quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Sem-noção


Adjetivo praticamente instituído nos tempos de hoje, o “sem-noção” ganhou um lugar comum nas conversas cotidianas quando queremos nos referir a alguém que adota comportamentos, vestimentas, diálogos ou modos de vida que causem muito estranhamento por nos parecer excessivo, descabido ou desrespeitoso. Isso pode se aplicar a questões morais, mas também ao exibicionismo ou a certa intransigência, autoritarismo e/ou violência nas relações pessoais. É assim que no convívio, estas pessoas ganham uma identidade, são sem- noção, e passam a ser consenso entre os que o conhecem a tal ponto que basta utilizar tal adjetivo para que o diálogo sobre o fulano passe a ganhar um novo entendimento. É como se todos que participassem daquela conversa- em que o sem-noção não está presente – soubessem que ele tem limitações importantes e definitivas sempre que está em jogo o convívio, as trocas, os salamaleques, as delicadezas, etc. A classificação acalma e apazigua as inflamações e indignações sobre ele. Mas porque este tipo parece proliferar? Quem é o “sem noção”? Um disfuncional? Arrogante? Maldoso? Autoritário? Foi a partir de um questionamento feito por alguns amigos próximos quanto à maior incidência de “sem-noções” que o tema ganhou discussão acalorada em uma roda de conversas. Foram lembrados alguns personagens que ao conquistarem uma posição social mais alta, passam a acumular objetos que lhe emprestam visibilidade e prestigio, e a praticar  nos espaços públicos, ou um exibicionismo ruidoso com publicações em redes sociais de fotos que comprovem sua vida de celebridade ou certo autoritarismo, exibindo sem qualquer constrangimento uma discriminação em relação aos comuns. Seu carro pode parar em locais não permitidos, por exemplo, em fila dupla ou com o pisca ligado enfrente a bancos, escolas, farmácias, etc., como se concedessem a si próprios privilégios vetados aos outros mortais. Mas também foi destacada certa falta geral de etiquetas e limites fundamentais para espaços compartilhados. A impaciência que muitas vezes desemboca em comportamentos ou falas violentas e que vem sendo cada vez mais comuns no trânsito chega a assustar. São buzinas e gritarias para qualquer cidadão que estiver obstruindo o caminho. E assim, outras situações foram elencadas, desde atender o celular em qualquer lugar ou hora e falar por tempo indeterminado sem diminuir o tom de voz até sentir-se à vontade para tecer comentários sobre qualquer assunto, com pessoas que não são íntimas, sem que estas tivessem feito algum convite. Ao final, permanece a impressão de que estamos diante de pessoas que não construíram internamente uma percepção de si e dos outros que lhes possibilitasse  gestar sua convivência pública. Alguns argumentos se impuseram. O “sem-noção” seria um personagem tupiniquim? Ele incide mais em certos países em desenvolvimento tal como o nosso, que não têm um histórico civilizatório importante? Diante da demanda do mundo contemporâneo para que cada um gerencie sua própria vida, quem se ocupa de oferecer subsídios para que sejam preservadas algumas regras mínimas de convivência desde que a família de origem perdeu seu espaço antes único de doador destas referências? Sabemos que na atualidade, ao ser convidado a se tornar visível para confirmar sua existência no mundo, cada individuo faz uma leitura pessoal deste percurso, segundo seus critérios ou possibilidades. Ainda que a maior parte da população mundial nunca tenha desfrutado de tamanha liberdade de escolha para suas vidas, o que parece se impor ao convívio humano é que deve caber a cada um o trabalho psíquico de construção de um lugar de “ ser gente”. De fato, em pequenas ou grandes proporções todos podemos ser “sem-noção”. Tornar-se alguém benquisto, amável e educado exige uma métrica de autocrítica que não faz parte da genética de ninguém, ao contrário, precisa ser exaustiva e ativamente construída ao longo da vida, o que transforma tal lugar em um posto a ser conquistado, que tem seus custos sempre atualizados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário