sábado, 26 de novembro de 2011

A invenção da vida

Betina ouviu as batidas na porta de seu quarto e suspirou contrariada. Tentou responder “não” à sua mãe de forma o mais gentil possível. Na verdade não desejava sair de sua cama. Queria ficar ali, deitada, pensando, rodando o filme de sua vida sem que seu corpo se mexesse. Era uma técnica que ela havia desenvolvido e que lhe dava uma extrema sensação de conforto. Gostava de se imaginar  em uma viagem como se fosse apenas um ponto, sem matéria, ao mesmo tempo em que era tudo: as ideias ficavam claras, os sentimentos eram aparados e o peso das dúvidas e do medo afastava-se. Mas agora teria que “retornar”, abrir a porta e enfrentar sua mãe. Ela não deixava barato. Já havia sentido muita raiva por ela ser tão “presente”, por ficar tão atenta. Depois de tantas vezes em que as mães foram tema de discussões entre as amigas, foi situando a sua de forma diferente. No fundo era bom que ela se importasse. A mãe de Aninha, por exemplo, nunca telefonava para saber seu paradeiro, e isso já tinha sido motivo de inveja de muitas. Mas não mais dela. Até o fato de serem apenas as duas, ela e a mãe, já estava mais acomodado em sua bagagem de vida. Sua inquietação do momento era o fato de seu aniversário de 18 anos estar próximo, já na semana seguinte. Sentia necessidade de pensar sobre esta passagem, ajustar melhor seus planos.  Estava no final do primeiro ano da faculdade e empolgada com o curso que havia escolhido - à revelia de seu pai que apostara em uma carreira mais “consistente”. Quase prestara Arquitetura só para deixa-lo mais contente. No fundo sentia uma pontinha de orgulho por não ter desistido de ser uma designer gráfica. O desenho sempre tivera um significado importante em sua vida e desde os oito anos, acostumara a retratar situações familiares e de seu cotidiano em pequenas folhas brancas. Em geral os adultos ficavam muito entusiasmados com sua capacidade de apreender certas nuances das pessoas e das situações naquelas “mal traçadas linhas”. Não tinha sido nada fácil convencer os pais a dar-lhe esta chance, e na época isso tinha sido muito sofrido. É difícil e injusto o confronto entre o que os filhos querem para si e o que os pais querem que eles sejam e para ela em especial havia sido tumultuado escolher algo que desagradava aos dois. Rolou muita conversa, muita saliva e tentativas de persuasão de um lado e de outro. Filha única de pais separados, exigentes, intelectualizados, que colocavam nela um caminhão de expectativas. Ufa! Carga pesada para uma adolescente que sonhara desde sempre em ser artista, esta palavra tão solta, sem grandes definições prévias, sem vínculo empregatício, sem lugar de destaque no mercado das profissões promissoras. Começara o ano letivo com ganas de absorver ao máximo as técnicas e ferramentas oferecidas para aprimorar seu talento. Queria (precisava) descobrir algum nicho diferenciado e era preciso convencer seus pais sobre a importância de adquirir programas digitais de ultima geração. Suas ideias fervilhavam e era deste tempo mágico que as batidas da porta do quarto destoavam. Uma coisa era imaginar sua nova empresa de produtos descartáveis com designs criativos dirigidos às grandes redes de hotéis e restaurantes. A outra, bem diferente, era começar a falar disso com sua mãe (ou pior, com seu pai). Da fantasia à realidade havia uma distancia desanimadora. Abriu a porta.


