permanecem tabus e disseminam o temor justamente por nos colocar frente a frente com nossos limites, que em alguma medida, todos tentamos negar. 
A saúde mental/corporal como ideal e como bem comum, assim como o anseio da ciência em buscar eliminar nossos males são sintônicos com o desejo humano de silenciar as vozes destoantes, enigmáticas e por vezes dolorosas da experiência do adoecer. Constata-se, por outro lado, no horizonte das ideias, um movimento vindo de diferentes áreas do conhecimento que convida a todos a comungar o paradigma da complexidade, que reconhece o reducionismo teórico, os impasses práticos causadores da crise dos modelos tradicionais e propõe um esquema aberto, heterogêneo, processual que aceite as incertezas e a desordem, e seja regido por leis de organização e desorganização. A produção de subjetividade, por exemplo, não deveria ser analisada sem um aporte da biologia, da historia e da sociologia, atravessada pelas práticas, discursos, sexualidade, ideias, desejos e proibições de sua época. Assim como a nova ciência do cérebro que admite a plasticidade e a epigênese, a psicanálise – e seu acervo clínico e teórico - tem buscado, através de diferentes autores, rediscutir e ampliar as perspectivas de cuidados e intervenções. Na mesma linha de pensamento, os movimentos sociais em prol da legitimação e assunção dos antes “excluídos”, diferentes ou deficientes- estigmas da vergonha - inauguram um debate para promover um modelo alternativo, menos normopata sobre o ordenamento da vida subjetiva individual e coletiva e seu ideal de funcionamento.
Se nosso Eu se forma através do olhar do Outro e do projeto narcísico que este lhe endereça, somos todos dependentes e candidatos a objeto de investimento do outro, e desde sempre tementes em não possuir os predicados que o outro significativo deseja. Nossas doenças (orgânicas ou psíquicas) são nossas formas de buscar um equilíbrio a este projeto. Um projeto delicado, que por estar na pendencia dos cuidados em geral falhos de outros que cuidam, pode precisar de um interventor apurado e preparado, que se ofereça para reparar as fendas e cuidar das feridas.
É dentro desta visão de sujeito e mundo que se poderia pensar o lugar atual da “vergonha” como a emoção reguladora da imagem de si no meio social. 
Uma vergonha de si, de não ser, de não existir para o outro e os sofrimentos psíquicos decorrentes.


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