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segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os bebes que nos assustam

A roda era formada por alguns jovens casais que estavam visitando o bebê de um deles e o assunto, o bebê, espalhava um tom apreensivo naqueles que estavam por decidir sobre seu futuro de pais. Tanto as “meninas” quanto os “meninos” trocavam ideias com aqueles que já haviam entrado neste mundo tão perturbador. E as histórias se multiplicavam para dar conta deste universo inquietante que reina quando um bebê adentra no que era uma dupla e força a barra para ali se constituir uma família. O que era mais assustador? O sono dos pais que se perdia na contabilidade negativa? O sono do bebê que não se encaixava na ansiada expectativa? Seu choro nem sempre decifrável? Sua falta de linguagem para comunicar sobre seus tormentos, mal estares e dores? Assim seguiam as narrativas de uns e outros até que em algum momento alguém ousou falar sobre o mais tabu dos temas: a decepção e frustração que se instala em quase todas as casas de casais que se tornam pela primeira vez, pais de um bebê. Graças a uma prática que tem se tornado mais frequente atualmente – e que em certa medida pode ser benvinda - tem sido possível colocar na roda dos amigos e/ou das famílias, temas que não só são pouco prestigiosos para os protagonistas da história, como desnudam suas falhas, seus temores, suas angústias, seu desamparo diante de situações inesperadas. A maternidade, a vinda de um bebê, a paternidade, estiveram por muitos anos guardados em um lugar de honra nos arquivos dos modelos ideais e de grande importância para o bom funcionamento das sociedades. Em poucas décadas, a ciência construiu uma infinidade de informações e cartilhas para pais de primeira viagem que pretendia aumentar as chances de que esta etapa da vida dos casais pudesse ser vivida da melhor maneira possível. Em parte, as gerações atuais de pais se beneficiam deste aparato, principalmente na quebra de muitos mitos e tradições seculares nem sempre benéficas. Também é verdade que a profusão de informações que hoje existem sobre a gestação, o parto, os primeiros cuidados, etc. colocam para estes a difícil tarefa de separar o joio do trigo, ou de escolher o que lhes parece se encaixar melhor em seu modo de vida. Mas ainda que os pais se esmerem na preparação para o que virá, a vinda de um bebê desconstrói o modelo ideal. Não há como evitar a surpresa, a estranheza e o enigmático que ronda esta passagem de um ser que demanda cuidados de todas as ordens e que precisará, graças a estes cuidados, ser adotado pela cultura e “domesticado” até se tornar familiar. Não é fácil para estes pais viverem este período em que eles são tão responsáveis por esta passagem, sem se sentirem frágeis, assustados, temerosos quanto a suas possibilidades. Há no horizonte do futuro dos bebês, um devir indeterminado e incerto, e isso é bastante amedrontador. Além disso, outro processo nada simples precisa acontecer: o casal deverá deixar seu lugar de filhos para tornarem-se pais. Mas talvez o maior dos mitos, o do amor imediato e incondicional que “deve” se instalar entre o pequenino ser e seus pais, seja o mais desolador, já que a ninguém parece admissível que se possa  ter momentos de muita raiva e ódio e outros de tanto amor ao próprio filho. Por isso, as rodas de conversa entre amigos e familiares, quando são acolhedoras destes temores e sustos, podem auxiliar os pais a narrarem seus sentimentos, pensamentos e atos, o que pode contribuir para uma “reorganização” deste tumultuado período.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Ferida mortal

Mesmo sem assistir a todos os jogos da Copa, é quase impossível não tomar ciência de seus resultados, dos times que merecem as preferencias dos que curtem futebol, daqueles que são temidos, mas respeitados, e assim por diante. O Uruguai, ao contrário da Argentina, desfruta a simpatia do povo brasileiro, que em sua grande maioria, torceu para que no segundo jogo desta equipe na Copa, e após sofrer uma derrota no primeiro, eles conseguissem ganhar, o que significaria eliminar a equipe da Inglaterra para não ser eliminado. Foi o que aconteceu, com dois gols marcados por seu artilheiro Luis Suárez. As manchetes das mídias reproduziram muitas vezes as cenas de suas celebrações dos gols. No primeiro, ele corria gritando, punhos cerrados, olhar raivoso a cobrar de todos o reconhecimento por seu esforço e a glória da vingança. No segundo, após repetir os mesmos gestos correndo em direção à torcida e encarando as câmeras de TV, ele sucumbiu à emoção e chorou. Nas entrevistas que concedeu no pós-jogo, parecia-lhe ser importante manifestar seu ressentimento com a imprensa em geral. Alguns que o conheciam pela atuação nos times europeus já sabiam de seu passado de “mordedor”, apelido cunhado graças às duas mordidas que dera em jogadores adversários quando jogava para um time da Holanda e alguns anos depois para um time da Inglaterra, ao qual ainda pertence. Nas duas vezes havia sofrido punições das Federações de Futebol destes países, ficando fora de alguns jogos. Se este passado assombrava sua convocação para a Copa, Suárez ainda teve que passar por um teste final, uma recente cirurgia no joelho que ameaçava deixa-lo de fora. Por isso seu “grito” de gol tinha um sabor de superação, de volta por cima. Eis que no jogo contra a Itália, cujo resultado valeu a classificação de seu time para as oitavas de final, Suárez “morde” o jogador italiano Chiellini, é afastado dos jogos da Copa, punido com multa e volta antecipadamente para o Uruguai, deixando sua equipe amargando não só o infeliz episódio, mas a sua falta. Da consternação à indignação, com direito a compaixão de alguns, a condenação sem piedade de outros e o assombramento pelo ato agressivo e intempestivo, a imagem do Suárez “mordedor” se espalhou mundo a fora, e foi ovacionada pelos chargistas, tanto os profissionais quanto aqueles que se deliciaram em criar suas próprias charges nas redes sociais. Mas grande parte da população procurava respostas ao ato que se repetia, fora de lógica, já que o esperado seria que ele tivesse enterrado este passado para sempre, diante dos prejuízos morais e profissionais que lhe causara. Como é possível? Quem  consegue explicar? Seria uma espécie de loucura? O episódio ainda gerou debates e polêmicas que incluíam os limites toleráveis de certas manifestações agressivas, comuns em partidas de futebol. Algumas delas foram relembradas, como a cabeçada do jogador francês Zidane em resposta a uma provocação maldosa de seu adversário italiano na Copa de 2006, que redundou em sua expulsão e ajudou a Itália a conquistar o título de campeã. Detalhe: Zidane não foi punido pela Fifa, o que parece colocar sua infração a um nível mais suportável para todos. Sabemos que na sociedade moderna a convivência entre as pessoas, matriz importante da manutenção da “civilizaçao”, é mantida por pactos sociais que garantam minimamente os direitos e a liberdade de cada um. A cada era em que a barbárie se impõe, como nas guerras e outros conflitos, somos convocados a repensar a civilização, ou seja, as normas que inventamos para sua manutenção. A grande maioria dos Estados atuais é democrática, assim como suas instituições, mas precisam manter sistemas de punições que sirvam como modelos e valores que representem as expectativas que temos para a continuidade da vida social. Em geral o infrator é aquele que quebra este contrato, sai do pacto social e volta ao estado de natureza. Ao fazê-lo, ele provoca um sentimento de indignação em todos que às duras penas mantêm este pacto, sentimento este que justifica o desejo de punição pelo seu crime. Ele não merece proteção! Pelo leque de reações que Suarez provocou, no entanto, podemos dizer que em nossa era, para além das medidas e limites que as normas sociais impõem, admitimos que o mundo interno de cada um seja tumultuado e possa ser muito desorganizador. A mordida é uma reação bastante primitiva, muito utilizada pelos pequenos quando se sentem ameaçados e com raiva, mas consensualmente rejeitada e reprimida por todos os adultos desde cedo, na expectativa que eles se submetam ao processo civilizatório, o que explica o estranhamento deste ato quando praticado por um adulto. No entanto, se a punição da Fifa a Suárez foi considerada excessiva para muitos, é bem provável que a pior parte de sua pena seja conviver com a vergonha e a humilhação de não ter conseguido evitar tal comportamento e quem sabe participar com a Celeste da conquista do campeonato mundial.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Raízes

