A roda era formada por alguns jovens casais que
estavam visitando o bebê de um deles e o assunto, o bebê, espalhava um tom
apreensivo naqueles que estavam por decidir sobre seu futuro de pais. Tanto as
“meninas” quanto os “meninos” trocavam ideias com aqueles que já haviam entrado
neste mundo tão perturbador. E as histórias se multiplicavam para dar conta
deste universo inquietante que reina quando um bebê adentra no que era uma
dupla e força a barra para ali se constituir uma família. O que era mais assustador?
O sono dos pais que se perdia na contabilidade negativa? O sono do bebê que não
se encaixava na ansiada expectativa? Seu choro nem sempre decifrável? Sua falta
de linguagem para comunicar sobre seus tormentos, mal estares e dores? Assim seguiam
as narrativas de uns e outros até que em algum momento alguém ousou falar sobre
o mais tabu dos temas: a decepção e frustração que se instala em quase todas as
casas de casais que se tornam pela primeira vez, pais de um bebê. Graças a uma
prática que tem se tornado mais frequente atualmente – e que em certa medida
pode ser benvinda - tem sido possível colocar na roda dos amigos e/ou das
famílias, temas que não só são pouco prestigiosos para os protagonistas da
história, como desnudam suas falhas, seus temores, suas angústias, seu
desamparo diante de situações inesperadas. A maternidade, a vinda de um bebê, a
paternidade, estiveram por muitos anos guardados em um lugar de honra nos arquivos
dos modelos ideais e de grande importância para o bom funcionamento das
sociedades. Em poucas décadas, a ciência construiu uma infinidade de
informações e cartilhas para pais de primeira viagem que pretendia aumentar as
chances de que esta etapa da vida dos casais pudesse ser vivida da melhor maneira
possível. Em parte, as gerações atuais de pais se beneficiam deste aparato,
principalmente na quebra de muitos mitos e tradições seculares nem sempre
benéficas. Também é verdade que a profusão de informações que hoje existem
sobre a gestação, o parto, os primeiros cuidados, etc. colocam para estes a
difícil tarefa de separar o joio do trigo, ou de escolher o que lhes parece se
encaixar melhor em seu modo de vida. Mas ainda que os pais se esmerem na
preparação para o que virá, a vinda de um bebê desconstrói o modelo ideal. Não
há como evitar a surpresa, a estranheza e o enigmático que ronda esta passagem
de um ser que demanda cuidados de todas as ordens e que precisará, graças a
estes cuidados, ser adotado pela cultura e “domesticado” até se tornar familiar.
Não é fácil para estes pais viverem este período em que eles são tão
responsáveis por esta passagem, sem se sentirem frágeis, assustados, temerosos
quanto a suas possibilidades. Há no horizonte do futuro dos bebês, um devir
indeterminado e incerto, e isso é bastante amedrontador. Além disso, outro
processo nada simples precisa acontecer: o casal deverá deixar seu lugar de
filhos para tornarem-se pais. Mas talvez o maior dos mitos, o do amor imediato
e incondicional que “deve” se instalar entre o pequenino ser e seus pais, seja
o mais desolador, já que a ninguém parece admissível que se possa ter momentos de muita raiva e ódio e outros de
tanto amor ao próprio filho. Por isso, as rodas de conversa entre amigos e
familiares, quando são acolhedoras destes temores e sustos, podem auxiliar os
pais a narrarem seus sentimentos, pensamentos e atos, o que pode contribuir
para uma “reorganização” deste tumultuado período.
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segunda-feira, 20 de outubro de 2014
segunda-feira, 7 de julho de 2014
Ferida mortal
Mesmo sem assistir a todos os jogos da Copa, é quase
impossível não tomar ciência de seus resultados, dos times que merecem as
preferencias dos que curtem futebol, daqueles que são temidos, mas respeitados,
e assim por diante. O Uruguai, ao contrário da Argentina, desfruta a simpatia
do povo brasileiro, que em sua grande maioria, torceu para que no segundo jogo
desta equipe na Copa, e após sofrer uma derrota no primeiro, eles conseguissem
ganhar, o que significaria eliminar a equipe da Inglaterra para não ser
eliminado. Foi o que aconteceu, com dois gols marcados por seu artilheiro Luis
Suárez. As manchetes das mídias reproduziram muitas vezes as cenas de suas
celebrações dos gols. No primeiro, ele corria gritando, punhos cerrados, olhar raivoso
a cobrar de todos o reconhecimento por seu esforço e a glória da vingança. No
segundo, após repetir os mesmos gestos correndo em direção à torcida e
encarando as câmeras de TV, ele sucumbiu à emoção e chorou. Nas entrevistas que
concedeu no pós-jogo, parecia-lhe ser importante manifestar seu ressentimento
com a imprensa em geral. Alguns que o conheciam pela atuação nos times europeus
já sabiam de seu passado de “mordedor”, apelido cunhado graças às duas mordidas
que dera em jogadores adversários quando jogava para um time da Holanda e
alguns anos depois para um time da Inglaterra, ao qual ainda pertence. Nas duas
vezes havia sofrido punições das Federações de Futebol destes países, ficando
fora de alguns jogos. Se este passado assombrava sua convocação para a Copa,
Suárez ainda teve que passar por um teste final, uma recente cirurgia no joelho
que ameaçava deixa-lo de fora. Por isso seu “grito” de gol tinha um sabor de
superação, de volta por cima. Eis que no jogo contra a Itália, cujo resultado
valeu a classificação de seu time para as oitavas de final, Suárez “morde” o
jogador italiano Chiellini, é afastado dos jogos da Copa, punido com multa e
volta antecipadamente para o Uruguai, deixando sua equipe amargando não só o
infeliz episódio, mas a sua falta. Da consternação à indignação, com direito a
compaixão de alguns, a condenação sem piedade de outros e o assombramento pelo
ato agressivo e intempestivo, a imagem do Suárez “mordedor” se espalhou mundo a
fora, e foi ovacionada pelos chargistas, tanto os profissionais quanto aqueles
que se deliciaram em criar suas próprias charges nas redes sociais. Mas grande
parte da população procurava respostas ao ato que se repetia, fora de lógica,
já que o esperado seria que ele tivesse enterrado este passado para sempre,
diante dos prejuízos morais e profissionais que lhe causara. Como é possível?
Quem consegue explicar? Seria uma
espécie de loucura? O episódio ainda gerou debates e polêmicas que incluíam os
limites toleráveis de certas manifestações agressivas, comuns em partidas de
futebol. Algumas delas foram relembradas, como a cabeçada do jogador francês
Zidane em resposta a uma provocação maldosa de seu adversário italiano na Copa
de 2006, que redundou em sua expulsão e ajudou a Itália a conquistar o título
de campeã. Detalhe: Zidane não foi punido pela Fifa, o que parece colocar sua
infração a um nível mais suportável para todos. Sabemos que na sociedade
moderna a convivência entre as pessoas, matriz importante da manutenção da
“civilizaçao”, é mantida por pactos sociais que garantam minimamente os
direitos e a liberdade de cada um. A cada era em que a barbárie se impõe, como
nas guerras e outros conflitos, somos convocados a repensar a civilização, ou
seja, as normas que inventamos para sua manutenção. A grande maioria dos
Estados atuais é democrática, assim como suas instituições, mas precisam manter
sistemas de punições que sirvam como modelos e valores que representem as
expectativas que temos para a continuidade da vida social. Em geral o infrator
é aquele que quebra este contrato, sai do pacto social e volta ao estado de
natureza. Ao fazê-lo, ele provoca um sentimento de indignação em todos que às
duras penas mantêm este pacto, sentimento este que justifica o desejo de
punição pelo seu crime. Ele não merece proteção! Pelo leque de reações que
Suarez provocou, no entanto, podemos dizer que em nossa era, para além das
medidas e limites que as normas sociais impõem, admitimos que o mundo interno
de cada um seja tumultuado e possa ser muito desorganizador. A mordida é uma
reação bastante primitiva, muito utilizada pelos pequenos quando se sentem
ameaçados e com raiva, mas consensualmente rejeitada e reprimida por todos os
adultos desde cedo, na expectativa que eles se submetam ao processo civilizatório,
o que explica o estranhamento deste ato quando praticado por um adulto. No
entanto, se a punição da Fifa a Suárez foi considerada excessiva para muitos, é
bem provável que a pior parte de sua pena seja conviver com a vergonha e a
humilhação de não ter conseguido evitar tal comportamento e quem sabe participar
com a Celeste da conquista do campeonato mundial.
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Raízes
Um amigo querido, que deixou sua sulina cidadezinha
de origem há tempos, precisou retornar ali para resolver questões familiares
pendentes. Aproveitou a oportunidade e estendeu sua estadia por alguns dias,
visitou parentes próximos e distantes e personagens importantes de sua
infância. Ao retornar, sentiu-se estranhamente tocado por aquela visita. Após
alguns dias, sonhou que encontrava seu primeiro carro, um fusca ano 65, em uma
garagem qualquer. No sonho ele se espanta muito, pois até então tinha certeza
que havia vendido seu fusca, tempos antes de sair de sua cidade natal. Ao
acordar põe-se a perguntar sobre o significado daquele sonho, ligando-o aos
impactos de sua recente viagem. Nascido em uma família de imigrantes, sua
infância tinha sido particularmente dura, tendo seu pai o deixado (e aos seus
dois irmãos) ainda criança, vítima de um infarto fulminante. Só agora, com mais
de sessenta anos, podia rememorar alguns fatos mais alegres deste tempo, e
articular uma historia em que o sofrimento não lhe parecesse tão excessivo. A
imigração tem este duplo movimento. De um lado o imigrante tem um forte motivo
para sair de seu país, e mesmo contra a sua vontade, é na busca de uma nova
chance que ele escolhe seu novo destino, precisa enfrentar as decorrências de
sua expatriação, e tentar acolher a nova cultura do lugar que o recebe. Sua
língua materna poderá se manter no âmbito privado, mas ele terá que aprender a
dominar a nova língua, e entender os costumes e os valores daquela comunidade.