sábado, 19 de novembro de 2011

Eu como você

Em geral os filmes de Almodóvar dispensam apresentações. São filmes que trazem a marca e o estilo de seu “autor”, este espanhol que conseguiu abordar a temática da sexualidade latina (e humana, claro) escancarando o preconceito, mas principalmente o que fica escondido nas bordas, na periferia ou no avançado das noites, quando a grande maioria já dorme em suas camas e casas protegidos. Sua arte não cabe nos bons nem nos maus valores: causa espanto, ambiguidade e surpreende por tocar-nos seja pela com-paixão ou pela perturbação (caso de seu ultimo filme “A pele que habito”). Sem o colorido e o excesso que marcam seus filmes anteriores, neste, Almodóvar parece querer “esterilizar” e até banalizar os impactos da sexualidade ao trazer ao grande público um tema perseguido desde sempre pela humanidade, o controle da vida e da morte ou, se quisermos, o controle (silencio) das dores do viver. Tal como um Dr. Frankenstein pós-moderno, Antonio Banderas interpreta o cirurgião plástico Ledgard, que utiliza como cobaia (de forma inescrupulosa), uma mulher que mantém cativa em sua mansão/ clinica, e na qual irá implantar  um novo tipo de pele transgênica (feita com DNA suíno) que, embora mantenha a sensibilidade ao toque, deixa-a resistente ao fogo, a picadas de inseto e ,é claro, a dor. A frieza/indiferença deste cientista ousado esconde, no entanto, não só sua busca obsessiva pela esposa perdida (e reconstruída nesta mulher-objeto), como sua vingança pela morte da filha, pela qual tentará fazer “justiça” com suas próprias “mãos”. Na medida em que o filme avança e regressa no tempo para situar o espectador, a trama se abre aos personagens almodovarianos, agora sim se apresentando com suas historias dramáticas, seus segredos, infortúnios, perdas, enfim, tudo o que pode tentar justificar o uso e o abuso de uns contra os outros. Há com certeza uma espécie de crítica aos avanços inimagináveis da ciência, mas há mais que isso. Como toda  arte  que exerce seu papel de apontar para valores futuros, transgredindo os vigentes, Almodóvar escancara o homem por trás da ciência  e seu anseio em se apossar do próprio corpo através do  controle de seus excessos, suas vontades, seus prazeres e  dores, em especial, as dores psíquicas. Corpos que se transformam em meros objetos, que podem adquirir novas formas e sexo ou descartar o que não serve. O perturbador da trama é o que ela revela sobre os avessos e sombras do espírito humano - a violência do desprezo, do constrangimento e da humilhação própria das relações de domínio e submetimento. É a constatação de que estamos sujeitos a construir, ainda que de forma defensiva, um eu todo poderoso e onipotente, que facilmente nos conduz ao abuso de poder, ao canibalismo utilitário e instrumental, subvertendo o que temos de mais caro em nossa escalada humana - a possibilidade de dimensionar o valor do outro/ próximo como um parceiro em nossa empreitada do viver. Se é pelas parcerias que podemos enfrentar o medo e os percalços de nosso encontro com a sexualidade e a morte, tal percepção não está dada e nem sempre é possível; precisa ser buscada, desejada, fazer-se necessária. Por isso o filme incomoda, e ficamos sem saber em que arquivo guarda-lo: teremos que inventar ou nos indignar.
Para conferir: A Pele Que Habito (La Piel que Habito) – Espanha 2011
Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O que a gente pode fazer

As dores em seu corpo funcionavam como lembretes ao não lhe deixar esquecer que a noite tinha sido um calvário. Acordara pelo menos duas vezes na madrugada, assaltado por sua angústia e por uma sensação de medo. Talvez não houvesse nada pior do que estes “sentimentos agudos” que ficam a brigar com o torpor do sono até que finalmente vencem a batalha e inundam todo o corpo. Ponto para a  consciência crítica a lhe importunar sem descanso. O quarto ainda estava escuro, mas o barulho da manhã já invadia o ambiente. Tentou evitar olhar para os enormes números digitais vermelhos do relógio, mas eles haviam sido colocados ali no alto justamente para facilitar a organização de sua rotina diária. Medo. Medo de ter que pensar, de ter que se lembrar de tudo. De ter que resolver, decidir, agir. Nestas horas parecia fácil visualizar que à proporção da evolução,também pipocavam formas de se safar do peso da administração da própria vida. Na medida em que o orçamento ganhava algum volume era possível nomear agentes que passavam a funcionar como co-autores desta empreitada. Tinha se beneficiado desta prerrogativa sem nenhuma culpa. Seu secretário “faz tudo” e seu motorista – cuidadosamente selecionados – foram assumindo parte a parte de suas obrigações a ponto de se confundirem com ele mesmo. Os três juntos eram imbatíveis e podiam jogar horas sem deixar a bola cair, tamanha a sincronia. E quando se atinge um estágio em que é possível se ter a ilusão do controle (quase) absoluto é muito fácil se esquecer do imponderável. Do inesperado. Das surpresas. Tem-se a impressão de que a vida vai (mesmo) andar no trilho da tranquilidade, para sempre. Sentiu a vergonha inundando seu corpo, ultrapassando e se misturando por alguns segundos com o tormento do medo – um medo que não ousava dizer o seu nome, uma espécie de covardia autocomplacente. Será que havia estudos sobre estas diferenças, anunciadas pelo corpo, para as sensações de medo/ angustia, vergonha/humilhação, nojo/horror? Cada grupo parecia movimentar órgãos e vísceras específicos, como se fossem tonalidades diferentes de desconfortos. Vergonha de que? Não sabia ao certo, mas tinha dificuldade em se lembrar de si mesmo no passado recente. A figura poderosa que se tornara, um pouco arrogante e muito vaidosa, cuja presença provocava uma ruidosa avalanche de luzes, câmeras e microfones. Pensar que quase todos buscam esta espetacularização de suas vidas, este reconhecimento estampado nos olhos dos outros, a satisfação de estar em evidencia. Tal como um balão de aniversário, foi só a festa acabar para que ele ficasse sem ar, sem função, esquecido ali, à mercê dos que se ocupam da limpeza geral no dia seguinte. De repente  aquela parafernália tecnológica de sua casa que tanto lhe enchia de orgulho, da qual ele se ufanava de ter bolado e conquistado, já não fazia o menor sentido. Aninha bem que tentara lhe alertar. Mas desistira. Na ultima reunião familiar (antes do “desastre”) ela já fazia comentários irônicos, sem aquela preocupação/indignação de irmã mais velha diante dos “maus” comportamentos do caçula. A experiência humana seria mais complexa do que a tarefa de buscar, comprovar e ostentar status, teria dito. Para ela, qualquer atividade humana deveria -  antes de mais nada - ser reconhecida por sua responsabilidade social. Aninha seguia este modelo de gestão de vida, em que os encontros, as reuniões, a solidariedade, as trocas entre as pessoas precisavam ocupar a primeira linha de ações de qualquer ser humano. Balançou a cabeça. Com tantas coisas para decidir, surpreendia-se por este resgate de ideias sobre a vida. Ele que  sempre engrossara o coro dos que  consideravam sua irmã uma militante social, agora sentia-se tal e qual um mendigo desamparado, sem amigos que valessem a pena, louco por uma lembrança que lhe devolvesse um valor, uma medida de sua capacidade de ser amado. Resolveu ligar para Aninha.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Quem sou eu?