Um amigo querido, que deixou sua sulina cidadezinha de origem há tempos, precisou retornar ali para resolver questões familiares pendentes. Aproveitou a oportunidade e estendeu sua estadia por alguns dias, visitou parentes próximos e distantes e personagens importantes de sua infância. Ao retornar, sentiu-se estranhamente tocado por aquela visita. Após alguns dias, sonhou que encontrava seu primeiro carro, um fusca ano 65, em uma garagem qualquer. No sonho ele se espanta muito, pois até então tinha certeza que havia vendido seu fusca, tempos antes de sair de sua cidade natal. Ao acordar põe-se a perguntar sobre o significado daquele sonho, ligando-o aos impactos de sua recente viagem. Nascido em uma família de imigrantes, sua infância tinha sido particularmente dura, tendo seu pai o deixado (e aos seus dois irmãos) ainda criança, vítima de um infarto fulminante. Só agora, com mais de sessenta anos, podia rememorar alguns fatos mais alegres deste tempo, e articular uma historia em que o sofrimento não lhe parecesse tão excessivo. A imigração tem este duplo movimento. De um lado o imigrante tem um forte motivo para sair de seu país, e mesmo contra a sua vontade, é na busca de uma nova chance que ele escolhe seu novo destino, precisa enfrentar as decorrências de sua expatriação, e tentar acolher a nova cultura do lugar que o recebe. Sua língua materna poderá se manter no âmbito privado, mas ele terá que aprender a dominar a nova língua, e entender os costumes e os valores daquela comunidade. Não é difícil imaginar como este processo é árduo e requer um empenho das famílias em adaptarem-se à nova cultura, muitas vezes à custa de um “apagamento” de suas raízes. Há famílias de imigrantes que acolhem o “estrangeiro” do novo lugar com mais facilidade e se abrem rapidamente ao convívio, esforçando-se para serem aceitos ou para  se integrarem às novas normas. Outras, ao contrário, temem não serem aceitas ou rejeitam sua situação de estrangeiros, fecham-se e voltam-se para uma tentativa de manter as tradições e os costumes de sua antiga morada, como a negar a mudança, o novo. Para estes, cabe aos filhos, muitos deles nascidos na nova pátria, se apropriarem desta nova identidade e aos poucos, construir um outro roteiro, fora daquele que seus pais tentam manter. São os filhos que frequentarão as escolas, criarão novos laços, e planejarão um futuro alternativo. De certa maneira a imigração força uma posição de apátrida, que pode ser vivida como uma abertura para o novo e o diferente ou pode ser mantida com ressentimento e sentimento de perda. Meu amigo tinha programado seu retorno à cidade natal com muito entusiasmo. Na era digital e de fácil comunicação, trocou e-mails e mensagens com antigos conhecidos, alguns também filhos de imigrantes como ele, e empenhou-se em fazer valer sua visita. Só quando voltou, percebeu que havia feito uma viagem mais subjetiva do que imaginava. Aos 18 anos tinha deixado sua cidadezinha para estudar na Universidade da capital de seu estado; depois sua formação acadêmica lhe exigira passar alguns anos fora do país e quando voltara, havia fixado residência em São Paulo. Com uma carreira bem sucedida, estava longe dos tempos de pobreza e escassez de sua infância. Alguns dias antes de viajar, decidira trocar seu carro por um modelo que namorava há algum tempo. O reencontro com o fusca ano 65 que o sonho lhe proporcionou permitiu-lhe  mergulhar no passado, assim como a viagem aos lugares da infância. Mesmo sem perceber, havia podido fazer um resgate de suas raízes, acrescentando o prólogo no livro de sua vida. Sentiu-se satisfeito.  

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A invenção do mundo da criança feliz

Um fictício observador “estrangeiro”, ao constatar o espaço privilegiado e acintoso que as crianças têm em nosso mundo atual, cercadas de mimos e preocupações dos pais, educadores, médicos e psicólogos, não imaginaria que por muito tempo, nem a infância ou a denominação de criança sequer existiam. Os pequenos eram tratados, vestidos e retratados como adultos em miniatura. O historiador francês Phillipe Aries descreve a “descoberta da infância”, que teria ocorrido a partir do século XIII, como um lento processo, graças ao qual os pimpolhos, que na alta Idade Média só recebiam nome se persistissem em viver, foram ocupando o centro das atenções e da família moderna. Os pais, ao invés de proprietários, passaram a serem os protetores da família e as mães, gerentes dos afazeres domésticos, aquelas que cuidavam de seus filhos, que na era moderna vão garantir a perpetuação da família. Hoje as crianças são crianças e não mais adultos pequenos. Elas têm maneiras de pensar e sentir que lhes são próprias e como parte da sociedade civil, tem leis especiais que as protegem de quaisquer abusos. Houve uma progressiva valorização do lugar que elas ocupam tornando o filho, no decorrer do século XIX e XX, o centro da família e objeto de investimentos econômicos, educacionais e afetivos. Tudo o que se refere a crianças é considerado da maior importância por todos os setores da sociedade, sendo que os pequenos são responsáveis por uma enorme fatia dos investimentos financeiros em criações ininterruptas de objetos destinados a compor um mundo de conforto e felicidade. No Brasil, há alguns anos, instituiu-se uma prática entre os casais grávidos de classes médias altas e altas, de programarem uma viagem para Miami, que segundo cálculos de todos os que lá estiveram, somados passagem, estadia e algumas malas de apetrechos e roupas de recém-nascidos, seus bebês desfrutariam do que haveria de mais moderno no mundo sem que o custo fosse excessivo. Com o tempo, esta prática difundiu-se de tal maneira que “sites” de roupas e objetos utilizados por bebês passaram a ser compartilhados, com listas já elaboradas por terceiros, o que permitia que as compras pudessem ser feitas antes mesmo que a viagem acontecesse. Parte importante deste enxoval, o enfeite da porta da maternidade, a mala contendo as roupas a serem utilizadas ali pelo bebe, as lembrancinhas para as visitas e as câmeras prontas para registrar o evento desde o começo. Ah sim, e alguma “bíblia” contendo TUDO o que pode acontecer no primeiro ano do bebê. Tudo pronto, resta compartilhar do clima festivo e agitado da maternidade, que em cidades cosmopolitas como São Paulo é acrescido do número cada vez maior de grávidas e seus familiares. Há filas para o estacionamento, para se cadastrar na recepção do hospital, para utilizar os elevadores. Já dentro é curioso passear pelos corredores dos quartos enfeitados, ler o nome de cada criança que acabou de nascer e imaginar uma historia de vida futura para cada uma. Imperdível é gastar alguns minutos no berçário, todo envidraçado, com fileiras imensas de recém-nascidos, alguns dormindo tranquilos, outros agitados chorando. E agora nenéns? Cada um de vocês representa uma aposta, um porvir. Em geral seus pais não sabem ainda muito bem como eles devem se portar para que vocês se tornem pessoas felizes. É quase certo que eles terão muitas dúvidas sobre o que e como agir diante dos impasses que vocês criarão. Mas parece certo também que há uma distancia que precisa ser ajustada, entre a insistente promessa do mundo feliz e sem sofrimentos que eles  imaginam para vocês, e a difícil e importantíssima tarefa que eles terão que desempenhar para que vocês se tornem alguém de valor. 

terça-feira, 4 de março de 2014

Não deixem que eu me lembre


Uma das pedras basais da leitura psicanalítica de nossas vidas psíquicas é o papel da memória, e nossos esquecimentos nada casuais. Muito cedo Freud descobriu quão frequentemente precisávamos “apagar” ou “maquiar” certas vivências demasiadamente impactantes, porque na ocasião em que elas ocorriam, não dispúnhamos de recursos para “organiza-las” de forma a encaixa-las em nossa vida psíquica, sem um quantum excessivo de dor e sofrimento. Claro que isso não acontece sem custos. Em geral construímos defesas e proteções para que estas lembranças não nos importunem, mas pouco sabemos sobre todo este processo complicado. Freud chamou isso de neurose e convidou aos que quisessem e pudessem, a se submeter ao seu método de associação livre com o propósito de reescrever/encontrar novas narrativas sobre suas vidas, recuperando e colocando novos significados naqueles fatos difíceis de sua própria historia. Constatou, no entanto, que nem todos estavam dispostos a “remexer” em seus baús e suas incômodas lembranças. Em um texto da Ilustríssima deste domingo há um relato sobre um encontro em 2001 do então já conceituado artista plástico britânico Steve McQueen com uma turma de estudantes de artes plásticas da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) em que ele, negro, quer saber por que ali não há negros. Ao constatar o mal estar provocado por sua pergunta, e a falta de preparo de todos para um debate sobre a discriminação no país, deixou claro seu estranhamento. Em tom provocativo, afirmou que no Brasil certas questões pareciam ficar deliberadamente fora, como se não existissem. Não era o caso dele. Seu  mais recente filme, "12 Anos de Escravidão", baseado nas memórias do negro Solomon Northup publicadas em 1853, concorre a nove Oscars e está dando o que falar. Solomon nasceu livre e viveu em Nova York trabalhando como carpinteiro e violinista até ser sequestrado e vendido como escravo para uma fazenda no sul dos Estados Unidos, poucos anos antes da guerra civil. Sem conseguir provar ter nascido livre, é submetido a todos os tipos de violencia, crueldade e humilhaçoes. Vale notar que McQueen é o terceiro cineasta negro indicado ao Oscar em 86 anos de premiações. Nunca um diretor negro levou a estatueta. Mas se quisermos pinçar apenas uma das inúmeras diferenças quando o tema é racismo, ao menos nos USA o assunto (a história) é debatido e pode até ser premiado. Neste ano de 2014 o início da primeira guerra mundial faz cem anos. No Brasil, o golpe militar de 1964 faz 50 anos. Os 20 anos de ditadura militar são outro tema tabu para nós brasileiros. Não só não se comenta ou se reflete sobre estes acontecimentos como parece haver um repúdio aos que, tendo sido vítimas direta ou indiretamente deste período de exceção, insistem em trazer à tona fatos e versões enterrados. O “descaso” é generalizado. Ao contrário do que parece, no entanto, nossa indiferença moral diante de certas injustiças sociais, nossa franca preferencia pela negação da existência destas injustiças ou da responsabilidade social e politica que cabe/coube a cada um, nos joga em um processo de anestesia e de ignorância quanto a nossa história. Seríamos ainda uma sociedade tão frágil e tão infantil a ponto de não suportar debater nossos equívocos ou nosso passado?