Não é difícil imaginar como este processo é árduo e requer um empenho das
famílias em adaptarem-se à nova cultura, muitas vezes à custa de um
“apagamento” de suas raízes. Há famílias de imigrantes que acolhem o
“estrangeiro” do novo lugar com mais facilidade e se abrem rapidamente ao
convívio, esforçando-se para serem aceitos ou para se integrarem às novas normas. Outras, ao
contrário, temem não serem aceitas ou rejeitam sua situação de estrangeiros,
fecham-se e voltam-se para uma tentativa de manter as tradições e os costumes
de sua antiga morada, como a negar a mudança, o novo. Para estes, cabe aos
filhos, muitos deles nascidos na nova pátria, se apropriarem desta nova
identidade e aos poucos, construir um outro roteiro, fora daquele que seus pais
tentam manter. São os filhos que frequentarão as escolas, criarão novos laços,
e planejarão um futuro alternativo. De certa maneira a imigração força uma
posição de apátrida, que pode ser vivida como uma abertura para o novo e o
diferente ou pode ser mantida com ressentimento e sentimento de perda. Meu
amigo tinha programado seu retorno à cidade natal com muito entusiasmo. Na era
digital e de fácil comunicação, trocou e-mails e mensagens com antigos
conhecidos, alguns também filhos de imigrantes como ele, e empenhou-se em fazer
valer sua visita. Só quando voltou, percebeu que havia feito uma viagem mais
subjetiva do que imaginava. Aos 18 anos tinha deixado sua cidadezinha para estudar
na Universidade da capital de seu estado; depois sua formação acadêmica lhe
exigira passar alguns anos fora do país e quando voltara, havia fixado
residência em São Paulo. Com uma carreira bem sucedida, estava longe dos tempos
de pobreza e escassez de sua infância. Alguns dias antes de viajar, decidira
trocar seu carro por um modelo que namorava há algum tempo. O reencontro com o
fusca ano 65 que o sonho lhe proporcionou permitiu-lhe mergulhar no passado, assim como a viagem aos
lugares da infância. Mesmo sem perceber, havia podido fazer um resgate de suas
raízes, acrescentando o prólogo no livro de sua vida. Sentiu-se satisfeito.
quinta-feira, 15 de maio de 2014
A invenção do mundo da criança feliz
Um fictício observador “estrangeiro”, ao constatar o
espaço privilegiado e acintoso que as crianças têm em nosso mundo atual, cercadas
de mimos e preocupações dos pais, educadores, médicos e psicólogos, não
imaginaria que por muito tempo, nem a infância ou a denominação de criança
sequer existiam. Os pequenos eram tratados, vestidos e retratados como adultos
em miniatura. O historiador francês Phillipe Aries descreve a “descoberta da
infância”, que teria ocorrido a partir do século XIII, como um lento processo,
graças ao qual os pimpolhos, que na alta Idade Média só recebiam nome se
persistissem em viver, foram ocupando o centro das atenções e da família moderna.
Os pais, ao invés de proprietários, passaram a serem os protetores da família e
as mães, gerentes dos afazeres domésticos,
aquelas que cuidavam de seus filhos, que na era moderna vão garantir a
perpetuação da família. Hoje as crianças são crianças e não mais adultos
pequenos. Elas têm maneiras de pensar e sentir que lhes são próprias e como
parte da sociedade civil, tem leis especiais que as protegem de quaisquer
abusos. Houve uma progressiva valorização do lugar que elas ocupam tornando o
filho, no decorrer do século XIX e XX, o centro da família e objeto de
investimentos econômicos, educacionais e afetivos. Tudo o que se refere a
crianças é considerado da maior importância por todos os setores da sociedade,
sendo que os pequenos são responsáveis por uma enorme fatia dos investimentos
financeiros em criações ininterruptas de objetos destinados a compor um mundo
de conforto e felicidade. No Brasil, há alguns anos, instituiu-se uma prática
entre os casais grávidos de classes médias altas e altas, de programarem uma
viagem para Miami, que segundo cálculos de todos os que lá estiveram, somados
passagem, estadia e algumas malas de apetrechos e roupas de recém-nascidos,
seus bebês desfrutariam do que haveria de mais moderno no mundo sem que o custo
fosse excessivo. Com o tempo, esta prática difundiu-se de tal maneira que
“sites” de roupas e objetos utilizados por bebês passaram a ser compartilhados,
com listas já elaboradas por terceiros, o que permitia que as compras pudessem
ser feitas antes mesmo que a viagem acontecesse. Parte importante deste
enxoval, o enfeite da porta da maternidade, a mala contendo as roupas a serem
utilizadas ali pelo bebe, as lembrancinhas para as visitas e as câmeras prontas
para registrar o evento desde o começo. Ah sim, e alguma “bíblia” contendo TUDO
o que pode acontecer no primeiro ano do bebê. Tudo pronto, resta compartilhar
do clima festivo e agitado da maternidade, que em cidades cosmopolitas como São
Paulo é acrescido do número cada vez maior de grávidas e seus familiares. Há
filas para o estacionamento, para se cadastrar na recepção do hospital, para
utilizar os elevadores. Já dentro é curioso passear pelos corredores dos
quartos enfeitados, ler o nome de cada criança que acabou de nascer e imaginar
uma historia de vida futura para cada uma. Imperdível é gastar alguns minutos no
berçário, todo envidraçado, com fileiras imensas de recém-nascidos, alguns
dormindo tranquilos, outros agitados chorando. E agora nenéns? Cada um de vocês
representa uma aposta, um porvir. Em geral seus pais não sabem ainda muito bem
como eles devem se portar para que vocês se tornem pessoas felizes. É quase
certo que eles terão muitas dúvidas sobre o que e como agir diante dos impasses
que vocês criarão. Mas parece certo também que há uma distancia que precisa ser
ajustada, entre a insistente promessa do mundo feliz e sem sofrimentos que eles
imaginam para vocês, e a difícil e
importantíssima tarefa que eles terão que desempenhar para que vocês se tornem
alguém de valor.
terça-feira, 4 de março de 2014
Não deixem que eu me lembre
Uma das pedras
basais da leitura psicanalítica de nossas vidas psíquicas é o papel da memória,
e nossos esquecimentos nada casuais. Muito cedo Freud descobriu quão
frequentemente precisávamos “apagar” ou “maquiar” certas vivências
demasiadamente impactantes, porque na ocasião em que elas ocorriam, não
dispúnhamos de recursos para “organiza-las” de forma a encaixa-las em nossa
vida psíquica, sem um quantum excessivo de dor e sofrimento. Claro que isso não
acontece sem custos. Em geral construímos defesas e proteções para que estas
lembranças não nos importunem, mas pouco sabemos sobre todo este processo
complicado. Freud chamou isso de neurose e convidou aos que quisessem e
pudessem, a se submeter ao seu método de associação livre com o propósito de
reescrever/encontrar novas narrativas sobre suas vidas, recuperando e colocando
novos significados naqueles fatos difíceis de sua própria historia. Constatou,
no entanto, que nem todos estavam dispostos a “remexer” em seus baús e suas
incômodas lembranças. Em um texto da Ilustríssima deste domingo há um relato
sobre um encontro em 2001 do então já conceituado artista plástico britânico Steve
McQueen com uma turma de estudantes de artes plásticas da FAAP (Fundação
Armando Alvares Penteado) em que ele, negro, quer saber por que ali não há
negros. Ao constatar o mal estar provocado por sua pergunta, e a falta de
preparo de todos para um debate sobre a discriminação no país, deixou claro seu
estranhamento. Em tom provocativo, afirmou que no Brasil certas questões pareciam
ficar deliberadamente fora, como se não existissem. Não era o caso dele.
Seu mais recente filme, "12 Anos de
Escravidão", baseado nas memórias do negro Solomon Northup publicadas em
1853, concorre a nove Oscars e está dando o que falar. Solomon nasceu livre e viveu
em Nova York trabalhando como carpinteiro e violinista até ser sequestrado e
vendido como escravo para uma fazenda no sul dos Estados Unidos, poucos anos
antes da guerra civil. Sem conseguir provar ter nascido livre, é submetido a
todos os tipos de violencia, crueldade e humilhaçoes. Vale notar que McQueen é o terceiro cineasta negro
indicado ao Oscar em 86 anos de
premiações. Nunca um
diretor negro levou a estatueta. Mas se
quisermos pinçar apenas uma das inúmeras diferenças quando o tema é racismo, ao
menos nos USA o assunto (a história) é debatido e pode até ser premiado. Neste
ano de 2014 o início da primeira guerra mundial faz cem anos. No Brasil, o
golpe militar de 1964 faz 50 anos. Os 20 anos de ditadura militar são outro
tema tabu para nós brasileiros. Não só não se comenta ou se reflete sobre estes
acontecimentos como parece haver um repúdio aos que, tendo sido vítimas direta
ou indiretamente deste período de exceção, insistem em trazer à tona fatos e
versões enterrados. O “descaso” é generalizado. Ao contrário do que parece, no
entanto, nossa indiferença moral diante de certas injustiças sociais, nossa
franca preferencia pela negação da existência destas injustiças ou da
responsabilidade social e politica que cabe/coube a cada um, nos joga em um
processo de anestesia e de ignorância quanto a nossa história. Seríamos ainda
uma sociedade tão frágil e tão infantil a ponto de não suportar debater nossos
equívocos ou nosso passado?
