sexta-feira, 6 de março de 2020

Sobre a mentira


Mentira
      
           “90% do que escrevo é invenção. Só 10% é mentira.”   
               
                                                                    Manoel de Barros

A eleição da mentira como debate nos leva automaticamente às searas de cunho moral e ético, tendo como pano de fundo o binômio mentira versus verdade. O que dizer do uso social da mentira a favor das convenções que mantém o laço social? Ou das mentiras sócio-políticas utilizadas por governantes para favorecer suas ações interesseiras? Ainda que a “banalidade” do tema possa incluir diversos campos do saber, como a Literatura, a História, a Filosofia ou o Direito, analisar a mentira em suas raízes motivacionais ou constitucionais pode ser uma tarefa bastante complexa. Derrida em seu ensaio “História da mentira: prolegômenos” brinca com o título de seu texto ao questionar-se sobre a tarefa de escrever a história da mentira. Como conta-la sem mentir? Como prometer uma história verdadeira? É possível imaginar milhares de histórias fictícias da mentira, ou discursos inventivos fadados ao simulacro, à fábula, à produção de formas novas referentes à mentira, mas que não seriam necessariamente histórias mentirosas. Suas digressões fazem parte do contexto amplo em que ele irá discorrer sobre a mentira, uma contingencia humana indissociável das práticas sociais, como diria Hanna Arendt, e muito distante do erro e da ignorância, segundo Nietzsche. Já o poeta Fernando Pessoa, ao contrário de Kant, afirma ser a mentira uma condição necessária do espaço social, a moeda neutra de todas as emoções.
Em seu estudo sobre o papel organizador social da mentira, Paulo Ceccarelli afirma que as mentiras e as ilusões sempre caminharam juntas ao longo da história da humanidade, nas inúmeras tentativas, infrutíferas, mas constantemente renovadas, para lidar com nosso desamparo constitucional. A psicanálise comprova a complexidade e mesmo a diversidade de razões do uso da mentira em sintomas que vão desde a negação total de seu uso pelo sujeito, sob pena deste mergulhar em intensa angústia, até seu uso compulsivo, muitas vezes a serviço de silenciamentos protetores de vivências traumáticas que revelariam sentimentos dolorosos de humilhação ou vergonha. Por outro lado a psicanálise também situa o processo do “nascimento” da mentira em nossa constituição psíquica ao reconhecer as etapas da representação do processo primário, quando a psique, sem poder traçar um limite entre a fantasia e as circunstâncias reais da experiência, e sem poder se dobrar ainda as exigências da realidade, desenvolve uma atividade fantasmática para manter a certeza (ilusão) da existência e do poder do desejo como acesso ao Outro e à realidade.
A mentira, diferente da ilusão, só surge a partir do momento em que se é capaz de reconhecer uma cena exterior, de manifestar-se por meio de um discurso portador de sentido, o que já pertence ao processo secundário do psiquismo e a possibilidade de compartilhar um mundo simbólico. Para a psicanálise, a dimensão psicopatológica da mentira assume um valor de “verdade” sobre o sujeito.
Seguindo uma lógica semelhante, em “Vigiar e Punir”, ao sublinhar as mudanças ocorridas na maneira de se analisar e punir o crime na passagem entre os séculos XVIII e XIX, Foucault aponta a substituição da punição física (corpo) pela correção ou pela suspensão de direitos, de liberdade e do direito de existir.
Passa-se a julgar também a alma dos criminosos, se desejaram ou não cometer o crime, se são perversos, mentirosos ou psicóticos, ou seja, o que naquele autor, origina e explica seu crime: instinto, hereditariedade, ambiente social ou loucura?

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