 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mocinhos e bandidos


A verdade é que não faz muito tempo, tínhamos um futuro muito grande à nossa frente, cheio de lugares que quase ninguém conhecia, homens ainda em estágios primitivos de civilização, e uma enorme parcela da população mundial apostando em um mundo melhor, em que se pudesse viver mais feliz e tranquilo. Não por acaso, nas primeiras décadas da invenção do cinema, os filmes apresentavam os duelos entre aqueles que buscavam um mundo mais justo e esbanjavam valores dignos na caça dos que insistiam em seguir as próprias leis, sempre em benefício próprio. Também os dramas amorosos seguiam a rota do bom-mocismo e todos os desvios, fossem dos homens que não conseguissem renunciar à suas vidas de playboys ou das mulheres que se divertiam em seduzir os casados ou comprometidos, acabavam devidamente punidos (para o alívio dos espectadores). No “the end”,eram os homens e as mulheres do bem que formavam os casais que iriam viver felizes para sempre. Tempos bons, diriam muitos a suspirar. Tempos em que era possível viver com a esperança de algum futuro promissor. Tínhamos tanto a aprender! Mas quem sabe, porque tivéssemos um espectro importante de algo a acontecer, podíamos nos abrigar em polarizações simplistas sobre nós mesmos, dividindo-nos entre mocinhos e bandidos, cada um em seus devidos lugares. À medida que as ideias de democracia, liberdade, justiça, direito à crítica, tolerância ou solidariedade avançaram em paralelo com o progresso da tecnociencias e a complexidade do mercado financeiro global, o mundo se tornou mais difícil de ser compreendido. Nossa tarefa civilizatória parece ficar cada vez mais exigente. Por outro lado, o mundo tornou-se nossa casa e se ninguém nos avisa, nem nos lembramos de como chegamos até aqui. Não gostamos muito de imaginar que a Terra é um planeta que pode desaparecer ou que como “homens” que evoluímos até aqui, teríamos por obrigação pensar o futuro dessa humanidade. Mas que futuro e para quê? O convite do aqui e agora é bastante sedutor, pena ser o responsável por nos jogar inevitavelmente em uma lógica utilitária: vivo, penso, faço somente o que acho que será útil para mim e os meus. Assim, também, seguindo os mesmos critérios, é possível classificar o que é bom ou ruim, o que é do bem ou do mal. E quanto mais superficiais nossas análises, mais amamos os iguais e odiamos os diferentes, adoramos os que nos premiam com a satisfação de nossas expectativas e detestamos os que não nos dão importância ou nos frustram. Basta que o “tico e o teco”, nossos neurônios básicos, mantenham seu funcionamento mínimo, não nos exijam muito esforço e nem excessiva perda de tempo. Opa! Parece que mesmo que o mundo tenha ficado mais complexo, continuamos a utilizar nossa lógica binária para dividir o mundo, os homens e suas ações em bons e maus. Talvez esta seja uma das características mais importantes de nossa humanidade. Não abrimos mão deste conforto. Queremos ordenar o mundo, as coisas e as pessoas de modo a não ter que acionar nossos medos, assombrações, inseguranças e incertezas. Quando classifico tudo com minhas certezas não há porque me inquietar. Sou um homem comum, como todos os homens bons.

Emocionalmente humanos


Na Folha de SP do dia 11 de fevereiro, no caderno Equilíbrio e Saúde, uma notícia divulgava o resultado de uma pesquisa feita por professores de duas Universidades finlandesas que teriam selecionado 700 pessoas para tentar “mapear” as alterações físicas que cada emoção humana provoca em nosso corpo. Para incita-las, foram usados palavras, músicas, filmes e as alterações como dados possibilitaram a criação de um software que montou um circuito para cada emoção, sendo a raiva, o medo, o desgosto, a felicidade, a tristeza e a surpresa consideradas emoções básicas e a ansiedade, o amor, a depressão e o orgulho suas correlatas. No final, comemorava-se o fato de serem as emoções universais já que tanto o computador quanto as pessoas que participaram reconheceram as emoções descritas e seus efeitos no corpo. É verdade que mais do que em qualquer outra época, hoje podemos partilhar nossas emoções apostando que nosso interlocutor entenderá nossa descrição sobre elas- e seus efeitos físicos ou mentais- ainda que ele não esteja sentindo o mesmo naquele instante. Ou seja, graças a um grande acervo construído culturalmente, e muito alimentado pela literatura, cinema, TV, música, é fato consumado o uso em expansão de descrições sobre o impacto do que nos acontece e como expressamos  através das emoções, nosso repúdio ou nosso regozijo. Mas a verdade é que o modo como cada um se deixa “afetar” pelas emoções, se pode ou não refletir sobre quais sentimentos cada uma delas desperta em si, ou ainda reconhecer o quanto as alterações que elas nos causam interferem na nossa visão sobre o mundo e as pessoas, não é nenhuma tarefa simples ou fácil. Vejamos a polêmica sem fim que o aprisionamento de um moleque de rua do Rio de Janeiro em um poste com um cadeado de bicicleta, sem roupas, durante a madrugada causou. Há quase uma semana, repórteres, colunistas e blogueiros tem se manifestado contra ou a favor. Do lado dos que repudiaram os justiceiros cuja missão seria intimidar possíveis assaltantes nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, colocaram-se os que classificavam o ato como uma violência excessiva, um jeito truculento de eliminar aquele “resto” humano que perambula pela periferia da vida. Do lado dos que se solidarizaram ou ao menos se sentiram vingados por todas as ameaças que sofrem em seu dia a dia, estavam aqueles que se sentem inseguros e buscam ansiosamente indícios que possam garantir um mundo sem violência. Se quisermos aproveitar os dados fornecidos pela pesquisa citada acima, no primeiro caso, vigoram emoções como desgosto, tristeza, surpresa, mas no segundo, o medo e a raiva são os destaques. Fica fácil fazer um julgamento moral e classificar um ou outro lado como sendo o correto. Parece que ambos os lados se posicionam acreditando que suas “emoções” são legítimas e valem quanto pesam. Prefiro classificar, embora de forma reducionista, ambas as partes como representantes de nossa humanidade. E é bom que não nos esqueçamos do quanto o medo, considerada uma emoção básica na pesquisa , está na base de muitas de nossas crenças e valores. Para o bem e para o mal.  

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Um menino tímido


Uma jovem amiga com quem trocava ideias sobre a árdua tarefa dos “meninos” na construção de uma imagem de si minimamente confortável para ser exibida entre seus pares, confessava sua aflição em relação ao filho de 20 anos. Tímido e solitário, apesar de ser portador de uma inteligência acima da média, ele oscilava constantemente seu estado de humor, ora atribuindo-o à sua escolha do curso universitário, ora ao próprio curso e seus alunos, ora à cidade, que lhe exige morar longe dos pais. Mantendo uma prática de conversas familiares exaustivas, no final ele concordava que sua timidez, ao mesmo tempo em que o protegia da convivência com toda a população universitária (colegas, professores, funcionários) o isolava, deixando-o sem saída. Tema de alguns textos que vez por outra a retomam como foco de atenção, a timidez como fator que pode obstruir e dificultar a vida de muitos que temem agir de forma ridícula ou inadequada na presença de outros, tem sido mais pesquisada recentemente sob o nome de fobia social, um novo transtorno reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que atinge 5% da população mundial. Em geral as pesquisas que são feitas em centros universitários, salvo algumas exceções, requerem classificações e resultados que possam ser facilmente compartilhados pelo mundo científico e afins. É verdade que a timidez não é um comportamento novo ou circunscrito ao mundo atual. Mas também é verdade que uma análise das patologias mentais não pode se furtar de investigar os modos como cada cultura constrói e organiza a vida subjetiva de seus indivíduos. Se no século passado esta análise privilegiava os conflitos internos e elegia a culpa como organizadora da vida subjetiva, responsável pelo descompasso entre o que se queria, o que se podia e o que se conseguia ser/ fazer, o mundo de hoje demanda uma exposição de si em busca do olhar de aprovação e reconhecimento do outro, que sendo necessário, é paradoxalmente desastroso, muitas vezes, para a construção de uma imagem de nós minimamente confiante. A origem destes sofrimentos situa-se em geral nos primórdios da vida e são as falhas e faltas nas relações com os cuidadores e com o ambiente que protagonizam as patologias. Quando não conseguimos construir defesas que nos protejam, é a vergonha que elegemos como um sentimento de inadequação geral. O olhar dos outros passa a ser temido e evitado, mas isso supõe um sofrimento já que não é possível existirmos sem a confirmação do olhar dos outros importantes, o que nos tornaria invisíveis. Se todos somos convocados a exibir nossa performance para entrar na roda da vida compartilhada, não é difícil imaginar o sofrimento dos que se sentem envergonhados por não acreditar que possam vir a ser reconhecidos como outro qualquer. Eles precisam de ajuda para criar uma narrativa de si e com alguma costura tornarem-se autor de sua historia, uma historia que minimamente lhes pareça valer a pena ser compartilhada.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Odeio o Natal


“Odeio o Natal! E só agora, adulta e mais velha, tenho coragem para falar sobre isso e repetir para quem quiser escutar” – Confesso que me causou espanto ouvir esta frase de uma conhecida, e não pude deixar de me interessar por suas razões. Ela girou e girou sobre suas convicções, argumentando que não se lembrava de ter se sentido feliz ou empolgada em nenhum dos Natais de sua vida. Ao contrário, o clima festivo lhe parecia forçado e a alegria de todos à sua volta, incompreensível. Como boa “escutadeira” de historias de vida, fiquei ali insistindo em achar alguma dor esquecida que ficasse fora do espectro de sua percepção, mas que pudesse ser capturada por mim. Mas fui novamente surpreendida com outro relato, agora de um amigo, que parecia satisfeito em poder expressar ali seu mal estar por ocasião da aproximação da época natalina. Separado há alguns anos, embora tivesse filhos e namorada, preferia se isolar nos dias destas festividades familiares viajando sozinho para sua casa de praia. Ali tentava fazer um “spa mental” recuperando os momentos importantes e/ou decepcionantes do ano que se acabava, para dimensionar melhor o que entrava. Motivo de preocupação dos filhos e dos irmãos, seu telefone não era desligado, ao contrário, gostava de atender e ouvir as aflições de todos pela sua opção ermitã. Alguns amigos presentes se solidarizaram argumentando a favor do repúdio dos dois. Outros preferiram manter o silencio, talvez em uma tentativa de respeito ou por imaginarem que eles fariam parte de uma estatística de exceção. De atenta aos relatos para a detecção dos caminhos de seu sofrimento passei a questionar minha opção. É verdade que os dois haviam exibido suas feridas, ainda que veladamente, e o Natal - esta festa de origem cristã que hoje é quase universalmente celebrada como um momento de confraternização entre pares e familiares – podia ser mal visto por ambos justamente por expor suas faltas e lembrar-lhes suas dores. Para manter a empolgação e a alegria da data seria necessário compartilhar com a maioria e sem muitos questionamentos, do clima de ilusão e esperança que circula, que de certa forma parecem necessários para alimentar os sonhos. Não é comum que se pare e se reflita sobre os excessos que facilmente se comete com comidas, bebidas, presentes ou sobre os possíveis dissabores das obrigações em torno das convivências e conveniências sociais. Pus-me a pensar que, se cada época da história tem seus constrangimentos, a atual leva muitos de nós a ter vergonha de não ser feliz. Com a disseminação da promessa de felicidade para todos como um ideal possível de ser conquistado e mantido, o “deficiente”, o insuficiente, o atrapalhado, o mal sucedido, passam a ser mal vistos e imediatamente categorizados como fracassados. Resolvi olhar para aqueles amigos como bravos resistentes a este imperioso e exigente ideal de felicidade. Que cada um de nós possa ter o Natal possível ou não tê-lo se não puder/quiser!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Sem-noção


Adjetivo praticamente instituído nos tempos de hoje, o “sem-noção” ganhou um lugar comum nas conversas cotidianas quando queremos nos referir a alguém que adota comportamentos, vestimentas, diálogos ou modos de vida que causem muito estranhamento por nos parecer excessivo, descabido ou desrespeitoso. Isso pode se aplicar a questões morais, mas também ao exibicionismo ou a certa intransigência, autoritarismo e/ou violência nas relações pessoais. É assim que no convívio, estas pessoas ganham uma identidade, são sem- noção, e passam a ser consenso entre os que o conhecem a tal ponto que basta utilizar tal adjetivo para que o diálogo sobre o fulano passe a ganhar um novo entendimento. É como se todos que participassem daquela conversa- em que o sem-noção não está presente – soubessem que ele tem limitações importantes e definitivas sempre que está em jogo o convívio, as trocas, os salamaleques, as delicadezas, etc. A classificação acalma e apazigua as inflamações e indignações sobre ele. Mas porque este tipo parece proliferar? Quem é o “sem noção”? Um disfuncional? Arrogante? Maldoso? Autoritário? Foi a partir de um questionamento feito por alguns amigos próximos quanto à maior incidência de “sem-noções” que o tema ganhou discussão acalorada em uma roda de conversas. Foram lembrados alguns personagens que ao conquistarem uma posição social mais alta, passam a acumular objetos que lhe emprestam visibilidade e prestigio, e a praticar  nos espaços públicos, ou um exibicionismo ruidoso com publicações em redes sociais de fotos que comprovem sua vida de celebridade ou certo autoritarismo, exibindo sem qualquer constrangimento uma discriminação em relação aos comuns. Seu carro pode parar em locais não permitidos, por exemplo, em fila dupla ou com o pisca ligado enfrente a bancos, escolas, farmácias, etc., como se concedessem a si próprios privilégios vetados aos outros mortais. Mas também foi destacada certa falta geral de etiquetas e limites fundamentais para espaços compartilhados. A impaciência que muitas vezes desemboca em comportamentos ou falas violentas e que vem sendo cada vez mais comuns no trânsito chega a assustar. São buzinas e gritarias para qualquer cidadão que estiver obstruindo o caminho. E assim, outras situações foram elencadas, desde atender o celular em qualquer lugar ou hora e falar por tempo indeterminado sem diminuir o tom de voz até sentir-se à vontade para tecer comentários sobre qualquer assunto, com pessoas que não são íntimas, sem que estas tivessem feito algum convite. Ao final, permanece a impressão de que estamos diante de pessoas que não construíram internamente uma percepção de si e dos outros que lhes possibilitasse  gestar sua convivência pública. Alguns argumentos se impuseram. O “sem-noção” seria um personagem tupiniquim? Ele incide mais em certos países em desenvolvimento tal como o nosso, que não têm um histórico civilizatório importante? Diante da demanda do mundo contemporâneo para que cada um gerencie sua própria vida, quem se ocupa de oferecer subsídios para que sejam preservadas algumas regras mínimas de convivência desde que a família de origem perdeu seu espaço antes único de doador destas referências? Sabemos que na atualidade, ao ser convidado a se tornar visível para confirmar sua existência no mundo, cada individuo faz uma leitura pessoal deste percurso, segundo seus critérios ou possibilidades. Ainda que a maior parte da população mundial nunca tenha desfrutado de tamanha liberdade de escolha para suas vidas, o que parece se impor ao convívio humano é que deve caber a cada um o trabalho psíquico de construção de um lugar de “ ser gente”. De fato, em pequenas ou grandes proporções todos podemos ser “sem-noção”. Tornar-se alguém benquisto, amável e educado exige uma métrica de autocrítica que não faz parte da genética de ninguém, ao contrário, precisa ser exaustiva e ativamente construída ao longo da vida, o que transforma tal lugar em um posto a ser conquistado, que tem seus custos sempre atualizados.