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
Mocinhos e bandidos
A verdade é que não faz muito tempo, tínhamos um
futuro muito grande à nossa frente, cheio de lugares que quase ninguém conhecia,
homens ainda em estágios primitivos de civilização, e uma enorme parcela da
população mundial apostando em um mundo melhor, em que se pudesse viver mais
feliz e tranquilo. Não por acaso, nas primeiras décadas da invenção do cinema,
os filmes apresentavam os duelos entre aqueles que buscavam um mundo mais justo
e esbanjavam valores dignos na caça dos que insistiam em seguir as próprias
leis, sempre em benefício próprio. Também os dramas amorosos seguiam a rota do
bom-mocismo e todos os desvios, fossem dos homens que não conseguissem renunciar
à suas vidas de playboys ou das mulheres que se divertiam em seduzir os casados
ou comprometidos, acabavam devidamente punidos (para o alívio dos
espectadores). No “the end”,eram os homens e as mulheres do bem que formavam os
casais que iriam viver felizes para sempre. Tempos bons, diriam muitos a
suspirar. Tempos em que era possível viver com a esperança de algum futuro promissor.
Tínhamos tanto a aprender! Mas quem sabe, porque tivéssemos um espectro
importante de algo a acontecer, podíamos nos abrigar em polarizações simplistas
sobre nós mesmos, dividindo-nos entre mocinhos e bandidos, cada um em seus
devidos lugares. À medida que as ideias de democracia, liberdade, justiça, direito
à crítica, tolerância ou solidariedade avançaram em paralelo com o progresso da
tecnociencias e a complexidade do mercado financeiro global, o mundo se tornou
mais difícil de ser compreendido. Nossa tarefa civilizatória parece ficar cada vez
mais exigente. Por outro lado, o mundo tornou-se nossa casa e se ninguém nos
avisa, nem nos lembramos de como chegamos até aqui. Não gostamos muito de
imaginar que a Terra é um planeta que pode desaparecer ou que como “homens” que
evoluímos até aqui, teríamos por obrigação pensar o futuro dessa humanidade.
Mas que futuro e para quê? O convite do aqui e agora é bastante sedutor, pena
ser o responsável por nos jogar inevitavelmente em uma lógica utilitária: vivo,
penso, faço somente o que acho que será útil para mim e os meus. Assim, também,
seguindo os mesmos critérios, é possível classificar o que é bom ou ruim, o que
é do bem ou do mal. E quanto mais superficiais nossas análises, mais amamos os
iguais e odiamos os diferentes, adoramos os que nos premiam com a satisfação de
nossas expectativas e detestamos os que não nos dão importância ou nos
frustram. Basta que o “tico e o teco”, nossos neurônios básicos, mantenham seu
funcionamento mínimo, não nos exijam muito esforço e nem excessiva perda de
tempo. Opa! Parece que mesmo que o mundo tenha ficado mais complexo,
continuamos a utilizar nossa lógica binária para dividir o mundo, os homens e
suas ações em bons e maus. Talvez esta seja uma das características mais
importantes de nossa humanidade. Não abrimos mão deste conforto. Queremos
ordenar o mundo, as coisas e as pessoas de modo a não ter que acionar nossos
medos, assombrações, inseguranças e incertezas. Quando classifico tudo com
minhas certezas não há porque me inquietar. Sou um homem comum, como todos os
homens bons.
Emocionalmente humanos
Na Folha de SP do dia 11 de fevereiro, no caderno
Equilíbrio e Saúde, uma notícia divulgava o resultado de uma pesquisa feita por
professores de duas Universidades finlandesas que teriam selecionado 700
pessoas para tentar “mapear” as alterações físicas que cada emoção humana
provoca em nosso corpo. Para incita-las, foram usados palavras, músicas, filmes
e as alterações como dados possibilitaram a criação de um software que montou
um circuito para cada emoção, sendo a raiva, o medo, o desgosto, a felicidade,
a tristeza e a surpresa consideradas emoções básicas e a ansiedade, o amor, a
depressão e o orgulho suas correlatas. No final, comemorava-se o fato de serem
as emoções universais já que tanto o computador quanto as pessoas que
participaram reconheceram as emoções descritas e seus efeitos no corpo. É
verdade que mais do que em qualquer outra época, hoje podemos partilhar nossas
emoções apostando que nosso interlocutor entenderá nossa descrição sobre elas-
e seus efeitos físicos ou mentais- ainda que ele não esteja sentindo o mesmo
naquele instante. Ou seja, graças a um grande acervo construído culturalmente,
e muito alimentado pela literatura, cinema, TV, música, é fato consumado o uso
em expansão de descrições sobre o impacto do que nos acontece e como
expressamos através das emoções, nosso
repúdio ou nosso regozijo. Mas a verdade é que o modo como cada um se deixa
“afetar” pelas emoções, se pode ou não refletir sobre quais sentimentos cada
uma delas desperta em si, ou ainda reconhecer o quanto as alterações que elas
nos causam interferem na nossa visão sobre o mundo e as pessoas, não é nenhuma
tarefa simples ou fácil. Vejamos a polêmica sem fim que o aprisionamento de um
moleque de rua do Rio de Janeiro em um poste com um cadeado de bicicleta, sem
roupas, durante a madrugada causou. Há quase uma semana, repórteres, colunistas
e blogueiros tem se manifestado contra ou a favor. Do lado dos que repudiaram
os justiceiros cuja missão seria intimidar possíveis assaltantes nas ruas da
cidade do Rio de Janeiro, colocaram-se os que classificavam o ato como uma
violência excessiva, um jeito truculento de eliminar aquele “resto” humano que
perambula pela periferia da vida. Do lado dos que se solidarizaram ou ao menos se
sentiram vingados por todas as ameaças que sofrem em seu dia a dia, estavam
aqueles que se sentem inseguros e buscam ansiosamente indícios que possam
garantir um mundo sem violência. Se quisermos aproveitar os dados fornecidos
pela pesquisa citada acima, no primeiro caso, vigoram emoções como desgosto,
tristeza, surpresa, mas no segundo, o medo e a raiva são os destaques. Fica
fácil fazer um julgamento moral e classificar um ou outro lado como sendo o
correto. Parece que ambos os lados se posicionam acreditando que suas “emoções”
são legítimas e valem quanto pesam. Prefiro classificar, embora de forma
reducionista, ambas as partes como representantes de nossa humanidade. E é bom
que não nos esqueçamos do quanto o medo, considerada uma emoção básica na
pesquisa , está na base de muitas de nossas crenças e valores. Para o bem e
para o mal.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
Um menino tímido
Uma jovem amiga com quem trocava ideias sobre a
árdua tarefa dos “meninos” na construção de uma imagem de si minimamente
confortável para ser exibida entre seus pares, confessava sua aflição em
relação ao filho de 20 anos. Tímido e solitário, apesar de ser portador de uma
inteligência acima da média, ele oscilava constantemente seu estado de humor,
ora atribuindo-o à sua escolha do curso universitário, ora ao próprio curso e
seus alunos, ora à cidade, que lhe exige morar longe dos pais. Mantendo uma
prática de conversas familiares exaustivas, no final ele concordava que sua
timidez, ao mesmo tempo em que o protegia da convivência com toda a população
universitária (colegas, professores, funcionários) o isolava, deixando-o sem
saída. Tema de alguns textos que vez por outra a retomam como foco de atenção,
a timidez como fator que pode obstruir e dificultar a vida de muitos que temem
agir
de forma ridícula ou inadequada na presença de outros, tem sido mais pesquisada
recentemente sob o nome de fobia social, um novo transtorno reconhecido pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) que atinge 5% da população mundial. Em geral
as pesquisas que são feitas em centros universitários, salvo algumas exceções, requerem
classificações e resultados que possam ser facilmente compartilhados pelo mundo
científico e afins. É verdade que a timidez não é um comportamento novo ou
circunscrito ao mundo atual. Mas também é verdade que uma análise das
patologias mentais não pode se furtar de investigar os modos como cada cultura
constrói e organiza a vida subjetiva de seus indivíduos. Se no século passado
esta análise privilegiava os conflitos internos e elegia a culpa como organizadora
da vida subjetiva, responsável pelo descompasso entre o que se queria, o que se
podia e o que se conseguia ser/ fazer, o mundo de hoje demanda uma exposição de
si em busca do olhar de aprovação e reconhecimento do outro, que sendo
necessário, é paradoxalmente desastroso, muitas vezes, para a construção de uma
imagem de nós minimamente confiante. A origem destes sofrimentos situa-se em
geral nos primórdios da vida e são as falhas e faltas nas relações com os
cuidadores e com o ambiente que protagonizam as patologias. Quando não
conseguimos construir defesas que nos protejam, é a vergonha que elegemos como
um sentimento de inadequação geral. O olhar dos outros passa a ser temido e
evitado, mas isso supõe um sofrimento já que não é possível existirmos sem a
confirmação do olhar dos outros importantes, o que nos tornaria invisíveis. Se
todos somos convocados a exibir nossa performance para entrar na roda da vida
compartilhada, não é difícil imaginar o sofrimento dos que se sentem
envergonhados por não acreditar que possam vir a ser reconhecidos como outro
qualquer. Eles precisam de ajuda para criar uma narrativa de si e com alguma
costura tornarem-se autor de sua historia, uma historia que minimamente lhes
pareça valer a pena ser compartilhada.