Quando o historiador Walter Isaacson, escolhido pelo próprio Steve Jobs para ser seu biógrafo, perguntou-lhe ao final da maratona de entrevistas e conversas sobre sua vida, porque ele, sempre discreto, estivera tão disposto a  se abrir e falar de si, ouviu algo surpreendente. Steve Jobs queria que seus filhos o conhecessem melhor, soubessem de seus feitos e entendessem as razões pelas quais ele nem sempre pudera estar presente. Personalidade midiática, glamourizado e convertido em símbolo, é provável que Steve Jobs quisesse desvendar o homem atrás do mito e quem sabe, ao ajudar a construir textos sobre sua vida pessoal, tornar cada leitor um crítico/parceiro de sua identidade. Não só pelas biografias - que as estatísticas apontam um crescimento jamais visto - mas há hoje um certo apelo para o entendimento de si e o falar de si. E os motivos não parecem simples ou poucos. Por um lado, em um mundo sem critérios rígidos e prévios para eleger celebridades, a fama projeta pessoas dos mais variados setores e as coloca sob o foco da curiosidade mundana, um verdadeiro culto à privacidade pública. Pessoas que se veem, de repente, incitadas a criar discursos atraentes sobre si e a ensinar os passos para se alcançar uma “identidade” bem sucedida. Por outro lado a invisibilidade assusta: como viver sem saber quem somos ou sem ter algum reconhecimento que nos devolva um saber sobre nós? O temor a este vazio (ou vácuo) poderia ajudar a alimentar uma dimensão imaginária do si mesmo? A verdade é que a complexidade do ser humano (que não cessa de aumentar) nos mostra que não há fórmulas mágicas e prontas que possam dar conta de todas as suas dimensões. Desde que nos pusemos a tentar entender nosso “eu” só conseguimos falar de nós como seres fragmentados, ora apontando nossos ideais, nossos sonhos, ora nossas conquistas e triunfos, ou ainda nossas descrenças e medos, nossas fragilidades e impotência, e por aí vai. A psicanalise contribuiu bastante para um olhar diferenciado sobre o funcionamento de nosso psiquismo, nossa subjetividade com seus paradoxos e incertezas. O fato de a cultura atual funcionar  em grande parte pela lógica do marketing, buscando incessantemente capturar  nossos desejos e paixões mais profundos para produzir ofertas de prazer e felicidade, ou criando formas de encantamento que nos projetem e nos tornem visíveis não garante a cada um, um lugar ao sol. No mundo business, por exemplo, a subjetividade ganha espaço e há um verdadeiro mercado de identidades profissionais bem planejadas, cuidadosamente descritas para que ganhem coerência, atualidade e estilo. Se no escurinho de nossas camas, precisamos nos esforçar para acreditar no personagem, nem sempre é fácil “cair na real”  e viver  a vida na sua dimensão real. Ao planejar sua própria biografia por saber que sua vida estava próxima ao fim, Steve Jobs pode ter desejado participar de alguma maneira na perpetuação de sua imagem. Porque não planejar seu futuro pós-morte? No final das contas todos  precisamos “esquecer” que  a vida dura somente o espaço entre o nascimento e a morte  e precisamos sim da construção de uma confiança imaginaria no destino e da criação de ficções sobre a importância que temos para os outros ou sobre o significado de nossos atos corriqueiros.