domingo, 13 de outubro de 2013

Somos tão jovens

Dias atrás, uma notícia na mídia que divulgava a nova orientação para psicólogos americanos sobre a extensão da adolescência até os 25 anos, ao invés dos 18 anos, abria um debate sobre a infantilização dos jovens, levando em conta especialmente o alongamento do período de sua permanência na casa dos pais. Não é dificil confirmar estes dados estatisticamente e é provavel que a tal mudança de diretriz estivesse « atualizando », ou melhor, ajustando as políticas públicas para garantir por um período maior uma assistencia diferenciada aos jovens no campo educacional, social, médico e jurídico. Como sempre acontece, as leis precisam contemplar as mudanças da cultura, que nas últimas décadas alteraram e muito o vetor de nossas crenças e parâmetros. Mas imaginar que os jovens já não aspirem mais tornar-se independentes pode ser uma ideia reducionista quando analisamos quão « jovem » é a estética do mundo contemporâneo. Se os oráculos de Delfos significavam para os gregos antigos um recurso (sagrado) para a obtenção de respostas sobre problemas cotidianos, questões de guerra, vida sentimental, previsões de tempo, etc, hoje para decifrar o futuro a mídia fareja as novidades sem fim que surgem do mundo jovem. A máxima de que o que importa para os jovens é o presente estendeu-se para todos. O mundo atual nos convida a viver o mais que pudermos, a desfrutar de tudo o que conseguirmos, a buscar  prazer no que fazemos, a sermos feliz, etc. Seguindo esta lógica, desde o instante em que nascem desejamos que nossos filhos sejam lindos, inteligentes, carismáticos, felizes, competentes, amados, magros. E o que querem os jovens hoje? Entre outras coisas buscam aflitos uma maneira de cumprir tantos ideais. Se as gerações anteriores precisavam ralar para se safarem dos valores preestabelecidos e cultuados pelos pais e sociedade, rasgando os protocolos e rompendo com os constrangimentos sociais, a geração de jovens hoje precisa encarar o fato de que o futuro está em aberto e tudo pode ser possível. Paradoxalmente isso tem sido motivo de muito desamparo e aflição (pânicos, depressões, drogas), já que para se tornar “gente” é preciso construir um “eu” que dê conta do recado, ou melhor, dos inúmeros recados: seja do mundo interno, sempre tumultuado com suas paixões, dores, medos e desencantos, um mundo que jamais é silencioso ou isento e quando isso acontece convém desconfiar ser uma tentativa (muitas vezes sintomática) de controlar e/ou se proteger do tumulto ; seja do mundo sociocultural com suas inúmeras demandas de competencia, que exige ainda um saber se colocar diante dos outros e a construção de um lugar para si que possa ser reconhecido tanto no plano profissional quanto no amoroso. Difícil encarar a vida sem se anestesiar ou enlouquecer. Se admitirmos que a família já não tem o mesmo peso na definição dos destinos (o plural é importante ) dos jovens, ao mesmo tempo em que isso pode abrir portas inusitadas e importantes, também pode paralisar e engessar. Muitos jovens se sentem insuficientemente preparados para um futuro que depende tanto deles para ser construído. Se tal afirmação pode explicar em parte o aumento desta “gestação” do jovem antes de se “jogar” no mundo em busca de um futuro, é verdade que nós, pais, também vivemos nossas incertezas e ficamos muitas vezes entre a constatação (e a frustração)  de que nossos pimpolhos não estão preparados e a agonia diante do que fazer para ajuda-los/incentiva-los a decolar. A boa notícia é que a grande maioria dos jovens faz uso de uma nova prerrogativa ao construir redes de amizades que podem funcionar como suplência interessante para o debate de suas questões

As teclas pretas das teclas brancas


Em minha família, pianos abertos, prontos para serem tocados por quem quisesse era (e ainda é) uma cena comum. Tínhamos um em nossa casa, em cada uma das casas de nossos avós e de muitas de nossas tias. Quando éramos pequenos, minha mãe, que havia se formado no Conservatório Dramático e Musical de Araraquara, costumava tocar as músicas de um maravilhoso álbum de Chopin lançado por ocasião do filme sobre sua vida - À noite sonhamos (1945)- com a seleção da trilha sonora. Por conter muitas fotos de cenas do filme, adorávamos folheá-lo, e embora tivéssemos nossas preferencias – Noturno n 2, o Estudo Revolucionário ou o Estudo das teclas pretas, por exemplo - era impossível decifrar aquelas bolinhas pretas, cheias, vazias, com hastes, junto com muitas ou separadas que seguiam por espaços de linhas pelo álbum todo. Não me lembro de quem me ensinou a tocar o “bife”, uma espécie de introdução ao teclado de um piano, mas lembro-me bem de meu orgulho quando me punha a toca-lo sempre que tivesse alguma plateia. Sentia-me muito sabida por poder arrancar um som agradável e conhecido daquelas teclas brancas, mas principalmente das pretas. Parecia natural, portanto que aos cinco anos eu começasse a ter aulas de piano com Dona Eda, uma jovem mulher muito alta, que morava com sua irmã e sua mãe bem enfrente ao comércio de meu pai. Não conheci nenhuma professora tão doce e tão preparada para ensinar crianças pequenas a ler aqueles hieróglifos musicais e sei hoje que devo à sua imensa paciência o fato de eu ter me formado em piano. Como naquela época eram necessários 9 anos de estudos para se obter o diploma, depois de alguns anos tive que me despedir de minhas aulas particulares com Dona Eda para ingressar no Conservatório Musical da cidade. Um marco que sublinhava minha passagem à pré-adolescência com novos e mais difíceis destinos. Deixava para trás com muita dor na alma, não apenas minha querida professora, mas alguém especial, que sabia exercer com maestria a difícil tarefa/arte de ensinar, em uma combinação de delicadeza, reconhecimento pontual de minhas aquisições e muito jogo de cintura para com a pesada disciplina exigida para este aprendizado. Uma de suas estratégias era colocar balas deliciosas encima das mãos enquanto eu tocava e se eu conseguisse não derruba-las poderia levar para casa em dobro. Nem tudo eram flores. Muitas vezes “emburrei” nos degraus da varanda exigindo que ela, no devido tempo, fosse me convencer a voltar e tentar novamente. Assim como a máxima que diz que governo bom é governo invisível, que não nos impõe sua presença, Dona Eda trabalhava nos bastidores. Tudo o que me lembro dela passa por este canal amoroso de sua aptidão para transmitir seu conhecimento sem fazer alarde. Uma das questões que mais se debate nos dias de hoje é como e quais valores deveriam ser transmitidos de geração a geração, que possam servir de ferramentas para uma vida “bem vivida”, um convívio entre pessoas minimamente  respeitoso. É natural que muitos se lembrem de como a educação tradicional privilegiava a transmissão de comportamentos virtuosos geralmente baseados em alguns ideais já estabelecidos e coletivamente cultuados. Mas as rupturas com estes ideais foram de tal ordem que temos dificuldades para dimensionar a nova realidade que nos circunda e entender seus múltiplos aspectos. Desconfiamos que ficou muito mais complexa a tarefa da transmissão entre gerações e que não será o contato com os objetos ou ferramentas que farão crianças melhores, mais inteligentes ou felizes, mas como estes objetos/ferramentas  serão mediados por adultos capazes de fornecer significados e ajustes importantes ao que ainda não sabem. Em qualquer piano aberto pode-se dedilhar o bife. Alguns sabem toca-lo, ou a temas musicais de seu gosto. Muitos não se atrevem. Outros tantos sabem TUDO de música e podem tocar não só piano como qualquer instrumento. No inicio do aprendizado utilizamos muito mais as teclas brancas e à medida que a harmonia aumenta em complexidade é que as pretas passam a ser utilizadas. As teclas pretas são os meios tons entre uma tecla branca e outra, ou seja, podemos inclui-las para aumentar as opções de modulações do som ou tocar apenas as notas básicas que todos conhecem. Não sei se eu teria continuado a estudar piano se não tivesse tido meu pré-primário com Dona Eda. Foi ela quem me “revelou” não a música, mas a beleza da música e me transformou em alguém apaixonada por ritmos, sons especiais, inaugurando um espaço novo e importante no meu conjunto. Talvez a tarefa desafiadora de qualquer adulto contemporâneo seja a de se preparar para ser este decifrador para os pequenos, mas sabendo que é preciso começar pelas teclas brancas para quem sabe chegar às pretas.

 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Mães, filhos e aflições


Uma jovem mãe contava a outras jovens mães sobre sua agonia desde que havia se dado conta que suas duas filhas, com diferença de apenas um ano, haviam entrado na pré-adolescência. Sem parâmetros, sentindo-se perdida na difícil tarefa de discriminar o que consentir e o que proibir, o que não dar importância e o que se preocupar, ela teria encontrado certo alento na interlocução via Facebook com outros pais/mães de adolescentes. Havia descoberto a página do Facebook intitulada “Mães e pais de adolescentes” destinada a incentivar a troca de ideias e dicas sobre os filhos. Fui conferir. Simpática, a tal página anuncia quem é o seu público e convida os pais/mães a conversarem ali. Também descreve esta atordoante faixa etária ponderando sobre seu fascínio num mundo em que crianças e adolescentes usam teclas e botões “como se fossem  extensões de seus dedos, falam a mesma língua dos softwares e aprendem rápida e facilmente tudo o que lhes desperta o interesse.” Mas pondera que esta facilidade de tudo saber confunde-se as vezes com o tudo querer, o que tornaria difícil para os adultos/pais manterem seu foco na árdua tarefa de educa-los. Democrática e aberta, incentiva a todos a dar voz às suas aflições e/ou aos seus conselhos. A jovem mãe que está contando às suas interlocutoras sua descoberta, no entanto, não parece satisfeita. Há muitas perguntas sem respostas e ela continua aflita, sentindo-se incompetente e perdida. Em sua coluna na Folha de SP do dia 20 de agosto de 2013, sob o título “Depressão e autenticidade” Vladimir Safatle , baseado em uma recente pesquisa que diz que em cada cinco mulheres, uma passará por depressão ao tornar-se mãe, convida a todos a refletir sobre  o ônus que a experiência social de ser mãe carrega na atualidade. Referindo-se ao fato de que hoje as mulheres já não têm modelos únicos ou formais do “tornar-se mãe” como acontecia até algumas décadas atrás, ele aborda o despreparo de todas diante do inevitável confronto com bebês (filhos) que despertam sentimentos ambíguos e contraditórios. Longe de fazer a apologia da tradição “de mãe para filha” em que os mitos e os rituais não eram questionados e valiam para todos indiscriminadamente, e diante do atual arsenal de especialistas que prescrevem caminhos a seguir, ele questiona o lugar dos afetos que tendem a ser silenciados por todos – pais, parentes, especialistas. Lembrei-me da história contada por minha faxineira sobre uma conhecida sua, mocinha de 23 anos, que se casou com um rapaz um pouco mais velho, 33 anos, descasado, que já tinha um filho de seu primeiro casamento. Apaixonada, sonhava em ter um filho com ele como a consolidar a relação. Grávida de 8 meses viaja para o Nordeste a fim de visitar seus familiares. Na volta, em visita a uma cidade vizinha, o bebê rompe a bolsa e “decide” nascer. Sem conhecer ninguém ela passa horas à espera de um atendimento no hospital. Como seu nenê não acompanha o desenvolvimento esperado começa a leva-lo a médicos que indicam a ressonância magnética para um diagnóstico mais apurado. Nas datas marcadas para o exame, sem explicações plausíveis, falta sistematicamente. Morre de medo de saber que não tinha conseguido gerar um filho perfeito. Paralisada e envergonhada, não consegue ser a mãe que tinha imaginado, o que faz com que seu filho também não possa “existir”. Quando finalmente comprova ser ele “normal”, pode enfim olha-lo com amor e exibi-lo orgulhosa. É provável que a mãe das pré-adolescentes sinta-se inundada/assaltada por seus fantasmas adolescentes, incapaz de responder a si mesma sobre suas questões ainda tão confusas. Também ela tenta silenciar seus ruídos e os que são provocados pelo confronto com esta passagem das filhas.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Quem quer ser evangélico?