domingo, 5 de janeiro de 2014
Odeio o Natal
“Odeio o Natal! E só agora, adulta e mais velha,
tenho coragem para falar sobre isso e repetir para quem quiser escutar” –
Confesso que me causou espanto ouvir esta frase de uma conhecida, e não pude
deixar de me interessar por suas razões. Ela girou e girou sobre suas
convicções, argumentando que não se lembrava de ter se sentido feliz ou
empolgada em nenhum dos Natais de sua vida. Ao contrário, o clima festivo lhe
parecia forçado e a alegria de todos à sua volta, incompreensível. Como boa
“escutadeira” de historias de vida, fiquei ali insistindo em achar alguma dor
esquecida que ficasse fora do espectro de sua percepção, mas que pudesse ser
capturada por mim. Mas fui novamente surpreendida com outro relato, agora de um
amigo, que parecia satisfeito em poder expressar ali seu mal estar por ocasião
da aproximação da época natalina. Separado há alguns anos, embora tivesse
filhos e namorada, preferia se isolar nos dias destas festividades familiares
viajando sozinho para sua casa de praia. Ali tentava fazer um “spa mental”
recuperando os momentos importantes e/ou decepcionantes do ano que se acabava,
para dimensionar melhor o que entrava. Motivo de preocupação dos filhos e dos
irmãos, seu telefone não era desligado, ao contrário, gostava de atender e
ouvir as aflições de todos pela sua opção ermitã. Alguns amigos presentes se
solidarizaram argumentando a favor do repúdio dos dois. Outros preferiram
manter o silencio, talvez em uma tentativa de respeito ou por imaginarem que
eles fariam parte de uma estatística de exceção. De atenta aos relatos para a
detecção dos caminhos de seu sofrimento passei a questionar minha opção. É
verdade que os dois haviam exibido suas feridas, ainda que veladamente, e o
Natal - esta festa de origem cristã que hoje é quase universalmente celebrada
como um momento de confraternização entre pares e familiares – podia ser mal
visto por ambos justamente por expor suas faltas e lembrar-lhes suas dores. Para
manter a empolgação e a alegria da data seria necessário compartilhar com a
maioria e sem muitos questionamentos, do clima de ilusão e esperança que
circula, que de certa forma parecem necessários para alimentar os sonhos. Não é
comum que se pare e se reflita sobre os excessos que facilmente se comete com
comidas, bebidas, presentes ou sobre os possíveis dissabores das obrigações em
torno das convivências e conveniências sociais. Pus-me a pensar que, se cada
época da história tem seus constrangimentos, a atual leva muitos de nós a ter
vergonha de não ser feliz. Com a disseminação da promessa de felicidade para
todos como um ideal possível de ser conquistado e mantido, o “deficiente”, o
insuficiente, o atrapalhado, o mal sucedido, passam a ser mal vistos e
imediatamente categorizados como fracassados. Resolvi olhar para aqueles amigos
como bravos resistentes a este imperioso e exigente ideal de felicidade. Que
cada um de nós possa ter o Natal possível ou não tê-lo se não puder/quiser!
quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
Sem-noção
Adjetivo praticamente instituído nos tempos de hoje,
o “sem-noção” ganhou um lugar comum nas conversas cotidianas quando queremos
nos referir a alguém que adota comportamentos, vestimentas, diálogos ou modos
de vida que causem muito estranhamento por nos parecer excessivo, descabido ou
desrespeitoso. Isso pode se aplicar a questões morais, mas também ao
exibicionismo ou a certa intransigência, autoritarismo e/ou violência nas
relações pessoais. É assim que no convívio, estas pessoas ganham uma identidade,
são sem- noção, e passam a ser consenso entre os que o conhecem a tal ponto que
basta utilizar tal adjetivo para que o diálogo sobre o fulano passe a ganhar um
novo entendimento. É como se todos que participassem daquela conversa- em que o
sem-noção não está presente – soubessem que ele tem limitações importantes e definitivas
sempre que está em jogo o convívio, as trocas, os salamaleques, as delicadezas,
etc. A classificação acalma e apazigua as inflamações e indignações sobre ele.
Mas porque este tipo parece proliferar? Quem é o “sem noção”? Um disfuncional? Arrogante?
Maldoso? Autoritário? Foi a partir de um questionamento feito por alguns amigos
próximos quanto à maior incidência de “sem-noções” que o tema ganhou discussão acalorada
em uma roda de conversas. Foram lembrados alguns personagens que ao
conquistarem uma posição social mais alta, passam a acumular objetos que lhe
emprestam visibilidade e prestigio, e a praticar nos espaços públicos, ou um exibicionismo
ruidoso com publicações em redes sociais de fotos que comprovem sua vida de
celebridade ou certo autoritarismo, exibindo sem qualquer constrangimento uma
discriminação em relação aos comuns. Seu carro pode parar em locais não
permitidos, por exemplo, em fila dupla ou com o pisca ligado enfrente a bancos,
escolas, farmácias, etc., como se concedessem a si próprios privilégios vetados
aos outros mortais. Mas também foi destacada certa falta geral de etiquetas e
limites fundamentais para espaços compartilhados. A impaciência que muitas
vezes desemboca em comportamentos ou falas violentas e que vem sendo cada vez
mais comuns no trânsito chega a assustar. São buzinas e gritarias para qualquer
cidadão que estiver obstruindo o caminho. E assim, outras situações foram
elencadas, desde atender o celular em qualquer lugar ou hora e falar por tempo
indeterminado sem diminuir o tom de voz até sentir-se à vontade para tecer
comentários sobre qualquer assunto, com pessoas que não são íntimas, sem que
estas tivessem feito algum convite. Ao final, permanece a impressão de que
estamos diante de pessoas que não construíram internamente uma percepção de si
e dos outros que lhes possibilitasse gestar
sua convivência pública. Alguns argumentos se impuseram. O “sem-noção” seria um
personagem tupiniquim? Ele incide mais em certos países em desenvolvimento tal
como o nosso, que não têm um histórico civilizatório importante? Diante da
demanda do mundo contemporâneo para que cada um gerencie sua própria vida, quem
se ocupa de oferecer subsídios para que sejam preservadas algumas regras
mínimas de convivência desde que a família de origem perdeu seu espaço antes
único de doador destas referências? Sabemos que na atualidade, ao ser convidado
a se tornar visível para confirmar sua existência no mundo, cada individuo faz
uma leitura pessoal deste percurso, segundo seus critérios ou possibilidades.
Ainda que a maior parte da população mundial nunca tenha desfrutado de tamanha
liberdade de escolha para suas vidas, o que parece se impor ao convívio humano
é que deve caber a cada um o trabalho psíquico de construção de um lugar de “
ser gente”. De fato, em pequenas ou grandes proporções todos podemos ser “sem-noção”.
Tornar-se alguém benquisto, amável e educado exige uma métrica de autocrítica
que não faz parte da genética de ninguém, ao contrário, precisa ser exaustiva e
ativamente construída ao longo da vida, o que transforma tal lugar em um posto
a ser conquistado, que tem seus custos sempre atualizados.
domingo, 13 de outubro de 2013
Somos tão jovens
Dias atrás, uma notícia na mídia que divulgava a
nova orientação para psicólogos americanos sobre a extensão da adolescência até
os 25 anos, ao invés dos 18 anos, abria um debate sobre a infantilização dos
jovens, levando em conta especialmente o alongamento do período de sua
permanência na casa dos pais. Não é dificil confirmar estes dados
estatisticamente e é provavel que a tal mudança de diretriz estivesse
« atualizando », ou melhor, ajustando as políticas públicas para
garantir por um período maior uma assistencia diferenciada aos jovens no campo
educacional, social, médico e jurídico. Como sempre acontece, as leis precisam
contemplar as mudanças da cultura, que nas últimas décadas alteraram e muito o
vetor de nossas crenças e parâmetros. Mas imaginar que os jovens já não aspirem
mais tornar-se independentes pode ser uma ideia reducionista quando analisamos
quão « jovem » é a estética do mundo contemporâneo. Se os oráculos de
Delfos significavam para os gregos antigos um recurso (sagrado) para a obtenção
de respostas sobre problemas cotidianos, questões de guerra, vida sentimental,
previsões de tempo, etc, hoje para decifrar o futuro a mídia fareja as novidades
sem fim que surgem do mundo jovem. A máxima de que o que importa para os jovens
é o presente estendeu-se para todos. O mundo atual nos convida a viver o mais que
pudermos, a desfrutar de tudo o que conseguirmos, a buscar prazer no que fazemos, a sermos feliz, etc. Seguindo
esta lógica, desde o instante em que nascem desejamos que nossos filhos sejam
lindos, inteligentes, carismáticos, felizes, competentes, amados, magros. E o
que querem os jovens hoje? Entre outras coisas buscam aflitos uma maneira de
cumprir tantos ideais. Se as gerações anteriores precisavam ralar para se
safarem dos valores preestabelecidos e cultuados pelos pais e sociedade,
rasgando os protocolos e rompendo com os constrangimentos sociais, a geração de
jovens hoje precisa encarar o fato de que o futuro está em aberto e tudo pode
ser possível. Paradoxalmente isso tem sido motivo de muito desamparo e aflição
(pânicos, depressões, drogas), já que para se tornar “gente” é preciso
construir um “eu” que dê conta do recado, ou melhor, dos inúmeros recados: seja
do mundo interno, sempre tumultuado com suas paixões, dores, medos e
desencantos, um mundo que jamais é silencioso ou isento e quando isso acontece
convém desconfiar ser uma tentativa (muitas vezes sintomática) de controlar e/ou
se proteger do tumulto ; seja do mundo sociocultural com suas inúmeras
demandas de competencia, que exige ainda um saber se colocar diante dos outros
e a construção de um lugar para si que possa ser reconhecido tanto no plano
profissional quanto no amoroso. Difícil encarar a vida sem se anestesiar ou
enlouquecer. Se admitirmos que a família já não tem o mesmo peso na definição
dos destinos (o plural é importante ) dos jovens, ao mesmo tempo em que isso
pode abrir portas inusitadas e importantes, também pode paralisar e engessar.
Muitos jovens se sentem insuficientemente preparados para um futuro que depende
tanto deles para ser construído. Se tal afirmação pode explicar em parte o
aumento desta “gestação” do jovem antes de se “jogar” no mundo em busca de um
futuro, é verdade que nós, pais, também vivemos nossas incertezas e ficamos muitas
vezes entre a constatação (e a frustração) de que nossos pimpolhos não estão preparados e
a agonia diante do que fazer para ajuda-los/incentiva-los a decolar. A boa
notícia é que a grande maioria dos jovens faz uso de uma nova prerrogativa ao
construir redes de amizades que podem funcionar como suplência interessante
para o debate de suas questões
As teclas pretas das teclas brancas
Em minha família,
pianos abertos, prontos para serem tocados por quem quisesse era (e ainda é)
uma cena comum. Tínhamos um em nossa casa, em cada uma das casas de nossos avós
e de muitas de nossas tias. Quando éramos pequenos, minha mãe, que havia se
formado no Conservatório Dramático e Musical de Araraquara, costumava tocar as
músicas de um maravilhoso álbum de Chopin lançado por ocasião do filme sobre
sua vida - À noite sonhamos (1945)- com a seleção da trilha sonora. Por conter
muitas fotos de cenas do filme, adorávamos folheá-lo, e embora tivéssemos
nossas preferencias – Noturno n 2, o Estudo Revolucionário ou o Estudo das
teclas pretas, por exemplo - era impossível decifrar aquelas bolinhas pretas,
cheias, vazias, com hastes, junto com muitas ou separadas que seguiam por
espaços de linhas pelo álbum todo. Não me lembro de quem me ensinou a tocar o
“bife”, uma espécie de introdução ao teclado de um piano, mas lembro-me bem de
meu orgulho quando me punha a toca-lo sempre que tivesse alguma plateia.
Sentia-me muito sabida por poder arrancar um som agradável e conhecido daquelas
teclas brancas, mas principalmente das pretas. Parecia natural, portanto que
aos cinco anos eu começasse a ter aulas de piano com Dona Eda, uma jovem mulher
muito alta, que morava com sua irmã e sua mãe bem enfrente ao comércio de meu
pai. Não conheci nenhuma professora tão doce e tão preparada para ensinar
crianças pequenas a ler aqueles hieróglifos musicais e sei hoje que devo à sua
imensa paciência o fato de eu ter me formado em piano. Como naquela época eram
necessários 9 anos de estudos para se obter o diploma, depois de alguns anos
tive que me despedir de minhas aulas particulares com Dona Eda para ingressar
no Conservatório Musical da cidade. Um marco que sublinhava minha passagem à
pré-adolescência com novos e mais difíceis destinos. Deixava para trás com
muita dor na alma, não apenas minha querida professora, mas alguém especial,
que sabia exercer com maestria a difícil tarefa/arte de ensinar, em uma
combinação de delicadeza, reconhecimento pontual de minhas aquisições e muito
jogo de cintura para com a pesada disciplina exigida para este aprendizado. Uma
de suas estratégias era colocar balas deliciosas encima das mãos enquanto eu
tocava e se eu conseguisse não derruba-las poderia levar para casa em dobro. Nem
tudo eram flores. Muitas vezes “emburrei” nos degraus da varanda exigindo que
ela, no devido tempo, fosse me convencer a voltar e tentar novamente. Assim
como a máxima que diz que governo bom é governo invisível,
que não nos impõe sua presença, Dona Eda trabalhava nos bastidores. Tudo o que
me lembro dela passa por este canal amoroso de sua aptidão para transmitir seu
conhecimento sem fazer alarde. Uma das questões que mais se debate nos dias de
hoje é como e quais valores deveriam ser transmitidos de geração a geração, que
possam servir de ferramentas para uma vida “bem vivida”, um convívio entre
pessoas minimamente respeitoso. É
natural que muitos se lembrem de como a educação tradicional privilegiava a
transmissão de comportamentos virtuosos geralmente baseados em alguns ideais já
estabelecidos e coletivamente cultuados. Mas as rupturas com estes ideais foram
de tal ordem que temos dificuldades para dimensionar a nova realidade que nos
circunda e entender seus múltiplos aspectos. Desconfiamos que ficou muito mais
complexa a tarefa da transmissão entre gerações e que não será o contato com os
objetos ou ferramentas que farão crianças melhores, mais inteligentes ou
felizes, mas como estes objetos/ferramentas serão mediados por adultos capazes de fornecer
significados e ajustes importantes ao que ainda não sabem. Em qualquer piano
aberto pode-se dedilhar o bife. Alguns sabem toca-lo, ou a temas musicais de
seu gosto. Muitos não se atrevem. Outros tantos sabem TUDO de música e podem
tocar não só piano como qualquer instrumento. No inicio do aprendizado utilizamos
muito mais as teclas brancas e à medida que a harmonia aumenta em complexidade
é que as pretas passam a ser utilizadas. As teclas pretas são os meios tons
entre uma tecla branca e outra, ou seja, podemos inclui-las para aumentar as
opções de modulações do som ou tocar apenas as notas básicas que todos
conhecem. Não sei se eu teria continuado a estudar piano se não tivesse tido
meu pré-primário com Dona Eda. Foi ela quem me “revelou” não a música, mas a
beleza da música e me transformou em alguém apaixonada por ritmos, sons
especiais, inaugurando um espaço novo e importante no meu conjunto. Talvez a
tarefa desafiadora de qualquer adulto contemporâneo seja a de se preparar para ser
este decifrador para os pequenos, mas sabendo que é preciso começar pelas
teclas brancas para quem sabe chegar às pretas.
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
Mães, filhos e aflições
Uma jovem mãe contava a outras jovens mães sobre sua
agonia desde que havia se dado conta que suas duas filhas, com diferença de
apenas um ano, haviam entrado na pré-adolescência. Sem parâmetros, sentindo-se
perdida na difícil tarefa de discriminar o que consentir e o que proibir, o que
não dar importância e o que se preocupar, ela teria encontrado certo alento na
interlocução via Facebook com outros pais/mães de adolescentes. Havia
descoberto a página do Facebook intitulada “Mães e pais de adolescentes” destinada
a incentivar a troca de ideias e dicas sobre os filhos. Fui conferir. Simpática,
a tal página anuncia quem é o seu público e convida os pais/mães a conversarem
ali. Também descreve esta atordoante faixa etária ponderando sobre seu fascínio
num mundo em que crianças e adolescentes usam teclas e botões “como se
fossem extensões de seus dedos, falam a
mesma língua dos softwares e aprendem rápida e facilmente tudo o que lhes
desperta o interesse.” Mas pondera que esta facilidade de tudo saber
confunde-se as vezes com o tudo querer, o que tornaria difícil para os
adultos/pais manterem seu foco na árdua tarefa de educa-los. Democrática e
aberta, incentiva a todos a dar voz às suas aflições e/ou aos seus conselhos. A
jovem mãe que está contando às suas interlocutoras sua descoberta, no entanto,
não parece satisfeita. Há muitas perguntas sem respostas e ela continua aflita,
sentindo-se incompetente e perdida. Em sua coluna na Folha de SP do dia 20 de
agosto de 2013, sob o título “Depressão e autenticidade” Vladimir Safatle ,
baseado em uma recente pesquisa que diz que em cada cinco mulheres, uma passará
por depressão ao tornar-se mãe, convida a todos a refletir sobre o ônus que a experiência social de ser mãe
carrega na atualidade. Referindo-se ao fato de que hoje as mulheres já não têm
modelos únicos ou formais do “tornar-se mãe” como acontecia até algumas décadas
atrás, ele aborda o despreparo de todas diante do inevitável confronto com
bebês (filhos) que despertam sentimentos ambíguos e contraditórios. Longe de
fazer a apologia da tradição “de mãe para filha” em que os mitos e os rituais não
eram questionados e valiam para todos indiscriminadamente, e diante do atual arsenal
de especialistas que prescrevem caminhos a seguir, ele questiona o lugar dos
afetos que tendem a ser silenciados por todos – pais, parentes, especialistas.