Nada mais “in” do que analisar a crescente visibilidade e porcentagem de evangélicos no Brasil à luz da mobilização de católicos em torno da visita do Papa Francisco I ao Rio de Janeiro. Foi mais ou menos este o teor do texto publicado na Ilustríssima do dia 21 de julho de 2013 em que o sociólogo da USP Reginaldo Prandi acompanha o deslocamento de uma população antes majoritariamente católica para o que ele chama de pentecostalismo. Longe de ser uma tarefa fácil já que são muitas as variáveis, algumas bastante complexas! Dentre os temas, a constatação de que assim como a religião católica empreendeu modificações em seus rituais muitas décadas passadas, a fim de se adequar aos tempos modernos, as religiões evangélicas teriam feito uma recauchutagem bem mais radical nas últimas duas décadas. De uma tônica que preconizava a vida austera e simples, adotou-se a teologia da prosperidade, bem ao gosto do mercado de consumo, deixando o “recato” para os temas sobre sexualidade. Ao acenar com a possibilidade de realização de qualquer sonho de consumo, este novo Deus incentiva uma população mais carente – e mais reticente com o avanço dos costumes e direitos - a confiar em um futuro promissor, cheio de “objetos de desejo”. Mais que isso, abriga a todos que se sentem excluídos/desamparados por razões morais, ao emprestar normas e restrições claras às suas condutas para a vida sexual e amorosa. Por bairros e cidades multiplicaram-se grandes salões em que pastores, seguindo um modelo carismático (à Silvio Santos) de pregação, aumentam seus rebanhos espalhando tais promessas. Do púlpito das igrejas ao dos congressos, apenas um passo. Foi assim que assistimos perplexos, um pastor/deputado assumir a presidência de uma comissão de Direitos Humanos da Câmera e sem qualquer constrangimento, tentar leiloar os direitos recém-adquiridos de homossexuais ou impor uma legislação que os “curasse” de seus desvios. Já da esperada, rápida e pontual estadia do Papa em terras cariocas ecoaram textos e reportagens sobre as mudanças que este novo papado pode produzir na Igreja Católica, sobre o “mundo católico” e sua geografia, sobre os custos desta vinda para a cidade do Rio (que chegou até a decretar dois dias de feriado), e sobre os jovens “religiosos” brasileiros. A partir de uma pesquisa realizada em maio pela Data Popular em 100 cidades do país, ficamos sabendo, por exemplo, que 44,2% dos jovens entre 16 e 24 anos são católicos, 37,6% são protestantes/evangélicos, 6,7% são seguidores de outras religiões e 11,5%  não são religiosos. Um dos desafios da vinda do Papa para a Jornada Mundial da Juventude seria a conquista de uma fatia dos católicos afastados através de um upgrade em seu modelo de evangelização. A pesquisa ainda problematiza o papel da religião para os jovens, assim como sua opinião sobre temas controversos como o aborto, a pena de morte e a legalização da maconha, talvez no intuito de “medir” o comprometimento de cada um com sua fé, ou ainda a fé com os códigos que cada religião preconiza. Quem sabe uma tentativa de mapear o complexo lugar que as religiões ocupam na vida das pessoas na atualidade, bem longe daquele em que ela encarnava o Poder. O mais provável é que as religiões acenem com a possibilidade de regulamentação das vidas através de regras fixas e claras, o que alivia o desamparo - às vezes insuportável - de muitos jovens (e de seus pais), uma forma de “proteção” para os sentimentos morais.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O cão nosso de cada dia


Formávamos um quarteto de amigas à espera de um garçom que nos atendesse. Enquanto isso, a única avó da mesa saca seu celular e passa a desfilar as fotos de seus três netinhos. Todas olham embevecidas as caras, bocas e poses de cada um. Faz-se um ohhhhh geral. Sem conseguir evitar, outra amiga tira seu celular da bolsa e mostra a foto de seus dois amores estampada na capa. Que lindos, exclamamos duas de nós. Que pelos maravilhosos!!! Eles parecem estar sorrindo! Indignada, a outra balança a cabeça sem poder entender o entusiasmo. A dona dos cachorros sorri e comenta em tom baixinho: “ela nunca teve cachorros, não sabe o que é isso”. O “isso” era sem dúvida o sentimento comum que havia tomado conta de nós três que, ao contrário, tínhamos muitas estórias para contar sobre nossos cães em nossas vidas. O estranhamento desta amiga para quem os cães eram apenas animais como outros quaisquer, no entanto despertou-nos a ânsia de explicar o que (para ela) era inexplicável: como nossas vidas tinham sido afetadas por estas criaturas. Passamos assim a contar estórias emocionadas, como se estivéssemos falando de nossos próprios filhos. A dona da foto do celular que morava em uma casa em Belo Horizonte descreveu seu dia a dia com aqueles que eram, por enquanto, seus “netos” de 10 e 8 anos. Os filhos já haviam se mudado para compor novas famílias, mas ainda não eram pais e os dois cães ocupavam o lugar das crianças da família, o que os tornava assunto de interesse de todos. Pelo menos uma vez ao dia seus filhos ligavam para saber notícias das “crianças”, fato que a deixava muito empolgada, pronta para descrever entusiasmada as últimas peripécias da dupla. Ouvindo-a narrar sua estória pensei (com meus botões) como a experiência de ter esses “bichinhos” morando em apartamentos acrescentava variáveis inimagináveis ao convívio entre os “donos” e seus cães. As lembranças de Bob ainda estavam misturadas ao luto pela sua morte acontecida há dois meses, depois de 18 anos de convivência diária e intensa. Bob era um Fox Paulistinha (o amor pela raça herdamos de nossa querida amiga ribeirão-pretana Márcia), conhecido por sua inteligência, que passou a dividir espaços conosco quando meus filhos ainda estavam na pré-adolescência (8 e 12 anos) e rapidamente fez de nossa casa sua casa. Tinha seus lugares, alimentos, objetos, odores e sons preferidos assim como sabia comunicar aqueles que não faziam seu gosto. Ao longo de nossa vida “familiar” desenvolveu comportamentos diferenciados que agradava a cada um em particular. Sua vitalidade era invejável: ao som do interfone corria à porta a espera da “visita” até que esta tocasse a campainha. Se se anunciasse a possibilidade de algum passeio não descansava enquanto o fato não se consumasse, ou seja, ia do local em que estava sua coleira até a porta, voltava-se para o “anunciante” e repetia este percurso à exaustão (de todos). Quando finalmente “vestia” a coleira, saía pelo corredor até o elevador saltitante e satisfeito. Se faltasse água ou ração sabia bater com insistência nos respectivos pratos para pedi-los. Morreu de velhice como quem não queria ir-se. Em seu ultimo ano de vida, mesmo tendo perdido a visão e a audição, ainda distinguia as pessoas e os locais pelo faro. Tinha se tornado membro “efetivo” da família e era raro não ser tema de conversas animadas ao redor de mesas de almoço ou jantar em que se discorria sobre suas surpreendentes estórias. Nossa amiga desconhecia este mundo “novo” em que cães comportam-se de forma ajustada a casa, à rotina e à convivência com seus “familiares”, se “humanizam” e  entendem vários códigos de nossa linguagem. Cães que adoecem e se alegram com seus donos, podem se deprimir ou serem “ansiosos”. Cães que vivem como gente.