Lembrei-me da história contada por minha faxineira sobre uma conhecida sua,
mocinha de 23 anos, que se casou com um rapaz um pouco mais velho, 33 anos,
descasado, que já tinha um filho de seu primeiro casamento. Apaixonada, sonhava
em ter um filho com ele como a consolidar a relação. Grávida de 8 meses viaja
para o Nordeste a fim de visitar seus familiares. Na volta, em visita a uma
cidade vizinha, o bebê rompe a bolsa e “decide” nascer. Sem conhecer ninguém
ela passa horas à espera de um atendimento no hospital. Como seu nenê não
acompanha o desenvolvimento esperado começa a leva-lo a médicos que indicam a
ressonância magnética para um diagnóstico mais apurado. Nas datas marcadas para
o exame, sem explicações plausíveis, falta sistematicamente. Morre de medo de
saber que não tinha conseguido gerar um filho perfeito. Paralisada e envergonhada,
não consegue ser a mãe que tinha imaginado, o que faz com que seu filho também
não possa “existir”. Quando finalmente comprova ser ele “normal”, pode enfim
olha-lo com amor e exibi-lo orgulhosa. É provável que a mãe das
pré-adolescentes sinta-se inundada/assaltada por seus fantasmas adolescentes,
incapaz de responder a si mesma sobre suas questões ainda tão confusas. Também
ela tenta silenciar seus ruídos e os que são provocados pelo confronto com esta
passagem das filhas.
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
Quem quer ser evangélico?
Nada mais “in” do que analisar a crescente
visibilidade e porcentagem de evangélicos no Brasil à luz da mobilização de
católicos em torno da visita do Papa Francisco I ao Rio de Janeiro. Foi mais ou
menos este o teor do texto publicado na Ilustríssima do dia 21 de julho de 2013 em que o
sociólogo da USP Reginaldo Prandi acompanha o deslocamento de uma população
antes majoritariamente católica para o que ele chama de pentecostalismo. Longe
de ser uma tarefa fácil já que são muitas as variáveis, algumas bastante
complexas! Dentre os temas, a constatação de que assim como a religião católica
empreendeu modificações em seus rituais muitas décadas passadas, a fim de se
adequar aos tempos modernos, as religiões evangélicas teriam feito uma
recauchutagem bem mais radical nas últimas duas décadas. De uma tônica que
preconizava a vida austera e simples, adotou-se a teologia da prosperidade, bem
ao gosto do mercado de consumo, deixando o “recato” para os temas sobre
sexualidade. Ao acenar com a possibilidade de realização de qualquer sonho de
consumo, este novo Deus incentiva uma população mais carente – e mais reticente
com o avanço
dos costumes e direitos - a confiar em um futuro promissor,
cheio de “objetos de desejo”. Mais que isso, abriga a todos que se sentem
excluídos/desamparados por razões morais, ao emprestar normas e restrições
claras às suas condutas para a vida sexual e amorosa. Por bairros e cidades
multiplicaram-se grandes salões em que pastores, seguindo um modelo carismático
(à Silvio Santos) de pregação, aumentam seus rebanhos espalhando tais
promessas. Do púlpito das igrejas ao dos congressos, apenas um passo. Foi assim
que assistimos perplexos, um pastor/deputado assumir a presidência de uma comissão
de Direitos Humanos da Câmera e sem qualquer constrangimento, tentar leiloar os
direitos recém-adquiridos de homossexuais ou impor uma legislação que os
“curasse” de seus desvios. Já da esperada, rápida e pontual
estadia do Papa em terras cariocas ecoaram textos e reportagens sobre as
mudanças que este novo papado pode produzir na Igreja Católica, sobre o “mundo
católico” e sua geografia, sobre os custos desta vinda para a cidade do Rio (que
chegou até a decretar dois dias de feriado), e sobre os jovens “religiosos”
brasileiros. A partir de uma pesquisa realizada em maio pela Data Popular em 100
cidades do país, ficamos sabendo, por exemplo, que 44,2% dos jovens entre 16 e
24 anos são católicos, 37,6% são protestantes/evangélicos, 6,7% são seguidores de
outras religiões e 11,5% não são religiosos.
Um dos desafios da vinda do Papa para a Jornada Mundial da Juventude seria a
conquista de uma fatia dos católicos afastados através de um upgrade em seu
modelo de evangelização. A pesquisa ainda problematiza o papel da religião para
os jovens, assim como sua opinião sobre temas controversos como o aborto, a
pena de morte e a legalização da maconha, talvez no intuito de “medir” o
comprometimento de cada um com sua fé, ou ainda a fé com os códigos que cada
religião preconiza. Quem sabe uma tentativa de mapear o complexo lugar que as
religiões ocupam na vida das pessoas na atualidade, bem longe daquele em que
ela encarnava o Poder. O mais provável é que as religiões acenem com a
possibilidade de regulamentação das vidas através de regras fixas e claras, o
que alivia o desamparo - às vezes insuportável - de muitos jovens (e de seus
pais), uma forma de “proteção” para os sentimentos morais.
terça-feira, 18 de junho de 2013
O cão nosso de cada dia
Formávamos um quarteto de amigas à espera de um
garçom que nos atendesse. Enquanto isso, a única avó da mesa saca seu celular e
passa a desfilar as fotos de seus três netinhos. Todas olham embevecidas as
caras, bocas e poses de cada um. Faz-se um ohhhhh geral. Sem conseguir evitar,
outra amiga tira seu celular da bolsa e mostra a foto de seus dois amores
estampada na capa. Que lindos, exclamamos duas de nós. Que pelos
maravilhosos!!! Eles parecem estar sorrindo! Indignada, a outra balança a
cabeça sem poder entender o entusiasmo. A dona dos cachorros sorri e comenta em
tom baixinho: “ela nunca teve cachorros, não sabe o que é isso”. O “isso” era
sem dúvida o sentimento comum que havia tomado conta de nós três que, ao
contrário, tínhamos muitas estórias para contar sobre nossos cães em nossas
vidas. O estranhamento desta amiga para quem os cães eram apenas animais como
outros quaisquer, no entanto despertou-nos a ânsia de explicar o que (para ela)
era inexplicável: como nossas vidas tinham sido afetadas por estas criaturas.
Passamos assim a contar estórias emocionadas, como se estivéssemos falando de
nossos próprios filhos. A dona da foto do celular que morava em uma casa em
Belo Horizonte descreveu seu dia a dia com aqueles que eram, por enquanto, seus
“netos” de 10 e 8 anos. Os filhos já haviam se mudado para compor novas
famílias, mas ainda não eram pais e os dois cães ocupavam o lugar das crianças
da família, o que os tornava assunto de interesse de todos. Pelo menos uma vez
ao dia seus filhos ligavam para saber notícias das “crianças”, fato que a
deixava muito empolgada, pronta para descrever entusiasmada as últimas peripécias
da dupla. Ouvindo-a narrar sua estória pensei (com meus botões) como a
experiência de ter esses “bichinhos” morando em apartamentos acrescentava
variáveis inimagináveis ao convívio entre os “donos” e seus cães. As lembranças
de Bob ainda estavam misturadas ao luto pela sua morte acontecida há dois
meses, depois de 18 anos de convivência diária e intensa. Bob era um Fox Paulistinha
(o amor pela raça herdamos de nossa querida amiga ribeirão-pretana Márcia),
conhecido por sua inteligência, que passou a dividir espaços conosco quando
meus filhos ainda estavam na pré-adolescência (8 e 12 anos) e rapidamente fez
de nossa casa sua casa. Tinha seus lugares, alimentos, objetos, odores e sons
preferidos assim como sabia comunicar aqueles que não faziam seu gosto. Ao
longo de nossa vida “familiar” desenvolveu comportamentos diferenciados que agradava
a cada um em particular. Sua vitalidade era invejável: ao som do interfone
corria à porta a espera da “visita” até que esta tocasse a campainha. Se se
anunciasse a possibilidade de algum passeio não descansava enquanto o fato não
se consumasse, ou seja, ia do local em que estava sua coleira até a porta,
voltava-se para o “anunciante” e repetia este percurso à exaustão (de todos). Quando
finalmente “vestia” a coleira, saía pelo corredor até o elevador saltitante e
satisfeito. Se faltasse água ou ração sabia bater com insistência nos
respectivos pratos para pedi-los. Morreu de velhice como quem não queria ir-se.
Em seu ultimo ano de vida, mesmo tendo perdido a visão e a audição, ainda
distinguia as pessoas e os locais pelo faro. Tinha se tornado membro “efetivo”
da família e era raro não ser tema de conversas animadas ao redor de mesas de
almoço ou jantar em que se discorria sobre suas surpreendentes estórias. Nossa
amiga desconhecia este mundo “novo” em que cães comportam-se de forma ajustada
a casa, à rotina e à convivência com seus “familiares”, se “humanizam” e entendem vários códigos de nossa linguagem. Cães
que adoecem e se alegram com seus donos, podem se deprimir ou serem “ansiosos”.
Cães que vivem como gente.
Nós na foto
Dia desses uma amiga, após ser convocada por si
mesma a passar uma informação que evitaria uma surpresa desagradável a uma
colega, comentou ironicamente que sua atitude tinha como objetivo maior
contribuir com a garantia de seu passe para o “paraíso”. Assim, em pequenas
“prestações”, ela apostava na conquista de certo sossego enquanto vivesse, já
que poderia contar com o conforto de acreditar que “Alguém” estaria pontuando
seu bom comportamento. Corta. Um conhecido que participou recentemente de uma
reunião em seu condomínio ficou espantado
quando num certo momento, em um efeito dominó, alguns moradores passaram a se
alterar e ficar mais violentos ao reclamarem seus direitos ou queixarem-se dos
incômodos do convívio coletivo. Suspirou aliviado, a seguir, diante da
intervenção sensível do síndico que, ao perceber que tais moradores precisavam
de uma atenção especial, soube se colocar como mediador dos conflitos,
oferecendo-se para ajudar a resolver algumas pendengas, sem se esquecer de
evocar aos reclamantes a parte que lhes cabia na política (sempre difícil, sem
dúvida) da boa vizinhança. Quem sabe algo que tenha faltado na história trágica
divulgada dias atrás, em que sem conseguirem resolver as crescentes desavenças
que só aumentavam o ódio de parte a parte, um empresário de 62 anos de posse de
seu 38, invadiu enlouquecido o apartamento de cima e matou a queima roupa o
casal de moradores, poupando de sua ira apenas o filho de um ano e meio.
Provavelmente sem poder suportar o que imaginava serem as consequências de seu
ato, apontou a seguir o revolver para si e pôs, assim, um “fim” a todas as
perturbações. Como sempre acontece em fatos tão inimagináveis à maioria -
justamente pela maneira obscena e banal com que a vida humana é tratada – espalham-se
indignações, mas principalmente medos e inseguranças já que qualquer um, de
qualquer lugar, pode ser portador de um excesso incompreensível de violência e
ódio. Mas quem sabe o “matador” não estivesse em seu estado normal, quem sabe
ele estivesse passando por problemas graves, ou portador de algum transtorno
psíquico? Não é o que revela sua esposa (e amigos) que atribui seu ato a um
“surto de loucura” circunscrito àquela situação. Claro que não podemos afirmar
muito sobre suas razões e/ou desrazões. Podemos somente reafirmar que faz parte
de nossos arquivos históricos, as inúmeras formas (a depender de épocas
históricas) de se fazer mal ao outro, de se deixar fazer mal e até de se fazer
mal a si próprio. Não há convívio sem conflitos e para vivermos todos precisamos
de um jeito ou de outro, negociar com nossa economia destrutiva tanto quando
ela se dirige a nós mesmos quanto aos outros. Mas assim como o que muda na
história são as formas do “mal”, para cada um de nós estas negociações ficam
atadas ao complexo processo de nos tornarmos gente. Na reunião de condomínio
citada acima, o síndico emprestou suas palavras para dar um sentido aos
distúrbios entre os moradores, delimitando ao mesmo tempo as responsabilidades
que cabia a cada parte, inclusive ao condomínio enquanto regulador desta
convivência. Também minha amiga negociava consigo mesma os “custos” de sua
solidariedade para com a colega. São estratégias de reconhecimento que, se por
um lado podem funcionar como moduladores da violência, estão cada vez mais
sujeitas à possibilidade ou não de existir um “outro”, um terceiro, capaz de
ajudar a constituir (no plano psíquico) ou fazer as vezes do espaço ético
necessário à convivência humana (no plano social). Nem a bondade nem a maldade
habitam lugares predeterminados em nossos cérebros. Elas são construções
categoria 3D Não nascemos bons ou maus. Comecemos,
pois pela admissão de que todos podem “cometer” o mal.
quinta-feira, 30 de maio de 2013
Porque não é tudo azul
Em 1987 Philip Tetlock, então professor de
psicologia e de ciência política de Berkeley (Califórnia, USA) resolveu
investigar os resultados de previsões que cientistas políticos e outros
pensadores faziam sobre fatos importantes (econômicos, políticos, sociais) que
aconteciam no mundo. Nessa época, começava a desmoronar o antigo império socialista
da União Soviética e dois anos depois cairia o Muro de Berlim, hoje vistos como
marco importantes de um novo período mundial. Após 15 anos de pesquisa, Tetlock
não só chegou à conclusão de que uma alta porcentagem das previsões destes
pensadores não se confirmava, como os discriminou em duas grandes categorias,
os “porcos-espinhos” e as “raposas”, a
partir dos resultados de questionários destinados a captar seus modos de
apreensão do mundo. Em resumo, os "porcos-espinhos” seriam os que
acreditam em certos princípios (grandes ideias) que regem o mundo e sustentam
todas as interações que ocorrem na sociedade. Já as “raposas” admitem a
fragmentação, acreditam em abordagens diferentes para um problema e tendem a
ser mais tolerantes em relação às nuances, à incerteza, à complexidade e às
opiniões discordantes. Para ele as “raposas” seriam os que conseguiriam fazer
melhores previsões justamente por não se encantarem com uma ideia grandiosa e
preferirem um exame mais minucioso e diversificado dos fatos (Caderno
Ilustríssima do dia 12/05/2013). Mesmo com as diferenças e uma avaliação mais
favorável às “raposas”, Tetlock reconhece ser a política um campo especialmente
suscetível a previsões infelizes devido aos seus “elementos humanos”. Em uma
recente entrevista, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman do alto de seus 88 anos
afirmava ter passado sua vida perseguindo um único e nobre objetivo, o de ser
capaz de compreender os seres humanos e o diálogo inter-humano. Conclui que nós
preferimos habitar um mundo ordenado, limpo e transparente, em que o bem e o
mal, a beleza e a feiura, a verdade e a mentira se encontrem nitidamente
separados um do outro e jamais se misturam, para que possamos ter certeza de
como são as coisas, aonde ir e como proceder. Gostamos de imaginar que os
julgamentos e escolhas possam ser feitos sem o árduo trabalho de nossa
compreensão. De certa forma Bauman afirma tal e qual Tetlock que temos uma tendência,
provavelmente protetora, de “ordenar” nossa apreensão do mundo de uma forma
mais simples e objetiva. Quanto à política, é hoje um tema dos mais viscosos, e
em quase a totalidade dos países, o “político” está de braço atado aos
interesses econômicos, sejam de empresas, do próprio Estado ou de seus
“jogadores”. A infinita complexidade da dimensão política fica esquecida e
mesmo a mídia, esquivando-se de um debate sobre as inconsistências ideológicas,
dá maior visibilidade às disputas de poder entre os de esquerda e os de
direita, os conservadores e os social democráticos, a situação e a oposição, os
privilegiados e os oprimidos, e assim por diante. Avaliações de “porcos-espinhos”,
diria o cientista americano, ou uma visão do mundo que tenta “ordenar” as
coisas para não provocar dúvidas ou desconfortos, diria Bauman. Sendo
a terceira maior cidade do mundo, São Paulo esbanja complexidade e deveria
convocar permanentemente o setor público para as suas deficiências e a população para debater suas questões mais cabeludas. Mas São
Paulo também exibe uma exuberante contemporaneidade cultural que a maioria de
seus habitantes mal reconhece. Ela é, por exemplo, a cidade mais nordestina do
Brasil, assim como possui a maior quantidade de negros. A Virada Cultural que acontece
todo maio e já foi uma ideia de outros governos deveria ser apartidária. Uma
ideia boa para todos não deveria ter dono. Aqueles que acorrem ao seu chamado e
se preparam para usufruir da sua extensa
e variada programação sabem bem que para curtir a Virada Cultural é preciso “compreender” seu sentido e deixar-se
afetar pela convivência com as diferenças em toda a extensão que esta palavra
pode ter: de classes sociais, de raças, de idades, de modos de viver, de
cantar, dançar, de comer, de chorar, de se alegrar e até de não gostar. Nem
“porcos-espinhos” nem “raposas”, nem um mundo muito ordenado, apenas gente disposta
deixar a vida cotidiana e se deixar surpreender.