Nós na foto


Dia desses uma amiga, após ser convocada por si mesma a passar uma informação que evitaria uma surpresa desagradável a uma colega, comentou ironicamente que sua atitude tinha como objetivo maior contribuir com a garantia de seu passe para o “paraíso”. Assim, em pequenas “prestações”, ela apostava na conquista de certo sossego enquanto vivesse, já que poderia contar com o conforto de acreditar que “Alguém” estaria pontuando seu bom comportamento. Corta. Um conhecido que participou recentemente de uma reunião em seu  condomínio ficou espantado quando num certo momento, em um efeito dominó, alguns moradores passaram a se alterar e ficar mais violentos ao reclamarem seus direitos ou queixarem-se dos incômodos do convívio coletivo. Suspirou aliviado, a seguir, diante da intervenção sensível do síndico que, ao perceber que tais moradores precisavam de uma atenção especial, soube se colocar como mediador dos conflitos, oferecendo-se para ajudar a resolver algumas pendengas, sem se esquecer de evocar aos reclamantes a parte que lhes cabia na política (sempre difícil, sem dúvida) da boa vizinhança. Quem sabe algo que tenha faltado na história trágica divulgada dias atrás, em que sem conseguirem resolver as crescentes desavenças que só aumentavam o ódio de parte a parte, um empresário de 62 anos de posse de seu 38, invadiu enlouquecido o apartamento de cima e matou a queima roupa o casal de moradores, poupando de sua ira apenas o filho de um ano e meio. Provavelmente sem poder suportar o que imaginava serem as consequências de seu ato, apontou a seguir o revolver para si e pôs, assim, um “fim” a todas as perturbações. Como sempre acontece em fatos tão inimagináveis à maioria - justamente pela maneira obscena e banal com que a vida humana é tratada – espalham-se indignações, mas principalmente medos e inseguranças já que qualquer um, de qualquer lugar, pode ser portador de um excesso incompreensível de violência e ódio. Mas quem sabe o “matador” não estivesse em seu estado normal, quem sabe ele estivesse passando por problemas graves, ou portador de algum transtorno psíquico? Não é o que revela sua esposa (e amigos) que atribui seu ato a um “surto de loucura” circunscrito àquela situação. Claro que não podemos afirmar muito sobre suas razões e/ou desrazões. Podemos somente reafirmar que faz parte de nossos arquivos históricos, as inúmeras formas (a depender de épocas históricas) de se fazer mal ao outro, de se deixar fazer mal e até de se fazer mal a si próprio. Não há convívio sem conflitos e para vivermos todos precisamos de um jeito ou de outro, negociar com nossa economia destrutiva tanto quando ela se dirige a nós mesmos quanto aos outros. Mas assim como o que muda na história são as formas do “mal”, para cada um de nós estas negociações ficam atadas ao complexo processo de nos tornarmos gente. Na reunião de condomínio citada acima, o síndico emprestou suas palavras para dar um sentido aos distúrbios entre os moradores, delimitando ao mesmo tempo as responsabilidades que cabia a cada parte, inclusive ao condomínio enquanto regulador desta convivência. Também minha amiga negociava consigo mesma os “custos” de sua solidariedade para com a colega. São estratégias de reconhecimento que, se por um lado podem funcionar como moduladores da violência, estão cada vez mais sujeitas à possibilidade ou não de existir um “outro”, um terceiro, capaz de ajudar a constituir (no plano psíquico) ou fazer as vezes do espaço ético necessário à convivência humana (no plano social). Nem a bondade nem a maldade habitam lugares predeterminados em nossos cérebros. Elas são construções categoria 3D  Não nascemos bons ou maus. Comecemos, pois pela admissão de que todos podem “cometer” o mal.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Porque não é tudo azul


Em 1987 Philip Tetlock, então professor de psicologia e de ciência política de Berkeley (Califórnia, USA) resolveu investigar os resultados de previsões que cientistas políticos e outros pensadores faziam sobre fatos importantes (econômicos, políticos, sociais) que aconteciam no mundo. Nessa época, começava a desmoronar o antigo império socialista da União Soviética e dois anos depois cairia o Muro de Berlim, hoje vistos como marco importantes de um novo período mundial. Após 15 anos de pesquisa, Tetlock não só chegou à conclusão de que uma alta porcentagem das previsões destes pensadores não se confirmava, como os discriminou em duas grandes categorias, os “porcos-espinhos”  e as “raposas”, a partir dos resultados de questionários destinados a captar seus modos de apreensão do mundo. Em resumo, os "porcos-espinhos” seriam os que acreditam em certos princípios (grandes ideias) que regem o mundo e sustentam todas as interações que ocorrem na sociedade. Já as “raposas” admitem a fragmentação, acreditam em abordagens diferentes para um problema e tendem a ser mais tolerantes em relação às nuances, à incerteza, à complexidade e às opiniões discordantes. Para ele as “raposas” seriam os que conseguiriam fazer melhores previsões justamente por não se encantarem com uma ideia grandiosa e preferirem um exame mais minucioso e diversificado dos fatos (Caderno Ilustríssima do dia 12/05/2013). Mesmo com as diferenças e uma avaliação mais favorável às “raposas”, Tetlock reconhece ser a política um campo especialmente suscetível a previsões infelizes devido aos seus “elementos humanos”. Em uma recente entrevista, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman do alto de seus 88 anos afirmava ter passado sua vida perseguindo um único e nobre objetivo, o de ser capaz de compreender os seres humanos e o diálogo inter-humano. Conclui que nós preferimos habitar um mundo ordenado, limpo e transparente, em que o bem e o mal, a beleza e a feiura, a verdade e a mentira se encontrem nitidamente separados um do outro e jamais se misturam, para que possamos ter certeza de como são as coisas, aonde ir e como proceder. Gostamos de imaginar que os julgamentos e escolhas possam ser feitos sem o árduo trabalho de nossa compreensão. De certa forma Bauman afirma tal e qual Tetlock que temos uma tendência, provavelmente protetora, de “ordenar” nossa apreensão do mundo de uma forma mais simples e objetiva. Quanto à política, é hoje um tema dos mais viscosos, e em quase a totalidade dos países, o “político” está de braço atado aos interesses econômicos, sejam de empresas, do próprio Estado ou de seus “jogadores”. A infinita complexidade da dimensão política fica esquecida e mesmo a mídia, esquivando-se de um debate sobre as inconsistências ideológicas, dá maior visibilidade às disputas de poder entre os de esquerda e os de direita, os conservadores e os social democráticos, a situação e a oposição, os privilegiados e os oprimidos, e assim por diante. Avaliações de “porcos-espinhos”, diria o cientista americano, ou uma visão do mundo que tenta “ordenar” as coisas para não provocar dúvidas ou desconfortos, diria Bauman. Sendo a terceira maior cidade do mundo, São Paulo esbanja complexidade e deveria convocar permanentemente o setor público para as suas deficiências e a população para debater suas questões mais cabeludas. Mas São Paulo também exibe uma exuberante contemporaneidade cultural que a maioria de seus habitantes mal reconhece. Ela é, por exemplo, a cidade mais nordestina do Brasil, assim como possui a maior quantidade de negros. A Virada Cultural que acontece todo maio e já foi uma ideia de outros governos deveria ser apartidária. Uma ideia boa para todos não deveria ter dono. Aqueles que acorrem ao seu chamado e se preparam para usufruir da  sua extensa e variada programação sabem bem que para curtir a Virada Cultural  é preciso “compreender” seu sentido e deixar-se afetar pela convivência com as diferenças em toda a extensão que esta palavra pode ter: de classes sociais, de raças, de idades, de modos de viver, de cantar, dançar, de comer, de chorar, de se alegrar e até de não gostar. Nem “porcos-espinhos” nem “raposas”, nem um mundo muito ordenado, apenas gente disposta deixar a vida cotidiana e se deixar surpreender.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Quem sou este


Um texto indignado, mas corajoso do jornalista carioca Luiz Fernando Vianna foi publicado na Ilustríssima (Folha de SP) de 17 de março de 2013. Próximo ao recém-instituído (2008) dia mundial da conscientização do autismo, 2 de abril, não se pode deixar de celebrar qualquer espaço midiático que se abre para este que é um tema dos mais controvertidos. Escrito de forma coloquial, o reporter se apresenta desde o início como pai de uma criança autista agora com 12 anos e discorre com um tom às vezes áspero e sarcástico, outras cético e até melancólico sobre as agruras deste lugar revelando sua pesada bagagem no trato da natureza dos constrangimentos em torno desta “viagem”. Se há pontos de interrogações, debates ou mesmo disputas nos campos médicos e psi em torno das origens, do diagnóstico e dos “tratamentos” não é nada dificil imaginar como muitos destes pais ficam à deriva, batendo de porta em porta em busca de respostas  e direções. Em uma tentativa de discutir as implicações desse diagnóstico para a vida de uma criança e de seus pais, Vianna toma um atalho bastante pessoal ao percorrer seus impactos morais, pedagógicos e emocionais e, embora dedique algum espaço ao ressentimento diante do preconceito, celebra o auxilio dos recentes relatos de autistas na web e/ou produções literárias e cinematográficas de biografias sobre o tema. Ainda em uma jornada muito pessoal, critica e contrapõe as metodologias terapeuticas segundo uma abordagem cognitivo- comportamental ou psicanalitica e aponta as controversias em relação às recentes pesquisas na área médica que sinalizam fatores neurologicos ou genéticos. Como cada campo acena com suas “verdades” sobre o tema geralmente cabe aos pais (nem sempre com um consenso entre os conjuges) escolher (acreditar, apostar) em algum destes caminhos. A propria definição de autismo pode variar segundo a época e os grupos que se ocupam de pesquisa-lo e/ou oferecer tratamentos. Na linguagem acadêmica atual o autismo – que atinge quase 1% da população global - tem sido tratado como uma disfunção global do desenvolvimento que altera e afeta a capacidade de comunicação, de socialização (estabelecer relacionamentos) e de comportamento (responder apropriadamente ao ambiente). E para acomodar os diversos modos de manifestação e a gama de possibilidades dos sintomas mais recentemente cunhou-se o termo Transtorno do Espectro Autista. A psicanálise esteve desde sempre associada aos caminhos e descaminhos deste transtorno e muitos psicanalistas se dedicaram ao que lhes parecia ser um campo fertil de pesquisa sobre os primórdios da constituição do psiquismo humano, compondo relatos e teorias importantes através de suas clínicas. Mas, afora os quadros fenomenológicos descritivos, é provavel que o fato de não existir uma teoria consensual sobre o autismo pese sobre a respeitabilidade social das práticas, assim como pela manutenção do preconceito. Também é provavel que algumas das teorias no campo da psicanalise tenham contribuido para que certas representações culturais sobre o autismo fossem relacionadas à ideia de deficit, de impossibilidade, de um mundo psíquico desvitalizado ou de pais que não ofereciam as condições necessárias para um desenvolvimento “adequado”. Se, no entanto for possivel – como já acontece em alguns lugares - não engessar a “condição” autista com teorias fechadas e rígidas e tornar seu campo mais aberto a atendimentos feitos por equipes multidisciplinares, é provavel que não seja mais o adjetivo “vergonha” (destacado pelo reporter)  que abaterá  aos pais que descobrem ter um filho com este diagnóstico. Para a psicanálise em especial, toda e qualquer criança cumpre uma trajetória singular de desenvolvimento e constituição, ainda que nasça com alguma alteração genética.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Quem é a criança do século XXI?


Uma  manchete da Folha on line do dia 12 de março de 2013 chamava a atenção para as dificuldades de se colocar limites para as crianças. Um dos destaques do texto do caderno Equilíbrio era a pesquisa da mestre em educação e autora de "Limites Sem Trauma”, Tania Zagury para quem as famílias estariam sob o governo de uma tirania infantil. Baseada em um estudo com 160 famílias no início dos anos 90, ela afirmava que os pais dos anos 80 ao desejarem uma educação menos cerceadora para seus filhos, teriam perdido a medida. O título da matéria ainda sugeria um debate com especialistas sobre os motivos pelos quais seria tão difícil aos pais nos dias atuais, encontrarem a tal medida equilibrada para conter as birras ou as transgressões nos horários de alimentação, sono e estudos. Em geral diante de situações difíceis  tentamos fazer comparações entre épocas passadas e atuais, discorrendo sobre as desvantagens e vantagens de uma e outra. É claro que cada época traz uma nova leitura da realidade, novos parâmetros e valores. E há também novas leituras sobre os descaminhos humanos. Não há como negar que vivemos na época atual, uma crise geral de autoridade, em todos os níveis da sociedade. Mas as “crises” não significam fim e sim um remanejamento temporário de certas “verdades” instituídas. O problema é que em períodos de crise ficamos desamparados, quase sem referencias sobre certas ações, comportamentos e ideias antes tão claras. Não é fácil esvaziar estereótipos e dar lugar a novas maneiras de estar no mundo. Uma  “verdade” de nossa época é que jamais a infância foi tão valorizada, destacada, estudada, cuidada, etc. Não por acaso. Se há um bocado de razões, podemos sublinhar o fato de que a infância é mais do que em qualquer época de nossas vidas, aquela que parece ser definitiva dos rumos que cada um tomará. Assim, uma boa infância ou uma infância feliz seria uma espécie de garantia de um adulto satisfeito consigo próprio, com pique e ferramentas para enfrentar os percalços da vida. Quase todos os pais de hoje só se sentem realizados quando sua prole cresce e se transforma em adultos “felizes”. Mas certamente esta não é uma tarefa simples e muito menos fácil e é comum nos depararmos com o desamparo do adulto diante das exigências ou dos conflitos dos filhos, a quem eles próprios prometeram dar “tudo de bom e de melhor”. São pais que ora se sentem exasperados, ora  culpados ou  impotentes, e muitas vezes incapazes de educar sua criança. Na melhor das hipóteses, a não imposição de limites e o “medo” de desaprovação de sua função de pai ou de mãe faz com que muitos desistam de exercer sua responsabilidade e autoridade. Digo no melhor das hipóteses porque não se podem deixar de fora aqueles pais que abusam, rivalizam, violentam, ou seja, desrespeitam os direitos de suas crianças que por seu lado não têm como se defender da displicência, da irresponsabilidade nem dos excessos de amor e ira de seus pais. Difícil mesmo. Talvez a mais importante e mais complexa tarefa de nossos tempos: “criar” um novo ser humano.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O que queremos?


Em meados de janeiro deste ano a mídia divulgou o resultado de uma pesquisa realizada em conjunto por duas universidades alemãs (Universidade Humboldt e a Universidade Técnica de Darmastadt)  que revelava que uma em cada três pessoas sentia-se pior ou mais insatisfeita com a própria vida após visitar o Facebook  e visualizar o conteúdo compartilhado por amigos em situações de sucesso. A manchete destacava  que testemunhar as férias, a vida amorosa e o sucesso profissional dos amigos no Facebook causava inveja, infelicidade ou sentimento de solidão em grande parte dos entrevistados. Fotografias de férias e comparação de felicitações de aniversário, de incentivos ou de carinho estariam entre os itens mais duros de engolir, quer dizer, aqueles que mais provocariam inveja e ressentimento, a depender da quantidade dos "curtir" ou dos comentários postados. Embora a ideia de utilizar o Facebook como plataforma para se obter um panorama atualizado das novas formas de convivência virtual seja muito interessante, o uso dos resultados incitava os jovens a desistir da rede social e assim evitar os “maus” sentimentos, algo no mínimo questionável. Mal comparando seria como se a cada vez que os filhos reclamassem aos pais de sentirem-se “menos”, de desejarem ter a vida de alguns amigos, de não suportarem conviver com uma suposta felicidade de outros na escola, estes pais providenciassem rapidamente uma mudança desta escola para algum lugar “melhor”, que pudesse protegê-los destes desconfortos. Por outro lado a pesquisa deixou de fora um dos mais pungentes e duros sentimentos que a rede social escancara, a dor de cotovelo. Percebam que evitei usar a palavra ciúmes por imaginar a “dor de cotovelo”, tal como é usada em nossa cultura, como abrangendo melhor as várias dores contidas em separações amorosas. Entrar no Facebook para acompanhar a vida do(a) ex, seus passos, suas fotos, sua nova paquera, a constatação de que ele(a) pode ( ou consegue) prosseguir sua vida, é um dos sentimentos mais devastadores pois convoca aquele que está sofrendo a aceitar o fato de não ser tão especial como desejaria . É ter que encarar sua “insignificância”, ao mesmo tempo em que deverá (tentar) processar seu luto pela perda daquele (a) que ainda lhe é tão especial. Mas analisar a relação dos usuários do Facebook  com suas dores, ou denunciar que esta rede pode expor as fragilidades de todos que a utilizam não necessariamente é um mal exercício. Pode isto sim, ser um convite para se pensar sobre possíveis novos modos (não necessariamente melhores ou piores, mas diferentes) de construção de convivência no espaço social. De saída, tal convivência estaria muito mais pautada na expectativa de uma “irmandade”, que funciona ao mesmo tempo como suporte e proteção, ao oferecer um “compartilhar” dos sucessos e fracassos dos amigos, mas também - não poderia deixar de ser - como polo de sentimentos de rivalidade, inveja e ciúmes, que como todos sabem, são humanos demasiado humanos. Ou melhor, são impasses e desafios desta nova existência humana, deste modo de convivência com os pares em que a liberdade para se fazer e dizer o que se quer exige necessariamente um confronto com as faltas e as fragilidades de cada um. Resta-nos  analisar as estratégias de negação da realidade, ou melhor nossas formas de nos defender e nos proteger destes sentimentos e saber distinguir as boas formas daquelas que são ruins. Você sairia do Facebook para evitar sofrer?