sexta-feira, 29 de março de 2013
Quem sou este
Um texto indignado, mas
corajoso do jornalista
carioca Luiz Fernando Vianna foi publicado na Ilustríssima (Folha
de SP) de 17 de março de 2013. Próximo ao recém-instituído (2008) dia mundial
da conscientização do autismo, 2 de abril, não se pode deixar de celebrar
qualquer espaço midiático que se abre para este que é um tema dos mais
controvertidos. Escrito de forma coloquial, o reporter se apresenta desde o início
como pai de uma criança autista agora com 12 anos e discorre com um tom às vezes
áspero e sarcástico, outras cético e até melancólico sobre as agruras deste
lugar revelando sua pesada bagagem no trato da natureza dos constrangimentos em
torno desta “viagem”. Se há pontos de interrogações, debates ou mesmo disputas
nos campos médicos e psi em torno das origens, do diagnóstico e dos
“tratamentos” não é nada dificil imaginar como muitos destes pais ficam à
deriva, batendo de porta em porta em busca de respostas e direções. Em uma tentativa de discutir as
implicações desse diagnóstico para a vida de uma criança e de seus pais, Vianna
toma um atalho bastante pessoal ao percorrer seus impactos morais, pedagógicos
e emocionais e, embora dedique algum espaço ao ressentimento diante do
preconceito, celebra o auxilio dos recentes relatos de autistas na web e/ou
produções literárias e cinematográficas de biografias sobre o tema. Ainda em
uma jornada muito pessoal, critica e contrapõe as metodologias terapeuticas
segundo uma abordagem cognitivo- comportamental ou psicanalitica e aponta as
controversias em relação às recentes pesquisas na área médica que sinalizam fatores
neurologicos ou genéticos. Como cada campo acena com suas “verdades” sobre o
tema geralmente cabe aos pais (nem sempre com um consenso entre os conjuges)
escolher (acreditar, apostar) em algum destes caminhos. A propria definição de
autismo pode variar segundo a época e os grupos que se ocupam de pesquisa-lo
e/ou oferecer tratamentos. Na linguagem acadêmica atual o autismo – que atinge quase
1% da população global - tem sido tratado como uma disfunção global do
desenvolvimento que altera e afeta a capacidade de comunicação, de socialização
(estabelecer relacionamentos) e de comportamento (responder apropriadamente ao
ambiente). E para acomodar os diversos modos de manifestação e a gama de
possibilidades dos sintomas mais recentemente cunhou-se o termo Transtorno do
Espectro Autista. A psicanálise esteve desde sempre associada aos caminhos e
descaminhos deste transtorno e muitos psicanalistas se dedicaram ao que lhes
parecia ser um campo fertil de pesquisa sobre os primórdios da constituição do
psiquismo humano, compondo relatos e teorias importantes através de suas
clínicas. Mas, afora os quadros fenomenológicos descritivos, é provavel que o
fato de não existir uma teoria consensual sobre o autismo pese sobre a respeitabilidade
social das práticas, assim como pela manutenção do preconceito. Também é
provavel que algumas das teorias no campo da psicanalise tenham
contribuido para que
certas representações culturais sobre o autismo fossem relacionadas à ideia de
deficit, de impossibilidade, de um mundo psíquico desvitalizado ou de pais que
não ofereciam as condições necessárias para um desenvolvimento “adequado”. Se,
no entanto for possivel – como já acontece em alguns lugares - não engessar a
“condição” autista com teorias fechadas e rígidas e tornar seu campo mais
aberto a atendimentos feitos por equipes multidisciplinares, é provavel que não
seja mais o adjetivo “vergonha” (destacado pelo reporter) que abaterá
aos pais que descobrem ter um filho com este diagnóstico. Para a
psicanálise em especial, toda e qualquer criança cumpre uma trajetória singular
de desenvolvimento e constituição, ainda que nasça com alguma alteração
genética.
quinta-feira, 14 de março de 2013
Quem é a criança do século XXI?
Uma manchete
da Folha on line do dia 12 de março de 2013 chamava a atenção para as dificuldades de se colocar
limites para as crianças. Um dos destaques do texto do caderno Equilíbrio era a
pesquisa da mestre em educação e autora de "Limites Sem Trauma”, Tania
Zagury para quem as famílias estariam sob o governo de uma tirania infantil.
Baseada em um estudo com 160 famílias no início dos anos 90, ela afirmava que os
pais dos anos 80 ao desejarem uma educação menos cerceadora para seus filhos, teriam
perdido a medida. O título da matéria ainda sugeria um debate com especialistas
sobre os motivos pelos quais seria tão difícil aos pais nos dias atuais,
encontrarem a tal medida equilibrada para conter as birras ou as transgressões
nos horários de alimentação, sono e estudos. Em geral diante de situações
difíceis tentamos fazer comparações
entre épocas passadas e atuais, discorrendo sobre as desvantagens e vantagens
de uma e outra. É claro que cada época traz uma nova leitura da realidade,
novos parâmetros e valores. E há também novas leituras sobre os descaminhos
humanos. Não há como negar que vivemos na época atual, uma crise geral de
autoridade, em todos os níveis da sociedade. Mas as “crises” não significam fim
e sim um remanejamento temporário de certas “verdades” instituídas. O problema
é que em períodos de crise ficamos desamparados, quase sem referencias sobre certas
ações, comportamentos e ideias antes tão claras. Não é fácil esvaziar
estereótipos e dar lugar a novas maneiras de estar no mundo. Uma “verdade” de nossa época é que jamais a
infância foi tão valorizada, destacada, estudada, cuidada, etc. Não por acaso.
Se há um bocado de razões, podemos sublinhar o fato de que a infância é mais do
que em qualquer época de nossas vidas, aquela que parece ser definitiva dos
rumos que cada um tomará. Assim, uma boa infância ou uma infância feliz seria
uma espécie de garantia de um adulto satisfeito consigo próprio, com pique e
ferramentas para enfrentar os percalços da vida. Quase todos os pais de hoje só
se sentem realizados quando sua prole cresce e se transforma em adultos “felizes”.
Mas certamente esta não é uma tarefa simples e muito menos fácil e é comum nos
depararmos com o desamparo do adulto diante das exigências ou dos conflitos dos
filhos, a quem eles próprios prometeram dar “tudo de bom e de melhor”. São pais
que ora se sentem exasperados, ora
culpados ou impotentes, e muitas
vezes incapazes de educar sua criança. Na melhor das hipóteses, a não imposição
de limites e o “medo” de desaprovação de sua função de pai ou de mãe faz com
que muitos desistam de exercer sua responsabilidade e autoridade. Digo no
melhor das hipóteses porque não se podem deixar de fora aqueles pais que
abusam, rivalizam, violentam, ou seja, desrespeitam os direitos de suas
crianças que por seu lado não têm como se defender da displicência, da
irresponsabilidade nem dos excessos de amor e ira de seus pais. Difícil mesmo.
Talvez a mais importante e mais complexa tarefa de nossos tempos: “criar” um
novo ser humano.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
O que queremos?
Em meados de janeiro deste ano a mídia divulgou o
resultado de uma pesquisa realizada em conjunto por duas universidades alemãs (Universidade Humboldt e a
Universidade Técnica de Darmastadt) que
revelava que uma em cada três pessoas sentia-se pior ou mais insatisfeita com a
própria vida após visitar o Facebook e
visualizar o conteúdo compartilhado por amigos em situações de sucesso. A
manchete destacava que testemunhar as
férias, a vida amorosa e o sucesso profissional dos amigos no Facebook causava inveja, infelicidade ou sentimento de
solidão em grande parte dos entrevistados. Fotografias de férias e comparação
de felicitações de aniversário, de incentivos ou de carinho estariam entre os itens
mais duros de engolir, quer dizer, aqueles que mais provocariam inveja e
ressentimento, a depender da quantidade dos "curtir" ou dos comentários
postados. Embora a ideia de utilizar o Facebook como plataforma para se obter
um panorama atualizado das novas formas de convivência virtual seja muito
interessante, o uso dos resultados incitava os jovens a desistir da rede social
e assim evitar os “maus” sentimentos, algo no mínimo questionável. Mal
comparando seria como se a cada vez que os filhos reclamassem aos pais de
sentirem-se “menos”, de desejarem ter a vida de alguns amigos, de não
suportarem conviver com uma suposta felicidade de outros na escola, estes pais
providenciassem rapidamente uma mudança desta escola para algum lugar “melhor”,
que pudesse protegê-los destes desconfortos. Por outro lado a pesquisa deixou
de fora um dos mais pungentes e duros sentimentos que a rede social escancara,
a dor de cotovelo. Percebam que evitei usar a palavra ciúmes por imaginar a
“dor de cotovelo”, tal como é usada em nossa cultura, como abrangendo melhor as
várias dores contidas em separações amorosas. Entrar no Facebook para
acompanhar a vida do(a) ex, seus passos, suas fotos, sua nova paquera, a
constatação de que ele(a) pode ( ou consegue) prosseguir sua vida, é um dos
sentimentos mais devastadores pois convoca aquele que está sofrendo a aceitar o
fato de não ser tão especial como desejaria . É ter que encarar sua
“insignificância”, ao mesmo tempo em que deverá (tentar) processar seu luto
pela perda daquele (a) que ainda lhe é tão especial. Mas analisar a relação dos
usuários do Facebook com suas dores, ou
denunciar que esta rede pode expor as fragilidades de todos que a utilizam não
necessariamente é um mal exercício. Pode isto sim, ser um convite para se
pensar sobre possíveis novos modos (não necessariamente melhores ou piores, mas
diferentes) de construção de convivência no espaço social. De saída, tal
convivência estaria muito mais pautada na expectativa de uma “irmandade”, que
funciona ao mesmo tempo como suporte e proteção, ao oferecer um “compartilhar” dos
sucessos e fracassos dos amigos, mas também - não poderia deixar de ser - como
polo de sentimentos de rivalidade, inveja e ciúmes, que como todos sabem, são
humanos demasiado humanos. Ou melhor, são impasses e desafios desta nova
existência humana, deste modo de convivência com os pares em que a liberdade
para se fazer e dizer o que se quer exige necessariamente um confronto com as
faltas e as fragilidades de cada um. Resta-nos analisar as estratégias de negação da
realidade, ou melhor nossas formas de nos defender e nos proteger destes
sentimentos e saber distinguir as boas formas daquelas que são ruins. Você
sairia do Facebook para evitar sofrer?
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